Sobre a Atualização de Regras para o Uso Diferenciado da Força pelas Polícias
Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF
Conforme era de esperar a edição de decreto que atualiza regras sobre o uso diferenciado da força pelas polícias, em ato que regula abordagens e instrumentos de menor potencial ofensivo, com foco na valorização dos profissionais e no respeito aos direitos humanos (https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/noticias/decreto-que-atualiza-regras-sobre-o-uso-diferenciado-da-forca-pelas-policias-e-publicado), alvoroçou o reacionarismo ativo em nosso país, nas tribunas, nas redes e nos editoriais conservadores.
Bem-vinda a intervenção do ministro Jorge Messias, da AGU, em postagem – (https://x.com/jorgemessiasagu/status/1873011360226762793?s=48&t=9ozclQxkBfS8kZ6nzBc89Q) – assinalando que a medida foi construída “com ampla participação social, [e que] o decreto elaborado pelo MJ Ricardo Lewandowski para atualizar as regras sobre o uso diferenciado da força pelas polícias é um marco para a modernização e fortalecimento de nossa estratégia de combate à violência. Policiais valorizados e preparados, atuando em plena sintonia com o Estado de Direito, são fundamentais para reduzir a criminalidade. O populismo penal simplesmente não funciona. Como temos visto, a criminalidade tem aumentado em algumas regiões ainda que cenas de abuso policial contra inocentes tenham se multiplicado”.
O texto disciplina o uso de armas de fogo e instrumentos não letais, abordagens, buscas domiciliares e a atuação dos policiais penais nos presídios. O documento confere ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) a competência para editar normas complementares, além de financiar, formular, implementar e monitorar ações relacionadas ao tema. Ainda, a pasta deverá oferecer capacitações e trabalhar para a divulgação das normativas sobre o uso da força aos profissionais de segurança pública e à sociedade.
Conforme explicou o Ministro Ricardo Lewandowski, da Justiça “Dentro do Estado Democrático de Direito, a força letal não pode ser a primeira reação das polícias. É preciso que se implante de forma racional, consciente e sistemática o uso progressivo da força. Só podemos usar a força letal em última instância. É preciso que a abordagem policial se dê sem qualquer discriminação contra o cidadão brasileiro, se inicie pelo diálogo e, se for necessário, o uso de algemas dentro dos regulamentos que existem quanto a esse instrumento de contenção das pessoas, evoluindo eventualmente para o uso de armas não letais, instrumentos não letais que não provoquem lesões corporais permanentes nas pessoas”.
O ministro repõe seu posicionamento histórico desde o seu exercício no Supremo Tribunal Federal, na relatoria de casos paradigmáticos que exaltam a sua perspectiva humanista e leal aos direitos humanos fundamentais. Basta ver em Pela liberdade. A história do habeas corpus coletivo para mães & crianças (https://estadodedireito.com.br/pela-liberdade-a-historia-do-habeas-corpus-coletivo-para-maes-criancas/), a decisão afinal adotada, muito fortemente orientada pelo voto do Ministro Lewandoviski, [que] representa um salto jurisprudencial relevante, por trazer o Supremo para uma disposição ativa que se realiza em sua função de legislador positivo quando se trate de concretizar normas que tenham fonte no jus cogens inscrito na agenda civilizatória dos direitos humanos, e que represente “fomentar a implementação e a internalização eficaz pelo Brasil das normas de direito internacional dos direitos humanos”.
De minha parte, Reitor da UnB na época, não posso deixar sem confirmação essa disposição emancipatória do ministro, tendo acompanhado em todo o seu trâmite, incluindo as audiências públicas por ele presididas, na qualidade de relator, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186, processo judicial que questionou a adoção de cotas raciais na Universidade de Brasília (UnB). O Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a ADPF 186 improcedente por unanimidade. Como é sabido, o julgamento da ADPF 186 abordou a possibilidade da universidade e do Estado adotarem políticas afirmativas para corrigir desigualdades sociais. O STF considerou que as políticas afirmativas são legítimas para promover a igualdade de tratamento entre todos os seres humanos.
Atento a uma agenda que reivindica um programa de capacitação do próprio sistema judicial para aferir a juridicidade dos direitos humanos (confira-se o discurso do ministro quando tomou posse na presidência do Supremo Tribunal Federal), o ministro Lewandoswiski, no STF ou no MJ, prima por colocar a Justiça no rumo da concretização material da dignidade do humano e afasta o apego à morna, conformista e desatenta demanda por reconhecimento de direitos, acomodada a uma papelização formalista e muitas vezes delirante, de uma justiça não apenas de olhos vendados, mas com tampões nos ouvidos para o clamor e os movimentos que se organizam legitimamente na rua.
Voltando ao Decreto, entre os seus principais pontos, está a definição de que o recurso de força “somente poderá ser empregado quando outros recursos de menor intensidade não forem suficientes para atingir os objetivos legais pretendidos”. Também cita o uso de arma de fogo que será sempre “medida de último recurso”. Há a previsão de que sempre que o uso da força resultar em ferimento ou morte, a ocorrência deve ser detalhada, nos termos que serão elaborados pelo MJSP. O decreto destaca que a ação policial não deverá discriminar qualquer pessoa por cor, raça, etnia, orientação sexual, idioma, religião, nacionalidade, origem social, deficiência, situação econômica, opinião política ou de outra natureza.
O ministério irá oferecer capacitações sobre o uso da força para os profissionais de segurança pública. Em até 90 dias, a pasta irá editar portaria detalhando os procedimentos. Há ainda a previsão da criação do Comitê Nacional de Monitoramento do Uso da Força, com a participação da sociedade civil, que terá a missão de monitorar e avaliar a implementação das políticas. Além disso, o repasse de recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública e do Fundo Penitenciário Nacional para ações que envolvam o uso da força deverá ficar condicionado ao cumprimento das diretrizes definidas pela normativa.
Ora, sem o vozerio impressionista e performático de opiniões que mais ressoam uma postura de oposição a iniciativas que procedam da racionalidade administrativa ou que se capitalizem, mesmo em altos escalões da administração pública, com a mobilização de uma curiosidade ativada pela espetacularização das questões de segurança, a medida inscrita no decreto está perfeitamente afinada com os estandares, diretrizes e documentos das Nações Unidas ou de suas agências e serviços dispondo sobre regras de uso diferenciado da força pelas polícias.
Esses documentos, diretrizes, regras fornecem fundamentos jurídicos e orientações práticas para que as forças de segurança atuem em conformidade com os direitos humanos e o Estado de Direito. Alguns deles:
- Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei (1979). Resolução 34/169 da Assembleia Geral da ONU, que define princípios fundamentais para a conduta dos agentes da lei; estabelece que o uso da força deve ser excepcional, necessário e proporcional e determina que o respeito pelos direitos humanos seja central no trabalho das polícias.
- Princípios Básicos sobre o Uso da Força e de Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei (1990), adotados no 8º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção ao Crime e Tratamento de Delinquentes.
Esses enunciados regulam o uso da força e armas de fogo por agentes da lei, dispondo sobre a necessidade e a proporcionalidade, circunscrevendo o uso de força letal somente a situações onde exista ameaça iminente de morte ou ferimento grave; e indicando a atribuição de treinamento e planejamento, de modo que na sua ação os agentes, bem treinados, cuidem de minimizar danos e preservar vidas, além de estabelecer responsabilidades, de modo a que qualquer uso excessivo ou arbitrário da força deve ser investigado e punido.
- Relatórios e Diretrizes do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), aludem a publicações específicas sobre o papel da polícia em manifestações públicas, abordando o uso diferenciado da força, com destaque, entre esses documentos para o “Guia prático sobre os Direitos Humanos para Aplicação da Lei”.
- Diretrizes de Kampala (2014) aplicadas à atuação do UNODC (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime), para adoção em contextos de policiamento de comunidades e situações de alto risco, enfatizando o uso progressivo da força com base em critérios éticos.
- Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984), no que se relaciona ao uso da força, contendo a proibição de ações que possam causar sofrimento desnecessário. E com respeito a princípios de que a força só deve ser usada quando estritamente necessária, sua intensidade deve corresponder ao nível da ameaça e, sobretudo, que ações policiais devem ser transparentes e sujeitas a revisão.
Esses documentos podem ser encontrados no site das Nações Unidas e nas agências especializadas, como o ACNUDH e a UNODC.
O ACNUDH é a sigla para Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. É um órgão da ONU que tem como objetivo promover e proteger os direitos humanos em todo o mundo.
Já o UNODC (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime), aqui destacado porque dentro de seu mandato, aborda questões relacionadas aos limites do uso da força pelas forças policiais na repressão à criminalidade. Embora o UNODC não emita regulamentos vinculantes, ele desenvolve diretrizes, manuais e ferramentas práticas que orientam os Estados-membros a garantir que o policiamento seja realizado em conformidade com os direitos humanos, dentro das metas globais de desenvolvimento sustentável (antigos Objetivos do Milênio, hoje substituídos pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS). Na sua conexão com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), embora esses não incluam metas específicas sobre policiamento, tratam de questões diretamente relacionadas à segurança pública e ao uso da força (ODS 16 – Paz, Justiça e Instituições Eficazes).
As medidas adotadas pelo decreto são uma pálida representação sobre as diretrizes do UNODC sobre Policiamento e Uso da Força, e sobre o conjunto de manuais (Manual de Policiamento Comunitário) e estratégias voltadas para evitar o uso excessivo da força, enfatizando a construção de confiança entre a polícia e a comunidade.
Numa cultura ainda colonial, no geral neocolonial (racista, patriarcalista, patrimonialista, capitalista), não é espantosa a reação contrária ao decreto. Os editoriais de hoje atualizam uma mentalidade não superada (Os repugnantes anúncios de escravos em jornais do Século 19 https://saopauloantiga.com.br/anuncios-de-escravos/).
Defender o decreto é se posicionar de um ponto de vista contracolonial. O poeta e escritor quilombola Antonio Bispo dos Santos, autor do livro “Colonização, quilombos: modos e significações” (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino/Superior e na Pesquisa – INCTI/Universidade de Brasília – UnB, 2015: https://repi.ufsc.br/sites/default/files/BISPO-Antonio-Colonizacao_Quilombos_Modos_e_Significados.pdf), adverte que tanto a decolonialidade como a contracolonialidade têm funções importantes e um conceito não anula o outro: “Se você foi colonizado e isso te incomoda, você vai precisar lutar para se descolonizar e descolonizar os seus. Isso é a função da decolonialidade. Eu sou quilombola, eu não fui colonizado. Porque, se eu tivesse sido colonizado, eu seria um negro incluído na sociedade brasileira. Então, no meu caso, eu tenho que contracolonizar – contrariar o colonialismo. (…) O colonialismo está aí vivente, cada vez mais sofisticado”.
Em continuidade a essas agendas é preciso seguir debatendo temas convoquem posições em favor da autodeterminação do povo saharaui; da soberania permanente dos povos sobre seus recursos naturais; da apuração de crimes de guerra e a aplicação dos direitos humanos e do direito internacional humanitário com a responsabilização de agentes, autoridades e governos violadores e perpetradores desses crimes e da prevenção à guerra híbrida na forma de lawfare contra ativistas e jornalistas que denunciam essas violações.
É certo, diz o representante da Frente Polisário no Brasil Ahmed Mulay, “que só nós mesmos temos que buscar a forma de conseguir nossa independência”. Mas – ele completa em entrevista concedida a Esquerda Diário (https://esquerdadiario.com.br/Entendemos-que-so-nos-mesmos-temos-que-buscar-a-forma-de-conseguir-nossa-independencia-entrevista) – “além disso, estamos tentando convencer a sua excelência, o presidente Lula, para que trate a causa saharaui como tem tratado a causa palestina. Ele recebeu representação da Palestina, depois deu um passo adiante e reconheceu a República de Palestina e permitiu a existência de uma embaixada da Palestina no Brasil. Ele já reconheceu a Frente Polisário, mas queremos que avance e reconheça a República Árabe Saaraui Democrática e nos permita abrir uma embaixada junto com a embaixada da Palestina em Brasília. Essa é a nossa luta e por isso precisamos de vocês e todos os que vocês conhecem, dos meios, para que mobilizemos a opinião internacional e possamos chegar a este objetivo”.
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
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