domingo, 25 de fevereiro de 2018

Entrevista de José Geraldo de Sousa Júnior ao Correio Braziliense, em defesa da Liberdade de Cátedra

Por Ana Maria Campos
Ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB), o professor José Geraldo de Sousa Júnior, da Faculdade de direito, é um dos signatários de representação à Procuradoria Geral da República (PGR) assinada por juristas e parlamentares contra o ministro da Educação, Mendonça Filho, por conta do posicionamento dele em relação à disciplina “O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil”.
Ministro do presidente Michel Temer, Mendonça, que é deputado e votou a favor do impeachment, reagiu ao tema da disciplina e defendeu uma ação de improbidade administrativa contra o professor Luis Felipe Miguel, do curso de Ciência Política da UnB.
Em entrevista ao Correio, José Geraldo, um dos defensores do “Direito achado na rua”, explica por que considera importante e legítimo o debate na UnB sobre o processo que tirou do Palácio do Planalto a petista Dilma Rousseff.
O professor, que enxerga o impeachment como um golpe, avalia que cabe na universidade qualquer tipo de debate e pensamento, desde que o aluno seja avaliado dentro das regras do plano de curso. José Geraldo acredita que o estudante terá total abertura para discordar. Ele exemplifica: “Em todos esses campos, a bibliografia tem duas estantes: uma com obras e relatórios de disciplinas que sustentam que em 1964 houve um golpe; outra com material que sustenta que em 1964 houve uma revolução.. Em ambas as hipóteses há acervo jurídico para apoiar as opiniões”.
Veja a entrevista:
A ex-presidente Dilma Rousseff deixou o cargo por decisão do Congresso, que foi eleito por voto direto, sob a acusação de irregularidades nas contas públicas. Por isso, é controverso dizer que houve golpe para derrubá-la do poder. O nome da disciplina “O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil” direciona a discussão para uma visão ideológica sobre o episódio?
Certamente é controverso. Daí a importância de organizar reflexão fundamentada para estabelecer um protocolo epistemológico de inteligibilidade entre quetões controversas. No tema específico, essa é uma tensão secular para o conhecimento da história política. Até hoje, acumulam-se disciplinas, teses e estudos acadêmicos (disciplinas, cadeiras) para orientar a compreensão sobre o evento de 1964 no Brasil. Em todos esses campos, a bibliografia tem duas estantes: uma com obras e relatórios de disciplinas que sustentam que em 1964 houve um golpe; outra com material que sustenta que em 1964 houve uma revolução.. Em ambas as hipóteses há acervo jurídico para apoiar as opiniões. E é assim historicamente. A restauração monárquica na Franca instalada com Luis Bonaparte em 1851 é conhecida como o Golpe de Luis Bonaparte, sob os auspícios da legalidade que segundo Odilon Barrot, Ministro da Justiça e Presidente do Conselho de Ministros se fez contra uma “legalidade que sufoca”. Não obstante, Victor Hugo a descreveu como “A História de Um Crime”. Desvendar essas contradições é a função dos estudos universitários, incluindo as leituras que fazem os políticos e os juristas.
Qual deve ser o critério de avaliação dos alunos que optarem pela disciplina do curso de Ciência Política?
No sistema universitário, especialmente o da UnB, toda atividade acadêmica é conduzida à base de Programas e de Planos de Cursos nos quais devem figurar conteúdos, metodologias, atividades pedagógicas, formas e critérios de avaliação para garantir previsibilidade no desenvolvimento de seus elementos constitutivos e, eventualmente, padrões que sustentem as avaliações e, quando for o caso, na forma regulamentar, revisão dos conceitos atribuídos. Todo esse conjunto, formulado pelos docentes respectivos passa pelas instâncias colegiadas de aprovação e registro para fins de integração curricular e certificação. Prevalecem nesses critérios, variados quanto aos elementos característicos de cada atividade, matéria ou disciplina, a afirmação fundamentada com os paradigmas (no sentido atribuído por Thomas Kuhn, ou seja, maturidade e normalidade do campo, seus consensos e dissensos) de cada atividade, matéria ou disciplina.
Quem tiver uma posição totalmente contrária ao entendimento de que houve golpe conseguirá aprovação e notas máximas nas provas?
Certamente. Salvo situações bizarras todas sujeitas a revisões e recursos. No estiilo de Voltaire, “discordando, mas defendendo o direito legítimo de fazê-lo”. Na minha Faculdade, por exemplo, a de Direito, isso está patente desde 1964 (para os temas de golpe e revolução), e nela conviveram, com diferenças políticas ou epistemológicas alunos e professores que se submeteram a exames, provas, concursos nos quais interpretes com diferentes visões teóricas e de mundo, arguiram, reprovaram, aprovaram (em número infinitamente maior) os estudantes e pesquisadores. Livres para estudar e formular cursos de “direito achado na lei” e também de “direito achado na rua”, com igual reconhecimento acadêmico. Apenas para ficar entre professores (alguns dos quais foram estudantes, posso relacionar sem catalogar, pensadores muitas vezes antagônicos: Hermes Lima, Victor Nunes Leal, Machado Neto, Roberto Lyra Filho, Josaphat Marinho, Waldir Pires, Franco Montoro, Alfredo Buzaid, José Carlos Moreira Alves, Inocêncio Mártires Coelho, Gilmar Mendes, Ronaldo Polletti, Marcelo Neves etc, etc.
O senhor poderia dar exemplo de outras disciplinas da UnB com tema controverso como o desta disciplina?

Acabei de citar uma, “O Direito Achado na Rua”, que eu próprio ministro, na graduação e na pós-graduação, que é base de linha de pesquisa registrada no CNPq, com o acervo de enorme reconhecimento nacional e internacionalmente, acumulando prêmios de monografias, dissertações e teses, mas com a objeção legítima em sentido epistemológico, de colegas professores, alguns com lugar funcional de relevo na administração pública e no Judiciário. Mas há outras, basta ver o catálogo de cursos da UnB que não quero citar para não criar expectativas. Farei apenas uma referência até porque sei que não causará mossa ao Professor. Refiro-me ao professor, ex-Reitor, ex-Governador, ex-Minsitro da Educação, atual Senador Cristovam Buarque, que criou disciplinas extremamente controversas no fundo e nos temas, trazendo para estudo na universidade assuntos altamente controversos como interdisciplinaridade, numa universidade ainda muito disciplinar, questões filosóficas para a economia como estudos de inversão de prioridades éticas para o desenvolvimento e essa questão visceral da medida compensatória com o estudos que levaram à formulação de categorias como “bolsa-escola”, em sua disciplina de “Estudos do Brasil Contemporâneo”.

O senhor é um dos signatários da representação contra o ministro da Educação, Mendonça Filho, que criticou a disciplina e defende uma ação de improbidade administrativa contra o professor Luís Felipe Miguel. Acha que essa posição é uma censura à UnB?
À luz da lição da História tem esse caráter e semelhança com o que já foi feito, inclusive com forma de legalidade contra a própria UnB. Vejam o livro de Roberto Salmeron “A Universidade Interrompida” e o livro que eu próprio organizei “Da Universidade Necessária à Universidade Emancipatória”. À luz do procedimento anunciado, em que pese ter sido expresso mais sob a forma de uma manifestação de agente partidário pois em postagem de teses sociais, é uma interferência imprópria que afronta os fundamentos da Convenção Americana de Direitos Humanos, a Constituição Federal e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, externando juízos pessoais e substituindo fundamentos de competência técnico-racionais por uma subjetividade que cabe ao agente político mas não ao agente administrativo. Por isso, mesmo nas duas representações (que assinei com colegas juristas e parlamentares), trazemos a conhecimento a tese premiada pela CAPES/MEC), como Grande Prêmio Capes, cujo fundamento é a liberdade de ensinar, desde que oferecidas as salvaguardas que foram adotadas no caso tal como ouvi hoje (23/02) nas manifestações trazidas à reunião do Conselho Universitário da UnB.
O senador Cristovam Buarque (PPS/DF), também ex-reitor da UnB, avalia que a universidade tem a liberdade de nomear disciplinas tanto como “golpe” no caso de Dilma Rousseff, quanto como “revolução de 1964”. O senhor concorda?
Perfeitamente. Por isso, na UnB estuda-se Marx e Max Weber, Aristóteles e Platão, Freud e Skinner, Kant e Hegel, Cristo e Buda, Miguel Reale e Roberto Lyra Filho, Kelsen e Dworkin, Newton e Einstein, Fermat e Kline, Saussure e Schleicher, Vamireh Chacon e Rui Mauro Marini, Fernando Henrique Cardoso e Boaventura de Sousa Santos. Aqui, já tivemos os estudos jusnaturalistas da dissertação de Mestrado do hoje ministro, presidente do TST até ontem (22/02) Ives Gandra Martins Filho (um dos formuladores da Reforma Trabalhista), os estudos de jurisdição constitucional do Professor Gilmar Mendes (uma referência da cena política contemporânea, com posicionamento altamente difundido). O importante é que em todos esses casos, programas, ementas, planos, critérios de avaliação e procedimentos de revisão sigam os parâmetros acadêmicos estatutariamente e autonomamente como manda a Constituição, patra serem cadastrados e permitirem certificação.
Na sua opinião, o impeachment de Dilma Rousseff foi golpe?
Categoricamente, sim. Tenho sustentado essa opinião publlicamente em seminários, mesas-redondas, entrevistas, conferências, salas de aula e em mutos escritos. Por todos, remeto ao meu artigo “Estado Democrático da Direita”, publicado no livro organizado por Roberto Bueno, Democracia: da Crise à Ruptura, São Paulo: Editora Max Limonad, 2017, págs, 407-412. Ali explico meu posicionamento para demonstrar que a existência formal de uma legalidade e de uma institucionalidade procedimental por si, não afirma a legitimidade do que realiza. E lembro que, no Brasil, com sua herança colonial que opera com favores mas não com direitos (lembre-se da afirmação de Getúlio: “para os amigos tudo; para os inimigos, a lei”), prevalece o alcance retórico de institucionalização pelo jurídico, pondo em relevo o fato de que todas as experiências autoritárias de nossa formação social, inclusive a mais recente pós-1964, tomaram uma forma de legalidade, procurando dar expressão “constituinte” aos seus arranjos “revolucionários”, com todas as aspas possíveis.

Publicado em 24/02/2018
Fonte: http://blogs.correiobraziliense.com.br/cbpoder/ex-reitor-professor-jose-geraldo-defende-debate-sobre-golpe-de-dilma-na-unb/

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Convite para Semana de Defesas de Teses de Doutoramento - 26 a 28 de fevereiro de 2018


Na semana de 26 a 28  deste mês, teremos três defesas de teses de doutoramento de três mulheres membras (o feminino é dicionarizado) do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua: Helga Martins de Paula (Professora da UFG, campus Jataí), Talita Tatiana Dias Rampim (Professora da UFG, campus Cidade de Goias) e Ludmila Correia (Professora da UFPB, campus Santa Rita). 


As defesas têm também a motivação de mobilizar  participantes dos coletivos vinculados ao Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (AJUP Roberto Lyra Filho, PLP DF, PET Dir, estudantes das disciplinas e dos cursos de pós do Direito e do Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania) que, em algum momento, debaterão igualmente seus relatórios de pesquisas, seus artigos, suas monografias, suas dissertações, suas teses e seus livros. A motivação também, espero, é celebratória.

Que venham todas e todos.

José Geraldo

Defesas:

26/02/2018 (Segunda-feira): "Aproximações entre Direito Achado na Rua e Teatro do Oprimido"
Doutoranda Helga Maria Martins de Paula
Hora: 14h30
Local: Auditório Joaquim Nabuco - Térreo do Prédio da FD. 

27/02/2018 (Terça-feira): "Estudo sobre a reforma da Justiça no Brasil e suas contribuições para uma análise geopolítica da Justiça na América Latina"
Doutoranda Talita Tatiana Dias Rampin

Hora: 14h
Local: Auditório Joaquim Nabuco - Térreo do Prédio da FD. 


28/02/2018 (quarta-feira): "Por uma Pedagogia da Loucura: Experiências de Assessoria Jurídica Popular Universitária no contexto da Reforma Psiquiátrica Brasileira". 
Doutoranda Ludmila Cerqueira Correia

Hora: 14h
Local: Auditório Joaquim Nabuco - Térreo do Prédio da FD. 







terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Convite para o lançamento do livro Cartas de Viagem: histórias de caminhos não contados, de Gladstone Leonel Junior

Antes de iniciar as turbulências da semana, um lampejo.

Pra quem escreve, nada melhor do que apresentar para as pessoas, no momento certo, o fruto dessas reflexões. Dessa vez, não são jurídicas, são pessoais e iniciadas há dez anos. São crônicas, Cartas de Viagem, ou melhor, história de caminhos não contados. Uma espécie de lado B de cidades mundo afora, a partir de causos vivenciados, acontecimentos políticos, crítica social ou tão só histórias de vida. 

Abraçaram esse projeto, um amigo de infância, Lucas Maroca de Castro, que de Ouro Branco, desenvolve uma das editoras mais ousadas de BH, Crivo Editorial. Aquele que me estimulou e a vários amigos/as a escrever Cartas e prefacia essa obra, José Geraldo Sousa Junior. Além dos vários amigos/as que estão lendo essa mensagem agora e participaram de momentos narrados nessas viagens.

Aguardo entusiasmado a todos/as nos lançamentos, que ocorrerão respectivamente:

- Brasília, (01/03), Pardim, 405 norte, a partir das 18 horas.
- BH (28/03), Agosto Butequim, Prado.
- Rio (05/04), Balaio, Flamengo. 

Em breve a Crivo liberará a compra do livro pela internet. Estão todos convidados/as.


quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Da cidade que desrespeita a cidadania ao direito à cidade (por Jacques Távora Alfonsin)

Jacques Távora Alfonsin (*)
Publicado em: 
O que é, mesmo, o direito à cidade? Que relações sociais, políticas, econômicas, éticas, podem estar implicadas nesse direito? Quais sanções podem ser aplicadas pelo Poder Público no caso de ele ser ameaçado ou violado? Se a própria palavra cidade tem a mesma raiz de cidadania, como as cidades defendem e garantem os direitos reunidos sob uma denominação dessa grandeza e solenidade ?
Perguntas como essas sugerem a busca de respostas previstas nas leis, nas decisões dos tribunais, nas providências tomadas pelos Poderes Públicos, nas opiniões doutrinárias relacionadas com o Direito Urbanístico, por exemplo. Não foi o que aconteceu entre os dias 23 e 27 deste janeiro, em Londrina, no 14º Encontro Intereclesial de CEBS (Comunidades Eclesiais de Base) para estudar e encaminhar propostas de ações coletivas, objetivando enfrentar os “Desafios do mundo urbano”, tema chave deste Encontro.
Muito pouco, ou quase nada desse “mundo do direito” apareceu nas discussões das/os delegadas/os presentes. Se alguma referência lá surgiu, ressalvada alguma que pode ter-nos escapado, não passou, sequer, pela Constituição Federal ou pela lei 10.257 de 2001 (Estatuto da Cidade).
O fato pode ser interpretado sob mais de uma hipótese. A primeira de que o/a morador/a da favela, do cortiço, da “vila”, da “área verde”, da “invasão”, da ocupação, das áreas de risco, presente ou representado neste encontro, praticamente só toma conhecimento do poder dos “direitos”, quando o oficial de justiça lhe entrega um mandado de reintegração de posse, dando-lhe prazo para se desapossar do que está lhe servindo de base física da sua própria vida.
Ou seja, em vez desse outro e estranho “mundo dos direitos”, tão incompreensível quanto inacessível para ele ou ela, garantir-lhe uma vida cidadã, de bem-estar como aquela prevista na parte final do artigo 182 da Constituição Federal e, direta ou indiretamente, em várias disposições do Estatuto da cidade, o peso da lei lhes cai sobre a cabeça como pura e duríssima repressão, indiferente até ao destino posterior que lhe permita se abrigar em outro espaço urbano.
Por via de consequência, a segunda hipótese justificativa dessa surpreendente ausência de discussão do direito à cidade, num Encontro que reunia milhares de pessoas pobres, pode ser encontrada no descrédito – introjetado até inconscientemente as vezes – por elas já atribuído a esse outro “mundo”, justamente pelo visível desprezo que os Poderes Públicos, Judiciário inclusive, tratam-nas, sem outra explicação que não seja o de serem pobres.
Nem sempre se percebe como a força classista à qual pertence a maioria das/os representantes do Poder Público, encontra satisfação, por vezes mórbida, no exercício da sua autoridade contra essa fração de povo. A grossura do preconceito e da ideologia aí presente geralmente se disfarça com as promessas generosas escritas nas leis para, de fato, não serem cumpridas. A “erradicação da pobreza”, a promoção da “dignidade da pessoa humana”, a “redução das desigualdades sociais” a “promoção do bem de todos”, da “função social da propriedade”, como a Constituição prevê, ficam dependuradas na letra da lei como vitrine, amostra de que, realmente, aqui se vive numa democracia e num Estado de direito, por mais que nada disso seja lembrado quando a dita autoridade aplica a lei.
Encurralado nessa ficção hipócrita, o direito à cidade, dentro do qual estão presentes de modo muito particular, todos os direitos humanos fundamentais sociais dos/das seus/suas habitantes, só pode sofrer como falsa também a sempre lembrada cidadania, a única com poder suficiente para revelar aquele direito como válido e eficaz.
O direito à segurança da posse da terra, mesmo a não titulada por qualquer documento legalmente hábil, para garantir moradia, saneamento básico, transporte, saúde, emprego, condições materiais de uma via digna, enfim, isso sim apareceu com toda a força de exigência nas plenárias e nos grupos de trabalho formados pelas/os participantes do Encontro.
A indignação ética pelo descaso, pela indiferença, pelo atraso permanente com que a satisfação dessas necessidades vitais, como integrantes do direito à cidade, é tratada, ficou marcada por vários depoimentos prestados por vítimas desse desleixo público e por lideranças de movimentos populares dedicados à defesa de direitos humanos, especialmente o da moradia.
Raquel Rolnik prestou serviço de assessoria ao Encontro, não só pelo seu conhecimento dos problemas urbanos – foi relatora especial para o direito à moradia do Conselho de Direitos Humanos da ONU – como pela sua reconhecida proximidade e defesa da gente pobre das periferias das cidades. Diante dos permanentes conflitos por terra, em uma das suas obras identificados como “A guerra dos lugares”, geralmente julgados contra as famílias aí residentes, pela cultura ideologicamente privatista da administração pública e do Poder Judiciário, raras exceções a parte, Raquel mostrou já ser hora de as vítimas desse estado de coisas julgarem o Estado e quem as lidera ou representa “voltarem às comunidades”, para junto delas garantirem uma verdadeira “autodeterminação territorial.”
Num auditório caracterizado pela pluralidade religiosa, mas toda ela de inspiração cristã, suas palavras caíram como chuva em terra seca. Ela estava repetindo, por outras palavras, o que disse Jesus Cristo sobre o Estado opressor e o poder público da sua época: “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, sois como sepulcros caiados, por fora parecem belos mas por dentro estão cheios de ossos de cadáveres e podridão. Assim também vós:por fora pareceis justos diante dos outros, mas por dentro estais cheios de hipocrisia e injustiça.” “Colocais fardos pesados sobre os ombros dos homens, mas não estais dispostos a levantar um só dedo para movê-los” (Evangelho de São Mateus, capítulo 23).
Realmente. A qualquer Estado, mesmo aquele com aparência de legalidade, auto proclamando-se como democrático e de direito, mas governado por patifes, corruptos e ladrões, a cidadania não deve obediência. Resiliência contra as suas leis já se encontra amparada pelo conhecido “direito achado na rua.” As CEBS brasileiras parece terem saído deste Encontro dispostas a resistir e desobedecer.
Fonte: https://www.sul21.com.br/jornal/da-cidade-que-desrespeita-cidadania-ao-direito-cidade-por-jacques-tavora-alfonsin/


segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

O que os silêncios de Cármen Lúcia falam sobre Lula e os privilégios do Judiciário?

Discurso da líder do STF evidencia o que esperar da justiça em 2018, enquanto juízes heróis mostram que têm pés de barro. 

Por Patrick Mariano*
Brasil de Fato/ São Paulo (SP) 
03 de fevereiro de 2018.

A ministra Cármen Lúcia, presidenta do Supremo Tribunal Federal (STF), em cerimônia de abertura dos trabalhos do Poder Judiciário, nesta sexta-feira (2), apresentou um discurso de três páginas no qual tenta evidenciar o que se espera desse poder no ano de 2018. O discurso logo ganhou as manchetes dos jornais, notadamente por ter dado, na visão destes meios de comunicação, um recado ao PT e ao ex-presidente Lula.
O recado seria o de que “decisão judicial se cumpre” e se respeita. Não há, nas poucas linhas de Cármen, nenhuma frase sobre o justo ou injusto de uma decisão judicial, que, portanto, se tornaria um fim em si mesmo, bastando sua existência para exigir respeito e acatamento. Esse é um primeiro silêncio eloquente no texto. O mesmo discurso caberia perfeitamente na época em que a escravidão e o tráfico de escravos era previsto na lei brasileira. Ou seja, se alguém ousasse discordar de uma decisão judicial que determinava ou mantinha o corpo negro como objeto de posse, receberia a indignação da presidenta Cármen.
Suzana Angélica Paim Figueredo, em brilhante e original dissertação de mestrado apresentada no ano de 2000, na PUC/SP, aprofunda filosoficamente e sob a ótica do direito penal essa questão, ao tratar do famoso caso dos médicos alemães durante o nazismo e do direito à objeção de consciência contra uma lei ou ordem a qual se reputa injusta.
Outro eloquente silêncio de Cármen é o relativo ao sistema penitenciário brasileiro, que hoje apresenta o estarrecedor número de 700 mil pessoas presas em condições que aviltam a dignidade da pessoa humana. Nenhuma frase ou palavra quanto a esse tema ou quanto à relação entre esse vergonhoso quadro e sua relação intrínseca com a absurda decisão da Corte Suprema de desrespeitar a Constituição e possibilitar a prisão antes mesmo do trânsito em julgado da sentença condenatória.
O caos no sistema penitenciário nacional é fruto de decisões desastrosas como essa que o STF tomou ao dar permissão, ainda que contra a Constituição, de tribunais mandarem para a prisão acusados que ainda têm recursos a ser apreciados.
O terceiro silêncio é um subitem do segundo e se refere à cassação do indulto natalino para acusados de crimes patrimoniais cometidos sem violência à pessoa ou grave ameaça. Basta analisar as estatísticas para perceber que esses casos compõem parte considerável do sistema carcerário nacional de um país fundado sob a pedra angular da desigualdade.
O STF suja as mãos de sangue ao, descaradamente, contribuir para o aprofundamento da miséria humana, do cárcere brasileiro, objeto de condenação em série do Brasil na ONU. Mas nada disso é motivo de preocupação da ministra Cármen.
Uma parte do discurso parecia ser destinada aos retrocessos sociais. Vale até mencioná-lo: “que não tenhamos de ser lembrados pelo que não fizemos, ou pior, pelo que desfizemos do conquistado social e constitucionalmente”. No entanto, parou por aí. Já na frase seguinte, Cármen Lúcia retoma a ideia de respeito à República e outras bazófias. Aqui também não poderia deixar de ser silenciada a questão de por que o STF tem sido cúmplice de primeira grandeza das criminosas ações de Temer contra o anteparo social conquistado pela Constituição de 1988 e dos direitos trabalhistas. Já que está na moda o termo organização criminosa, no Tribunal da História, o STF responderia, junto com Temer, por ser parte dessa organização que retira direitos sociais dessas e de outras gerações de milhões de brasileiros.
Ao mesmo tempo em que o discurso da maior autoridade do Judiciário brasileiro é carregado de silêncios, juízes de primeiro grau resolveram se tornar verborrágicos, para o bem do próprio Brasil que agora pode ter dimensão da pequenez desses atores. O juiz Bretas, do Rio de Janeiro, abriu uma conta na rede social twitter e de lá comentava a atacava políticos e a política, posava com fuzil no peito (ao mesmo tempo em que crianças cariocas são vítimas de balas desses mesmos armamentos) entre outras fanfarronices. Quando o jornal Folha de São Paulo revelou que o eloquente magistrado e sua esposa juíza recebiam auxílio moradia, mesmo morando juntos e possuindo imóvel, se desligou do twitter e sumiu. Não resistiu a um mísero dia em que deveria se explicar à população por tais atos.
Na mesma linha, o juiz Sérgio Moro, dono de um imóvel de 250 metros na capital do Paraná, e beneficiário de auxílio moradia. Segundo O Globo, o magistrado se defendeu dizendo que o Judiciário não tem aumento desde 2015. Moro recebeu de salário, em dezembro, R$ 41 mil.
Entre silêncios eloquentes, imoralidades e a verborragia de juízes de primeiro grau, o Poder Judiciário se desnuda ao Brasil como um poder vítima de um completo alheamento aos reais problemas nacionais e dos seus próprios. Retirado o véu da sua pompa e circunstância, este poder mostra ao povo brasileiro que ainda não deixou de ser monárquico, passando longe do que poderia se chamar de uma instituição democrática. Seus dirigentes ou se fazem de cegos ou se acham acima da lei.
Voltando ao discurso, bem a calhar, portanto, utilizar como cordeiro no sacrifício o processo de um líder popular para esconder suas próprias mazelas e contradições. Enquanto se erige como principal problema do Judiciário a crítica a uma injusta decisão que violou direitos de um acusado, se tenta jogar sombras sobre seus reais problemas e urgentes desafios.
Nesse jogo de luzes e sombras, aos poucos o país vai se dando conta de que esses supostos heróis tem os pés de barro e não resistem às suas próprias contradições. Esses deletérios personagens, de algozes se tornaram réus, de acusadores, passaram a acusados. O que não mudou foi a arrogância, o autoritarismo e a prepotência. De fato, não é fácil lidar com tamanha complexidade de papéis.
(*) é advogado e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares
Edição: Vanessa Martina Silva