domingo, 31 de março de 2024

 

Descolonizar la Universidad

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

Achille Mbembe. Descolonizar la Universidad. Medellín/Colombia: Politécnico Colombiano Jaime Isaza Cadavid/Facultad de Ciencias y Educación/Ennegativo Ediciones, 2023. Link para acesso: https://www.academia.edu/108986069/Achille_Mbembe_2023_Descolonizar_la_universidad_Trad_Leandro_S%C3%A1nchez_Mar%C3%ADn_

                   

Esta obra, acessível pelo link indicado, contêm dois ensaios do pensador Achille Mbembe – Descolonizar a universidade: novos rumbos e Conocimientos futuros y sus implicaciones para el proyecto de descolonización, assim traduzidos para o espanhol por Leandro Sánchez Marín que a organiza e inclui editorialmente um ensaio autoral – Capitalismo universitário: formar para la felicidad y el éxito, modo pelo qual, com apoio em Mbembe, procura configurar “la crisis de la educación superior en nuestro tiempo”, aferida num contexto no qual “las universidades, tanto públicas como privadas, responden cada vez más a uma lógica global de mercado que determina su estrutura y funcionamento”.

Para Sánchez Marín, “desta forma, este modelo educativo não esconde a sua transformação na empresa; é por isso que estão tão ansiosos por defender a autonomia universitária, evitando os avanços neoliberais que transformam centros de conhecimento em centros de negócios. Tudo insiste na ênfase como é evidente, já que muitos campi universitários estão repletos de publicidade, até mesmo nos bancos das salas de aula e nos banheiros. Caixas eletrônicos e redes de bibliotecas estão sendo implementadas para que as universidades separem cada vez mais cada shopping center, esquecendo que a educação deve ser a aprendizagem do conhecimento que se considera necessário para a proteção e a melhoria da vida humana” (Marcuse) e não uma estrutura para a agudização de tudo o que elimina possibilidades de conhecimento em função do lucro. Esse espírito de liberdade académica (Weber) e de investigação está ligado precisamente ao melhor da existência, não de forma superficial, mas no seu sentido mais profundo”

Os textos de Achille Mbembe que, com a permissão do Autor foram incluídos na obra, ao contrário dessa tendência, menos discutir as implicações de uma formação para o sucesso do capitalismo universitário, colaboram para uma leitura descolonizadora desse processo, enquanto traz para o centro da discussão sobre a crise da educação no contexto capitalista onde esta crise parece estar piorando, o tema da felicidade. Felicidade, não no sentido “da ideologia neoliberal”, que proclamam o empreendedorismo de cada um, de seus esforços pessoais, inclusive para encontrar sua própria felicidade: “contar con el esfuerzo; es en el esfuerzo donde encontrará tu alegría, tu felicidade…Porque el único punto de apoyo sólido en que pudes fundar tu existência está en ti mismo y en tu propia actividad”. Com Mbembe, o intento é descolonizar todo esse processo, desideologizando-o de seu traço neoliberal, para o bem-viver e para uma universidade que atue para a emancipação.

Li Descolonizar la Universidad, no contexto de responder a convite da organização da CRES+5 – III Conferência Regional de Educação Superior: a Universidade hoje na América Latina e Caribe, quando fui convidado para fazer a conferência de clausura do evento, que sugeri fosse intitulada: “Universidade, hoje, no contexto de América Latina”. Assim, ao invés de um Lido para Você mais enunciativo do conteúdo da obra, que está acessível digitalmente, optei por dar relevo na Coluna, ao modo como me apropriei da própria categoria que sustenta a minha abordagem: a descolonização da universidade. Para quem prefira, ofereço também o endereço do youtube para acesso à conferência:  https://www.youtube.com/watch?v=kN1uzsp5eF8&t=36s.

Comecei por agradecer aos organizadores desta CRES+5, na pessoa do Reitor Rui Opperman, numa saudação estendida a todos e todas organizadores e organizadoras, a distinção de proferir esta conferência, na sessão de clausura, num encontro de tal significação. Aquiescer ao convite foi uma responsabilidade de ex-Reitor, até para honrar a confiança da indicação que devo a minha Reitora professora Marcia Abrahão Moura, presidenta da Andifes. Mas tem um quê evocativo. Ao constatar a participação da SESU/MEC na realização da Conferência, não posso deixar de recuperar o meu engajamento, então Diretor do Departamento de Política do Ensino Superior, da SESU, dirigida pelo ex-Reitor e ex-Presidente da Andifes Carlos Roberto Antunes dos Santos, quando, em 2003, seguindo determinação do Ministro da Educação Cristovam Buarque, fui encarregado de organizar dois grandes fóruns buscando reorientar as funções da Universidade e do ensino superior.

O primeiro, com apoio da UNESCO e em conjunto com as Comissões de Educação do Senado e da Câmara Federal, consistiu na preparação e realização Seminário “Universidade: por que e como reformar?”.  Seu objetivo, estabelecer uma agenda para discutir a Universidade do Século XXI, que havia sido iniciada com a Conferência Mundial sobre o Ensino Superior realizada em Paris em 1998, com as reuniões da Associação de Universidades do Grupo Montevidéu, e com a continuidade da Conferência Mundial de Educação Superior Paris+5, sob os auspícios da UNESCO. Na sessão de abertura daquela Conferência, o Ministro Cristovam Buarque defendeu o princípio da educação como bem público e não como serviço.

Destaco desse Seminário “Por que e como reformar a Universidade”, de âmbito nacional, com participação altamente qualificada de educadores e gestores, alguns dos quais aqui presentes, oriundos tanto no setor público como do privado, em interlocução coma forte expectativa de toda a comunidade universitária por uma profunda reforma no  modelo de ensino superior brasileiro vigente: reforma e não apenas mudança era o consenso, e mais, a expectativa de que o atual governo, de fato, iria promover esta reforma.

O Seminário, com esse intuito, desenvolveu-se por meio de quatro núcleos temáticos que permitiram dar relevo a questões norteadoras para as ações que se lhe deviam seguir: 1º – Sociedade, Universidade e Estado: autonomia, dependência e compromisso social; 2º – Universidade e Desenvolvimento: globalização excludente e projeto nacional; 3º – Universidade e Valores Republicanos: conhecimento para a emancipação, igualdade de condições e inclusão social; 4º – Universidade Século XXI, resgate do futuro, estrutura e ordenação do sistema: a tensão entre o público e o privado.

Os expositores e debatedores desenvolveram sua abordagem a partir do eixo central proposto (“Por que e como reformar a Universidade?”) e seus possíveis desdobramentos: a) qual a estrutura mais eficiente e democrática para a Universidade das primeiras décadas do século XXI?; b) qual o papel da Universidade dentro do sistema de produção e difusão dos distintos saberes e modos de conhecer?; c) qual o papel da Universidade na construção de igualdade de condições e de oportunidades para uma vida emancipada?; d) como superar as limitações crônicas de financiamento e sustentabilidade das IFES?

Em seguida ao seminário, e com uma pauta configurada a partir dos enunciados do Seminário “Por que e como reformar a Universidade?”, com a mesma articulação, realizou-se o Seminário Internacional Universidade XXI, realizado em Brasília de 25 a 27 de novembro de 2003.

Remeto ao documento-síntese do Seminário, disponível na página do MEC e acessível por diferentes caminhos da WEB (https://livros01.livrosgratis.com.br/me004459.pdf). Ele se enuncia com- “Novos Caminhos para a Educação Superior”, e a sua redação, tal como se designa na nota de introdução, se fez “a partir dos relatórios dos (4) grupos de trabalho, por uma equipe de relatores coordenados pelo Prof. José Geraldo de Sousa Junior do Departamento de Política do Ensino Superior da SESu e Irilene Fernandes de Paula, da Assessoria Internacional da Secretaria de Educação Superior do MEC. Foram redatores deste documento: Antonio MacDowell de Figueiredo e Eduardo Gonçalves Serra, da UFRJ, Divonzir Artur Gusso,do IPEA, Maria Francisca Pinheiro Coelho Dóris Santos de Faria, da UNB. Rafael Guilherme Wandrey e Heloísa Souza colaboraram nos serviços de informática”.

A síntese, as relatorias e os documentos preparatórios formaram o corpo empírico-teórico a partir do qual o professor Boaventura de Sousa Santos, convocado pelo já então ministro da educação Tarso Genro, organizou o calendário de ações para a política de reforma universitária brasileira, preparou a sua intervenção na sessão de abertura desse calendário, com um texto de referência depois publicado com o título “A Universidade no Século XXI. Para uma reforma democrática e emancipatória da Universidade (São Paulo: Editora Cortez, 2004). Do que se insere nesse texto, a partir de uma análise das transformações recentes no sistema de ensino superior e o impacto destas na universidade pública, é a identificação e justificação dos princípios básicos de uma reforma democrática e emancipatória da universidade pública, ou seja, de uma reforma que permita à universidade pública responder criativa e eficazmente aos desafios com que s defronta no limiar do século XXI.

Dou-me conta que tanto as transformações políticas que se atualizam no social, quanto os seus impactos na educação superior, a partir das expectativas de reforma democrática de da universidade pública (e insisto no público como princípio mesmo se funcionalmente se realizar pelo sistema privado), necessariamente emancipatória, podem ser percebidas na mobilização desta CRES+5 e nos eventos e conferências que a precedem e a preparam. Basta ver, e chamei a atenção para isso em artigo que publiquei no principal jornal de Brasília, nessa quarta-feira, dia 12/3, o fio condutor dos debates da III Conferência são as condições de trabalho na educação superior. O trabalho decente e as condições de vida dos atores da educação superior enquanto afirmação do princípio de que é impossível haver educação superior de qualidade sem assegurar os direitos e as condições laborais estabelecidos pela Organização Internacional do Trabalho, como emprego produtivo com salário justo, oportunidades e tratamento igualitário, seguridade social e possibilidades de desenvolvimento pessoal e integração social. Entre as especificidades que ativam essa questão, estão as garantias de direitos, incluindo questões emergentes aceleradas pela pandemia de covid-19, como a digitalização da educação e seus efeitos nas rotinas, cargas e jornadas de trabalho. Assim, entre as tarefas atribuídas aos participantes, estão avaliar a situação atual das condições de vida e trabalho na educação superior e propor caminhos concretos para a proteção dos direitos e a promoção do bem-estar de todos os trabalhadores da educação superior na região.

Estou certo, e espero encontrar a síntese do que se realizou para cumprir essas tarefas, na declaração final da CRES+5, até porque, para essas conclusões conduzem os documentos-base levados à discussão nos Grupos de Trabalho (GTs) responsáveis por cada eixo temático da CRES+5, incluídos no seu temário após a reunião preparatória da Conferência que ocorreu em Havana, Cuba, nos dias 7 e 8 de fevereiro. E eles configuram o rico painel de assuntos que foram tratados, a partir dos respectivos Grupos de Trabalho, a saber: GT.1 – A educação superior como parte do sistema educacional na América Latina e Caribe; GT.2 – Educação Superior, diversidade cultural e interculturalidade na América Latina e Caribe; GT.3 – Educação Superior, internacionalização e integração regional da América Latina Caribe; GT.4 – O papel da educação superior diante dos desafios sociais da América Latina e Caribe; GT.5 – Pesquisa científica e tecnológica e inovação como motores do desenvolvimento humano, social e econômico para a América Latina e o Caribe; GT.6 – O papel estratégico da educação superior no desenvolvimento sustentável da América Latina e Caribe; GT.7 – Trabalho decente e condições de vida dos atores da Educação Superior; GT.8 – O Impacto da COVID-19 na Educação Superior; GT.9 – Inclusão, diversidade e o papel da mulher na Educação Superior; GT.10 – Financiamento e Governança; GT.11 – A autonomia das Instituições de Educação Superior; GT.12 – O futuro da Educação Superior na América Latina e Caribe (https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2024/03/6817047-conferencia-regional-de-educacao-superior-a-universidade-hoje-na-america-latina-e-caribe.html).

Não é minha intenção, nem eu teria condição de fazer melhor, o que terá sido o rico trabalho conduzido pelos GTs. Minha disposição aqui é retomar o fio condutor temático e acentuar um certo quadro de referências que possa ligar os debates que abriram o século e os desafios que ainda se colocam como chave de interpretação que convocam nossa atenção no presente.

Tenho claro, pensando em Jorge Luis Borges (O idioma analítico proposto por John Wilkins), do conjectural e do arbitrário que possam afetar os recortes que eu venha a designar. Em minha defesa quero dizer, já ter submetido a inquérito crítico alguns desses enunciados, em auditórios provavelmente tão qualificados como o que nos reúne agora no encerramento da CRES+5.

Recupero, nesse sentido, minha conferência inaugural do XXIIIº Congresso Internacional de Humanidades, realizado em Brasília na Universidade de Brasília. O Tema geral do Congresso foi:  PODER, CONFLITO E CONSTRUÇÃO CULTURAL NOS ESPAÇOS LATINO-AMERICANOS.

Iniciei a minha conferência com uma saudação aos participantes, com uma indagação, o que renovo aqui em âmbito mais estendido: apesar das diferenças de percurso para nos constituirmos um espaço comum latino-americano e caribenho social e político, qual a história comum que forja a comunidade de culturas e a comunidade de afetos que somos ou que podemos ser e na medida em que nos possamos constituir também como povos que se podem conceber como um destino compartilhado?

Temos sim, os povos que se expressam majoritariamente em línguas muito próximas, notadamente a espanhola e a portuguesa, (mas também o francês, o inglês, o créole), além das centenas de línguas dos povos orginários e se somos cada um povo só o somos povos com vínculos comuns porque temos uma história comum que nos forja enquanto comunidade de culturas e comunidade de afetos, e que nos amalgama a partir de algum momento em nossas próprias histórias.

Mas, se temos uma história desde aí comum, o que temos de comum em nossa origem e em nossos destinos?

Ao meu perceber, o que há de comum entre nós, desde um momento objetivo de encontro e de qualquer possibilidade de um destino também comum, é o impacto dramático do colonialismo que se impôs sobre nossas identidades e as projeções decorrentes dessa experiência em nossa atualidade pós-colonial afetada econômica e politicamente pelas injunções do ultra-neoliberalismo e pelos desafios de toda ordem como exigências de libertação e de emancipação num processo de ação decolonial.

Sob a perspectiva da condição ultra-neoliberal, sigo pensando que para as classes dominantes, para as empresas multinacionais e para o seu estado, para as oligarquias que ela fomenta, pouco importa que milhões de pessoas morram de fome e de doenças provocadas pela fome. O que importa, num quadro como este, é acrescentar mais uns quantos privilegiados a este núcleo de elite, que constitui o que entre nós, nos seus estudos sobre o Povo Brasileiro, Darcy Ribeiro denominou de engenho de moer gentes, na sua voragem de contínua concentração dos rendimentos, cada vez mais acentuada e desigual.

A exclusão social crescente é a outra face deste tipo de processo econômico, maliciosamente chamado de desenvolvimento, mas que é um processo perverso ou maligno. Porque a exclusão social é a sua consequência mais dramática, que gera os segmentos descartáveis segundo uma lógica de indiferença. Falando de exploradores e explorados, há que levar em conta que se os explorados estavam dentro do sistema (sem explorados não pode haver exploradores), os excluídos estão, por definição, fora do sistema, são inexistentes, descartáveis, ao se avaliar as dimensões catastróficas desse processo globalizado.

Todos sabemos, porém, que as mudanças necessárias não acontecem só porque nós acreditamos que é possível um mundo melhor. Essas mudanças hão-de verificar-se como resultado das leis de movimento das sociedades humanas, se movidas pela consciência de que há culturalmente um direito à utopia mesmo que na forma de direito a sonhar.

A aproximação mediada pela economia política e pela filosofia, e mais propriamente por teorias da justiça ou instigações teológicas, segue uma linha civilizatória que mais se afasta das opções que mercantilizam a vida, enquanto se orienta para projeções que garantam o direito à vida plena, de homens e mulheres de carne e osso sim, porque ideologicamente o nosso percurso colonial separou seres humanos, para distinguir os que se inserem no contrato social  os que ficam fora dele, os selvagens, os bestializados, os escravizados, os diminuídos, os segregados, os sobrantes “civilizatórios” todos alienados do humano.

Abri essa linha de problematização para ponderar o lugar entre nós latino-americanos e caribenhos do experimento colonial e indicar que desde esse lugar o modo decolonial é também uma condição para, tendo em vista o temário desta CRES+5, para representar um projeto de libertação, de emancipação e de humanização possíveis.

Para Paulo Freire, tão marcante em nossa cultura comum, A DESUMANIZAÇÃO NÃO É DESTINO. “A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como ‘seres para si’, esta luta pela humanização somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas resultado de uma ‘ordem’ injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos. (…) O ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sintam opressores, nem se tornem, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos. E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si mesmos e aos opressores. (…) Só o poder que nasça da debilidade dos oprimidos será suficientemente forte para libertar a ambos.”

Comecei com Paulo Freire porque ele é um pensador que reflete sobre a emancipação do humano a partir de realidades próximas latino-americanas e africanas que mais intimamente vivenciaram a crueza da alienação do humano.

Considero que a africanidade também é um elo encadeado ao latinoamericanismo-caribenho no território cultural que o colonialismo forjou no trânsito através do rio chamado Atlântico.

É assim que as literaturas africanas participam da “tendência – quase um projecto – de investigar a apreensão e a tematização do espaço colonial e pós-colonial e regenerar-se a partir dessa originária e contínua representação. Os significadores desse processo, que constituem a singularidade da nossa pós-colonialidade literária, são potencialmente produtivos: sinteticamente dizem respeito a uma identidade nacional como uma construção a partir de negociações de sentidos de identidades regionais e segmentais e de compromisso de alteridades. O que as literaturas africanas intentam propor nestes tempos pós-coloniais é que as identidades (nacionais, regionais, culturais, ideológicas, sócio-econômicas, estéticas) gerar-se-ão da capacidade de aceitar as diferenças” (Conforme O pós-colonial nas literaturas africanas de língua portuguesa, Inocência Mata da Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa  (https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4033274/mod_resource/content/1/MATA%2C%20Inoc%C3%AAncia%20-%20O%20p%C3%B3s-colonial%20nas%20literaturas%20africanas.pdf)

Questões que se ligam ao pensar potente africano, ainda que não expresso em português ou espanhol, do camaronês Achille Mbembe, um dos teóricos mais brilhantes sobre estudos pós-coloniais, centrados no conceito por ele atualizado e contextualizado de necropolítica e expressos em temas que bem recortam o que aqui foi discutido quando ele trata da proliferação do divino na África subsaariana, do racismo como prática da imaginação, do poder, violência e acumulação ou, destacadamente da necropolítica, em textos como cenas fantasmas na sociedade global, além do influente livro A pós-colónia, ensaio sobre a imaginação política na África contemporânea e não menos importante os seus enasaios sobre “Descolonizar a universidade: novos rumos” e “Conhecimentos futuros e suas implicações para o projeto de descolonização” (MBEMBE, Achile. Descolonizar la Universidad.  Medellín: Polténico Colombiano Jaime Isaza Cadavid/Facultad de Ciencias y Educación/Ennegativo Ediciones, 2023).

Conforme Mbembe, “Parecemos estar todos de acordo em que há algo anacrônico, algo que está completamente errado em várias instituições de educação superior na Áfrca do Sul. Há algo profundamente equivocado quando, por exemplo, os planos de estudo desenhados para satisfazer as necessidades do colonialismo e do apartheid devem continuar ainda que já em curso o processo de libertação. Há algo não só incorreto, mas profundamente degradante, quando nos pedem que nos inclinemos em sinal de deferência diante das estátuas daqueles que não nos consideravam humanos e que se valeram de todos os meios ao seu alcance para nos recordar nossa suposta inutilidade. Há algo perverso em participar desde ritual de autohumilhação e autodegradação cada vez que nos encontramos num ambiente constituído por essa hierarquia. Então, hoje o consenso é que parte do que está errado em nossas instituições de educação superior é que elas estão “ocidentalizadas”. O que significa estarem “ocidentalizadas”? Estão “ocidentalizadas” no sentido de que são exemplificações locais de um modelo acadêmico baseado num canône epistêmico eurocêntrico. Um canône eurocêntrico é um canône que atribui a verdade somente a forma ocidental de produção de conhecimento. Este canône ignora outras tradições epistêmicas. É um canône que intenta retratar o colonialismo como uma forma normal de relações entre seres humanos, e não um sistema de exploração e de opressão. Por isso, o consenso emergentes é o de que nossas instituições devem passar por um processo de descolonização tanto do conhecimento como da universidade como instituição”.

No contexto latino-americano, não é diferente, valendo as nuances, diante do que formula Aníbal Quijano. Veja-se o seu artigo “Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina”, no qual aponta os aspectos fundantes do capitalismo e do eurocentrismo.  Diz ele: “A dominação é o requisito da exploração, e a raça é o mais eficaz instrumento de dominação que, associado à exploração, serve como o classificador universal no atual padrão mundial de poder capitalista. Nos termos da questão nacional, só através desse processo de democratização da sociedade pode ser possível e finalmente exitosa a construção de um Estado-nação moderno, com todas as suas implicações, incluindo a cidadania e a representação política”.

Tenho mencionado em várias circunstâncias que o objetivo ultraneoliberais é abocanhar a fatia substanciosa de capitalização até agora protegida contra a ganância do mercado. Em 2002, na cidade de Porto Alegre, ainda sob o impacto da resolução adotada naquele ano pela Organização Mundial do Comércio – OMC, de incluir a educação superior como um serviço comercial regulado no marco do Acordo Geral de Comércio de Serviços (GATS, sigla em inglês), reitores de Universidades Públicas Ibero-Americanas, autoridades governamentais e especialistas se reuniram na III Cumbre de Reitores dessas universidades para discutir os perigos postos pelo modelo neoliberal de mercado. Tratava-se de analisar as ameaças às universidades públicas e a globalização, num encontro radical que teve como eixo a educação superior frente a Davos.

A Cúpula vem a registro para, entre as muitas e agudas reflexões, chamar a atenção para o texto de Marco Antonio Rodrigues Dias, ex-professor da UnB e quadro da Unesco, e ao que sei será a personalidade educacional homenageada pela CRES+5. Em seu ensaio A OMC e a educação superior para o mercado ele carreou cifras inimagináveis levantadas entre outras agências pelo banco de negócios norte-americano Merril Lynch. O professor Marco Antonio Dias afirma que o mercado mundial de conhecimento, somente através da Internet, foi calculado, para o ano de 2000, em 9,4 bilhões de dólares, tendente a alcançar 53 bilhões no ano de 2003. E, de acordo com as mesmas fontes, o valor da comercialização de produtos vinculados ao ensino superior nos países da OCDE foi da ordem de 30 bilhões de dólares em 1999. Para o professor, com base nessas informações pode-se dizer que a importância dos serviços,  que vai muito além da educação, representa, na economia norte-americana, dois terços de seus resultados e 80% de seu mercado de emprego.

E, para os que relutam em aceitar a prioridade do comércio sobre os direitos humanos, a capacidade dos países de formar seus cidadãos conscientes e com capacidade crítica estará efetivamente condenada, se o que rege as ações é uma concepção que dá prioridade aos aspectos comerciais (DIAS, Marco Antonio Rodrigues. A OMC e a educação superior para o mercado. In BROVETTO, Jorge; ROJAS MIX, Miguel; PANIZZI, Wrana Maria (orgs). A Educação Superior Frente a Davos; La Educación Superior Frente a Davos. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003).

Em que pese uma certa datação dos dados trazidos para ilustrar esse ponto, o argumento não se desatualiza e anoto que o professor Marco Antonio o aplicou em análise mais recentes, em textos publicados https://www.scielo.br/j/es/a/X8fdTjnxkR6GxFGYzrkvQLK/?lang=pt Comercialização no ensino superior: é possível manter a idéia de bem público? (acesso em 13/03/2024) e no dossiê temático Existindo, Resistindo e Reinventando: Universidades públicas no Brasil Atual, edição nº 65, dezembro de 2021, da Revista Humanidades publicada pela Editora da UnB. O artigo do professor Marco Antonio dá ênfase no resgate do valor público da universidade, num texto em que sustenta que a Educação superior deve ser mantida como bem público (p. 38-51). E, para os que relutam em aceitar a prioridade do comércio sobre os direitos humanos, a capacidade dos países de formar seus cidadãos conscientes e com capacidade crítica estará efetivamente condenada, se o que rege as ações é uma concepção que dá prioridade aos aspectos comerciais e a primazia dos negócios em detrimento da vida (DIAS, Marco Antonio Rodrigues. A OMC e a educação superior para o mercado. In BROVETTO, Jorge; ROJAS MIX, Miguel; PANIZZI, Wrana Maria (orgs). A Educação Superior Frente a Davos; La Educación Superior Frente a Davos. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003).

E seguindo a mesma lógica de identificar a voracidade canibalizadora da ação de captura que o mercado exercita sobre os bens não econômicos para precificá-los, já é possível ver a saliva de seu apetite quando se pensa a cobiça que a perspectiva da inteligência artificial combinada com a tecnologia da educação a distancia vai dirigir para o âmbito da cultura e da educação.

De acordo com um relatório do McKinsey Global Institute – https://exame.com/inteligencia-artificial/inteligencia-artificial-generativa-pode-injetar-us-44-trilhoes-anualmente-na-economia-global/ – a inteligência artificial generativa poderá agregar até US$ 4,4 trilhões de valor à economia global anualmente. Este é um dos cenários mais otimistas acerca do impacto econômico dessa tecnologia em rápida evolução.

A inteligência artificial generativa, que engloba chatbots como o ChatGPT capazes de gerar texto em resposta a solicitações, pode aumentar a produtividade economizando de 60% a 70% do tempo dos trabalhadores por meio da automação do seu trabalho. Metade de todos os trabalhos será automatizada entre 2030 e 2060, informou o relatório.

A McKinsey já havia previsto que a IA automatizaria metade de todo o trabalho entre 2035 e 2075, mas a ascensão dos dispositivos de IA generativa, que se tornaram proeminentes no cenário tecnológico no final do ano passado, antecipou essa previsão.

O relatório da McKinsey é um dos poucos até agora a quantificar o impacto de longo prazo da IA generativa na economia. Isso ocorre em um momento em que o Vale do Silício está focado em ferramentas de IA generativa como o ChatGPT e o Bard do Google, com empresas de tecnologia e venture capital investindo bilhões de dólares na tecnologia.

Essas ferramentas desencadearam um debate sobre como irão afetar os empregos e a economia mundial. Alguns especialistas prevêem que a IA deslocará pessoas de seus trabalhos, enquanto outros acreditam que as ferramentas podem aumentar a produtividade individual.

Note-se que há poucos meses, depois de uma greve prolongada, o Sindicato dos Atores de Hollywood (SAG-AFTRA, na sigla em inglês) chegou a um acordo com estúdios como Disney e Netflix para encerrar sua greve de quase quatro meses. Cerca de 86% dos membros de sua junta diretora votou a favor da ratificação do acordo.

Além de um aumento salarial mínimo de 7% e de um novo fundo de US$ 40 milhões anuais (cerca de R$ 196,8 milhões) para transferir uma parte da receita das séries de sucesso dos estúdios para os atores, um elemento-chave das negociações foram as barreiras ao uso da IA.

O acordo “permite à indústria seguir adiante, não bloquear a IA”,  “mas garante a proteção dos artistas. Seus direitos ao consentimento estão protegidos. Seus direitos a uma compensação justa e seus direitos trabalhistas estão protegidos”.

Os estúdios vêm experimentando a IA nos últimos anos, seja trazendo de volta estrelas de cinema falecidas, com o uso de “réplicas digitais” realistas, seja criando figurantes gerados por computador para reduzir o número de atores necessários para as cenas de batalha.

Muitos produtores que reduzem os custos querem que a IA desempenhe um papel cada vez mais importante e começaram a exigir que alguns atores participem de “escaneamentos corporais” 3D de alta tecnologia no “set”, muitas vezes sem explicar como, ou quando, as imagens serão usadas.

Não é ficção, é uma possibilidade real da aplicação de formas holográficas para substituir artistas e professores, ativados por programas educacionais e pedagógicos inscritos em sistemas plataformizadas conforme algorítimos.

Essa também, é uma incidência de leitura decolonial, seguindo a tese de Boaventura de Sousa, desde escritos anteriores e mais recentemente (aliás, Exposição na Conferência Regional de Educação Superior da América Latina e o Caribe. Córdoba: CRES, 2018), quando caracterizou o assédio neoliberal às universidades, para fazer uma séria advertência: “A ideia de que o único valor do conhecimento é o valor de mercado é o que irá matar a universidade. Uma universidade que é ‘sustentável’ porque financia a si mesma é uma universidade insustentável como bem comum, porque se transformou em uma empresa”.

Para ele o presente, controlado pelo neoliberalismo, é uma época plena de perigos para a universidade pública: em face do ciclo global conservador e reacionário, isto é, “o domínio total do capital financeiro”. O projeto neoliberal, segundo ele, busca a construção de um “capitalismo universitário”: “Começou com a ideia de que a universidade deveria ser relevante para criar as competências que o mercado exige”, seguiu com as propostas de tributação e privatização. “A fase final é a ideia de que a universidade deve ser ela mesma um mercado, a universidade como empresa”. Se a universidade é uma mercadoria a mais, precisa ser medida: daí os rankings globais. Por isso, a ideologia neoliberal colide assim com a ideia de “universidade como um bem comum”, uma das conquistas obtidas a partir da Reforma de Córdoba (1918). “É um momento difícil por várias razões, e uma delas é que não há um ataque político, mas, sim, um ataque despolitizado. É um ataque que tem duas dimensões: cortes orçamentários e a luta contra a suposta ineficiência ou corrupção, uma luta muito seletiva, porque se sabe que as universidades públicas são em geral muito bem gerenciadas em comparação com outras instituições.

Conforme Boaventura de Sousa Santos, há três razões pelas quais a universidade é um alvo desejado pelo regime neoliberal: 1. Sua produção de conhecimento independente e crítico questiona “a ausência de alternativas que o neoliberalismo tenta produzir em nossas cabeças todos os dias. Se não há alternativas, não há política, porque a política é só alternativas. É por isso que muitas das medidas contra a universidade não parecem políticas, mas, sim, econômicas, os cortes financeiros, ou jurídicos, a luta contra a corrupção. O que está por trás é a ideia de que a universidade pode ser um fermento de alternativas e resistência”; 2. O pensamento neoliberal busca um presente eterno, quer evitar toda tensão entre passado, presente e futuro. E a universidade sempre foi, com todas as limitações, a possibilidade de criticar o presente em relação ao passado e com vistas a um futuro diferente”; 3. “A universidade ajudou a criar projetos nacionais (obviamente, excludentes dos povos originários) e o neoliberalismo não quer projetos nacionais. Por sua vez, a universidade sempre foi internacionalmente solidária, com base na ideia de um bem comum. Mas o capitalismo universitário quer outro tipo de internacionalismo: a franquia, que as universidades possam comprar produtos acadêmicos em todo o mundo”. Finaliza, repito, convocando o espírito de Córdoba e da Reforma de 1918, para pensar política e epistemologicamente modos de romper as limitações impostas pelo neoliberalismo e radicalizar a utopia democratizadora: a universidade, concluiu, deve se restituir, fazer um uso contra-hegemônico de sua autonomia e “transformar-se em uma pluriversidade”, teórica e politicamente.

As universidades, como as igrejas, as corporações, o país inteiro tem refletido essa polarização de visões de mundo que acontece hoje no Brasil e no mundo. Nas universidades, especificamente, grupos leais ao modelo neoliberal também se formaram e tive a notícia recente de formação de uma associação de professores de direita e que pontificam a crença neoliberal. Já há muito tempo, o capitalismo universitário de que fala Boaventura se instala no ambiente acadêmico para uma ação de erosão privatizante que mina a estrutura do interesse social que a universidade pública insiste em preservar.

A Constituição de 1988, no Brasil, e as constituições de feição plurinacional democrático-participativas que vem sendo adotadas na Região latino-americana e caribenha,  têm sido a expressão de uma formidável mobilização da comunidade acadêmica e da sociedade civil, que se orientou pelo conceito do papel social que a universidade realiza e de que a educação é um bem público e mesmo quando se realiza de modo privado, por impulso de mercado, não pode delirar dos valores que o Constituinte levou para o seu texto. Esses princípios são corolários de duas institucionalidades fundamentais, que o que vem sendo caracterizado como um constitucionalismo latino-americano, que eu ao meu modo caracterizo como constitucionalismo achado na rua sufragou e que reclamam a sua defesa intransigente já por lealdade à soberania popular que se manifestou de modo constituinte, já por compromisso histórico conforme acima acentuado: a autonomia universitária e a liberdade de ensinar de modo a não se desviar pela emulação do êxito (próprio de uma colonialidade do ter), mas buscar alcançar a felicidade (Mbembe), no horizonte emancipatório do bem viver (colonialidade do saber e do poder). Para mais, conferir em https://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/7625-future-se-valoriza-o-privado-e-nao-acena-para-o-ethos-academico.

Enquanto isso, sob a perspectiva da condição ultra-neoliberal (cf. meu artigo “Uma Universidade Popular para uma Educação Emancipatória”, in REVISTA FORGES – Fórum de Gestão do Ensino Superior nos Países e Regiões de Língua Portuguesa, n. Especial (2020): NÚMERO COMEMORATIVO DO 10.º ANIVERSÁRIO DA FORGES Publicado em 2020-11-19 (https://revistaforges.pt/index.php/revista/issue/view/8), a exclusão social crescente é a o face perversa deste tipo de desenvolvimento. E a exclusão social é um dos fenômenos mais dramáticos do nosso tempo. Como escreveu um autor, quando se falava de exploradores e explorados, havia que contar com estes, porque os explorados estavam dentro do sistema (sem explorados não pode haver exploradores), enquanto os excluídos estão, por definição, fora do sistema, são inexistentes.

“É importante salientar, porém – continua Avelãs – que a crítica da globalização não pode confundir-se com a defesa do regresso a um qualquer “paraíso perdido”, negador da ciência e do progresso. A saída desta caminhada vertiginosa para o abismo tem de assentar na confiança no homem e nas suas capacidades. Tem de partir da rejeição da lógica de uma qualquer inevitabilidade tecnológica, que nos imporia, sem alternativa possível, a atual globalização neoliberal, uma das marcas incontornáveis dessa civilização fim-da-história”.

Para esse autor,

Assim como essa globalização não é um “produto técnico” deterministicamente resultante da evolução tecnológica, antes é um projeto político levado a cabo de forma consciente e sistemática pelos poderes dominantes, enquadrado e apoiado pelas grandes centrais produtoras da ideologia dominante, também a luta por uma sociedade alternativa pressupõe que a política prevaleça sobre as pretensas “leis naturais” do mercado ou da economia, implicando um espírito de resistência e um projeto político inspirado em valores e empenhado em objetivos que o “mercado” não reconhece nem é capaz de prosseguir. Todos sabemos, porém, que as mudanças necessárias não acontecem só porque nós acreditamos que é possível um mundo melhor. Essas mudanças hão de verificar-se como resultado das leis de movimento das sociedades humanas, e todos sabemos também que o voluntarismo e as boas intenções nunca foram o motor da história. Mas a consciência disso mesmo não tem que matar o nosso direito à utopia e o nosso direito ao sonho (NUNES, Antonio José Avelãs. Neoliberalismo & Direitos Humanos, Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Renovar, 2003).

A moldura de tecnicalidade e de modernização eficiente, mediadas por um protagonismo esvaziado de intencionalidade política, é conferida como mudança racional num engodo transformação econômica e social que o neoliberalismo promove com a denominação de reforma no plano estrutural e de empreendedorismo no plano do engajamento dos indivíduos, sujeitos de seu próprio desenvolvimento independentemente de políticas públicas. O Mercado substituindo o Estado e permeando toda institucionalidade inclusive a educacional e a universitária.

Convidado a proferir a conferência de encerramento da Conferência, no dia 15, acertei com a organização o tema “Universidade, hoje, no contexto de América Latina”. Realizando-se em Brasília, a cidade na qual Darcy Ribeiro implantou a síntese de seu mais elaborado projeto, a universidade necessária inscrita na proposta de criação da Universidade de Brasília, é fundamental que se possa pensar o destino compartilhado de sociedades cuja origem comum, a colonial, somente pode se consumar, de novo Darcy, como uma pátria grande, num contexto de emancipação.

Portanto, trata-se de pensar uma universidade emancipada, que se livre das injunções colonizadoras que alienaram o humano no passado colonial e que não podem se conformar, a alienação do pós-humano, no contexto neocolonial e neoliberal.

Por isso, a defesa da autonomia, no conhecimento, para escapar ao empreendedorismo que o mercadoriza, numa modelagem funcional de acumulação privatizante (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de Future-se valoriza o privado e não acena para o ethos acadêmico, in IHU-Revista do Instituto Humanitas Unisinos, nº 539, ano XIX, 2019) quando a luta emancipatória (por inclusões: de classe, de gênero, de raça), alcançaram o simbólico da educação como bem público, social, fora do mercado, como está no desenho das principais constituições da região.

Mas significa mais que isso. Significa que no moderno a institucionalização universitária passou a ter uma relação incindível com a institucionalidade estatal, numa coexistência problemática e reflexa. Os pontos de confluência entre as duas institucionalidades, é o que política e historicamente se definiu como autonomia. E os limites de possibilidade para o exercício autônomo são estabelecidos, de um lado pelo arco democrático que configura seus espaços de atuação e o estatuto de liberdade que preside o modo respectivo de realizar suas funções institucionais. Quando a institucionalidade estatal é autoritária, instala-se um mecanismo que interrompeu a continuidade de uma governança de alta intensidade democrática, e conforme programa que orienta a ação política, há condicionantes que afetam o econômico e também no aspecto ideológico, incidindo sobre as dimensões culturais e educacionais que permeiam a ação política.

Muito recorrentemente recai sobre o segmento universitário que anima o ensino, a pesquisa e a inovação tecnológica, o foco preferencial de hostilidade e de intenção de captura de sua infraestrutura e sua autonomia na produção crítica de conhecimento e de sua difusão.

Na esfera ideológica o que se vê é o intuito de vencer o pensamento crítico, desmistificador da astúcia da governança no interesse de programas e das alianças que os sustentam, abrindo ensejo para subterfúgios administrativos com o objetivo de criminalizar a liberdade de cátedra e a própria autonomia das universidades.

O contexto hoje, na América Latina e no Caribe, mas também ou pouco por toda parte, é o de necessidade de preservação desse espaço de serviço e de compromisso da universidade com causas justas, construído civilizatoriamente, referindo-me somente ao Ocidente, os princípios da autonomia (auto-governo) e de liberdade de ensino, que legaram à modernidade esse espaço irredutível de intangibilidade da instituição universitária.

Por isso o tema é tão sensível e já ativou a atuação preocupada da Comissão Interamericana de Direitos Humanos  que aprovou Princípios Interamericanos sobre a Liberdade Acadêmica, para prevenir “a constatação da ameaça crescente, no continente, de agressões, mobilizações e atitudes contra a autonomia universitária e a liberdade de ensino, sobre a desinstitucionalização e a desconstitucionalização desses fundamentos, caros aos enunciados dos direitos convencionais internacionais, assim como da própria ONU”(https://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/Principios_Libertad_Academica.pdf).

De resto, essas diretrizes estão afinadas com o Comentário Geral 13 do Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ONU), que deixou bem assentado o reconhecimento da liberdade acadêmica, cuja satisfação, assegurada em geral pelas constituições dos países: “é imprescindível à autonomia das instituições de ensino superior. A autonomia é o grau de auto governo necessário para que sejam eficazes as decisões adotadas pelas instituições de ensino superior no que respeita o seu trabalho acadêmico, normas, gestão e atividades relacionadas”.

Salvaguardar o espaço crítico autônomo da Universidade é dar concretude a uma categoria constitutiva dos direitos fundamentais, a liberdade de consciência e de expressão, de comunicação, sem falar daquelas ligadas ao sistema de proteção à educação, que estão tanto na Declaração Universal dos Direitos Humanos quanto na Convenção Interamericana de Direitos, quanto nos protocolos derivados dela, como de São Salvador. E se não se fizer nada, daqui a pouco estaremos de novo com o censor dentro da sala, com o comissário verificando os títulos dos livros que são adquiridos para as bibliotecas, com as caracterizações das teses e dissertações que são defendidas, e da criminalização do pensamento e da crítica. Com algum energúmeno erigido a distinção de notável saber.

Esses princípios asseguram o fundamento convencional e as diretrizes constitucionais hegemônicas nos países da Região de autonomia universitária e de liberdade de ensino e não podem servir ao escrutínio censor, de nenhum Poder, que leve a desconstitucionalizar o princípio da autonomia universitária, e na voragem autoritária, sufocar a crítica acadêmica e até, no limite, a dignidade e a vida.

Isso significa cautela com relação ao artificial e ao distanciamento porque o conhecimento só pode ser construção do comunitário, do diálogo real, preservado na sua liberdade (conforme a OEA já preveniu ao editar Princípios Interamericanos sobre a Liberdade Acadêmica, exatamente para prevenir “a constatação da ameaça crescente, no continente, de agressões, mobilizações e atitudes contra a autonomia universitária e a liberdade de ensino, sobre a desinstitucionalização e a desconstitucionalização desses fundamentos, caros aos enunciados dos direitos convencionais internacionais, assim como da própria ONU”(https://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/Principios_Libertad_Academica.pdf).

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua

quinta-feira, 28 de março de 2024

 

60 anos do Golpe de 1964: Memória, Verdade mas também Justiça. Razões para o Nunca Mais

Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF

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Há poucos dias, numa entrevista em programa num prestigiado Blog (https://www.youtube.com/watch?v=WGghrcVILAA&t=14s), uma declaração minha ganhou grande repercussão: “Lula acerta até quando erra, diz José Geraldo de Sousa Junior”.

Essa é uma convicção que fui fortalecendo acompanhando a trajetória do mais notável político da história brasileira, em toda a sua duração. Basta ver a conquista de uma terceira presidência mesmo depois de obstáculos de toda ordem, incluindo uma prisão hoje claramente reconhecida como uma manobra para retirá-lo da posição de enfrentamento à conjuração necropolítica e antipovo que tomou de assalto o País e orçamento público. Até o Papa Francisco se manifestou para constatar essa trama, que ele tributa a ação crescente, centrípeta e voraz da direita e da extrema-direita, no mundo e, nominalmente no Brasil (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/03/papa-francisco-diz-que-lula-foi-condenado-injustamente-e-que-dilma-tem-maos-limpas.shtml).

Penso que uma das formas de inibir recrudescências autoritárias, de atentados à democracia e de afronta ao estado de direito é o antídoto da memória e da verdade, da responsabilização, da reparação e da justiça. Por isso, confesso, ainda não divisei o acerto no erro do Presidente em conter manifestações oficiais por meio de atos ou declarações contra o Golpe de 1964, por “não querer ficar remoendo”, realidades mesmo cruentas, das quais ele também foi vítima, no passado e até muito recentemente.

Suponho que seja uma atitude que lhe é própria de conduzir diálogos, ao limite, para promover o curso da história e ativar a mediação política para o salto que transforma a realidade. Uma mediação política de um agente político altamente investido, requer certos protocolos. O Presidente é instituição, não é movimento. Não creio que ele se ponha contra a memória, a verdade e a justiça, mas que tenha a compreensão de que o impulso vital para operar avanços legítimos na justiça de transição, deve vir do social, mobilizado e organizado que é a expressão do avanço do aprendizado pedagógico para que o nunca mais aconteça. Por isso a reação de seu próprio partido: “PT diz que vai apoiar atos contra o golpe de 1964 mesmo após Lula dizer que ‘não quer ficar remoendo’”.

Nem quero atribuir a acerto algum tipo de mediação gatopardista que aceite o expurgo da excrecência armada que se projetou para um novo golpe (8 de janeiro), que não começou em 2023 nem terminou ainda em 2024, às vésperas dos 60 anos da intentona que o antecedeu, mas que salvaguarde uma pretensa instituição – “as forças armadas” -, nunca devidamente enquadrada nas moldura constitucional da história política brasileira.

O fato é que não recuperamos a nossa subjetividade política de autores de nossa própria história, sem que as lições da justiça de transição promovam o nosso aprendizado democrático.

Os quatro pilares da Justiça de Transição são direito à memória e à verdade; reparação; responsabilização penal; e reforma das instituições democráticas e de segurança. À luz desses elementos, o que não se pode perder de vista é que a Justiça Transicional admite, sim, reconciliação, mas implica necessariamente não só processar os perpetradores dos crimes, revelar a verdade sobre os delitos, conceder reparações, materiais e simbólicas às vítimas, mas também reformar e ressignificar as instituições responsáveis pelos abusos e educar para a democracia, a cidadania, os direitos humanos e para a não repetição desses atentados.

Cuidei desses fundamentos ao co-organizar o livro O direito achado na rua: introdução crítica à Justiça de Transição na América Latina, que pode ser conferido em https://www.gov.br/mj/pt-br/central-de-conteudo_legado1/anistia/anexos/direito-achado-na-rua-vol-7_pdf.pdf. E não posso deixar de considerá-los em face da grande mobilização, tanto de ativistas quanto de personalidades, no transcurso dos dramáticos acontecimentos que atentaram contra a Constituição, as instituições e a democracia brasileiras.

Numa virulência — que me permite resgatar o que anotei em artigo para o livro Democracia: da crise à ruptura. Jogos de armar: reflexões para a ação —, sugerindo o passo em que o Estado de Direito Democrático se converte em Estado Democrático de Direita. Um passo descrito no golpe de Luiz Bonaparte (ironicamente chamado por Marx de o 18 Brumário de Luiz Bonaparte), escancarando situações em que a própria legalidade se torna um estorvo e põe em prática políticas reacionárias e antidemocráticas.

Estou seguro de que tudo que se vivencia no país desde o 8 de janeiro de 2023 deve ser avaliado sob o enfoque da Justiça Transicional. E isso significa estar atento às reiteradas manifestações da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre estabelecer que as disposições de anistia ampla, absoluta e incondicional consagram a impunidade em casos de graves violações dos direitos humanos, pois impossibilitam uma investigação efetiva das violações, a persecução penal e sanção dos responsáveis. A Comissão afirmou que esses crimes têm uma série de características diferenciadas do resto dos crimes, em virtude dos fins e objetivos que perseguem, dentre eles, o conceito da humanidade como vítima, e sua função de garantia de não repetição de atentados contra a democracia e de atrocidades inesquecíveis.

Especificamente sobre o monitoramento que exercita em relação ao Brasil, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em seu último relatório (2021), ofereceu recomendações sobre ações que tendem a fragilizar e até extinguir esse sistema, como o enfraquecimento dos espaços de participação democrática, indicando, entre as recomendações, a necessidade de “investigar, processar e, se determinada a responsabilidade penal, sancionar os autores de graves violações aos direitos humanos, abstendo-se de recorrer a figuras como a anistia, o indulto, a prescrição ou outras excludentes inaplicáveis a crimes contra a humanidade”.

Por isso lembramos eu e Nair Heloisa Bicalho de Sousa, em nosso texto de apresentação ao volume 7, da Série O Direito Achado na Rua (Justiça de transição: direito à memória e à verdade),que é necessário “um esforço para vencer a tendência a deixar no esquecimento os fatos reveladores das práticas políticas do regime autoritário. Vê-se, assim, com Pollack (1989), que memória e esquecimento são eixos fundamentais da esfera do poder, disputando o modo como a memória coletiva constrói-se em cada sociedade”. Em outro texto (Direito à memória e à verdade, Observatório da Constituição e da Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, n. 17, outubro e novembro de 2007), avançamos esse ponto para reafirmar que há “uma memória coletiva em processo de construção necessitando que as diferentes gerações tenham conhecimento da verdade.

Teria sido possível apelar para a verdade, conforme a diretriz do pensamento da grande filósofa Hannah Arendt, e assim recuperar um “hiato de credibilidade” para resgatar a verdade como dimensão da política, em condições de estabelecer base para a confiança desejada entre governo e cidadãos. Atende-se à questão posta por Walter Benjamin, para designar o processo da memória histórica que segundo ele, implica articular historicamente o passado sem que isso signifique conhecê-lo “como ele de fato foi”, mas antes, apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo?

Benjamin não explica como a história humana pode dar o que o homem não tem. O objeto da memória não é um passado morto, mas uma linha tênue cujo desenrolar pode provocar novos emaranhados. O que não se tem hoje ao seu alcance de nosso discernimento ativo a história animada por esse passado pode ter”.

A imagem elaborada por Benjamin, serviu a sua interpretação da realidade de um tempo de paroxismo totalitário, ao qual ele próprio sucumbiu, e que marcou o mundo por uma referência de brutal irracionalidade, e assim, “reconstruir memórias que permitam ressignificar as experiências de outros sujeitos do passado e, com eles, estabelecer um diálogo no tempo presente”.

O acerto contido no erro do Presidente pode ser o de acicatar a nossa consciência de sociedade civil para ativar a ação política que nos convoque a pensar e agir ao aprendizado de que se tivesse sido feita a justiça para os fautores de 1964, 2023/2024 não teriam acontecido. Reivindicar a verdade e resgatar a memória, como referências éticas contribui para estancar a mentira na política. Referi-me à grande pensadora Hanna Arendt exatamente para reter, sobre esse tema (cf. meu Memória e Verdade como Direitos Humanos in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Ideias para a Cidadania e para a Justiça. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 2008, p. 99-100) a sua advertência de que “uma das lições que podem ser apreendidas das experiências totalitárias é a assustadora confiança de seus dirigentes no poder da mentira e na capacidade de reescreverem a história para a adaptar a uma linha política”

Dito poeticamente, eu quero terminarcom Milan Kundera, para o homenagear, há poucos meses de seu falecimento (11/07/23): “Para liquidar os povos, começa-se por lhes tirar a memória. Destroem-se seus livros, sua cultura, sua história. E uma outra pessoa lhes escreve outros livros, lhes dá outra cultura e lhes inventa uma outra história” (O Livro do Riso e do Esquecimento, 1978).

 

(*) Por José Geraldo de Sousa Junior, professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB), é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

 

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

 

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).