segunda-feira, 21 de março de 2016

Brasil: a democracia à beira do caos e os perigos da desordem jurídica

Boaventura de Sousa Santos
Quando, há quase trinta anos, iniciei os estudos sobre o sistema judicial em vários países, a administração da justiça era a dimensão institucional do Estado com menos visibilidade pública. A grande exceção eram os EUA devido ao papel fulcral do Tribunal Supremo nas definições das mais decisivas políticas públicas. Sendo o único órgão de soberania não eleito, tendo um carácter reativo (não podendo, em geral, mobilizar-se por iniciativa própria) e dependendo de outras instituições do Estado para fazer aplicar as suas decisões (serviços prisionais, administração pública), os tribunais tinham uma função relativamente modesta na vida orgânica da separação de poderes instaurada pelo liberalismo político moderno, e tanto assim que a função judicial era considerada apolítica. Contribuía também para isso o facto de os tribunais só se ocuparem de conflitos individuais e não coletivos e estarem desenhados para não interferir com as elites e classes dirigentes, já que estas estavam protegidas por imunidades e outros privilégios. Pouco se sabia como funcionava o sistema judicial, as características dos cidadãos que a ele recorriam e para que objetivos o faziam. Tudo mudou desde então até aos nossos dias. Contribuíram para isso, entre outros fatores, a crise da representação política que atingiu os órgãos de soberania eleitos, a maior consciência dos direitos por parte dos cidadãos e o facto de as elites políticas, confrontadas com alguns impasses políticos em temas controversos, terem começado a ver o recurso seletivo 2 aos tribunais como uma forma de descarregarem o peso político de certas decisões. Foi ainda importante o facto de o neoconstitucionalismo emergente da segunda guerra mundial ter dado um peso muito forte ao controlo da constitucionalidade por parte dos tribunais constitucionais. Esta inovação teve duas leituras opostas. Segundo uma das leituras, tratava-se de submeter a legislação ordinária a um controlo que impedisse a sua fácil instrumentalização por forças políticas interessadas em fazer tábua rasa dos preceitos constitucionais, como acontecera, de maneira extrema, nos regimes ditatoriais nazis e fascistas. Segundo a outra leitura, o controlo da constitucionalidade era o instrumento de que se serviam as classes políticas dominantes para se defenderem de possíveis ameaças aos seus interesses decorrentes das vicissitudes da política democrática e da "tirania das maiorias". Como quer que seja, por todas estas razões surgiu um novo tipo de ativismo judiciário que ficou conhecido por judicialização da política e que inevitavelmente conduziu à politização da justiça.
A grande visibilidade pública dos tribunais nas últimas décadas resultou, em boa medida, dos casos judiciais que envolveram membros das elites políticas e económicas. O grande divisor de águas foi o conjunto de processos criminais que atingiu quase toda a classe política e boa parte da elite económica da Itália conhecido por Operação Mãos Limpas. Iniciado em Milão em abril de 1992, consistiu em investigações e prisões de ministros, dirigentes partidários, membros do parlamento (em certo momento estavam a ser investigados cerca de um terço dos deputados), empresários, funcionários públicos, jornalistas, membros dos serviços secretos acusados de crimes de suborno, corrupção, abuso de poder, fraude, falência fraudulenta, contabilidade falsa, financiamento político ilícito. Dois anos mais tarde tinham sido presas 633 pessoas em Nápoles, 623 em Milão e 444 em Roma. Por ter atingido toda a classe política com responsabilidades de governação no passado recente, o processo Mãos 3 Limpas abalou os fundamentos do regime político italiano e esteve na origem da emergência, anos mais tarde, do "fenómeno" Berlusconi. Ao longo dos anos, por estas e por outras razões, os tribunais têm adquirido grande notoriedade pública em muitos países. O caso mais recente e talvez o mais dramático de todos os que conheço é a Operação Lava Jato no Brasil.
Iniciada em março de 2014, esta operação judicial e policial de combate à corrupção, em que estão envolvidos mais de uma centena de políticos, empresários e gestores, tem-se vindo a transformar a pouco e pouco no centro da vida política brasileira. Ao entrar na sua 24ª fase, com a implicação do ex-presidente Lula da Silva e com o modo como foi executada, está a provocar uma crise política de proporções semelhantes à que antecedeu o golpe de Estado que em 1964 instaurou a uma odiosa ditadura militar que duraria até 1985. O sistema judicial, que tem a seu cargo a defesa e garantia da ordem jurídica, está transformado num perigoso fator de desordem jurídica. Medidas judiciais flagrantemente ilegais e inconstitucionais, a seletividade grosseira do zelo persecutório, a promiscuidade aberrante com a mídia ao serviços das elites políticas conservadoras, o hiper-ativismo judicial aparentemente anárquico, traduzido, por exemplo, em 27 liminares visando o mesmo ato político, tudo isto conforma uma situação de caos judicial que acentua a insegurança jurídica, aprofunda a polarização social e política e põe a própria democracia brasileira à beira do caos. Com a ordem jurídica transformada em desordem jurídica, com a democracia sequestrada pelo órgão de soberania que não é eleito, a vida política e social transforma-se num potencial campo de despojos à mercê de aventureiros e abutres políticos. Chegados aqui, várias perguntas se impõem. Como se chegou a este ponto? A quem aproveita esta situação? O que deve ser feito para salvar a democracia brasileira e as instituições que a sustentam, nomeadamente os 4 tribunais? Como atacar esta hidra de muitas cabeças de modo a que de cada cabeça cortada não cresçam mais cabeças? Procuro identificar neste texto algumas pistas de resposta.
Como chegámos a este ponto?
Por que razão a Operação Lava Jato está a ultrapassar todos os limites da polémica que normalmente suscita qualquer caso mais saliente de ativismo judicial? Note-se que a semelhança com os processos Mãos Limpas na Itália tem sido frequentemente invocada para justificar a notoriedade e o desassossego públicos causado pelo ativismo judicial. Mas as semelhanças são mais aparentes do que reais. Há, pelo contrário, duas diferenças decisivas entre as duas operações. Por um lado, os magistrados italianos mantiveram um escrupuloso respeito pelo processo penal e, quando muito, limitaram-se a aplicar normas que tinham sido estrategicamente esquecidas por um sistema judicial conformista e conivente com os privilégios das elites políticas dominantes na vida política italiana do pós-guerra. Por outro lado, procuraram investigar com igual zelo os crimes de dirigentes políticos de diferentes partidos políticos com responsabilidades governativas. Assumiram uma posição politicamente neutra precisamente para defender o sistema judicial dos ataques que certamente lhe seriam desferidos pelos visados das suas investigações e acusações. Tudo isto está nos antípodas do triste espetáculo que um setor do sistema judicial brasileiro está a dar ao mundo. O impacto do ativismo dos magistrados italianos chegou a ser designado por República dos Juízes. No caso do ativismo do setor judicial lava-jatista, podemos falar, quando muito, de República judicial das bananas. Porquê? Pelo impulso externo que com toda a evidência está por detrás desta específica instância de ativismo judicial brasileiro e que esteve em grande medida ausente no caso italiano. Esse impulso dita a escancarada 5 seletividade do zelo investigativo e acusatório. Embora estejam envolvidos dirigentes de vários partidos, a Operação Lava Jato, com a conivência da mídia, tem-se esmerado na implicação de líderes do PT com o objetivo, hoje indisfarçável, de suscitar o assassinato político da Presidente Dilma Roussef e do ex-Presidente Lula da Silva.
Pela importância do impulso externo e pela seletividade da ação judicial que ele tende a provocar, a Operação Lava Jato tem mais semelhanças com uma outra operação judicial ocorrida na Alemanha, na República de Weimar, depois do fracasso da revolução alemã de 1918. A partir desse ano e num contexto de violência política provinda, tanto da extrema esquerda como da extrema direita, os tribunais alemães revelaram um dualidade chocante de critérios, punindo severamente a violência da extrema esquerda e tratando com grande benevolência a violência da extrema direita, a mesma que anos mais tarde iria a levar Hitler ao poder.
No caso brasileiro, o impulso externo são as elites económicas e as forças políticas ao seu serviço que não se conformaram com a perda das eleições em 2014 e que, num contexto global de crise da acumulação do capital, se sentiram fortemente ameaçadas por mais quatro anos sem controlar a parte dos recursos do país diretamente vinculada ao Estado em que sempre assentou o seu poder. Essa ameaça atingiu o paroxismo com a perspetiva de Lula da Silva, considerado o melhor Presidente do Brasil desde 1988 e que saiu do governo com uma taxa de aprovação de 80%, vir a postular-se como candidato presidencial em 2018. A partir desse momento, a democracia brasileira deixou de ser funcional para este bloco político conservador e a desestabilização política começou. O sinal mais evidente da pulsão anti-democrática foi o movimento pelo impeachment da Presidente Dilma poucos meses depois da sua tomada de posse, algo, senão inédito, pelo menos muito invulgar na história democrática das três últimas décadas. Bloqueados na sua luta pelo poder por via da regra democrática 6 das maiorias (a "tirania das maiorias"), procuraram pôr ao seu serviço o órgão de soberania menos dependente do jogo democrático e especificamente desenhado para proteger as minorias, isto é, os tribunais. A Operação Lava Jato, em si mesma uma operação extremamente meritória, foi o instrumento utilizado. Contando com a cultura jurídica conservadora dominante no sistema judicial, nas Faculdades de Direito e no país em geral, e com uma arma mediática de alta potência e precisão, o bloco conservador tudo fez para desvirtuar a Operação Lava Jata, desviando-a dos seus objetivos judiciais, em si mesmos fundamentais para o aprofundamento democrático, e convertendo-a numa operação de extermínio político. O desvirtuamento consistiu em manter a fachada institucional da Operação Lava Jato mas alterando profundamente a estrutura funcional que a animava por via da sobreposição da lógica política à lógica judicial. Enquanto a lógica judicial assenta na coerência entre meios e fins ditada pelas regras processuais e as garantias constitucionais, a lógica política, quando animada pela pulsão antidemocrática, subordina os fins aos meios, e é pelo grau dessa subordinação que define a sua eficácia.
Em todo este processo, três grandes fatores jogam a favor dos desígnios do bloco conservador. O primeiro resultou da dramática descaracterização do PT enquanto partido democrático de esquerda. Uma vez no poder, o PT decidiu governar à moda antiga (isto é, oligárquica) para fins novos e inovadores. Ignorante da lição da República de Weimar, acreditou que as "irregularidades" que cometesse seriam tratadas com a mesma benevolência com que eram tradicionalmente tratadas as irregularidades das elites e classes políticas conservadoras que tinham dominado o país desde a independência. Ignorante da lição marxista que dizia ter incorporado, não foi capaz de ver que o capital só confia nos seus para o governar e que nunca é grato a quem, não sendo seu, lhes faz 7 favores. Aproveitando um contexto internacional de excecional valorização dos produtos primários, provocado pelo desenvolvimento da China, incentivou os ricos a enriquecerem como condição para dispor dos recursos necessários para levar a cabo as extraordinárias politicas de redistribuição social que fizeram do Brasil um país substancialmente menos injusto ao libertarem mais de 45 milhões de brasileiros da jugo endémico da pobreza. Findo o contexto internacional favorável, só uma política "à moda nova" poderia dar sustentação à redistribuição social, ou seja, uma política que, entre muitas outras vertentes, assentasse na reforma política para neutralizar a promiscuidade entre o poder político e o poder económico, na reforma fiscal para poder tributar os ricos de modo a financiar a redistribuição social depois do fim do boom das commodities, e na reforma da mídia, não para censurar, mas para garantir a diversidade da opinião publicada. Era, no entanto, demasiado tarde para tanta coisa que só poderia ter sido feita em seu tempo e fora do contexto de crise.
O segundo fator, relacionado com este, é a crise económica global e o férreo controlo que tem sobre ela quem a causa, o capital financeiro, entregue à sua voragem autodestrutiva, destruindo riqueza sob o pretexto de criar riqueza, transformando o dinheiro, de meio de troca, em mercadoria por excelência do negócio da especulação. A hipertrofia dos mercados financeiros não permite crescimento económico e, pelo contrário, exige políticas de austeridade por via dos quais os pobres são investidos do dever de ajudar os ricos a manterem a sua riqueza e, se possível, a serem mais ricos. Nestas condições, as precárias classes médias criadas no período anterior ficam à beira do abismo de pobreza abrupta. Intoxicadas pela mídia conservadora, facilmente convertem os governos responsáveis pelo que são hoje em responsáveis pelo que lhes pode acontecer amanhã. E isto é tanto mais provável quanto a sua viagem da senzala para os pátios 8 exteriores da Casa Grande foi realizada com o bilhete do consumo e não com o bilhete da cidadania.
O terceiro fator a favor do bloco conservador é o fato de o imperialismo norte-americano estar de volta ao continente depois das suas aventuras pelo Médio Oriente. Há cinquenta anos, os interesses imperialistas não conheciam outro meio senão as ditaduras militares para fazer alinhar os países do continente pelos seus interesses. Hoje, dispõem de outros meios que consistem basicamente em financiar projetos de desenvolvimento local, organizações não governamentais em que a defesa da democracia é a fachada para atacar de forma agressiva e provocadora os governos progressistas ("fora o comunismo", "fora o marxismo", "fora Paulo Freire", "não somos a Venezuela", etc, etc.). Em tempos em que a ditadura pode ser dispensada se a democracia servir os interesses económicos dominantes, e em que os militares, ainda traumatizados pelas experiências anteriores, parecem indisponíveis para novas aventuras autoritárias, estas formas de desestabilização são consideradas mais eficazes porque permitem substituir governos progressistas por governos conservadores mantendo a fachada democrática. Os financiamentos que hoje circulam abundantemente no Brasil provêm de uma multiplicidade de fundos (a nova natureza de um imperialismo mais difuso), desde as tradicionais organizações vinculadas à CIA até aos irmãos Koch, que nos EUA financiam a política mais conservadora e que têm interesses sobretudo no sector do petróleo, e às organizações evangélicas norteamericanas.
Como salvar a democracia brasileira?
A primeira e mais urgente tarefa é salvar o judiciário brasileiro do abismo em que está a entrar. Para isso, o sector íntegro do sistema judicial, que certamente é maioritário, deve assumir a tarefa de repor a ordem, a 9 serenidade e a contenção no interior do sistema. O princípio orientador é simples de formular: a independência dos tribunais no Estado de direito visa permitir aos tribunais cumprir a sua quota parte de responsabilidade na consolidação da ordem e convivência democráticas. Para isso, não podem pôr a sua independência, nem ao serviço de interesses corporativos, nem de interesses políticos setoriais, por mais poderosos que sejam. O princípio é fácil de formular mas muito difícil de aplicar. A responsabilidade maior na sua aplicação reside agora em duas instâncias. O STF (Supremo Tribunal Federal) deve assumir o seu papel de máximo garante da ordem jurídica e pôr termo à anarquia jurídica que se está a instaurar. Muitas decisões importantes recairão sobre o STF nos próximos tempos e elas devem ser acatadas por todos qualquer que seja o seu teor. O STF é neste momento a única instituição que pode travar a dinâmica de estado de exceção que está instalada. Por sua vez, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), a quem compete o poder de disciplinar sobre os magistrados, deve instaurar de imediato processos disciplinares por reiterada prevaricação e abuso processual, não só ao juiz Sérgio Moro como a todos os outros que têm seguido o mesmo tipo de atuação. Sem medidas disciplinares exemplares, o judiciário brasileiro corre o risco de perder todo o peso institucional que granjeou nas últimas décadas, um peso que, como sabemos, não foi sequer usado para favorecer forças ou políticas de esquerda. Apenas foi conquistado mantendo a coerência e a isonomia entre meios e fins.
Se esta primeira tarefa for realizada com êxito, a separação de poderes será garantida e o processo político democrático seguirá o seu curso. O governo Dilma decidiu acolher Lula da Silva entre os seus ministros. Está no seu direito de o fazer e não compete a nenhuma instituição, e muito menos ao judiciário, impedi-lo. Não se trata de fuga à justiça por parte de um político que nunca fugiu à luta, dado que será julgado (se esse for o caso) por quem sempre o julgaria em última instância, o STF. Seria uma 10 aberração jurídica aplicar neste caso a teoria do "juiz natural da causa". Pode, isso sim, discordar-se do acerto da decisão política tomada. Lula da Silva e Dilma Rousseff sabem que fazem uma jogada arriscada. Tanto mais arriscada se a presença de Lula não significar uma mudança de rumo que tire às forças conservadoras o controle sobre o grau e o ritmo de desgaste que exercem sobre o governo. No fundo, só eleições presidenciais antecipadas permitiriam repor a normalidade. Se a decisão de Lula-Dilma correr mal, a carreira de ambos terá chegado ao fim, e a um fim indigno e particularmente indigno para um político que tanta dignidade devolveu a tantos milhões de brasileiros. Além disso, o PT levará muitos anos até voltar a ganhar credibilidade entre a maioria da população brasileira, e para isso terá de passar por um processo de profunda transformação. Se correr bem, o novo governo terá de mudar urgentemente de política para não frustrar a confianças dos milhões de brasileiros que estão a vir para a rua contra os golpistas. Se o governo brasileiro quer ser ajudado por tantos manifestantes, tem que os ajudar a terem razões para o ajudar. Ou seja, quer na oposição, quer no governo, o PT está condenado a reinventar-se. E sabemos que no governo esta tarefa será muito mais difícil.
A terceira tarefa é ainda mais complexa porque nos próximos tempos a democracia brasileira vai ter de ser defendida tanto nas instituições como nas ruas. Como nas ruas não se faz formulação política, as instituições terão a prioridade devida mesmo em tempos de pulsão autoritária e de exceção antidemocrática. As manobras de desestabilização vão continuar e serão tanto mais agressivas quanto mais visível for a fraqueza do governo e das forças que o apoiam. Haverá infiltrações de provocadores tanto nas organizações e movimentos populares como nos protestos pacíficos que realizarem. A vigilância terá de ser total já que este tipo de provocação está hoje a ser utilizado em muitos contextos para criminalizar o protesto social, fortalecer a repressão estatal e criar estados de exceção, mesmo se com 11 fachada de normalidade democrática. De algum modo, como tem defendido Tarso Genro, o estado de exceção está já instalado, de modo que a bandeira "Não vai ter golpe" tem de ser entendida como denunciando o golpe político-judicial que já está em curso, um golpe de tipo novo que é necessário neutralizar.
Finalmente, a democracia brasileira pode beneficiar da experiência recente de alguns países vizinhos. O modo como as políticas progressistas foram realizadas no continente não permitiram deslocar para esquerda o centro político a partir do qual se definem as posições de esquerda e de direita. Por isso, quando os governos progressistas são derrotados, a direita chega ao poder possuída por uma virulência inaudita apostada em destruir em pouco tempo tudo o que foi construído a favor das classes populares no período anterior. A direita vem então com um ânimo revanchista destinado a cortar pela raiz a possibilidade de voltar a surgir um governo progressista no futuro. E consegue a cumplicidade do capital financeiro internacional para inculcar nas classes populares e nos excluídos a ideia de que a austeridade não é uma política com que se possam defrontar; é um destino a que têm de se acomodar. O governo de Macri na Argentina é um caso exemplar a este respeito.
A guerra não está perdida, mas não será ganha se apenas se acumularem batalhas perdidas, o que sucederá se se insistir nos erros do passado.
Coimbra, 21 de Março de 2016

sexta-feira, 18 de março de 2016

A dor pelo assassinato de Louise Maria da Silva Ribeiro

Louise Ribeiro, 20 anos, jovem estudante do curso de biologia foi assassinada na semana do dia internacional das mulheres, pelo seu ex-namorado e colega, no laboratório de biologia, no campus da UnB. Ocorreu ao nosso lado, mulheres (estudantes, professoras e funcionárias). Como lixo, seu corpo foi enrolado em um saco plástico, colocado em um carinho de mão e levado para ser jogado ao abandono, onde, um dia depois, o assassino voltou para indicá-lo à polícia. Este assassinato causa enorme Indignação frente a uma vida interrompida de forma violenta, cruel e insana pelo ex-namorado; Incredulidade em termos que conviver diariamente com a sombra da violência de gênero no meio universitário; desesperança por sabermos que a violência está dentro do campus e que não vem de fora, podendo ocorrer com qualquer uma de nós.
Qualquer ato de violência (física, sexual, moral, psicológica ou outra) é, de fato, uma forma de negar os direitos humanos fundamentais às mulheres, assim como de nos impor a norma e disciplina patriarcais. Historicamente, foram construídas relações hierárquicas e sexistas entre homens e mulheres, que acabam sendo o fundamento dito natural da subordinação das mulheres. Aquelas que ousam desafiar a ordem patriarcal são perseguidas, sofrem ameaças e têm a vida sob risco. O medo da violação, do desrespeito, do constrangimento e da própria morte vem rondando os campi. Para termos a mínima (e, muitas vezes, falsa) sensação de proteção da violência, somos obrigadas a acatar um “mandato” de restrições que impactam diretamente em nossas formações, atuações, livre circulação, carreiras acadêmica e qualidade de vida. Temos que observar horários de sair e chegar, andar em grupo nos estacionamentos e nas travessias até os pontos de ônibus, receber críticas sobre nossas vestimentas, temer lugares de pouca iluminação, restringir o direito à diversão em festas e temer que a nossa alegria seja interpretada como consentimento à apropriação sexual do nosso corpo pelos homens.
O Núcleo de Estudos e de Pesquisas sobre a Mulher (NEPeM) se solidariza com a dor dos/as familiares, amigos/as, colegas, professoras/es e funcionários/as e lamenta, profundamente, o ocorrido. O NEPEM, há décadas, vem atuando, dentro de seus limites institucionais e humanos, no enfrentamento e combate às violências de gênero, que, cada vez mais, se manifestam visivelmente no interior do campus. Denúncias são feitas, debates são promovidos, oficinas ocorrem e, no entanto, as respostas por parte da administração, nos seus diversos níveis de institucionalidade, ainda são escassas.
Vale lembrar que a violência de gênero se tornou um problema global, sendo o Brasil um dos países onde as mulheres têm enorme chance de serem assassinadas: estamos na 5ª posição no ranking mundial de assassinatos. Muitos, dentre estes, são feminicídios - mortes cruéis praticadas contra as mulheres pelo simples fato de serem mulheres. Pesquisas informam que 3 em 5 mulheres já sofreram violência em seus relacionamentos, sendo o rompimento de relações afetivas ou a recusa a elas um dos momentos mais vulnerável à vida das mulheres. Segundo o Mapa da Violência - Homicídio de Mulheres de 2015, entre 1980 e 2013, foi assassinado o total de 106.093 mulheres, o que representa, aproximadamente, 11 mulheres assassinadas no país por dia. Em 1980, a taxa de assassinato de mulheres era de 2,3 por 100 mil mulheres, dobrando para 4,8 em 2013, o que corresponde a mais que 100%.
Choca-nos que, em lugar da irresignação e contundente denúncia, há “normalização” dessas violências, o que vai da aceitação social, como se fosse algo banal até o descaso e a culpabilização da vítima pela cultura machista. A preocupação e a atuação de coletivos feministas estudantis constituem, hoje, uma iniciativa extremamente relevante e um alento em nosso campus. Mas é preciso somarmos forças e assumirmos compromissos institucionais. As autoridades acadêmicas e dos órgãos públicos do DF devem se mobilizar e estabelecerem a prevenção e o combate a essas violências de gênero como prioridade. Em nosso meio universitário, o “tabu de sangue”, o “tabu de ofensa” e o “tabu de desrespeito” devem ser estabelecidos para nossa referência e como exemplos para a sociedade em geral. Ou seja, a principal lição de aula deve ser a cidadania, a civilidade, a resolução de conflitos de modo pacífico, a convivência ética com a diferença de gênero, de raça, classe social e religiosa.  
 Quais respostas serão apresentadas pela comunidade universitária e por sua gestão administrativa diante da morte de Louise e das outras manifestações de violências cotidianas vividas pelas estudantes, funcionárias e professoras?  Demandamos políticas institucionais e mecanismos de equidade de gênero que fortaleçam a segurança no interior do campus; que efetivem ações concretas e preventivas; que discutam profundamente o tema; que incentivem o enfrentamento à violência contra as mulheres nos campi, bem como que acolham e encaminhem, por meio de uma rede de atenção interna e externa, as denúncias de violência de modo exemplar para todo o país. Não é mais suportável que tais episódios se repitam e que a nossa população feminina esteja à mercê da boa vontade individual, dos esforços particulares e espontâneos na UnB.
Brasília, 12 de março de 2016.

Núcleo de Estudos e de Pesquisas sobre a Mulher – NEPeM/UnB

segunda-feira, 7 de março de 2016

Resenha: “O Direito Achado na Rua – concepção e prática”. Organização de José Geraldo de Sousa Junior. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.

Cristiano Paixão*

            Acaba de ser lançado o volume 2 da coleção “Direito Vivo”, da editora Lumen Juris, intitulado “O Direito Achado na Rua – concepção e prática”. Sob a coordenação do Prof. José Geraldo de Sousa Junior, que subscreve o artigo introdutório, um grupo de pesquisadores aborda questões ligadas à dimensão contemporânea dos direitos humanos e da cidadania.
            Duas expressões são adequadas para descrever a obra: maturidade e diversidade. Constata-se, após décadas de produção teórica e exercício concreto de projetos de ensino, pesquisa e extensão, que a linha de pesquisa Direito Achado na Rua atinge um ponto de desenvolvimento bastante consistente. O volume é marcado por uma preocupação dúplice: por um lado, a necessidade de explicitação e afirmação das referências teóricas fundamentais para sua própria construção. Assim, a obra de Roberto Lyra Filho é apresentada de forma extensiva, o que permite uma maior compreensão da inspiração inicial que marcou o trabalho dos fundadores da linha de pesquisa. E alguns diálogos adicionais são propostos, especialmente com a produção de Paulo Freire, cuja contribuição é explorada, com merecido destaque, no artigo redigido pelo Prof. José Geraldo de Sousa Junior. E, por outro lado, verifica-se a premência das questões contemporâneas que desafiam, incessantemente, profissionais do direito e pesquisadores da universidade na busca por caminhos e soluções no campo dos direitos humanos e da cidadania.
            A diversidade que marca a obra advém da própria complexidade da sociedade moderna. Numa sociedade como a brasileira, secular, democrática, multicultural e em constante processo de transformação e auto-observação, as contribuições do Direito Achado na Rua são particularmente bem-vindas. As lutas por direitos e reconhecimento são travadas em diversas arenas, com temporalidades distintas e pautas específicas. Povos indígenas, movimentos sociais, estudantes, trabalhadores, marginalizados, excluídos: todas essas designações sociais produzem sentido no mundo e ensejam lutas, manifestações e reações contrárias. No centro de gravidade dessas demandas, localizam-se os direitos humanos, percebidos em sua dimensão performativa, atuante, provocadora.
            O livro aqui analisado apresenta uma importante preocupação com a educação para os direitos humanos. Num esforço muito bem-sucedido de inserção e institucionalização no ensino, a linha de pesquisa do Direito Achado na Rua se consolidou como um verdadeiro campo de investigação no âmbito de dois programas de pós-graduação. Tanto no PPG em Direito, Estado e Constituição, que já possui uma história de mais de trinta anos de reflexão na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, como no recém-criado PPG em Direitos Humanos e Cidadania, de matiz interdisciplinar, também na Universidade de Brasília, está presente a linha de pesquisa do Direito Achado na Rua. É natural, portanto, que a universidade seja um lugar central na experiência do grupo de pesquisadores que produziu a obra. As iniciativas inovadoras da linha de pesquisa são trazidas à discussão, com interessantes indicações e possibilidades de ação no futuro.
            Um exemplo ilustrativo está inserido em um dos capítulos da obra. Ao final da argumentação, quando os autores promovem um inventário crítico da recepção do movimento e de sua base teórica, surge uma questão fascinante: a Constituição de 1988 marcaria uma espécie de limite para o Direito Achado na Rua, considerando a positivação de várias das conquistas sociais no período da redemocratização? A resposta, evidentemente, não poderia ser afirmativa. O que os autores concluem, com razão, é que o texto constitucional representa, antes de tudo, o início de um processo histórico de aquisição e transformação de direitos, que não tem um fim, mas um horizonte, que permanece indeterminado. E que a luta por direitos humanos e cidadania permanece e se renova, produzindo novas construções marcadas pela concretude da experiência da rua.
*Professor da Faculdade de Direito da UnB (Graduação e Pós-Graduação) e do Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania, CEAM/UnB; membro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Doutor em Direito tem Estágio Pós-Doutoral na École des Hautes Études en Sciences Sociales (França, 2015) e na Scuola Normale Superiore di Pisa (Pisa, Itália, 2009)