sábado, 25 de abril de 2015

Um bom momento para estar na Escandinávia. Não para imigrantes.

Ana Luiza Almeida* As notícias sobre o barco que naufragou no mar da Líbia na última semana já não comovem mais. Estima-se que 400 pessoas morreram, mas as discussões continuam a se concentrar nas consequências e não na causa. Como impedir a vinda desses imigrantes? As rotas são múltiplas: para Itália, de barco, saindo da Líbia ; pelo Marrocos, atirando-se contra o muro de contenção financiado pela União Europeia que divide a cidade espanhola de Melila, localizada no lado marroquino do Mar de Alborão, e o continente africano ; pelos Balcãs, a pé, eles chegam a percorrer 150 km . Como signatários da Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951) , os países Europeus têm lidado, de maneira inadequada, com a proibição de expulsar ou repelir esses refugiados uma vez que eles cheguem ao seu território. Ocorre que, o “problema” que antes se limitava apenas a Espanha e Itália, faz-se mais presente, a cada dia, em outros países Europeus mais ao norte. O acordo Schengen de livre circulação praticamente extinguiu fronteiras entre os países europeus membros, o que, na prática, significa que a entrada de tais imigrantes pela Itália, Espanha ou Hungria (pela caminhada via Balcãs) resulta na sua posterior migração para outros países membros. É importante lembrar, no entanto, que a participação na área Schengen não implica necessariamente na filiação àUnião Europeia. O Reino Unido, por exemplo, é um membro na UE, mas não da área Schengen, o que lhe permitiu estabelecer regras restritas de circulação - inclusive sobre nacionais de países membros da EU. Romenos e búlgaros, por exemplo, que após a filiação à EU em 2007, estabeleceram migração em massa para Inglaterra, têm regras diferenciadas e formalmente estabelecidas para entrarem no Reino Unido. A Noruega é um exemplo do caso contrário, embora não seja um membro da União Europeia, é parte do acordo Schengen, o que tem resultado em uma busca em massa dos imigrantes africanos e Sírios por esse país. Noruega e Suécia são procurados por essa nova geração de imigrantes, primeiro, por sua política de acolhimento mais eficiente quando comparada a outros países europeus; por um invejável estado de bem estar social. No caso da Noruega, há ainda um outro atrativo a imigrantes de todas as nacionalidades: a crença em sua riqueza “inesgotável” baseada no petróleo – uma tremenda contradição. São imigrantes em sua maioria da Eritreia, Somália, Nigéria, Sudão e Síria. Todos têm em comum histórias de horror que incluem assassinatos, destruição, perseguição e estupros. O perfil que antes se limitava a cidadãos paupérrimos desses países, dia após dia, vai se modificando. Famílias sírias de classe média, vendem suas casas para financiar a viagem arriscada de barco para a Europa como última alternativa. Outros, ainda que provenientes de famílias de classe média em seus países, por não se alinharem com o regime, não veem outra alternativa. As perseguições religiosas constam como elementos mais presentes nas histórias desses imigrantes. O fato inegável é que, ao chegarem aqui, todos parecem “perder” seu passado. Se não por vontade própria, o tratamento que recebem forçosamente ignora qualquer de suas experiências ou habilidades prévias. Os processos de imigração em massa tornam a apreciação dos pedidos de asilo e refúgio cada vez mais burocrático e mecânico. A inserção no mercado de trabalho separa os trabalhadores em três categorias: nacionais qualificados; nacionais não qualificados e imigrantes. Os salários seguem uma progressão decrescente do primeiro ao último grupo. A divisão estabelecida nas grandes capitais deixa claro o papel dos imigrantes nessa sociedade. Mesmo na Noruega, uma sociedade formalmente igualitária, em sua capital, Oslo, a divisão entre Leste – para noruegueses que podem pagar para viver naquela área, e Oeste – grupos marginalizados dentro deste sistema – é clara. A estigmatizacão automática desses grupos é cruel. Os grupos conservadores que pregam a saída da Noruega do acordo Schengen fortalecem-se a cada dia no parlamento norueguês e tentam passar leis restritivas especificamente direcionadas a imigrantes. Recentemente houve uma tentativa de aprovação de uma lei que criminalizava o ato de pedir esmola na rua. A ideia era evitar redes criminosas que envolvem mulheres e crianças nessa atividade. No entanto, o principal grupo atingido seria o povo Roma (ciganos), historicamente estigmatizado na Europa. O parlamento europeu segue essa mesma tendência conservadora, e o Tribunal Europeu de Direitos Humanos lida, cada dia mais, com questões complexas que vão além da proibição do uso do véu por mulheres mulçumanas. O Tribunal tem que lidar com questões de maior impacto para os europeus, como a permissão para a construção de minaretes (as torres que compõe as mesquitas mulçumanas) nos países europeus. Com a crise econômica que assola todos os países do mundo, em especial os Europeus, a composição no “novo inimigo” está formada. Ele tem cor, hábitos culturais e religião. Um conflito curioso é daqueles europeus que já constituem uma segunda geração de imigrantes – como os latino-americanos que fugiram das ditaduras militares - que agora opõe-se ao acolhimento de novos imigrantes. A mera legislação não contém mais o impulso antes implícito daqueles que vivem o desconforto de dividir sua riqueza com o “estranho”. Riqueza essa muitas vezes construída a partir de morte, destruição ou parcerias econômicas com aquelas ditaduras que expulsam milhares de seus países. São tempos difíceis... para todos. Mas, sem dúvida, muito mais difíceis para esses imigrantes. *Ana Luiza Almeida participa do Programa de Mestrado Human Rights Policy and Practice, uma ação do consórcio entre universidades da Suécia, Reino Unido, Noruega e Índia. Suas cartas têm sido publicadas neste Blog desde que iniciou o programa (ver Cartas de Gottemburgo).

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Relatório da Comissão Anísio Teixeira aponta violações de direitos

MEMÓRIA E VERDADE - 22/04/2015
http://www.unb.br/noticias/unbagencia/unbagencia.php?id=9380
Isa Lima/UnB Agência
 
Relatório da Comissão Anísio Teixeira aponta violações de direitos
Documento mostra como a instituição foi aparelhada durante a Ditadura Militar. Ao final da apresentação, reitor Ivan Camargo fez pedido formal de desculpas em nome da Universidade de Brasília Alexandre Bastos - Da Secretaria de Comunicação da UnB

A Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da Universidade de Brasília apresentou, na manhã desta quarta-feira (22), relatório de investigações conduzidas ao longo de 32 meses de trabalho. Documento está disponível para sugestões da sociedade até 22/5.
A cerimônia lotou o auditório da Reitoria. Além de docentes, técnico-administrativos e estudantes da UnB, representantes da sociedade civil, integrantes de órgãos governamentais e egressos acompanharam a divulgação.
O relatório mostra evidências de que a instituição de ensino superior foi aparelhada e instrumentalizada para dar seguimento a políticas repressivas durante a Ditadura Militar.
Para chegar a essas conclusões, o grupo realizou diversas atividades para coleta de depoimentos, pesquisas junto a arquivos públicos, audiências públicas, entre outras.
As constantes invasões à UnB foram tema de documentário exibido durante o evento. Dirigido pela professora da Faculdade de Comunicação Erika Bauer, o curta-metragem apresenta depoimentos de ex-alunos como Hélio Doyle, hoje chefe da Casa Civil do GDF, além de imagens históricas dos anos de chumbo no campus Darcy Ribeiro.

Isa Lima/UnB Agência
Reitor Ivan Camargo ao lado do ex-reitor Antônio Ibañez (C) e da vice-presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, Sueli Bellato

Ao reconhecer e agradecer o empenho de cada um dos 14 membros da Comissão, o reitor Ivan Camargo fez um pedido formal de desculpas em nome da Universidade de Brasília.  “Considerando o relatório apresentado pela Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade, instituída pelo Ato da Reitoria nº 85, de 10 de agosto de 2012, a Universidade de Brasília, como instituição federal de ensino superior, pede desculpas pelas violações a direitos humanos e atos de exceção cometidos contra sua comunidade acadêmica entre 1964 e 1988”, declarou.
Acompanharam o reitor à mesa, os ex-reitores Antônio Ibañez e José Geraldo de Sousa Junior, a vice-presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, Sueli Bellato, o professor da Faculdade de Comunicação Fernando Oliveira Paulino e o ex-professor e cofundador da UnB Luís Humberto Miranda Martins Pereira.
O ex-reitor José Geraldo ressaltou a qualidade do trabalho e reforçou: “vai além de um registro de memória e verdade, temos aqui um programa de continuidade para ação”. O ex-reitor afirmou ainda que o material busca “contribuir para reeducar nossas práticas e reconstruir as instituições”.

Isa Lima/UnB Agência
Mateus Guimarães, sobrinho de Honestino Guimarães

Em manifestação conjunta entre o público e a ex-professora Ivonete Santiago de Almeida, os nomes de Honestino Guimarães, Paulo de Tarso Celestino, Ieda Santos Delgado e Anísio Teixeira foram mencionados e seguidos por um coro em uníssono atestando simbolicamente a presença de cada um deles ali na cerimônia.
Para Mateus Guimarães, sobrinho de Honestino Guimarães e membro do Comitê pela Memória, Verdade e Justiça do DF, o momento foi “único e histórico”.
O relatório da Comissão Anísio Teixeira está aberto para possíveis sugestões da sociedade por um mês. O texto está disponível aqui e também pode ser acessado em www.comissaoverdade.unb.br

terça-feira, 21 de abril de 2015

Os desafios da Comissão Anísio Teixeira

http://www.unb.br/noticias/unbagencia/artigo.php?id=825

MEMÓRIA E VERDADE - 20/04/2015
Cristiano Paixão e José Otávio Nogueira Guimarães
Em cerimônia a ser realizada no Auditório da Reitoria no próximo dia 22 de abril,  quando a Universidade comemora seu 53º aniversário, a Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade apresentará seu Relatório, resultado de 32 meses de  intensivo trabalho. Ao longo desses meses, a Comissão identificou a prática sistemática de violações a direitos humanos no período compreendido entre 1º de abril de 1964 e 5 de outubro de 1988.
É possível sintetizar algumas das conclusões alcançadas pela Comissão: a existência de mecanismos de espionagem das atividades de professores, servidores e estudantes; o controle ideológico exercido na contratação e demissão de professores bem como na admissão, suspensão e expulsão de alunos, a severa perseguição contra os movimentos discente e docente e uma clara conexão entre a repressão militar-policial e a censura a costumes e práticas imputadas a membros da comunidade acadêmica.
Os depoimentos colhidos revelaram a prática de crimes contra a humanidade, como o de tortura e de desaparecimento forçado, dos quais foram vítimas jovens universitários. As inúmeras prisões promovidas pelo regime foram mencionadas em muitos desses depoimentos. Lembrados e relatados também foram os atos de resistência à repressão, como as passeatas, assembleias, manifestações, impressão de textos contrários ao regime, entre outros.
Ficou ainda registrada a existência de uma atmosfera de medo, produto das ações do aparelho repressivo. Ao mesmo tempo, o exame de documentos e depoimentos evidenciou a existência de mecanismos de solidariedade entre os atingidos pela repressão.
Duas reflexões e dois desafios podem ser aqui lançados.
Primeira reflexão: a UnB não sofreu “ondas” de repressão ao longo do período ditatorial. Foi muito mais do que isso. Ela foi ocupada e instrumentalizada por um regime de força que não só espionou, perseguiu, puniu e expulsou alunos, funcionários e professores como estabeleceu um aparato de segurança e informações especializado em produzir “infiltrados”, criar procedimentos disciplinares e estimular delações. Além disso, os interventores que ocuparam a Reitoria após a destituição de Anísio Teixeira permitiram (ou incentivaram) que forças policiais e militares invadissem o campus, promovendo prisões e atos de violência. Sob o comando desses interventores, a UnB deixou de ser um território livre e passou a ser alvo  de iniciativas que visavam sobretudo à captura de opositores ao regime.
Dessa primeira decorre a segunda reflexão: a repressão generalizada efetivou-se também fora do campus. Muitos dos depoentes ouvidos revelaram episódios de torturas em locais como ministérios, garagem de prédios públicos e, claro, instalações do Exército. A perseguição foi indiscriminada – mesmo estudantes que não tinham militância política foram presos e torturados pelo simples fato de serem estudantes e residirem em repúblicas.
No momento em que a Comissão se aproxima da apresentação do seu Relatório, tornam-se nítidos os desafios que se colocam para o futuro. Dois deles são cruciais: (1) como retomar os princípios que marcaram a fundação e implantação da UnB? (2) como a Universidade pode colaborar com  uma educação para os direitos humanos, de modo que as gerações vindouras mantenham as premissas democráticas e libertárias que estavam no projeto de Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro?
A Comissão inova na forma  de entregar seu Relatório. Ele permanecerá, por um mês, em hotsite hospedado no Portal UnB, aberto a críticas e sugestões de todo aquele ou aquela que queira contribuir com o trabalho de construção da verdade, memória e justiça no âmbito da Universidade. Esse trabalho não se encerra nunca, permanecendo sob a responsabilidade da comunidade acadêmica e da sociedade em geral. O Relatório é uma parte desse longo processo. Uma parte importante, mas não exaustiva. Necessária, mas não suficiente. A UnB foi protagonista na luta contra a ditadura. É hora de reiterar sua centralidade na luta por uma universidade democrática, plural e aberta.
Cristiano Paixão é professor da Faculdade de Direito da UnB e
coordenador de Relações Institucionais da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB
José Otávio Nogueira Guimarães é professor do Departamento de História da UnB e coordenador de Pesquisa da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB

sexta-feira, 17 de abril de 2015

A Justiça Popular em Cabo Verde

Bruno Mileo
O livro A Justiça Popular em Cabo Verde resulta de pesquisa sociológica realizada em 1983-1984 a pedido do governo daquele país quase uma década após a sua independência. Vivia-se o momento da reconstrução da administração pública cabo-verdiana com dificuldades estruturais a serem superadas e, sobretudo, novas possibilidades a partir da ruptura dos vínculos coloniais e pós-coloniais, perseguindo o socialismo como objetivo político.
Conforme o livro aborda, o momento histórico da independência cabo-verdiana possibilitou reflexões importantes sobre os caminhos para a estruturação da administração da justiça naquele país. Por um lado, o mundo ocidental já vivenciava a crise do modelo hegemônico pautado no sistema de produção capitalista e no colonialismo – reprodutor, portanto, de relações de poder com base na classe e em diferenças socioculturais. Embora tenha ocorrido uma ampliação dos direitos sociais na segunda metade do século XX, o Poder Judiciário não se expande satisfatoriamente e se abrem espaços para o debate sobre a crise do judiciário e a necessidade de reformas.
Por outro lado, naquele momento histórico, foi igualmente possível o contato com experiências de outros países africanos e do leste europeu, uma oportunidade de aprender com outros processos de organização política e administração da justiça de base popular. No continente africano em especial, na medida em que zonas eram liberadas dos domínios coloniais, conseguiam ensaiar formas autônomas de base popular e assente nos costumes, obviamente respeitadas as particularidades de cada país.
Em Cabo Verde, a colônia não conheceu forte investimento na construção de infraestrutura de apoio para a administração colonial em razão da pouca presença de colonos portugueses. Após a independência, a construção de uma estrutura judicial autônoma teve que levar em conta dificuldades humanas, técnicas e financeiras – tais como falta de instalações e falta de profissionais especializados para o exercício das funções. Sob outro enfoque, o caminho estaria aberto para investir em alternativas emancipadoras e mais próximas do cotidiano comunitário para a prevenção e resolução de conflitos. Nesse contexto, os tribunais de zona emergem como prioridade e uma inovação institucional que vigorou em Cabo Verde entre 1979-1991, afastando-se do modelo hegemônico liberal para a administração da justiça e, mesmo, dos modelos de justiça popular instituídos no Leste Europeu e em Cuba.
Os Tribunais de Zona em Cabo Verde dispensavam as necessidades técnicas, materiais e humanas da justiça formal, mas também eram uma aposta forte para promover a pacificação social e atuar como escola política, cultural e social do povo. Previstos na organização judiciária de Cabo Verde, os Tribunais de Zona conjugavam as funções de administração da justiça – com a resolução de litígios a partir da atuação de representantes comunitários indicados como juízes não profissionais – e política de promover a participação popular e a educação comunitária conforme os objetivos políticos comuns.
Os casos julgados pelos Tribunais de Zona eram definidos legalmente pela baixa medida da pena ou valor monetário. No atendimento aos comunitários, no entanto, ocorria certa discricionariedade ao processar uns casos e outros não, conforme fosse possível avaliar a gravidade do conflito ou se antever a eficácia da intervenção da justiça popular. Como os juízes eram membros da comunidade, isso podia ser antecipado com base nos conhecimentos e relações que possuíam no bairro, sem necessariamente de informações constantes de um processo.
O funcionamento de cada Tribunal de Zona tendia a variar bastante, mas prevalecia informalidade e oralidade como características preponderantes. Alguns casos chegavam a ser conciliados logo que a parte procurava o tribunal para prestar queixa, outros podiam nem ser registrados ou autuados devido a previsibilidade de sua fácil solução, ainda que tenham se realizado audiências ou, mesmo, tenham sido sentenciados. Os usos da formalidade e linguagem jurídica eram estratégicos conforme a gravidade do caso ou a probabilidade de recurso, quando os juízes dos Tribunais de Zona necessitavam reforçar sua legitimidade na comunidade ou se relacionar com os tribunais oficiais para o julgamento em grau de recurso.
A proximidade entre juízes e comunidade favoreceria também decisões com maior enfoque no caráter educativo e menos no caráter punitivo de acordo com as características de cada caso, embora os Tribunais de Zona estudados ainda aplicassem mais medidas punitivas do que educativas no tempo da pesquisa. O desejável era que a formação comunitária ocorresse com a participação das pessoas no tribunal, assistindo ou manifestando-se durante as audiências. Apesar da participação comunitária ser um dos principais pilares da justiça popular, a pesquisa observa poucos espaços para que os comunitários participem durante as audiências ou algumas delas que foram realizadas apenas com a presença das partes e juízes, indicando esse como um aspecto a ter cuidado.
Apontar essas questões cumpria com o objetivo da pesquisa em contribuir com a construção da experiência da justiça popular em Cabo Verde, estudá-la sem reduzir a sua complexidade. Nesse sentido, outros pontos merecem destaque no livro, tais como alertar para os perigos da instrumentalização partidária da justiça popular, a relação desta com outros órgãos oficiais e de participação popular, o papel dos juízes no cotidiano de resolução de conflitos comunitários, o espaço das mulheres nos Tribunais de Zona como suas principais usuárias – porém com pouca representação numérica no quadro de juízes, o decréscimo na procura dos Tribunais de Zona em comparação aos primeiros anos de funcionamento.
No contexto ideológico da pesquisa e preocupado em destacar as potencialidades e riscos com base nas experiências históricas de outros modelos de justiça popular, assumindo também o lugar de fala de um cidadão português a fazer recomendações em tão pouco tempo da independência cabo-verdiana; o pesquisador faz opções metodológicas cuidadosas. Adota a metodologia quantitativa para que os dados pudessem demonstrar com eloquência o funcionamento dos Tribunais de Zona. Realiza um trabalho pioneiro na coleta de dados que se encontravam pouco sistematizados em razão da informalidade ou, mesmo, não escritos em razão da oralidade que caracterizavam o funcionamento dos Tribunais de Zona. Por esses motivos, ele demonstra cautela em tirar conclusões com base no universo pesquisado, ao invés de assumir um tom generalizante. Aos dados quantitativos, soma-se a consulta a um interessante acervo de documentos, as entrevistas realizadas e as descrições de observações feitas nos Tribunais de Zonas pesquisados. Sempre, é claro, acompanhados da análise cuidadosa e ponderações pertinentes do pesquisador.
No início da década de 1990, os Tribunais de Zona encerravam as atividades em Cabo Verde. Foi um período curto de funcionamento e investimento em alternativas para a prevenção e resolução de conflitos. O livro tem o mérito de documentar sobre o funcionamento da justiça popular em Cabo Verde, mostrando a criatividade comunitária na solução de litígios e seu potencial emancipatório, mas também apontando problemas e obstáculos a serem vencidos. É importante conhecer a experiência cabo-verdiana e, dialogando com ela, refletir sobre a relação entre estado e participação social, direito e política, formalidade e informalidade na administração da justiça. Sendo questões ainda tão atuais a crise de legitimidade do judiciário e o imperativo de democratizar a justiça, voltar os olhos para os Tribunais de Zona em Cabo Verde é essencial para não desperdiçar uma importante experiência e se poder avançar no sentido de novas formas para a administração da justiça.



[1] Texto de apresentação do livro do professor Boaventura de Sousa Santos na livraria Almedina, Coimbra, Portugal no dia 10.04.2015 O autor é professor da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA) e doutorando em Direito, Justiça e Cidadania no Século XXI pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES/UC).

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Sociologia Jurídica: Condições Sociais e Possibilidades teóricas

Laura Leão Melgaço Campos Ribeiro, aluna do Curso de Direito da UnB


O ensaio de José Geraldo de Sousa Junior “Sociologia Jurídica: condições sociais e possibilidades teóricas” se inicia ressaltando a importância da conexão do Direito com a Sociologia. Durkheim é logo citado com a frase “É preciso, pois, que o estudante aprenda como o direito se forma sob a pressão das necessidades sociais (...)”, mostrando que não há sentido em realizar um estudo do Direito única e exclusivamente baseado em dogmas e manuais.
 O primeiro problema da Sociologia Jurídica é a delimitação de seu estudo, questão essa bem resolvida a partir da visão de Boaventura de Sousa Santos: Ele sugere que lidemos com o conhecimento utilizando de uma rebeldia metodológica, ou seja, a interconexão entre áreas do saber não deve ser uma possibilidade, e sim uma necessidade; é o único modo de se obter conhecimento de forma racional.
O ensaio nos apresenta então, uma perspectiva histórica da Sociologia, pois é necessário conhecer o retrospecto antes de se pensar em uma aplicação futura. Assume-se que a Sociologia adquire seu caráter analítico a partir dos estudos de Emile Durkheim, todavia, antecessores ao francês (Aristóteles, Montesquieu, Comte e Marx) são de suma importância para compreender as fases do pensamento sociológico. Aponto aqui uma predileção pessoal aos estudos de Marx, pois o considero como um grande teórico do chamado Estado Social (que evolui para o Estado Socialista), onde a compreensão do espírito coletivo é alta, e os juristas assumem o papel de análise social, contrapondo-se à análise puramente mecânica e dogmatizada (CARVALHO NETTO. Menelick de. A hermenêutica constitucional sob o paradigma do estado democrático de direito).
A partir de Durkheim, a Sociologia do Direito como ciência distinta da Sociologia em geral começa a tomar forma. É em Durkheim que se relacionam os tipos de solidariedade com o Direito, e há um paralelo entre Direito e Moral, estabelecido pela diferença entre sanções difusas e organizadas. É em Weber, contudo, que a autonomia se concretiza através da distinção entre os fenômenos jurídicos e os demais fenômenos sociais.
Na contemporaneidade surgem autores cujas teorias são chave para entender o desenvolvimento da Sociologia Jurídica, dentre eles, Boaventura de Sousa Santos, que desloca o foco centrado na norma para o foco no conflito, pois segundo sua teoria o Direito apresenta uma “garantia de arranjo harmonioso dos conflitos” e tem como função promover a mudança social.
Ressalto um paralelo entre a teoria de Boaventura de Sousa Santos e a teoria de Marx: Os dois teóricos acreditam no conflito como fonte de mudança social, e não como um problema.
É em Elías Diaz, porém, que surge uma análise classificatória que correlaciona as sociedades globais e os sistemas de Direito, utilizando-se para isso docaráter analítico da Sociologia. O filósofo do Direito espanhol apresenta a definição de Sociologia Jurídica da qual mais compartilho interesse: “Estudo e análise das interrelações entre Direito positivo e sociedade”. Para Diaz, esse estudo se desdobra em dois níveis: Nível de legalidade e legitimidade. O nível de legalidade compreende a distinção entre direito vigente e direito eficaz, já o nível de legitimidade estuda a aceitação e vivência dos valores jurídicos por diversos grupos sociais.
Entendendo a sociedade como organismo em constante mutação, é certo que estudar os impactos da modernidade é de suma importância. Nesse sentido,é necessário entender que estamos em um processo de destituição contínua de direitos, ao passo em que direitos nunca antes imaginados passam a ser requisitados. Para acompanhar as inovações sociais, Boaventura de Sousa Santos diz: “É necessário que o campo do político seja radicalmente redefinido e ampliado”. Ainda tentando acompanhar a dinâmica social, existe a tese de Patrick Pharo do chamado “Civismo ordinário”, uma espécie de interseção entre o direito legislado e a cultura.
Na tentativa de resolver o problema da distância entre Direito positivo e sociedade, Lyra Filho e Boaventura de Sousa Santos contribuem intensamente para pluralizar o Direito e resolver a questão citada.A tese de Lyra Filho é útil para distinguir Sociologia do Direito e Sociologia Jurídica, sendo a primeira referente à base social de um direito específico, enquanto a segunda refere-se ao Direito em geral. Os dois autores se tornam grandes apoiadores do sentido auto reflexivo da alternatividade, sentido esse utilizado por vários juristas do Rio Grande do Sul e Santa Catarina.
Como exemplo da aplicação da Sociologia Jurídica na era atual, o ensaio nos apresenta o projeto de reforma do ensino jurídico no Brasil, apoiado pela OAB, cuja proposta era a “Renovação do jurista para que venha a constituir-se em sujeito do novo processo de construção jurídica de novas categorias e de novos conteúdos emergentes do dinamismo social, levando a novas figuras de futuro”.
A parte final do ensaio nos apresenta o panorama atual do Direito conectado com a Sociologia em uma era de movimentos operários e populares, uma era onde a reivindicação de direitos é cada vez mais comum. Como principais teóricos dessa nova era, são apontados Roberto Lyra Filho e Marilena Chauí, que reconhecem o aparecimento de um “sujeito novo” consciente dos direitos que dispõe e com vontade de lutar pelos que ainda não o são garantidos.
“A cidadania ativa é a que é capaz de fazer o salto do interesse ao direito, que é capaz, portanto de colocar no social a existência de um sujeito novo (...)”
(Chauí, Marilena; 1990)
O “Direito achado na Rua” representa uma forma de aplicação da Sociologia Jurídica na era moderna, sendo a rua um elemento simbólico da emersão dos direitos populares e da reivindicação destes. Acredito que o projeto seja uma síntese do que o ensaio nos propõe: Utilizar da imaginação, pensar além dos dogmas, romper as amarras das ideologias pré-fixadas.
O Direito é bem mais do que os dogmas e os manuais. O Direito é uma ciência que serve a sociedade, e, sendo assim, acredito ser necessário o estudo constante da própria, uma vez que as mudanças sociais ocorrem o tempo todo. A sociedade é composta de inúmeros indivíduos, cada qual com suas ideologias próprias, que juntas, formam, a cada dia, mais e mais grupos de identidade comum. Creio que é justamente essa pluralidade de ideias e opiniões a representação do espírito democrático, e cabe a nós, futuros juristas, tomar parte dessa sociedade diversa e eclética, sendo o estudo da Sociologia essencial para isso.
Os projetos de extensão presentes na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília são, a meu ver, a materialização da Sociologia Jurídica, uma vez que conseguem correlacionar a teoria com a análise da sociedade além da tentativa real de interferência e solução dos problemas. Como mencionado anteriormente, Boaventura de Sousa Santos diz que o Direito garante uma harmonização dos conflitos sociais. Ora, como estar ciente dos conflitos presentes em nossa sociedade se não a partir da análise desta? O estudo de códigos e demais formas positivadas de Direito tem sim sua importância, mas de nada adianta se não há conhecimento do ambiente onde estes serão aplicados.
 A AJUP- Assessoria Jurídica Popular Roberto Lyra Filho- é um exemplo de projeto que analisa problemas como o Lixão, demandas rurais e etc. O projeto analisa problemas emergentes e procura soluções para eles, o que eu acredito ser muito benéfico, principalmente no âmbito trabalhista, uma vez que passamos por uma situação de atraso de salários e greves no Distrito Federal, gerando incerteza na população acerca de seus direitos.
O estudo dos problemas sociais aliado ao conhecimento teórico garante a formação de Juristas mais capazes de lidar com as transformações ocorrentes na sociedade. Creio que esta ideia seja a parte mais importante do ensaio analisado, bem como a proposta principal da disciplina Sociologia Jurídica.


* Resenha crítica acerca do ensaio. O ensaio foi publicado em livro homônimo, de José Geraldo de Sousa Junior, editado por Sergio Fabris Editor, Porto Alegre, 2002, págs. 11-51.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Carta do Equador, Mitad del Mundo

Quito, 30 de março de 2015.

Queridos/amigo/as:

Envio esta carta, desde la mitad del mundo, na tentativa de somá-la às demais cartas escritas e partilhadas pelos amigo/as e companheiro/as do grupo de pesquisa O Direito Achado na Rua.

Estou vivendo no Equador há dois meses. Vim para realizar o trabalho de campo da tese de doutorado que venho desenvolvendo no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Cheguei aqui para estudar as experiências de advocacia popular neste país, mas sobretudo, pesquisar um certo conflito territorial entre a comunidade negra La Chiquita e as empresas plantadoras do monocultivo de palma. Advogado/as e comunidade estão há 10 anos resistindo e defendendo o direito ao território ancestral desta comunidade.

O Equador é permeado por uma paisagem social e política de grande diversidade e complexidade. Como ocorre com as pesquisas sociológicas, a minha investigação se depara com essa diversidade e se combina de diversas formas com muitos outros temas. Ao mesmo tempo, é fascinante e angustiante. Estamos sozinhos na jornada de uma tese, e o tempo é sempre escasso para dar conta da pluralidade e amplitude de coisas a descobrir e compreender.

A aproximação com o caso da comunidade La Chiquita tem me levado à realidade histórica e contemporânea dos negros deste país, um tema ainda pouco enfrentado por aqui.  A população que se auto declara afroequatoriana é de apenas 7,2 %. Em contrapartida, 71,9% dos equatorianos se autodeclaram mestiços. Uma grande presença da população negra está concentrada na região norte do país, na província de Esmeraldas.

À semelhança do Brasil, a população negra do Equador enfrenta muitos problemas como preconceito, desemprego, baixos níveis de escolaridade, escasso acesso à saúde, pouca participação política. E, particularmente, as comunidades negras rurais vivem uma situação de extrema vulnerabilidade social, ameaçadas constantemente de perderem seus territórios. Uma conjuntura muito enraizada num passado colonial.

Estou de acordo com os amigos daqui quando afirmam que há muito racismo e preconceito contra os negros no Equador. Escutei por mais de uma vez que “os negros são desorganizados”, que “não se mobilizam” e que “seus direitos coletivos só foram adquiridos graças à luta dos povos indígenas”.  A comparação com os indígenas é bastante comum.

Em Quito, tem sido frequente a reação de surpresa das pessoas quando digo que estou aqui interessada em estudar as comunidades negras. O estranhamento parece derivar do fato de que não haveria muita coisa capaz de justificar o interesse de um pesquisador sobre o povo negro do Equador. “Por que não estudas os indígenas?”, me perguntaram a primeira vez que visitei a cidade.

Conheci um professor colombiano, negro, que me contou que veio morar em Quito para fazer os seus estudos de mestrado. Tão logo terminou, se mudou para Esmeraldas para dar aulas. Perguntei por que havia deixado Quito. “Muito racismo por lá”, respondeu. Um outro dia, um amigo e professor da Universidade Andina Simón Bolívar desabafou: “O movimento afro segue na pior situação de marginalidade, sempre estiveram numa situação pior que a dos indígenas”.

Parte da minha pesquisa é feita em Quito e a outra parte em San Lorenzo,  região de Esmeraldas, perto da fronteira com a Colômbia. Nas andanças entre uma e outra tenho conversado com muitas pessoas e conhecido o trabalho de alguns grupos que me fizeram acreditar que esses estigmas não se sustentam e que é equivocado qualificar um determinado grupo, impondo parâmetros de outro. Há um processo organizativo afroequatoriano em curso há muitas décadas, com toda a sua complexidade e particularidade. Existem cerca de 120 organizações negras por todo o país atuando com agendas específicas e ações politicas. Com avanços e debilidades, como qualquer processo político organizativo.

Em Esmeraldas, conheci as bravas mulheres do MoMuNE (Movimento de Mulheres Negras de Esmeraldas) e estive numa reunião com diversas organizações negras que estão discutindo formas de intervir no texto da nova Lei de Terras do país. Passei um período com a comunidade La Chiquita que, pela sua Asociación de Trabajadores Autónomos, persiste na defesa do seu território e dos direitos da natureza, a pachamama. Há ainda um grupo de acadêmicos e intelectuais ativistas, como Pablo Minda, Jhon Antón, Catherine Walsh, Juan García e Julianne Hazlewood, que tem produzido uma consistente literatura antropológica e sociológica sobre o importante aporte dos negros para o país, sua identidade étnica e cultural, suas formas organizativas na luta contra o racismo e a exclusão social.

Nesta semana, em que se retomou o julgamento no Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade do Decreto 4.887/2003 (que regulamenta a titulação de terras quilombolas) pensei muito nas comunidades do Equador, como a de La Chiquita, e em como as lutas e os contextos dos dois países se comunicam. E lembrei de um texto da Catherine Walsh, sobre as lutas (des)coloniais, em que ela pergunta se, de fato, os Estados estão conseguido confrontar o legado da colonialidade e reconhecer a dívida histórica que têm com a população negra. Uma oportuna pergunta para os poderes políticos do  Brasil.

Fico por aqui.
Um grande beijo.


Flávia Carlet