quinta-feira, 28 de setembro de 2023

 

A constituição da democracia em seus 35 anos

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

A constituição da democracia em seus 35 anos / (Orgs) Luiz Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Álvaro Ricardo de Souza Cruz. Belo Horizonte: Fórum, 2023, 656 p.

 

O lançamento dessa obra celebratória, aponta para um livro robusto e de uma rica pluralidade considerando os autores e autoras que dele participam. Uma mirada sobre o Sumário – aqui reproduzido somente na designação genérica sem o desdobramento analítico de conteúdo, já exibe a potência dessas contribuições e o fôlego autoral:

PREFÁCIO

Álvaro Ricardo da Souza Cruz

O ATESTADO TESTEMUNHADO POR 35 ANOS DA CONSTITUIÇÃO NO BRASIL: A INFLUÊNCIA DA METODOLOGIA DO DIREITO CIVIL NA LEGALIDADE CONSTITUCIONAL; DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRAS EM JULGAMENTOS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Luiz Edson Fachin

TRINTA E CINCO ANOS DA CONSTITUIÇÃO DE 1988: AS VOLTAS QUE O MUNDO DÁ

Luís Roberto Barroso

FEDERALISMO COOPERATIVO ECOLÓGICO EFETIVO: COORDENAÇÃO, FINANCIAMENTO E PARTICIPAÇÃO

Rosa Weber

A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO PROCESSO E OS SEUS REFLEXOS NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Luiz Fux

ERRADICAÇÃO DA POBREZA E COMBATE À FOME À LUZ DA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Cristiano Zanin Martins

HANNAH ARENDT E A DEFESA DA DEMOCRACIA

José Antonio Dias Toffoli

AGREGAÇÃO E DESAGREGAÇÃO REGIONAIS – O FEDERALISMO BRASILEIRO

Paulo Dias de Moura Ribeiro

AS FRONTEIRAS DA NOÇÃO CONTEMPORÂNEA DA LEGALIDADE

Joel Ilan Paciornik, Valdir Ricardo Lima Pompeo Marinho

O PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA E SUA PREVISÃO EM NORMA

EXPRESSA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Regina Helena Costa

ACESSO À JUSTIÇA E TRANSFORMAÇÃO DIGITAL: UMA PESQUISA SOBRE O AMBIENTE VIRTUAL EM QUE OCORRE A PRESTAÇÃO JURISDICIONAL

Luiz Alberto Gurgel de Faria, Rodrigo Maia da Fonte

REFLEXÕES SOBRE O DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE

Humberto Martins

OS 35 ANOS DA PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E A

DEFESA DA DEMOCRACIA E DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Benedito Gonçalves, Camile Sabino

O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO ÂMBITO PENAL NOS 35 ANOS DE VIGÊNCIA DA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Maria Thereza Rocha de Assis Moura, Marcelo Costenaro

RECLAMAÇÃO E CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE: UMA ANÁLISE EVOLUTIVA DO INSTITUTO A PARTIR DA RECLAMAÇÃO Nº 4.374/PE E À LUZ DO SISTEMA DE PRECEDENTES DO CPC/2015

Mauro Luiz Campbell Marques

OS 35 ANOS DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Luis Felipe Salomão, Mônica Drumond

O DIREITO À CONSULTA E PARTICIPAÇÃO DOS POVOS ORIGINÁRIOS E TRADICIONAIS NOS 35 ANOS DE CONSTITUIÇÃO

Álvaro Ricardo de Souza Cruz, Diogo Bacha e Silva, Guilherme Ferreira Silva

35 ANOS DA CONSTITUIÇÃO DE 1988: UM ACERTO DE CONTAS COM O NEOLIBERALISMO

Álvaro Ricardo de Souza Cruz, Bernardo Augusto Ferreira Duarte,

Bernardo Gomes Barbosa Nogueira

CONSTRUÇÃO DA INCLUSÃO SOCIAL E TRANSFORMAÇÃO PELA ALFABETIZAÇÃO: ANÁLISE DA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS NO BRASIL DESDE A PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 E PERSPECTIVAS FUTURAS

Álvaro Ricardo de Souza Cruz, Julia Laureano Belan Murta,

Ebe Fernandes Carvalho

O ESTADO DE DIREITO E O ESTADO DE EXCEÇÃO: REFLEXÕES SOBRE A DEMOCRACIA BRASILEIRA

Álvaro Ricardo de Souza Cruz, Daniel Guimarães Medrado de

O AMICUS CURIAE ESPECIALISTA NO PROCESSO CONSTITUCIONAL

Sérgio Cruz Arenhart

CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 35 ANOS: AINDA UMA DISPUTA POR POSIÇÕES INTERPRETATIVAS

José Geraldo de Sousa Junior

“CONVÍVIO DEMOCRÁTICO”: UTOPIA INSTITUCIONAL E CHAVE HERMENÊUTICA DA CONSTITUIÇÃO DE 1988

José Rodrigo Rodriguez

A AUTONOMIA DO BANCO CENTRAL E A CONSTITUIÇÃO

Gilberto Bercovici, Viviane Alves de Morais

APONTAMENTOS SOBRE A CONSENSUALIDADE ADMINISTRATIVA NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988

Leonardo de Araújo Ferraz, Daniel Martins e Avelar

A ATIVIDADE PARLAMENTAR E A REFORMA CONSTITUCIONAL: OS 35 ANOS DE ATUAÇÃO DO CONGRESSO NACIONAL COMO CONSTITUINTE DERIVADO

Bárbara Brum Nery, João Trindade Cavalcante Filho,

Bonifácio José Suppes de Andrada

A EVOLUÇÃO DO CONTROLE SOCIAL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NOS 35 ANOS DA CONSTITUIÇÃO DE 1988: AMPLIAÇÃO E EFETIVIDADE

Gustavo Costa Nassif, Mariana Bueno Resende

A PUBLICIDADE NO PROCESSO DELIBERATIVO DOS TRIBUNAIS: UMA ANÁLISE CRÍTICO-COMPARATIVA ENTRE O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL DA ESPANHA E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL DO BRASIL

Gláucio Maciel Gonçalves, Valber Elias Silva

A ERA DO ALGORITMO E IMPACTOS SOBRE AS DECISÕES HUMANAS: OS DESAFIOS À DEMOCRACIA E AO CONSTITUCIONALISMO

José Adércio Leite Sampaio, Ana Carolina Marques Tavares Costa

O QUE DEIXAMOS DE FAZER: CONSTITUIÇÃO, SEGURANÇA PÚBLICA E FORÇAS ARMADAS

Daniel Sarmento, João Gabriel Madeira Pontes

A TUTELA DOS DIREITOS HUMANOS NAS RELAÇÕES PRIVADAS

Gustavo Tepedino

SOBERANIA ECONÔMICA, DIREITOS HUMANOS E OS TRATADOS DE INTEGRAÇÃO: POR UMA NOVA INTERPRETAÇÃO DO ART. 4º, PARÁGRAFO ÚNICO DA CONSTITUIÇÃO DE 1988

André de Carvalho Ramos, Denise Neves Abade

O ART. 167, IV (NÃO AFETAÇÃO), EM 35 ANOS DA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Fernando Facury Scaff

DESAFIOS PARA A DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS PELO MINISTÉRIO PÚBLICO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Aurélio Virgílio Veiga Rios

O DIREITO FUNDAMENTAL À CIDADE, RAZÕES DE SUA (IN)EFETIVIDADE E CAMINHOS PARA A SUA CONCRETIZ(AÇÃO)

Cristiana Fortini, Maria Fernanda Veloso Pires

DEMOCRATIZAÇÃO DO ACESSO À PROPRIEDADE RURAL NA CONSTITUIÇÃO DE 1988: IMPASSE QUE PERMANECE

Ela Wiecko V. de Castilho

DERROTABILIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS

José Arthur Castillo de Macedo

A CONSTITUIÇÃO, O STF E A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Assusete Magalhães, Marco Túlio Reis

 

O Prefácio é assinado por Álvaro Ricardo de Souza Cruz, Pós-Doutor pela UFMG. Mestre e Doutor em Direito pela UFMG. Desembargador do Tribunal Regional Federal da 6ª Região. Professor Adjunto da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, também um dos co-organizadores da obra e, pelo menos no que me diz respeito, depois do convite que recebi diretamente do ministro Fachin, foi o diligente executivo para a finalização da edição, um trabalho que não é simples nem fácil, como sabemos os que já se dedicaram a esse mister editorial. A obra traz, a exemplo do que acabei de registrar relativamente ao desembargador Álvaro, uma suma biobibliográfica de todos os autores e de todas as autoras.

Detenho-me no prefácio, não obstante singelo, todavia apto a resumir o propósito e o alcance da obra:

Tempo é curso. Tempo é fluxo. Tempo é interrupção. Movimento e pulsão. Pausa e reflexão. Segundo Mia Couto, o tempo é um rio cujas margens transcendem quaisquer limites. Uma coisa suspensa que pende sobre nossas cabeças e sob nossos pés.

A pulsão de controle nos fez construir relógios e calendários. Cronos é a esperança de retê-lo na e pela episteme. “Compreendê-lo” em nosso cotidiano privado é “impossível”. Explicá-lo no plano coletivo e social é infinito (Kairós).

Cinco de outubro de 2023. Já se vão 35 anos. Como e onde estávamos no dia em que Ulisses Guimarães disparou seu nojo à ditadura erguendo em suas mãos o texto da nova Constituição do Brasil. Como e onde estamos hoje? Qual a gramática falada pelos brasileiros? A cacofonia da multidão é capaz de se tornar uma sinfonia? Há ordem em nosso caos?

Cada qual de nós (autores) ouviu um acorde. Cada autor recebeu uma fração da verdade que traduziu em seu texto. Vivemos tempos difíceis. Já vivemos tempos fáceis? Arbítrio. Polarização. Crispação. Limites aos/dos poderes. Inclusão de marginais/ marginalizados.

Após tantas voltas que o mundo deu, cada autor trouxe aqui o retrato que vê da nossa casa brasileira. Uma casa chamada Terra, insiste Mia Couto. Um retrato batido agora. Um flash que ilumina pontos cegos do outro. Uma fotografia que pretende parar o tempo para que possamos lembrar o presente (divino?) que é estar vivo. Lembrar o presente passado. Atestar um testemunho único. Sonhar com o presente futuro.

Novas/velhas palavras. Ativismo ou democracia militante? Devemos tolerar a intolerância? Devemos marcar o tempo do marco temporal das terras indígenas? Devemos visibilizar os invisíveis? O que dizer da propriedade e dos tributos? E do papel da Administração? E da tal liberdade de expressão?

Trinta e seis textos. Cada qual a partir de si projeta a sua visão aos outros. Ministros, professores, advogados, promotores e magistrados. Homens e mulheres que doam sua visão ao Outro/leitor. Um doar de si para o Outro. Verdadeira evasão para a alteridade.

Esse foi o projeto que ajustei com os amigos Fachin e Barroso. Amigos que sempre tiveram paciência em me ensinar. E que o fazem republicanamente aprendendo no dia a dia no ofício de magistrados supremos desse país. Uma alegria compartilhar com todos/todas o esforço de visão do momento do turbilhão desse rio chamado tempo e dessa casa chamada Brasil.

Tive muito gosto em participar da construção desse trabalho. Desde logo pelo convite que recebi de um amigo dileto, com quem partilhei experiências de interpelação ao Direito para encontrar um fio crítico que o pudesse conduzir a uma senda de mobilização emancipatória, em condição de poder dar dignidade jurídica à política como mediação da consciência que se realiza na história e se faz apta a transformá-la de modo democrático e em direção à justiça que humaniza.

Desde o final dos anos 1970 e ao longo dos anos 1980, essa disposição se manifestou no ambiente acadêmico (remeto a congressos em que se armou a agenda da abertura crítica ao positivismo jurídico), profissional (basta consultar diversos anais de conferências nacionais da Ordem dos Advogados) e social (não posso deixar de registrar, em muitas situações, discussões como a que pudemos estabelecer com Roberto Aguiar, Carlos Marés, Miguel Baldez, Paulo Lôbo, Alexandre Bernardino Costa para contribuir com movimentos sociais no esboço de uma proposta de currículo para as turmas especiais de direito do Pronera). Nem ocultar, mesmo depois de assumir a cátedra do Supremo Tribunal Federal, sua disposição imediata na concordância em sentar com as expressões jurídicas de movimentos sociais num encontro a que veio na UnB, a meu convite, para dialogar em tese, com expressões ativas de moimentos sociais da cidade e sobretudo, do campo.

Conforme diz o Ministro Fachin, na carta que me enviou, “a Constituição de 1988 é inequivocamente um marco histórico na trajetória do país em direção à democracia e à garantia dos direitos fundamentais. A partir da promulgação da Constituição, a sociedade brasileira conquistou avanços significativos no que diz respeito à consolidação de um Estado de Direito Democrático, da participação popular na gestão pública e do reconhecimento de direitos fundamentais como o acesso à educação, saúde e moradia. A celebração dos 35 anos da Constituição brasileira é uma oportunidade importante para refletir sobre a relevância desses avanços e sobre os desafios que ainda precisam ser enfrentados para que esses direitos sejam efetivamente garantidos a toda a população brasileira”.

Trata-se de um debate público atual sobre importantes questões sociais, econômicas e políticas em tempos de dissolução de direitos, que há três décadas foram garantidos pela aprovação da Constituição Brasileira. E fica a reflexão de qual papel estratégico e político devem os movimentos sociais assumir neste projeto ainda em construção para romper o atraso neocolonialista do País. De minha parte, ele é uma continuidade da avaliação que fiz, em evento semelhante, a propósito de celebrar os 30 anos da mesma Constituição, ocasião em que focalizei minha leitura, com uma perspectiva interpelante, inscrita na indagação: Constituição 30 anos: Uma Promessa Vazia?

Comecei, pois, meu texto levado para o livro, tomando como ponto de partida a reflexão iniciada por ocasião dos 30 anos da Constituição, mas tendo em vista a proposta comemorativa de seus 35 anos e o faço para confidenciar um sentimento. Cada vez mais, em novos auditórios, expor acerca desse tema – isto é, o processo constituinte que legou a Constituição Cidadã – vai deixando de ser um exercício de memória para se constituir também um registro de História. Boa parte desses auditórios, hoje, é formada por uma geração nascida muito depois dos acontecimentos que demarcam o período no qual a Constituinte se realizou. Sabe-se dela pelos livros, assim como outros eventos do passado (  SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Constituição 30 anos: Uma Promessa Vazia? In Revista Humanidades nº 62 (Dossiê 30 Anos da Constituição Cidadã). Brasília: Editora UnB, dezembro 2018).

Eu, entretanto, vivenciei esses acontecimentos, com ampla participação nos debates e nas avaliações na Universidade, como membro da Comissão de Estudos e de Acompanhamento da Constituinte que a UnB instalou à época e como integrante do Grupo Pedagógico para a preparação do Curso a Distância “Constituinte & Constituição” (Suplemento encartado por semanas, como tabloide, na edição de sábado do jornal Correio Braziliense. Ver a edição completa reunindo em fac-símile os textos publicados em ABREU, Maria Rosa ed. Constituinte e Constituição. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1987.

 Esse projeto permitiu aos participantes do curso levarem ao Congresso Nacional propostas para discussão, em entrega solene ao presidente da Assembleia Nacional Constituinte Ulisses Guimarães, e devidamente consideradas no debate, conforme atesta o relatório de uma das subcomissões que as examinou. Participei ativamente também na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) como membro da Comissão de Acompanhamento da Constituição que a entidade criou para assessorar seus dirigentes e seu Conselho Episcopal de Pastoral. Na Comissão Brasileira de Justiça e Paz, fui indicado para prestar depoimento numa das 24 subcomissões criadas para organizar o trabalho propositivo dos parlamentares constituintes. Depois, nos anos que se seguiram, tive participação em mais de uma audiência pública em comissões mistas, nas quais se discutiram projetos de emendas para revisão parcial ou total da Constituição aprovada.

Essa combinação de memória e de história dá uma vivacidade singular ao significado político da realização constitucional como expressão de momentos marcantes da historicidade de um país e da maturidade de seu projeto de sociedade. Contribuí para discernir os sinais que indicam a emergência constituinte desses momentos singulares, quando as crises aceleram o perecimento das formas arcaicas de organização da política e tornam possível desabrochar as formas novas que a própria crise fecunda. É o momento constituinte que vai pavimentar o movimento formidável que as contradições desencadeiam quando do esgotamento das motivações corporativas, elitistas, intolerantes, odiosas, discriminatórias que atingem as multidões e que fazem com que elas se transformem em povo. Entretanto, os elementos dessa combinação de memória e de história, estão em boa medida, documentados (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. A Nova Constituição e os Direitos do Cidadão. Revista de Cultura Vozes (Que Brasil Emerge da Constituição?). Ano 82, volume LXXXII, nº2. Petrópolis: Editora Vozes, julho-dezembro 1988; Estudos CNBB 60 – Participação Popular e Cidadania. A Igreja no Processo Constituinte/CNBB. São Paulo: Edições Paulinas, 1990; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Obstáculos à Efetivação da Democracia no Brasil. In CNBB: Sociedade, Igreja e Democracia. São Paulo: Edições Loyola, 1989; BACKES, Ana Luiza, AZEVEDO, Débora Bithiah, ARAÚJO, José Cordeiro (Orgs). Audiências Públicas na Assembleia Nacional Constituinte: A sociedade na tribuna. José Geraldo de Souza Junior: Cidadania. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2009, p. 107-108; e de modo mais analítico DULTRA, Eneida Vinhaes; MARQUES, Sabrina Durigon. O Legislativo Convida Professor José Geraldo de Sousa Jr – Tecendo o fio democrático da formação jurídica crítica no espaço política. In O Direito Achado na Rua. Contribuições à Teoria Crítica do Direito. v. 6 n. 2 (2022): Revista Direito.UnB |Maio – Agosto, nº 2. 2022).

No meu texto, parto do fundamento que a Constituição não é o texto no qual se representa, mas aqueles fatores que a promovem (conforme indicava no século XIX Ferdinan de Lassale) e que por isso ela se realiza ao impulso da “Disputa por Posições Interpretativas”.  Daí o desdobramento que organizei para desenvolver o tema: “O que a Constituição ainda tem a oferecer? Impasses atuais: Reformas trabalhista e previdenciária – Como compreender essa mudança de rumo?  Em direção a um constitucionalismo achado na rua”.

Claro que pressuponho que essa disputa é movida diretamente no social, por isso constitucionalismo achado na rua, algo que procurei demonstrar recentemente, ao prestar depoimento, como convidado, na CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito), para examinar a questão agrária brasileira e os conflitos que dela decorrem. A propósito, para além do depoimento seguido de debates que pode ser recuperado nos arquivos de mídia da Câmara dos Deputados, requisitei a juntada de texto-base da minha apresentação, que também publiquei para evitar que fosse adrede recortado para servir a interpretações enviesadas, conforme já constatei no relatório lido na sessão convocada para esse fim. Remeto, pois, ao meu texto íntegro (cf.  https://www.brasilpopular.com/cpi-do-mst-contexto-e-diagnostico-da-situacao-agraria-brasileira/).

Mas há, igualmente, interpretações construtivas, que expandem o alcance da promessa constitucional em sua disposição de realizar direitos e ter cumpridas as suas promessas. Certamente para a compreensão dessa possibilidade é indispensável abrir-se a exigências próprias à disputa narrativa de realização da Constituição e de categorias que dêem conta de aferir as aberturas que a política proporcione para projetar as disposições constitucionais para o futuro.

É assim, portanto, que se pode compreender a decisão do Ministro Fachin um dos coordenadores esta obra, para repensar a dimensão política da função judicial  e reconhecer que “são os sujeitos coletivos que conferem sentido à soberania popular”, e que, afirmam uma ‘participação política da comunidade [indígena]’ expressão dessa subjetividade coletiva que se faz titular de direitos em perspectiva inter-sistêmica, juridicamente plural”, conforme seu voto no TSE (segundo semestre de 2022), por ocasião do julgamento do Recurso Especial Eleitoral (Processo Número: 0600136-96.2020.6.17.0055 – Pesqueira – Pernambuco

E desse modo, completa o seu entendimento, agora valendo-se de consideração sobre “a dimensão política da função judicial, apontada por Antônio Escrivão Filho e José Geraldo Souza Junior (Para um debate teórico-conceitual e político sobre os direitos humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016)” para, não só afastar  “o mito de neutralidade e buscando processos de democratização da justiça a partir, inclusive, da sua reorientação aproximada da realidade brasileira”, mas para afirmar, nesse passo, que são os sujeitos coletivos que conferem sentido à soberania popular”, e que, afirmam uma “participação política da comunidade [indígena]” expressão dessa subjetividade coletiva que se faz titular de direitos em perspectiva inter-sistêmica, juridicamente plural.

Direitos são promessas, mas não podem se tornar promessas vazias, e o apelo democrático do artigo 5o leva a essa consciência, ou seja, a de que é a cidadania protagonista, ativa, insurgente, achada na rua, o núcleo de uma subjetividade coletiva (sujeitos coletivos de direito), em movimento (movimentos sociais emancipatórios), a razão legitimadora do processo político e realizadora contínua do processo de afirmação de direitos já conquistados e de criação de novos direitos. E essa compreensão ficou ainda mais nítida, na relatoria do Ministro Fachin, acolhida com apenas duas defecções, no julgamento concluído no Supremo Tribunal Federal. Conforme consta da página oficial do STF, que traz um bom resumo dos elementos da decisão (https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=514552&ori=1#:~:text=O%20Supremo%20Tribunal%20Federal%20(STF,da%20terra%20por%20essas%20comunidades): “O Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou, nesta quinta-feira (21), a tese do marco temporal para a demarcação de terras indígenas. Por 9 votos a 2, o Plenário decidiu que a data da promulgação da Constituição Federal (5/10/1988) não pode ser utilizada para definir a ocupação tradicional da terra por essas comunidades. A decisão foi tomada no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1017365, com repercussão geral (Tema 1.031”.

Revelo que me inspirei muito declaradamente na posição de J.J. Gomes Canotilho, em parte manifestada a partir de provocação que lhe fiz, quando o entrevistei para o Observatório da Constituição e da Democracia (nº 24, julho de 2008, UnB/SindjusDF, p.  12-13): “A multiplicidade de sujeitos que se movem no debate constitucional contemporâneo tende a abrir expectativas de diálogo político estruturado na linguagem do Direito. Para usar uma expressão sua, quais as principais “posições interpretativas da Constituição” que emergem desse processo?”.

A resposta completa e os instigantes aportes que o notável constitucionalista oferece podem ser seguidos no exame por inteiro na matéria. Vou direto ao recorte da resposta:

Boa pergunta! Em trabalhos anteriores demos conta de que a “luta constituinte” era (e é) uma luta por posições constituintes e de que a lógica do “pluralismo de intérpretes” não raro escondia que essa luta continuava depois de aprovada a constituição. A interpretação seria afinal um “esquema de revelações” de pre-compreensões políticas. Continuamos a considerar que a metódica jurídica reflecte todas as dimensões de criação e aplicação das normas jurídicas e a prova disso é a de que as diferenças entre legislação (legislatio), jurisprudência (jurisdictio) e doutrina (jurídica e política) surgem cada vez mais imbricadas e flexíveis. De qualquer forma, o elemento central da nossa posição reconduz-se ainda à ideia de conformação constitucional dos problemas segundo o principio democrático e não de acordo com princípios a priori ou transcendentais.

Se vemos bem as coisas, as dificuldades da metódica jurídica residem mais na sua rotina e falta de comunicação com outros horizontes de reflexão como as da sociologia e da filosofia do que nos seus pontos de partida quanto à investigação e extrínsecação do sentido das normas para efeito da sua aplicação prática.

Para concluir, agrego ao que enunciei num argumento celebratório, que é objetivo do meu texto, a mesma convicção que me conferiu o nosso patrono constitucional Paulo Bonavides, em entrevista que me concedeu também, para o Observatório da Constituição e da Democracia (nº 22, maio de 2008, UnB/SindjusDF, p. 13-14), sob o título: “Democracia, Sim, mas do Cidadão Participativo”.

Quando lhe propus a questão: “O senhor é, dentre os constitucionalistas mais destacados, quem trouxe para o Direito Constitucional a perspectiva da democracia participativa, constituindo-se no principal intérprete e defensor da democracia direta inscrita na Constituição de 1988. Após 20 anos da sua promulgação como avalia a “Constituição Cidadã”, a sua resposta foi quase epifânica: “É uma grande Constituição. É a mais formosa. Todos os reacionários deste país a combatem. Combatem-na porque ela tem as chaves de solução para problemas que eles não querem que sejam resolvidos. Pior para eles. Como ela própria prevê, é o povo que os vai resolver. A Constituição de 1988 é a primeira Constituição principiológica de toda a nossa história Constitucional. Mas, princípios com normatividade, com juridicidade, que podem ser, portanto, concretizados. Cabe ao povo tomá-la para si e lhe imprimir avanços, galgando degraus no patamar da democracia e do constitucionalismo”.

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.5

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

 

Vila Telebrasília: “Aqui tem História”!

  •  em 



Recebi de João Almeida, antigo diretor da Associação de Moradores da Vila Telebrasília e um dos principais narradores de sua história social e política, um vídeo que marca 67 anos de sua saga memorável. O vídeo está circulando nas redes sociais e a versão que tenho está no facebook: https://www.facebook.com/joao.almeida.98229/videos/624211739839604.

 

 

O título é simbólico: Que a Vila Telebrasília tem História…Nós já Sabemos! Mas como Começou?!. Recebi a mídia no dia 18 de setembro, mesmo dia em que, a convite da Reitora Simone Benck, da recém instalada Universidade do Distrito Federal, criada pela Lei Complementar nº 987/2021, me reuni com a comunidade universitária para uma roda de conversa que pudesse contribuir para pensar a nova institucionalidade acadêmica, tendo por base, eis o escopo do encontro: A Formação para a Cidadania no Ensino Superior e a Construção de uma Cultura Democrática no Distrito Federal.

 

 

Claro que parti do argumento do vídeo para assinalar a dimensão cultural-instituinte das lutas por cidadania e por reconhecimento de direitos que caracterizam as lutas sociais no Distrito Federal.  O exemplo da Vila Telebrasília não é único, mas é paradigmático.

 

 

Na minha experiência acadêmica, a partir da dinâmica indissociável entre ensino, pesquisa e extensão, o chão dessas lutas tem sido o espaço comunitário e do protagonismo dos sujeitos coletivos que nele atuam. Assim foi e continua sendo na ação solidária com a Vila Telebrasília (confira-se o livro que organizei com meu colega Alexandre Bernardino Costa, da Faculdade de Direito da UnB: Direito à Memória e à Moradia. Realização de direitos humanos pelo protagonismo social da comunidade do Acampamento da Telebrasília. Brasília: Faculdade de Direito, 1996).

 

 

 

De modo mais reflexivo esse registro veio a integrar um texto de mais profundidade publicado na edição especial (nº 56, dezembro de 2009 – Brasília, Cidade, Pensamento) da Revista Humanidades, Editora da UnB, para dar conteúdo a um conceito que procurei inserir no meu ensaio. O de entender Brasília, Capital da Cidadania (p. 18-27).

 

 

Esta é também uma reflexão mais densificada, base da edição do volume 9, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito Urbanístico (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (orgs). Brasília: Editora UnB, 2019), na qual, mais uma vez em co-autoria com meu colega Alexandre Bernardino Costa, projetando experiências de afirmação de direitos, na Vila Telebrasília e em outros planos de lutas, pudemos falar de Brasília, urbs, civitas, polis: moradia e dignidade humana (p. 69-80).

 

 

No vídeo, certamente contendo além da narração, o argumento de João Almeida, até me vi, jovem professor, em diálogo com a Comunidade junto com os alunos e alunas sob orientação, tecendo parte da fundamentação que deu lastro à reivindicação e à realização do direito de morar naquele espaço.

 

 

Uma outra precisa descrição desse processo está lançada em Revista do SindjusDF – Sindicato dos Servidores do Poder Judiciário e do Ministério Público no Distrito Federal, na edição alusiva a Ano XVII – nº 55 Fevereiro de 2009 (Vila Telebrasília. A Conquista da Cidadania). A matéria CIDADANIA O direito de ter direitos (P. 6-11), da jornalista Usha Velasco, abre o tema de capa: “Os moradores do antigo Acampamento da Telebrasília, no extremo sul da Avenida das Nações, à beira do lago Paranoá, podem dormir tranqüilos desde janeiro. Mais de cinqüenta anos após se estabelecer no local, e depois de duas décadas de uma acirrada luta para não ser removida, a comunidade comemora o recebimento das escrituras e a urbanização definitiva da Vila, com asfalto, posto policial e outras benfeitorias. Não se trata de uma dádiva do governo. Pelo contrário. Essa conquista é resultado de uma mobilização sem precedentes no DF, tanto pelo grau de envolvimento e de organização dos moradores quanto pelo tempo em que eles conseguiram resistir às tentativas de remoção. “A comunidade não aceitou ser colocada à margem da história e do espaço urbano; ela conseguiu estabelecer uma interlocução com a cidade, com a sociedade brasiliense”, afirma José Geraldo de Souza Júnior, reitor da Universidade de Brasília e professor da faculdade de Direito, que desde 1988 acompanha o caso (leia na p. 5)”.

 

 

Com efeito, na minha coluna (mantive uma coluna regular nesse periódico), lembro comono final de 2008, às vésperas do Natal, o governador do Distrito Federal, em cerimônia pública na Vila Telebrasília, outorgou os títulos de propriedade definitivos aos ocupantes históricos do velho acampamento dos tempos da construção de Brasília. Quase cinquenta anos depois de muita luta, o ato representou o momento culminante de uma história de resistência e perseverança de uma comunidade mobilizada pela conquista do direito de morar.Não é por acaso que à entrada da Vilase mantenha instalada uma placa com a inscrição singular: “Aqui tem história!”

 

 

Não conheço um registro igual de uma comunidade que se reconheça na identidade de seu protagonismo histórico, mas como professor orientador, em projeto de assessoria jurídica universitária desenvolvido pela Faculdade de Direito da UnB, com o apoio da Secretaria de Direitos Humanos (então vinculada ao Ministério da Justiça), acompanhei por vários anos o percurso dessa luta, em suas diferentes fases, boa parte dela documentada em livro de cuja organização participei (Direito à Memória e à Moradia. Realização de Direitos Humanos pelo Protagonismo Social da Comunidade do Acampamento da Telebrasília, Universidade de Brasília, 1998, citado).

 

 

Este livro põe em relevo as circunstâncias complexas de diferentes momentos da manifestação de uma consciência de direitos, afirmada na ação da comunidade, afinal inscrita na formação de uma Associação de Moradores, que soube conduzir a unidade de um movimento social constituído como sujeito coletivo de direito e em condições de realizá-lo. Nesse passo, e de forma nítida, pôde-se constatar claramente a ação da coletividade em sua subjetividade mediadora pronta para abrir, como lembra Marilena Chauí, “o Direito para a História e, nessa ação, para a política transformadora”.

 

 

Foi desse modo, e em ações semelhantes nas periferias dos espaços urbanos desde os anos 1970, que movimentos sociais com crescente legitimação forjaram a agenda internacional do direito de morar, inscrevendo-o nas declarações de direitos (conforme a Declaração de Istambul, Habitat II, ou Cúpula das Cidades, 1996), para depois projetá-lo nas legislações de zoneamento urbano e, no caso brasileiro, na Constituição Federal, após 1988, por impulso dos movimentos sociais por moradia (tratei disso num texto de 1982, Fundamentação Teórica do Direito de Moradia, Revista Direito e Avesso, Boletim da Nova Escola Jurídica Brasileira, nº 1).

 

 

A luta da comunidade da Vila ganhou adensamento nesse trânsito, primeiro como ação política de movimento, depois como construção social de sentido. Destaca-se aí a vitória obtida com a promulgação da lei distrital 161/91, de autoria do deputado Eurípedes Camargo, fundador do Movimento Incansáveis Moradores de Ceilândia, inicialmente vetada pelo governador e afinal sancionada com a derrubada do veto, aliás o primeiro veto derrubado na história da Câmara Distrital.

 

 

Mas a principal vitória da comunidade deu-se, a meu ver, no campo simbólico. Refiro-me ao enfrentamento da objeção de fixação da Vila, apoiada no discurso do tombamento do Plano Piloto como forma seletiva de apropriação da cidade.

 

 

Lembro o espanto do pesquisador norte-americano James Holston, autor de A Cidade Modernista. Uma Crítica a Brasília e a sua Utopia (São Paulo: Companhia das Letras, 1993), livro que une análise formal de convenções arquitetônicas e de planejamento urbano e análise sócio-econômica; e que exibe as contradições inerentes à racionalidade e ao projeto utópico modernos, tal como encarnados na nova capital do país. Levei Holston à Vila. Ele até se deixou fotografar ao lado do outdoor Aqui tem História. Visitamos toda a Vila ciceroneados por João Almeida que ria do espanto de que a comunidade não sucumbira à ganância de alienar os terrenos escriturados (primeira vez em que a política de moradia optou pela outorga de escritura e não pela cessão de uso de imóvel, talvez um ardil para dar ao mercado o papel que a repressão não lograra de arrematar os bens sociais pela voragem privatizante). Não esquecer que a Vila está encravada na orla do Lago Sul – a Escandinávia brasiliense – na avenida das Nações, tendo como vizinhos as principais embaixadas acreditadas em Brasília.Menos de 5% alienou seus imóveis. A mobilização comunitária reorientou suas pautas para aprofundar os fundamentos urbanos-jurídicos de sua conquista.

 

 

Foi nessa circunstância que a comunidadeda Vila reivindicou uma dimensão social para configurar o Plano de Brasília, ao lado das escalas arquitetônica, monumental e bucólica, estabelecendo, para além de sua condição de urbs e de civitas, bela, moderna e funcional, concebida na genialidade do projetista, para se realizar numa verdadeira polis,construída pelo protagonismo social, inscrito na História, dando a Brasília a dimensão que lhe faltava, a escala humana.

 

 

 

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

 

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

 

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).

 

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

 

Colonialidade do Poder, Biodiversidade e Direito. Raça, classe e capitalismo na construção da legalidade

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

Colonialidade do Poder, Biodiversidade e Direito. Raça, classe e capitalismo na construção da legalidade. Pedro Brandão. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2023, 288 p.

 

                   

Para compreender o alcance dessa bela obra, vale tomar da descrição que ela recebeu na página da Editora, dois comentários convocatórios. De Deise Benedito, colega de Pedro na Pós-Graduação em Direito da UnB, ela na área de Criminologia e também sua colega de assessoria parlamentar (PSOL) e de ativismo político. Diz ela:

O Prof. Pedro Brandão, ao analisar os conflitos na construção de novo marco legal de acesso à biodiversidade, propõe ao leitor refletir sobre as relações perversas entre colonialidade, racismo e a formação da legalidade. Ele detalha o padrão colonial de poder que rege o parlamento brasileiro para refletir sobre o papel do direito e das instituições em um capitalismo racializado. É nesse contexto que o autor retrata a importância das articulações dos movimentos de insurgência contra a exploração e propõe, através da luta política e jurídica, o combate ao racismo e à desigualdade para a garantia de uma vida plena e livre.

O segundo comentário, de Sonia Guajajara, atualmente ministra dos Povos Indígenas do Brasil, mas também ativista nesse campo que é demarcado pelo subtítulo da obra e que remete à questão da biodiversidade e o direito.

            Para Sonia,

O trabalho de Pedro Brandão analisa as lutas dos povos indígenas e das comunidades tradicionais durante a tramitação do novo marco legal de acesso à biodiversidade. Participei dessa luta no Congresso Nacional, enquanto representante da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), na mobilização em defesa da nossa biodiversidade e contra os interesses da bancada ruralista e de grandes empresas capitalistas. Durante as audiências, falei que a raiz de uma planta, a folha, a flor, o fruto, tudo isso tem um significado para nós. Como o livro mostra, denunciei os interesses do então Projeto de Lei: “[…] o que eu vejo aqui é essa preocupação total e exclusiva sobre a economia, sobre a mercantilização desse conhecimento. Como transformar tudo isso em dinheiro? Como ficam os nossos povos indígenas?”.

Ao demonstrar as relações coloniais que ainda imperam no parlamento brasileiro, o livro nos convida a refletir sobre novas imaginações jurídicas e políticas para pensar o nosso país e a urgente necessidade de aldear a política!

 

O livro de Pedro Brandão, ao avançar sobre uma questão que ele acentua, como hipótese para o caso concreto que estuda, retoma uma perspectiva que já havia sido proposta em trabalho seu anterior, entretanto, “numa deriva para uma leitura estrutural sobre a própria formação da legalidade, levando a uma conclusão que é resultado da reflexão central para o trabalho: “a legalidade como fruto de uma disputa assimétrica e violenta de poder, articulada mutuamente pelos diferentes eixos da colonialidade, confrontando a leitura comum de que a legitimidade da legislação reside, necessariamente, na sua natureza ‘democrática’, ‘racional’, ‘legítima’ e ‘mediada’ entre os interesses em disputa”.

Com efeito, em seu livro Novo Constitucionalismo Pluralista Latino – Americano – 2ª Tiragem – 2023, também pela Editora Lumen Juris, vamos encontrar a afirmação identificada por Fernando Antonio de Carvalho Dantas, professor titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás, ex-coordenador, no Brasil, da Rede para o Constitucionalismo Democrático Latino-Americano, segundo o qual, tomando a metáfora da Karibérica e Brasilíndia, que

A américa Latina é Brasil e o Brasil América Latina. Este é o sentimento do leitor ao se deparar com o texto de Pedro Brandão sobre o novo constitucionalismo pluralista latino-americano em perspectiva descolonial. Texto criativo e cientificamente denso que diz sim, temos culturas, histórias, identidades, experiências e possibilidades de trato, em dimensão jurídica, de formas de ser, fazer, viver, conhecer, organizar e regulamentar a complexa, porque muito plural, vida social no mundo do sul global . A lúdica referência inicial à América karib e ao Brasil índio mostra a disposição de parte da academia jurídica brasileira atual em romper com o senso comum preconceituoso do Brasil de costas para a América Latina e retomar o diálogo construtivo de um novo mundo com o resgate e a valorização das cosmovisões e processos culturais dos povos originários (em verdadeira e necessária antropofagia jurídica) bem como o pensar a relação entre povos e sociedades com mais simetria e democracia. Neste livro o autor sustenta que o novo constitucionalismo pluralista latino-americano é resultado de processos que reconhecem em sede constitucional e buscam concretizar, na prática, formas intensas de participação popular e mecanismos democráticos, bem assim dão visibilidade aos povos indígenas, cujas cosmovisões, culturas e subjetividades coletivas, outrora violentamente ocultadas, integram o pilar fundamental das novas constituições a exemplo do Equador e Bolívia. Isto se dá com a construção do Estado Plurinacional, com os direitos da pachamama que atribuem subjetividade à natureza e territorialidades específicas com formas diferenciadas de participação como a democracia comunitária, entre outras, que rompem e superam o modelo do constitucionalismo tradicional. Assim, se constitui em livro imprescindível para conhecer e sentir esse novo contexto constitucional latino-americano enquanto epistemologia constitucional do sul.

 

Disso sabia eu. O que eu ignorava, ao menos até a publicação do novo livro, é que aquela perspectiva de participação democrática comunitária para romper modelos de colonialidade, conduziria o Autor a também promover uma inflexão analítica para compreender as tensões próprias desse processo.

Fico feliz, ao ler o livro, que ele me credite um tanto dessa inflexão, na medida do que confirma, na Introdução (p. 9), que ano ênfase, em sua “investigação, reside exatamente nas relações de poder que guiam o processo jurídico/político. Na linha de Sousa Júnior, optamos pela transição de uma perspectiva normativista para uma investigação focada no conflito. Não se trata, assim, somente de uma análise legal da legislação, mas de um estudo da forma como ela foi construída a partir dos antagonismos em conflito”.

Talvez em retribuição ao posicionamento, tornado opção analítica, tenha me solicitado redigir a orelha do livro, uma maneira de ratificar o ponto-de-vista. Ali digo eu:

A Editora Lumen Juris nos brinda com um novo livro de Pedro Brandão Colonialidade do Poder, Biodiversidade e Direito: Raça, classe e capitalismo na construção da legalidade. Pela Lumen Pedro já havia publicado, em 2015, o livro O Novo Constitucionalismo Pluralista Latino-Americano, obra que eu categorizei como uma contribuição que abriu espaço editorial para o tema no Brasil, fortalecendo uma vertente do assim denominado Constitucionalismo Latino-Americano.

No novo livro, seguindo o fio condutor de realização de um constitucionalismo que emancipe, Pedro Brandão mergulha na trama violenta do encontro entre a colonialidade do poder e a possibilidade de abrir espaços políticos para o reencontro de humanidades que forjem uma latinoamericanidade apta a vencer os desafios de toda ordem.

Eis a novidade do novo livro de Pedro Brandão. Responder as exigências de libertação e de emancipação seguindo o fio condutor de sua aproximação constitucional político-epistemológica decolonial, naquela sua dimensão que mais aguda: raça, classe e capitalismo que formam a colonialidade do poder (Quijano) e desafiam a construção do novo marco legal de acesso à biodiversidade, na direção de um constitucionalismo achado na rua.

Os caminhos percorridos pelo Autor para confrontar tais e tamanhos desafios, o próprio Autor os indica ao resumir o escopo nuclear de seu livro:

No primeiro capítulo, desenvolvemos uma análise da colonialidade do poder, da formação do capitalismo racializado, das disputas de sentido sobre a modernidade, e do moderno sistema-mundo (Wallerstein). Destacamos que a colonialidade do poder afeta as diversas dimensões da vida e permeia todas as instâncias de poder. Tal conceito, na concepção de Quijano, é central para pensar a constituição e o desenvolvimento do capitalismo. Da formação da América até o presente momento, há um profundo entrelaçamento entre a “ideia de raça” e o processo de acumulação capitalista. A hierarquia racial é simultânea à divisão internacional do trabalho, de maneira que a “ideia de raça” está diretamente relacionada à história das relações de poder do capitalismo mundial.

Em seguida, revisitamos a concepção de totalidade heterogênea e seus eixos de poder, tema central na abordagem quijaniana. Na leitura do autor, esta totalidade assume um caráter fragmentário, articulada por meio da dominação/exploração/conflito e baseada na seguinte estruturação: i) o capitalismo, como o controle do trabalho estruturante das formas históricas de exploração sob o predomínio da relação capital-trabalho; ii) a autoridade coletiva (Estado-nação), como instituição hegemônica para centralizar a dominação, sendo a violência organizada o seu recurso permanente e principal; iii) o controle do sexo, sob a égide do patriarcado; e, iv) o controle da subjetividade, por meio da hegemonia do eurocentrismo e da colonialidade do saber. Buscamos desenredar essa complexa teia no segundo capítulo deste livro.

Na vertente do controle do trabalho, realçamos o questionamento da unidirecionalidade dos modos de produção no mundo capitalista. De acordo com a percepção quijaniana, em especial na periferia, os diversos modos de produção sempre estiveram coordenados e articulados. Já no campo da construção do Estado-nação, destacamos como a perspectiva eurocêntrica foi fundamental para estruturar o Estado na América Latina, permeada pela exclusão de povos indígenas, negros e negras e trabalhadores do poder, o que resultou numa lógica altamente funcional para a superexploração capitalista. Ainda, tendo em vista a conexão entre legalidade e colonialidade numa perspectiva do capitalismo mundial, e não apenas localizado no Estado nacional, a própria ideia de sistema-mundo é fundamental para entender a globalidade do poder capitalista, inclusive na construção da legalidade.

No eixo do controle do imaginário, refletimos sobre a expansão da economia capitalista – sempre atrelada à “ideia de raça” – e as formas de controle e de neutralização de outros conhecimentos e epistemicídios. Na parte sobre gênero, considerando a necessidade de revelar o papel do patriarcado na formação do capitalismo e da modernidade, analisamos as críticas, os limites e as insuficiências teóricas da colonialidade do poder apontadas por autoras feministas, considerando o papel central das mulheres nas disputas pela preservação da biodiversidade.

O fundamental, nesta primeira parte da investigação, para além das limitações dos institutos jurídico, é compreender a formação do capitalismo racializado, em especial na periferia do mundo. Discutir a teoria quijaniana e suas leituras sobre a modernidade não significa somente disputar as narrativas acerca do passado, mas, acima de tudo, pensar sobre as suas continuidades e resistências no presente – em especial, na nossa leitura, na política e no direito.

 

Para o professor Alexandre Bernardino Costa que orientou a tese que dá origem ao livro e o apresenta, o ponto central do trabalho de Pedro Brandão, é o de constatar “boa parte dos dilemas que vive a sociedade mundial sobre nosso futuro comum. Aborda as apropriações capitalistas da natureza, e sua utilização por uma pequena parcela da população, em benefício próprio, ao mesmo tempo em que a maior parcela da sociedade é condenada ao seu próprio destino fatal, ainda que o conhecimento tenha sido gerado a partir de suas tradições e sua cultura. Discorrer sobre biopirataria de bens comuns e coletivos da natureza é falar sobre qual modelo do direito, de política e de economia queremos seguir”.

Nesse sentido, no Prefácio, a professora Ela Wiecko V. de Castilho, ratifica que o marco teórico adensado que o Autor adora, permite que ele “problematize a Lei nº 13.123, de 2015, que normatizou o acesso à biodiversidade brasileira, analisando a participação nos debates legislativos de representantes de quatro setores: Estado, povos e comunidades tradicionais, empresas e ciência/tecnologia”.

Ao avaliar que “a lei aprovada é um ‘produto do conflito assimétrico de poder’ influenciado pela colonialidade, e não um resultado do “processo democrático”. Ou seja, é uma legalidade racista, classista, sexista e capitalista”.

Assim que, para ela, “a questão que se coloca é sobre a possibilidade real de descolonização. Não basta entender como se constituiu a colonialidade e como ela vem operando. Como quebrar a estrutura de dominação, exploração e conflito que se articula nos cinco âmbitos da existência social: o trabalho, a natureza, o sexo, a subjetividade e a autoridade? Para a pergunta, não temos respostas prontas e testadas. Pedro Brandão não desconsidera a utilização de instrumentos normativos para frear a estrutura predatória de dominação, exploração e conflito, mas afirma que a luta mais decisiva é a da mobilização popular”.

Folgo em constatar o extremo zelo e a lealdade de Pedro que ao fixar posicionamento, ainda quando se valha da melhor e mais qualificada base teórica para o fundamentar, não se descole de seu percurso em coletivo de pesquisa e tribute a seus companheiros e companheiras de percurso, os achados comuns que reuniram em seus diálogos político-epistemológicos. Essa forma ética de assentar posições interpretativas, por ele designadas na abertura do livro, está firmemente assinalada a cada etapa de elaboração do texto.

Note-se, por exemplo, no tocante ao arcabouço do modo decolonial de interpretar, a referência a achados de seus colegas, que percorrem os mesmos caminhos: “O conhecimento tido como tradicional ou local, na realidade, é plural, heterogêneo e cambiante, e não está ligado ao imobilismo ou a algo estático. São conhecimentos transmitidos e experimentados, transformados e inovados, a partir de práticas sociais que possuem uma diversidade de processos de produção que estão diretamente associadas aos modos de vida, territórios e visões de mundo desses povos”. Ainda que a enunciação seja autoralmente própria, a nota (395, p. 193), remete aos estudos de sua colega Renata Vieira (cf. VIEIRA, R. C. C. Povos indígenas, Povos e comunidades tradicionais e agricultores familiares: a disputa pelo direito no Conselho de Gestão do Património Genético. Dissertação (Mestrado). Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania. Universidade de Brasília – UnB. Brasília/DF, 2021. 168p.).

É claro que diviso nessa aliança acadêmica, a repercussão de um campo de investigação, embora não central ao seu núcleo de mais contundente referência, todavia forte na incidência constitutiva de seu próprio pensamento: O Direito Achado na Rua sua concepção e prática.

O Autor não esconde essa incidência. Em várias conexões de seu texto. Nas páginas 21/218, para focalizar, no que pertine a seu trabalho, “o percurso da sociologia jurídica crítica, com a qual analisar a construção sociopolítica da legislação – e todos os interesses capitalistas em jogo – e não simplesmente o direito positivado enquanto pretenso resultado do processo democrático”.

Mas, sobretudo, e até como pressuposto (p. 85), o relevo aos “estudos jurídicos que mostram a interseção entre o direito e a colonialidade, através de diferentes perspectivas: o monumental trabalho fortemente ancorado na crítica marxista ao direito em diálogo com a teoria quijaniana, a filosofia da libertação para pensar a reconstrução dos direitos humanos; além da proposta de uma ecologia de justiças baseada na ecologia de saberes. Também numa análise da aproximação entre o Direito Achado na Rua e o Direito Constitucional através de um Constitucionalismo desde la calle, há importantes reflexões sobre o os desafios contemporâneos do Constitucionalismo Achado na Rua diante da ascensão da extrema direita, passando pela investigação entre a descolonialidade e a dialética social do Direito de Roberto Lyra Filho e a crítica feminista decolonial”. Para a devida precisão as referências de situação contidas nas notas 182, 183, 184 e 185, notadamente para demarcar o plano no qual se pode afirmar, desde essa perspectiva, o que temos chamado de constitucionalismo achado na rua (aqui também uma nota de referência para o verbete que meus alunos da disciplina Pesquisa Jurídica – Graduação em Direito – para a wikipedia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Constitucionalismo_achado_na_rua.

A obra, abre, pois, o que Pedro Brandão designa de “imaginário de superação da sociabilidade capitalista”, para emancipar a democracia com “um contínuo sistema de negociação institucionalizada dos limites, das condições e das modalidades de exploração e de dominação” e assim, afirmar-se como eixo de um projeto de sociedade, na qual possam ser superadas todas as formas de opressão e de espoliação, que ainda persistem no espaço da política, para alienar os sujeitos de seu projeto de plena humanização.

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.