terça-feira, 26 de novembro de 2013

Responder Joaquim Barbosa à maneira de Mauricio Correa seria pedir demais?

25/11/2013 - Copyleft- Blog Carta Maior Seção Princípios Fundamentais

Fábio de Sá e Silva (*) STF
Há pouco mais de 30 anos, Brasília presenciou um fato – rememorado na semana passada, sob o embalo dos debates recentes sobre memória e verdade, por ocasião da mostra Cinema insurgente, organizada pela OAB/DF – que, segundo muitos atualmente avaliam, foi crucial para a crise de legitimidade do regime militar e a consequente transição para uma ordem democrática.

Buscando demonstrar força contra o movimento das diretas, que ganhava corpo com a apresentação da emenda Dante de Oliveira, o ex-presidente João Figueiredo editou o Decreto n. 88.888, de 19 de outubro de 1983, estabelecendo medidas de emergência no Distrito Federal.

Dias depois, o general-comandante do Planalto, Newton Cruz, ordenava a invasão da sede da OAB/DF. A alegação era de que a Seccional da entidade estava promovendo um encontro político, em afronta direta às medidas impostas pelo Decreto. Tratava-se, na verdade, do I Encontro de Advogados do Distrito Federal, que vinha sendo planejado havia cerca de um ano.

Na madrugada que se sucedeu ao evento, as instalações da OAB/DF foram invadidas pela Polícia Federal, que apreendeu as fitas destinadas supostamente a registrá-lo, mas que, durante as diligências, alguns advogados e funcionários da OAB/DF providencialmente substituíram pela coleção de música sertaneja mantida pelo operador do som.

Assim que o dia amanheceu, o então presidente da OAB/DF, Maurício Correa, deu uma coletiva à imprensa denunciando a invasão. A entrevista ainda acontecia quando o delegado responsável pelo caso na PF chegou com uma ordem para interditar permanentemente a Seccional.

Correa se negava a assinar a ordem, alegando que nem na era Vargas haviam sido adotadas medidas como aquelas. Ocorreu, então, que os advogados presentes resolveram descer pela escada os quatro andares que os separavam do térreo. De braços dados junto com Correa, e posicionados de frente para os mastros nos quais ficavam hasteadas as bandeiras do Brasil e da OAB, cantaram o hino nacional.

A foto dos advogados de braços dados estampou as capas dos principais jornais no dia seguinte, gerando repercussão extremamente negativa para o regime. Já o Inquérito Policial Militar aberto para investigar os dirigentes da OAB/DF se debatia desde o início contra a falta de provas sobre o dito caráter político da reunião. Não demorou muito, assim, para que o próprio Cruz tivesse de depositar uma pá de cal sobre o assunto, admitindo publicamente que a invasão havia decorrido do “excesso de zelo” das autoridades. O acesso ao prédio, enfim, foi novamente liberado.

É bom que a memória deste episódio – ou dos muitos paralelos que ele traz na história – esteja bem viva entre os juristas brasileiros, no momento em que, por conta da execução de penas fixadas na ação penal 470 (o chamado processo do mensalão), o relator do caso e Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Joaquim Barbosa, adota uma série de medidas violadoras dos direitos e garantias constitucionais dos condenados.

Essas medidas começaram com Barbosa traindo sua própria promessa ao plenário quando, ao encerrar a sessão da quarta-feira, dia 13 de novembro, afirmou que na quinta-feira, dia 14, levaria ao conhecimento de seus colegas uma síntese das prisões que pretendia decretar. Como nenhuma lista foi trazida e o dia seguinte era o feriado de 15 de novembro, proclamação da República, a expectativa era de que qualquer decretação de prisão só poderia vir na semana posterior.

A ordem de prisão, no entanto, foi emitida exatamente no feriado e contra um subconjunto dos réus que até agora não se entende bem como foi determinado, já que não alcançou outros condenados na mesma situação dos que foram presos, como os ex-deputados Roberto Jefferson (PTB-RJ), Pedro Corrêa (PP-PE) e Bispo Rodrigues (PL-RJ), o ex-dirigente do Banco Rural Vinícius Samarane, o advogado Rogério Tolentino e os deputados Valdemar Costa Neto (PR-SP) e Pedro Henry (PP-MT).

A ordem de prisão também não foi acompanhada da chamada carta de sentença, documento que o Conselho Nacional de Justiça, órgão presidido pelo próprio Barbosa, entende ser necessário para que tenha início a regular execução da pena. Sem a carta de sentença, que prevê a quantidade de pena a ser cumprida e as condições iniciais de cumprimento, representando o “título executivo” da pena imposta a condenados, a prisão de qualquer indivíduo não deixa de ser medida arbitrária. Nesse sentido, a manutenção dos presos por alguns dias em regime fechado, quando a condenação em questão era a pena em regime semiaberto, foi apenas o desdobramento lógico de uma prisão juridicamente mal calçada.

Tampouco foram dadas justificativas (quaisquer) para que os presos tivesse que ser transportados para Brasília. O entendimento corrente na execução penal brasileira é de que condenados devem cumprir pena o mais próximo possível de seu meio social e familiar, a menos que não haja vaga ou que haja algum problema de segurança. Nenhuma dessas hipóteses foi levantada pelo Ministro e muito menos pelos condenados, muitos dos quais de pronto solicitaram retorno aos seus estados de origem. Junto com a expedição dos mandados em dia de feriado e o foco em apenas alguns dos réus, especialmente os do PT, essa medida tem sido vista como indicativa de que a decretação das prisões tinha objetivos antes de tudo midiáticos, fosse no sentido de promover politicamente o subscritor dos mandados, fosse no sentido de humilhar os réus.

O capítulo mais recente dessa novela – eu não me arriscaria a dizer o último – foi a pressão de Barbosa para a substituição do Juiz do Distrito Federal, Ademar Vasconcelos, no acompanhamento da execução dessas penas. Segundo relatam os jornais, a ofensiva teria surtido efeito e, embora não deva haver nenhuma designação formal, os próximos atos da execução das penas devem ser praticados por Bruno Ribeiro, filho de ex-deputado distrital pelo PSDB. Bruno é considerado um juiz mais duro que Ademar e mais alinhado com Barbosa. Seu primeiro ato no processo foi o estabelecimento de 12 condicionantes para que, após ter recebido alta do hospital, o ex-deputado José Genoíno pudesse aguardar em casa de familiares a decisão sobre seu pedido de prisão domiciliar. Entre essas condicionantes incluem-se não deixar o imóvel a não ser para tratamento médico e não dar entrevistas ou fazer manifestações à mídia.

Mas se é verdade que todas essas medidas têm despertado cada vez mais repulsa na mídia e nas redes sociais, impossível deixar de observar o grande e constrangedor silêncio de que elas têm sido cercadas entre os operadores do direito. Qual a opinião dos demais Ministros do STF sobre as medidas adotadas por Barbosa? Entendem eles que essas medidas corroboram para concretizar o que decidiram? Qual a opinião do Ministério Público Federal que, uma vez tendo obtido a condenação dos acusados, deveria atuar como fiscal da lei na execução das penas? Qual a opinião das entidades de classe? Salvo nota da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB, referindo-se especificamente ao caso de José Genoíno, ninguém mais sinalizou desconforto com as decisões do Ministro.

Episódios como o da invasão da OAB/DF costumam dar margem a leituras românticas, nas quais as profissões jurídicas são tidas por inerentemente vocacionadas à confrontação do status quo e à luta pelas liberdades e pela democracia.

Estas leituras, todos sabemos, não resistem a um escrutínio mais rigoroso da história. Mas ainda que possam ser coniventes com autoritarismos de toda sorte – e, no limite, podem até ajudar a instrumentalizá-los –, é chegada uma hora em que os juristas têm de se colocar de maneira inequívoca em defesa de liberdades e da democracia. Se não for por forte convicção, é porque disso depende a sua própria legitimidade nas sociedades modernas. Sem que as pessoas acreditem que o direito pode ser um instrumento de contenção do arbítrio, não há porque admitirem que advogados (mas também juízes e promotores) desfrutem das prerrogativas que têm (e são tantas que nem daria para enumerar aqui).

As medidas de Barbosa, e isso parece claro até mesmo para setores da imprensa que há pouco lhe eram simpáticos, não são tão diferentes das de um Newton Cruz. Estarão os advogados, juízes e promotores de hoje à altura de um Mauricio Correa? Ou será que isso seria lhes pedir demais?


(*) PhD em Direito, Política e Sociedade pela Northeastern University (EUA) e Professor substituto de Teoria Geral do Direito da Universidade de Brasília. As opiniões deste artigo são de caráter estritamente pessoal

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Entrevista com Fabio de Sá e Silva (Ipea), Publicada em Série Pensando o Direito, volume especial, n. 50, MJ, Brasília, 2013




PD: Como você avalia a importância de iniciativas como o Projeto Pensando o Direito?

FS: Junto às atividades do Ipea e do Departamento de Pesquisa Judiciária do Conselho Nacional de Justiça, o Pensando o Direito se tornou uma das principais referências e um dos principais catalisadores da pesquisa em direito no país, com caráter empírico e aplicado.

Creio que isso dá uma boa medida da importância do Projeto e sinaliza para a formação de um novo terreno, repleto de desafios, mas também de potencialidades.

PD: Como você vê o papel que pesquisas jurídicas de cunho empírico podem desempenhar no processo de formulação de políticas públicas?

FS: Prefiro responder em termos mais amplos, falando sobre a relação entre ciência e política. É um pressuposto das sociedades modernas que a produção de conhecimento mais rigoroso sobre a realidade pode nos ajudar a transformá-la, de preferência para melhor.

Mas, a partir dos anos 1970, esse pressuposto passou a receber críticas importantes. A primeira foi no sentido de que a atividade científica padece de limitações e constitui, quando muito, uma forma aproximada de conhecer a realidade. Por isso, especialmente quando vivemos a constituição ou a dissolução de paradigmas no conhecimento, é perfeitamente possível que tenhamos duas ou mais narrativas igualmente “científicas” concorrendo para descrever ou explicar um elemento da realidade. A segunda foi no sentido de que políticas públicas não podem ser vistas como respostas “racionais” e lineares para problemas, senão como uma arena de disputa permanente.

Uma vez que minha trajetória nas Ciências Sociais foi profundamente marcada pelo contato com essas críticas, entendo que pesquisas empíricas em Direito cumprem uma função modesta, porém de suma importância na formulação de políticas públicas: elas jogam luz sobre os debates, apontam o caráter ideológico de determinadas propostas e exigem maior qualificação dos argumentos. Isso é especialmente importante diante da tradição bacharelesca na produção de conhecimento jurídico no Brasil, que deu aos juristas uma notável oportunidade de exercício de poder, sob o manto da detenção de um conhecimento especializado, como foi destacado por muitos autores como Luis Alberto Warat, José Eduardo Faria, Roberto Lyra Filho e José Geraldo de Sousa Júnior.

PD: Conte como se deu o acordo entre o Ministério da Justiça e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) para viabilizar a continuidade do Projeto Pensando o Direito.

FS: De alguns anos para cá, depois de um processo de planejamento estratégico, o Ipea estabeleceu, entre outros, dois objetivos: retomar a conexão com atores sociais e, em especial, governamentais envolvidos no processo de planejamento e formulação de políticas públicas; e ampliar o seu leque de atuação em direção a áreas que não eram tradicionalmente trabalhadas no Instituto. Isso envolveu, inclusive, a realização de um concurso com perfil mais plural e aberto, por meio do qual foi possível recrutar quadros com formação em áreas como Sociologia, Ciência Política e Direito.

Também foi importante, nesse processo, o fato de Ipea ter aperfeiçoado instrumentos para a mobilização e a articulação do conhecimento técnico-científico em seus projetos. Hoje o Ipea dispõe de linhas de financiamento para redes de pesquisa e eventos técnico-científicos, com os quais amplia sua capacidade de produção e troca de conhecimento.

A partir daí, o órgão intensificou sua interação com o Ministério da Justiça. A parceria com a SAL em torno do Projeto Pensando o Direito foi facilitada pela convergência quanto ao objeto (pesquisa empírica em Direito, com o envolvimento de atores externos) e a finalidade (subsidiar políticas públicas e reformas legislativas).

O resultado foi a celebração de um arranjo até agora proveitoso para o Ministério da Justiça e para o Ipea. O Ministério delimita áreas de política nas quais verifica necessidade de se conhecer melhor a realidade e se pensar em formas de intervenção. O Ipea dá apoio técnico, ajudando a traduzir essa demanda para um projeto de pesquisa aplicada, que também executa e monitora, em estreita parceria com a SAL. Ganha, ainda, a comunidade que trabalha com pesquisa empírica em Direito, que tem a oportunidade de se envolver nos projetos e colaborar com o Governo.

PD: Você já esteve mais de uma vez no encontro internacional da Law and Society Association, que é o principal fórum de pesquisa empírica em Direito, e tem doutorado pela Northeastern University. Quais as principais diferenças que você nota entre aquele ambiente e a Academia Jurídica brasileira?

FS: Costumo dizer que não tivemos, por aqui, um movimento de realismo jurídico, que, nos Estados Unidos, levou à valorização de dados concretos da realidade para informar a tomada de decisões no mundo do Direito. Mas preciso fazer a ressalva de que, com essa consideração, não entendo que o Direito deva se curvar aos fatos. O Direito moderno é, em princípio, um campo específico, que opera com um código (normativo) específico e é mediado por atores sociais autorizados. É inocente e talvez seja mesmo equivocado pensar que esse campo possa ou deva ser subvertido por imperativos de ordem econômica ou social, os “fatos” da pesquisa empírica. Mesmo assim, é possível enriquecer o repertório e as práticas do campo a partir de um olhar externo sobre o que ele produz, o que, em todo caso, é diferente do que os seus atores dizem que ele produz.

De todo modo, não entendo que a pesquisa empírica em Direito deva ser objeto apenas da Academia jurídica. Ao contrário, o que minha experiência no exterior diz é, exatamente, que a pesquisa empírica em Direito será tão mais rica e proveitosa quanto mais seja feita conjuntamente entre profissionais do Direito e das várias Ciências sociais, especialmente Ciência Política, Sociologia e Antropologia. Essas outras Ciências Sociais têm ajudado os juristas a reconstruírem o seu objeto de análise (a antiga questão do que é Direito), mobilizar métodos de pesquisa com maior consciência sobre suas potencialidades e limites, e, finalmente, teorizar, em termos mais amplos, sobre os resultados encontrados.

PD: Fale um pouco sobre o processo de criação e consolidação da Rede de Pesquisa Empírica em Direito (REED), e seus encontros anuais em Ribeirão Preto.

FS: A REED surgiu de vários impulsos. Um deles era o sentimento de orfandade de alguns acadêmicos brasileiros que trabalhavam com pesquisa empírica em Direito e não encontravam interlocutores, especialmente no âmbito de faculdades de Direito. O segundo foi o interesse institucional de órgãos como o Ipea, que frequentemente buscam recrutar colaboradores para atuar em seus projetos e, a partir de um determinado momento, já não conseguiam mais identificar bons candidatos em suas chamadas públicas.

Um terceiro talvez tenha sido o contato de pesquisadores brasileiros com experiências internacionais, tais como a reunião da Law and Society. Esse tipo de experiência dá a sensação de que é possível desenvolver uma carreira profissional de pesquisa empírica em Direito; de que esse é um empreendimento que, não obstante eventual sensação de solidão, mobiliza um contingente grande de pessoas, programas e instituições.

A REED buscou criar ou melhorar as condições para o trabalho dessas pessoas, programas e instituições no Brasil. Para tanto, os principais instrumentos escolhidos foram a realização de encontros anuais, a manutenção de um site, a organização de uma revista científica, o contato com atores internacionais e a formação de quadros.

A Faculdade de Direito da USP de Ribeirão Preto, desde o princípio, se ofereceu para sediar os encontros, mas o restante da operação da REED é descentralizado – e, inclusive, houve encontros regionais no último ano. O site www.reedpesquisa.org está ativo e, dados os recursos de que a REED dispõe, eu diria que é um espaço agradável e informativo. A revista científica nasce com a aspiração de ser referência nacional e internacional, e o primeiro número deve ser lançado no final de 2013 ou início de 2014.

A internacionalização também caminha bem – além de ter celebrado convênio para o envio de fellows para o programa de Jurisprudence and Social Policy da Universidade da Califórnia em Berkeley, referência na pesquisa empírica em direito dos EUA, criado, aliás, pelo falecido professor Philip Selznick, o último encontro nacional, em setembro de 2013, teve a presença de Marc Galanter, da Universidade de Wisconsin, e Álvaro Pires, da Universidade de Ottawa.

O desafio da REED permanece sendo o da capacitação. Quanto a isso, há uma intenção de se fazer uma série de cursos e workshops em métodos e temas substantivos de pesquisa empírica em Direito, em 2014. Aqui, há espaço para intensa colaboração entre a REED e o Pensando o Direito. Dois workshops patrocinados pelo Pensando o Direito, ainda sem uma parceria plena com a REED, foram realizados em 2013; para 2014, esperamos fazer essa prática convergir com as demandas da REED e atrair seus integrantes.

PD: Descreva as dificuldades mais frequentes que você tem observado para pesquisadores que utilizam métodos empíricos no Brasil.

FS: Há duas dificuldades básicas que estão relacionadas à apropriação de métodos e técnicas pelos juristas (ou à compreensão “de dentro” do mundo do Direito para os demais cientistas sociais); e à falta de espaços para a interlocução sobre esse tipo de pesquisa na Academia. Creio que a REED tem ajudado no enfrentamento de ambas, embora ainda esteja longe de ser uma Law and Society brasileira.

Porém, tenho insistido com meus colegas que o uso de técnicas ou métodos empíricos para a investigação do Direito no Brasil está se consolidando em um nível muito inicial, que é o da descrição da realidade jurídica. Em outras palavras, nossos pesquisadores têm sido capazes de dizer como o direito se manifesta concretamente, mas isso ainda é pouco, tanto para o direito quanto para as Ciências Sociais.

Para o Direito, pesquisas de caráter descritivo dizem como a realidade é, mas o Direito não é o mundo do ser, e sim do dever ser. Não basta dizer, por exemplo, que a Justiça Penal tem um viés contra negros e pobres; do ponto de vista jurídico teríamos que criticar as teorias, as ferramentas e a arquitetura institucional dentro da qual esse viés é produzido: a descrição da realidade tem que ter rebatimento na concepção de novos princípios e meios para a organização das liberdades, citando a definição de Direito de Lyra Filho.

Já para as Ciências Sociais, tampouco basta dizer que há um determinado padrão na realidade jurídica, sem dialogar com teorias que ajudam a situar esse padrão na compreensão das relações sociais, em sentido mais amplo (e, inclusive, do papel que o Direito ocupa nessas relações). Essa terceira dificuldade, então, pode estar relacionada com o déficit de teorização na Academia, que nos estabelece uma zona de conforto na qual nos limitamos a descrever e às vezes a “explicar” padrões, sem refletir criticamente a respeito do que eles revelam sobre nós mesmos.

PD: Um dos grandes desafios que o Projeto Pensando o Direito procura superar é levar para organizações da sociedade civil, movimentos sociais e para a população em geral conhecimentos sobre como ocorre o Processo Legislativo e como é possível influir positivamente nos seus resultados. Como você avalia a relação entre o cidadão brasileiro e a formulação da política legislativa?

FS: Já tive a ocasião de gerir políticas públicas e participo ocasionalmente de estudos sobre comportamento político e estou convencido de que a sociedade brasileira é interessada e predisposta a intervir em processos de elaboração de políticas públicas. Obviamente, tudo depende da natureza e do escopo do conflito. Em políticas muito técnicas, por exemplo, a população só pode atuar em relação aos contornos gerais ou na censura a um ou outro aspecto que lhe pareça afrontar mais os sentidos. Essa mobilização supera, inclusive, obstáculos para a constituição de debates públicos plurais, como a concentração da mídia.

A questão, em todo o caso, é prover os cidadãos com as possibilidades e os meios de participação. Nesse aspecto, a atividade Legislativa tem estado atrasado em relação a outras, como a Executiva (na qual assistimos a uma profusão de interfaces como conselhos, conferências, audiências públicas, ouvidorias, entre outros, bem mapeada pelo Ipea, aliás) e a própria atividade Judiciária, que, bem ou mal, também incorporou mecanismos como audiências públicas e amicus curiae. A agenda legislativa é, infelizmente, desconhecida pela maior parte dos cidadãos e as condições de lobby carecem de regulamentação. Essa dimensão do Projeto Pensando o Direito é, portanto, mais que salutar.

PD: Considerando esses avanços identificados e os potenciais que ainda podem ser explorados, quais seriam as suas propostas e sugestões para o aprimoramento do Projeto Pensando o Direito?

FS: Sendo bastante crítico, entendo que o Projeto Pensando o Direito passou por uma mudança ao longo do tempo. No início, o Projeto não deixava de reproduzir um pouco o padrão dominante nas Faculdades de Direito: seu objetivo de fundo era selecionar grupos ou indivíduos com posição já consolidada no cenário jurídico, como forma de adensar a capacidade propositiva da Secretaria, mas também de se apoiar no argumento de autoridade desses personagens. Mais adiante é que ele foi enfatizando a pesquisa empírica e aplicada em Direito e a própria ideia de democratização da política legislativa.

No primeiro caso, isso implicou maior valorização da coleta e a análise de dados empíricos, visando refletir a realidade jurídica – coincidência ou não, isso permitiu que grupos e pesquisadores menos tradicionais se tornassem mais competitivos ou não na seleção de candidaturas do Projeto. No segundo, isso implicou a realização de seminários, debates e consultas públicas em torno dos estudos, de modo que, como considerei anteriormente, a produção do conhecimento é um elemento em um debate mais amplo, que também não perde de vista interesses, argumentos e experiências de atores e movimentos sociais.

Espero que o Projeto aprofunde essa trajetória e explore, especialmente, as inovações que construímos ao longo deste ano de 2013, como a série de workshops. E, partindo de minha experiência no Ipea, tenho sugerido aos colegas da SAL que façamos um experimento em 2014, selecionando vários grupos no país para atuar em um mesmo projeto. Isso permitiria fazer uma pesquisa com abrangência nacional (saindo do modelo atual, muito orientado a estudos de caso), em temas de grande relevância, envolvendo uma diversidade de colaboradores (em termos não só geográficos, mas também de tradições e disciplinas) e com grande capacidade de mobilização para debates. Quem sabe uma história como essa não poderá ser contada na edição nº 100?

domingo, 24 de novembro de 2013

'Os réus do mensalão têm alguma razão', diz jurista guru dos ministros do STF

24/11/2013 - 01h55

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RICARDO MENDONÇA
DE SÃO PAULO
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Para o constitucionalista português José Joaquim Gomes Canotilho, os réus do mensalão julgados e condenados definitivamente exclusivamente pelo STF (Supremo Tribunal Federal) têm "alguma razão" em reclamar pelo direito de um julgamento por um segundo tribunal.
Apesar de ressaltar que não acompanhou o caso em detalhes, Canotilho também acha "razoável" a reclamação quanto à atuação institucional do ministro Joaquim Barbosa, que esteve presente em todas as fases do processo: recebimento da denúncia, instrução e o próprio julgamento.
Catedrático da Universidade de Coimbra, J. J. Canotilho, como é conhecido, é tido como um dos constitucionalistas estrangeiros mais influentes no Brasil. Na seção de jurisprudência do site do STF, seu nome aparece como referência citada em 550 acórdãos, decisões monocráticas ou decisões da presidência da corte. No STJ (Superior Tribunal de Justiça) há outras 144 citações. Nas 8.405 páginas do acórdão do mensalão, ele é citado sete vezes.
Para o jurista, o STF é hoje um dos tribunais mais poderosos do mundo. Tem atribuições bem mais amplas que a Suprema Corte dos Estados Unidos, lembra, e também é "muito mais poderoso" que qualquer tribunal europeu.
Canotilho veio ao Brasil para o lançamento do livro "Comentários à Constituição do Brasil" (2.384 páginas, vendido por R$ 280), obra cuja produção envolveu 130 autores ao longo de cinco anos. Na coordenação técnica, ele contou com a ajuda do ministro Gilmar Mendes, do juiz Ingo Wolfgang Sarlet e do procurador Lenio Luiz Streck.

Sérgio Lima-21.nov.13/Folhapress
O jurista português José Joaquim Gomes Canotilho, no Brasil para lançamento de um livro
O jurista português José Joaquim Gomes Canotilho, no Brasil para lançamento de um livro
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Folha - O senhor acompanhou o julgamento do mensalão? Que balanço faz?
J. J. Canotilho - Eu estava aqui [no Brasil] quando ocorreu a primeira audiência. E fiquei com a ideia de que a política é a arte mais nobre dos homens, desde que colocada a serviço das pessoas e da humanidade. Mas a política também tem mãos sujas, como dizia Albert Camus. Há mãos sujas porque a política implica, muitas vezes, a cumplicidade com atos abjetos, com programas que nós nem sempre consideramos os melhores em termos de moralidade, em termos de valores republicanos. E por isso é uma atividade que tanto pode ser criadora de confiança, quanto pode ser criadora de desconfiança. E aqui no Brasil, o que se cimentava era a desconfiança, relativamente à política, relativamente aos políticos. Então, de certo modo, o tribunal tinha ali uma obrigação de julgar bem. [O STF] Não é só um tribunal constitucional, é um tribunal de recursos, o que o torna mais visível. É sempre certo que, em casos desses, há sempre uma publicidade multiplicada. Não só pelo estatuto das pessoas [que estavam sendo julgadas], mas porque há sempre uma certa opinião pública que pretende, em muitos momentos da vida coletiva, uma catarse, no sentido de alguma purificação. São esses os fatos suficientemente demonstrados: o Brasil tem necessidade da catarse, da purificação, da honradez, da justificação da legitimação do próprio poder político. Mas não acompanhei sistematicamente [todo o julgamento]. Acompanhei à distância.
Como o senhor disse, é uma corte constitucional. Mas tratou-se de um caso penal. O que pensa desse acúmulo de funções?
Esse é um dos tópicos que eu tenho algumas dúvidas, de um tribunal com tanto poder. O tribunal brasileiro é dos tribunais com mais poderes no mundo.
O senhor compara com quais?
Primeiro, é mais poderoso que o dos Estados Unidos. Porque tem um conjunto de fiscalizações, que não é apenas a fiscalização concreta, que não existe nos EUA. Depois, articula as dimensões de tribunal de revisão, de última palavra, com as funções constitucionais. E daí vai criando o direito constitucional e, ao mesmo tempo, julgando casos. É o que eu tenho dito: o Brasil tem uma outra Constituição feita pela jurisprudência, sobretudo do Supremo Tribunal Federal. Os tribunais constitucionais [de outros países] não têm essas funções, de serem tribunais penais. E por isso é que eu digo que [o STF] é o tribunal com mais força. E, por outro lado, através de suas decisões, é um tribunal que consegue estar em sintonia com a opinião pública. Eu recordo do problema da desfiliação partidária [fidelidade], do problema dos índios [Terra Indígena Raposa Serra do Sol], do problema das algemas [limitação no uso]. Podemos não concordar. Mas o povo estava em tendência de sintonia com o sentido dessas decisões.
E em relação aos tribunais da Europa?
É muito mais poderoso, muito mais. Não há nenhum tribunal por lá parecido com o Supremo Tribunal Federal. Como tribunal, [o STF] acumula competências e poderes que a maior parte dos tribunais não tem, pois só são tribunais constitucionais. Ou, por outro lado, são só supremos tribunais que não têm as funções que tem o tribunal constitucional.
É comum a avaliação de que o STF foi muito rigoroso no julgamento do mensalão. Na sua opinião, que risco pode correr se, nos próximos casos envolvendo políticos importantes, não trabalhar com o mesmo rigor?
Eu acho que o tribunal depende muito dos juízes, dos protagonistas que estão no tribunal. Ele é formado por pessoas, elas têm suas pré-compreensões, sua formação. Agora, eu entendo que o tribunal tem assinalado patamares que os vinculam a ele próprio. Portanto, a medida que vai criando precedentes, vincula-se a ele próprio. E ainda tem outra característica: aquilo que era uma norma concreta desconecta-se do caso concreto e passa a ser uma norma geral que vincula o tribunal e vincula o poder político. O que o tribunal já decidiu, vamos vincular como precedente, mas em termos abstratos. Por outro lado, o poder político também vai se sentir vinculado.
Os réus reclamam que foram julgados já originalmente no STF e agora não têm um segundo tribunal para recorrer. É uma violação?
Há um pouco de verdade nisso. Quando a gente diz que tem de ter sempre direito a recurso por uma segunda instância, para estar mais informado, é, em geral, nas questões penais. Ou seja, o duplo grau de jurisdição. Nós consideramos isso como um dado constitucional em questões penais. Isso é verdade.
E qual seria a solução nesse caso?
É... Não tem muita solução. Porque, por um lado, nós exigimos que pessoas com estatuto de deputado não sejam julgadas por juiz de primeira instância. E acabamos por dizer: não têm de ser julgados [só] por juízes de última instância, pois afronta a dignidade. Então não tenho segurança de dizer [o que seria o melhor]. Não há recursos sobre todas as coisas. Agora, na questão penal, é também dado como certo que o duplo grau de jurisdição é quase uma dimensão material do direito ao direito de ir aos tribunais. Há alguma razão [dos réus] aí.
Outra reclamação muito repetida é que o mesmo ministro, Joaquim Barbosa, cuidou de todas as etapas do processo. Do recebimento da denúncia ao julgamento. Foi relator e ainda atuou como presidente da corte ao longo do mesmo julgamento.
Não conheço. De qualquer modo, o que eu tenho defendido sobre a Constituição portuguesa, mesmo contra meus colegas criminalistas, é que, num processo justo em direito penal --essa é uma opinião minoritária-- quem investiga não acusa, quem acusa não julga. São sempre órgãos diferentes. Portanto, se quem investiga é a polícia judiciária ou se é o Ministério Público, este, se investigou, não acusa. O Ministério Público que acusar e o juiz que acusar, não julga. Isso para não transportar as pré-compreensões adquiridas em outros momentos do processo ao momento do julgamento. Eu tenho defendido essa ideia para a Constituição portuguesa. Os meus colegas penais dizem que isso é quase impraticável, porque exigiria um juiz para investigar, depois exigiria o juiz da acusação, e depois um outro juiz para a audiência e julgamento. Mas [defendo] essa coisa simples: quem investiga não acusa, quem acusa não julga. Então é razoável questionarmos.
Nunca um julgamento foi tão divulgado quanto este do mensalão. Além disso, há a TV Justiça, que transmitiu tudo ao vivo. Que avaliação faz dessa novidade?
Eu tenho uma visão conservadora quanto a isso. Os trabalhos do Supremo consagram audiência pública, a não ser quando há questões de reserva, de dignidade e segurança. Mas os tribunais sempre foram locais de publicidade crítica. Me custa mais a aceitar os novos tempos, aquilo ser transmitido para o mundo. Não sou das pessoas mais entusiasmadas com a TV Justiça. Eu não gosto muito.
Por quê? O senhor acha que interfere no comportamento do magistrado?
Pode não interferir. E acho que não podemos pôr assim as questões. Que perturba a espontaneidade do argumento e do contra-argumento, isso parece-me que sim. Por outro lado, as discussões que às vezes temos nos júris, elas ficam menos à vontade, pois estamos ali, não com a câmera escondida, mas com a câmera aberta. Quanto aos resultados em termos de justiça, não tenho argumentos para dizer que processo [transmitido pela TV] não seja justo. Possivelmente é um processo adaptado a um outro esquema, o sistema de publicidade crítica, que não apenas o da publicidade dentro da sala da audiência. Mas não gosto, não.
A Constituição brasileira fez 25 anos. O que a distingue das outras positivamente?
É uma característica que tem sido apontada nas constituições programáticas. As constituições programáticas são aquelas que, pelas suas próprias características, regulam aspectos da vida econômica, da vida social, da vida cultural. A medida que esses domínios da vida se tornam domínios de bastante sensibilidade política, evidentemente que esses ruídos políticos transferem-se também para as normas constitucionais; e a Constituição acaba por sofrer a mesma contestação que sofrem outras leis. Não está, portanto, acima do cotidiano, dos projetos políticos, das políticas públicas. Eu penso que a Constituição respondeu, em termos de contemporaneidade, a alguns desafios: o problema do ambiente, da comunicação social, sobretudo do acesso aos dados. Uma Constituição que foi feita depois de um período autoritário e que se proclamou defensora dos direitos, liberdades e garantias.
E o aspecto negativo?
Teve exageros. Os juros, os salários, ou seja, tão detalhada que acaba ultrapassada. Isso também aconteceu com a Constituição portuguesa. Nesse aspecto, é uma Constituição que pecou pelo excesso. Em outros casos, foi o contexto, estava lá o Centão, os constitucionalismos que existem em qualquer uma. Mas hoje vê-se que não foi uma Constituição que impediu o progresso, apesar das críticas. Muitos entendem que é uma Constituição que tem muitos custos, fui a um congresso sobre isso. O que eu entendo é que uma Constituição que já tem todos esses anos, 25 anos, não aprofundou as divergências, os dissensos no Brasil. Houve muita contestação, mas não podemos dizer que ela dividiu o Brasil. Já teve uma revisão. E ela tem se adaptado, na medida em que surgem os problemas. O grande êxito é que depois de muitas convulsões, acabou por ser um instrumento de pacificação. E já há uma outra Constituição, muito rica em termos de sugestões, o ativismo judiciário, completada pela jurisprudência rica dos tribunais. É uma Constituição que está viva. E está provado que o cidadão gosta do amparo no plano político e social.

sábado, 23 de novembro de 2013

A vigília das comunidades quilombolas do Brasil


César Augusto Baldi
Em Carta Capital:  publicado 21/11/2013 14:44, última modificação 21/11/2013 14:4
Antônio Cruz/Agência Brasil
Quilombola
Um grupo de quilombolas do Maranhão, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Rio de Janeiro realizam uma manifestação em frente ao STF


No Congresso, a denominada “bancada ruralista” não tem poupado esforços para combater demarcações de terras indígenas e reconhecimento de direitos de quilombolas: afinal, nos dois casos, as terras estão fora do mercado e não podem ser objeto de apropriação privada e especulação imobiliária. Some-se a isso o fato de, nessas terras, operar-se a “maldição da abundância”: preservação ambiental, minérios no subsolo, cobiça de madeireiras, etc. Em outras situações, como Marambaia, Alcântara e Rio dos Macacos, é o próprio Poder Público, por meio das Forças Armadas, o maior antagonista de suas lutas. Outras comunidades, por sua vez, só vem sendo atendidas em função da atuação da Defensoria Pública, porque nem sempre o Ministério Público é o aliado desejável.
E como se não bastasse tudo isso, uma das poucas decisões favoráveis em todo o País, justamente a do Tribunal Regional da 4ª Região, envolvendo uma das comunidades mais atingidas pela violência estrutural, institucional e histórica (além de problemas em sua defesa por parte de advogados, não reconhecimento de seus documentos históricos, etc), está a ser questionada, por meio da arguição de inconstitucionalidade do Decreto nº 4.887/2003, a ser apreciada pela Corte Especial daquele Tribunal no próximo dia 28.
Os argumentos, no geral, não diferem muito daqueles que constam já na ADI 3239, de relatoria do Min. Cezar Peluso e interrompida, até hoje, por um pedido de vista da ministra Rosa Weber e pela não inclusão em pauta do referido processo pelo presidente, Joaquim Barbosa. Importa salientar, contudo, alguns pontos a serem pensados.
Primeiro: desde o ajuizamento daquela ação de inconstitucionalidade, a jurisprudência do STF já foi se alterando em relação à questão da impossibilidade de decretos “autônomos”, bem como em relação a estabelecimento de direitos por meio de regulamentos. A constitucionalização do direito administrativo, como salientado por  Gustavo Binenbojm, implica o reconhecimento de alteração de paradigmas.
Segundo: ainda que não haja consenso absoluto quanto ao caráter constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos, à exceção da previsão do § 3º do art. 5º (e, mesmo assim, em patamar de equivalência de emenda constitucional), a doutrina de paridade com a legislação infraconstitucional cedeu passo, pelo menos, à tese da “supralegalidade” (majoritária, na composição anterior, por 6 a 5). Desde então, o Brasil já teve decisões do STF envolvendo direitos indígenas (Raposa Serra do Sol e Pataxó são alguns exemplos), foi condenado pela Corte Interamericana (julgamento da anistia em relação ao Caso Gomes Lund, por tribunal com jurisdição regional) e presenciou, no âmbito do TST, a realização, pela segunda vez, de uma sessão da mesma Corte. Há, portanto, necessidade de repensar mecanismos de fortalecimento de direitos humanos, comunicando-se os sistemas constitucional, infraconstitucional e supranacional. Algo que Peter Häberle já intuía com o conceito de “Estado constitucional cooperativo.”
Terceiro: passados vinte e cinco anos da promulgação da Constituição brasileira e tendo em vista a imensa concentração de terras e a permanência de racismo no país,  vai contra o estágio atual da discussão do Direito Constitucional nacional o não reconhecimento do autoaplicabilidade do art. 68 do ADCT e, pois, eventual inconstitucionalidade do referido Decreto. Afinal, não podem ficar confinadas nos livros didáticos as afirmações de “concretude constitucional”, “concordância prática”, “máxima efetividade” e “unidade da Constituição”. Aliás, o próprio STF já reiterou que a regra constitucional não “pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental” (AgRg RE 393715/RS, Rel. Min. Celso de Mello, 2ª Turma, julg. 12/12/2006, DJ 02-02-2007, p. 140).
Quarto: E nem se alegue, nesse sentido, violação ao devido processo legal, porque a própria enumeração dos passos a serem seguidos para a titulação da comunidade (em torno de dezessete), com possibilidade de recursos e a necessidade de um minucioso estudo- muito mais amplo que antropológico- incluindo a análise da cadeia dominial poderia sugerir, ao contrário, proteção deficiente- para os quilombolas- de um direito constitucionalmente assegurado. Aliás, a realidade dos registros de imóveis- e a anulação de cinco mil títulos no Pará, em 2010, pelo CNJ é apenas um exemplo- joga em sentido contrário à pretensão daqueles que alegam títulos de domínio para situações como  as de quilombolas em que “é reconhecida a propriedade definitiva” em virtude justamente da posse tradicional. Ou seja, uma realidade fática, tendo em vista a especificidade destas comunidades, a inexistência ou precária existência de prova documental e mesmo a dificuldade de o Judiciário lidar com relatos orais, “história oral” e laudos antropológicos. O artigo constitucional em momento algum exigiu, para tanto, o título registrado; justamente porque o objetivo era a regularização de tais terras, em decorrência do histórico   posterior à Lei de Terras de 1850, as disputas fundiárias no início da República e à própria característica- distinta de outros países da América- da abolição da escravatura. Não é, pois, coincidência que a previsão venha juntamente com o centenário desta.
Quinto: desde que a ação direta de inconstitucionalidade deu entrada no STF, a jurisprudência da Corte Interamericana reforçou o entendimento de que o art. 21 da Convenção, ao referir-se a “propriedade”, abrangia não somente a “privada”, mas outras formas “comunitárias”, de que aquelas de indígenas e comunidades descendentes de escravos eram apenas alguns exemplos. Recorde-se, inclusive, que a Corte colombiana, cuja Constituição, datada de 1991, dá especial destaque para a diversidade cultural, em diversos precedentes reconheceu direitos territoriais, culturais, sociais e políticas específicas para indígenas, afrodescendentes, raizales e, neste ano de 2013, também para ciganos. No ínterim, vários países aderiram à Convenção 169-OIT (o instrumento internacional base para defesa de povos indígenas e “tribais”), reconhecendo comunidades descendentes de escravos como incluídas nas previsões desta (Nicarágua, para os creolles e garífunas, em 2010, é apenas um exemplo). Vale dizer: apesar da pressão continental tanto do neoextrativismo quanto das empresas mineradoras, os países vizinhos vêm reiterando tal entendimento. Não é demais lembrar que mesmo a previsão de ações afirmativas, que foram objeto especial de controvérsia, vieram a ser declaradas constitucionais.
Sexto: porque decorrido todo este tempo, não há como ignorar os estudos de antropólogos, sociólogos, historiadores em relação ao tema dos quilombolas, procedendo a verdadeira revisão dos conceitos, definições e parâmetros que até então estavam cristalizados. Desfez-se, desde então, a ideia corrente de isolamento territorial, de resíduos arqueológicos e de populações homogêneas, ou de manutenção do conceito colonial presente no  Conselho Ultramarino de 1740, ou mesmo de uma “frigorificação” do conceito de comunidade e de etnias. Um processo que, nos países vizinhos, caminha no sentido da descolonização dos conceitos e saberes e que, no campo do direito internacional de direitos humanos, é evidente com a autodefinição ou auto identificação como “critério fundamental para definir os grupos aos quais se aplicam as disposições” da  referida Convenção. Não é demais lembrar- contra as alegações de inconstitucionalidade- de que este não é o único critério; tampouco o Decreto 4.887/2003 assim prevê, mas é evidente que se trata de um elemento altamente questionador tanto do etnocentrismo quanto do racismo da sociedade.
Recentemente, Boaventura de Sousa Santos, em sua manifestação dirigida ao Conselho Nacional do Ministério Público, quando da realização da oficina da Universidade Popular dos Movimentos Sociais, no início de novembro deste ano, em Brasília, afirmou: “Se não for suficientemente ativo, o MP será responsável pelas frustrações de milhões e milhões de brasileiros. Se for ativo, será responsável pelas aspirações desses mesmos milhões e milhões de brasileiros. É uma instituição contraditória, como se sabe, que tem na mão uma parte importante por essas aspirações. Mas ninguém faz o papel dos movimentos, que são autônomos e lutam eles próprios por seus direitos”. O mesmo pode ser dito, neste momento, do Poder Judiciário. E a atenção das comunidades quilombolas da Região Sul- mas também de todo o país- se volta para o julgamento do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. De sua atuação depende, em parte, a confirmação de aspirações de um país mais justo, sem preconceito e sem racismo ou a manutenção das permanentes frustrações destas comunidades, junto pela (não) atuação dos Poderes Públicos.

César Augusto Baldi, mestre em Direito (ULBRA/RS), doutorando Universidad Pablo Olavide (Espanha), servidor do TRF-4ª Região desde 1989,é organizador do livro “Direitos humanos na sociedade cosmopolita” (Ed. Renovar, 2004).

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

A Constituição e o dia da consciência negra (*)

César Augusto Baldi (**)

Tem se tornado comum divulgar, em redes sociais, uma afirmação de Morgan Freeman, de que só seria necessário um dia da consciência humana...


César Augusto Baldi (*)Tem se tornado comum divulgar, em redes sociais, afirmação, que teria sido dada por Morgan Freeman, de que não é necessário um dia da consciência branca, negra, amarela, parda, etc., mas sim uma dia da consciência humana. Seguindo um pouco por essa linha, outros sugerem que a escolha de legisladores de fixar essa data comemorativa teria algo de inconstitucional, pois implicaria estabelecer desigualdade de tratamento entre cidadãos, privilegiando uns em detrimento de outros.

Para avaliar essas afirmações, penso eu, é preciso considerar ao menos cinco pontos.
 
Primeiro: elas próprias escondem um processo intenso de racialização presente na “descoberta” das Américas e que se mantém mesmo após os processos de independência e as revoltas anticoloniais. É o que Aníbal Quijano tem denominado de fim do colonialismo político com a manutenção da colonialidade do poder.
 
A emergência da ideia de “Europa” e de “ocidente” é a admissão de “diferenças com outras culturas”, mas “admitidas antes de tudo como desigualdades, no sentido hierárquico”: percebidas como desigualdades de natureza, pois somente a cultura europeia é racional e pode conter “sujeitos”, sendo as demais não racionais. Desta forma, as “outras culturas são diferentes no sentido de ser desiguais, na verdade inferiores, por natureza” e, pois, “só podem ser 'objetos' de conhecimento ou de práticas de dominação”.
 
De fato, para ele, desde o começo mesmo da América, “os futuros europeus associaram o trabalho não pago ou não assalariado com as raças dominadas, porque eram raças inferiores”, de modo que “a inferioridade racial dos colonizados implicava que não eram dignos do pagamento de salário” e “o menor salário das raças inferiores por igual trabalho aos dos brancos, nos atuais centros capitalistas, não podia ser, tampouco, explicado à margem da classificação social racista da população do mundo.” O processo de racialização, portanto, ao contrário de se extinguir com as revoltas contra as metrópoles ou mesmo com a abolição da escravatura, manteve-se de forma permanente, ainda que sob novas formas.
 
Segundo: a atual valorização da miscigenação tem operado no sentido de uma “racialização para inclusão cultural”, como salienta Lilian Gomes, ao contrário do período inicial da República, em que ela se deu para “assimilação” – e Gilberto Freyre simboliza, neste aspecto, a manutenção do espaço público para brancos e heterossexuais, deixando o espaço privado e da intimidade para não-brancos. É uma lógica que, no entender de Rita Segato, coautora do primeiro projeto de ações afirmativas para indígenas e negros em universidade pública, ainda não reconhece que, ao contrário de uma “expropriação e canibalização de símbolos negros pela sociedade brasileira em geral”, estamos agora diante de uma “forte presença africana que invadiu e colonizou o espaço cultural branco em processo irreversível”.
 
Terceiro: medidas inclusivas recentes, como as ações afirmativas nas universidades públicas, iniciadas a partir da reprovação de aluno negro no mestrado de antropologia da UNB, não se fizeram, em momento algum, sem grandes resistências. Não é demais lembrar o longo período de quase dez anos para que o programa pudesse ser considerado constitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Ironicamente, acabou por ser o mesmo curso de pós-graduação um dos primeiros a implantar o programa em nível de seleção de mestrado.
 
Mas, em que pese experiências como a do Itamaraty, que criou programas específicos para estimular o acesso de candidatos negros aos quadros da diplomacia já em 2002-2003, somente agora, em novembro de 2013, o Executivo propôs criação de uma cota de 20% para os concursos públicos. E, por enquanto, nem Legislativo, nem Judiciário o fizeram; e mesmo o Ministério Público sequer se arvorou em tomar medida similar, na prática, tanto para concursos de servidores, quanto para Procuradores da República e promotores.
 
Quijano e Wallerstein, já em 1992, sustentavam, de forma veemente, que “dada a hierarquização étnica, um sistema de exames favorece, inevitavelmente, de maneira desproporcionada, os estratos étnicos dominantes” e essa vantagem adicional é “o que, no sistema meritocrático, justifica as atitudes racistas sem necessidade de verbalizá-las”: “aqueles estratos étnicos que se desempenham mais pobremente o fazem assim porque são racialmente inferiores” e a evidência, sendo estatística, passa a ser “científica”. O não questionamento da forma de acesso aos cargos públicos, nem menos ainda da própria dinâmica da seleção realizada – como se ela fosse “neutra” – é, de uma forma ou de outra, a manutenção de um efetivo “racismo institucional”, que merece ser combatido.
 
Quarto: desde a Lei nº 10.639/2003 existe a obrigatoriedade de ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, mas persiste enorme resistência, para sua implantação, em grande parte na esfera municipal do país. Que tipo de conteúdo vem sendo veiculado nas novas obras editadas para tais fins? De que forma vêm sendo tratadas as histórias e as culturas tanto afro quanto indígenas nos livros didáticos? De que modo isso tem colaborado (ou não) para o combate ao racismo? Em que sentido os Poderes constituídos – mas também Ministérios Públicos e Defensorias Públicas – têm estabelecido a observância dos preceitos legais e do combate às distintas formas de racismo como diretrizes de sua atuação? Quantos alunos das disciplinas de Sociologia e Antropologia ouviram falar nos nomes de Abdias do Nascimento, Guerreiro Ramos, Lélia González e Beatriz Nascimento? Em que sentido ainda continuam sendo invisibilizadas outras formas de conhecimento, no exato momento em que, ao se adicionarem “outros” scholars não-eurocêntricos, não se envolvem, nem se comprometem com suas conceptualizações e críticas?
 
Como salienta Julia Suárez-Krabbe, é necessário questionar o “privilégio epistêmico” que permite que, nas palavras do caribenho Lewis Gordon, o “corpo branco seja visto pelos outros sem ser visto como tal”, de forma que “vivido como ausência ofereça sua perspectiva como presença”. Contra um racismo epistêmico, há de se desenvolver novas formas de justiça cognitiva, “o direito de diferentes formas de conhecimento coexistirem sem serem marginalizadas pelas formas de conhecimento oficiais, patrocinadas pelo Estado” (Shiv Visnanathan). Trata-se, pois, mais que isso, de “controle social dos conteúdos ou, também, da intervenção dos interesses e perspectivas dos usuários do sistema de ensino sobre o que se ensinará e também sobre como se ensinará” (Rita Segato).
 
Quinto: as manifestações de junho – que, em algumas cidades ainda continuam – colocaram em evidência, dentre outras reivindicações, a democratização dos espaços públicos, em especial da cidade.
 
Nesse sentido, oficina da Universidade Popular dos Movimentos Sociais realizada em Brasília, em parceria com o Conselho Nacional do Ministério Público, reunindo quase quarenta e cinco movimentos sociais no início do mês de novembro, concluiu sobre a existência de um processo sistemático de criminalização das manifestações (e, portanto, das distintas formas de inconformismo, rebeldia e, no limite, de lutas por direitos humanos), a segregação espacial e racial das grandes obras tanto para a Copa do Mundo quanto para as Olimpíadas (de que a Aldeia Maracanã e “Porto Maravilha” são apenas alguns exemplos), a necessidade de se repensar a desmilitarização das polícias (sendo evidente que os casos de tortura, hoje em dia, são superiores aos do período ditatorial), o extermínio da população negra (e, pois, necessidade de políticas públicas específicas e de atuação no sentido de coibir tal prática, por parte de Ministérios Públicos e Defensorias) e a necessidade de pensar a forma sistemática que a atuação de empresas nacionais brasileiras  em especial dentro do denominado Projeto ProSAVANA, de estímulo ao agronegócio  deve atingir, diretamente, cinco milhões de africanos, empurrando camponeses de um sistema de “agricultura itinerante” para um sistema de “produção por contratos”.
 
Mas a oficina tornou evidente, também, que é o momento para afirmação e reconhecimento das comunidades quilombolas, de defesa da constitucionalidade do Decreto nº 4.887/2003 e de luta contra distintas intolerâncias religiosas praticadas contra os praticantes de religiões de matriz africana. Daí porque Quijano afirme, categoricamente, que a única forma que as promessas da modernidade podem ser cumpridas é pela “desracialização total da classificação social das gentes”, ou seja, não é possível levar, na prática, as referidas promessas “sem a destruição da colonialidade”. A luta pela justiça cognitiva se entrelaça, desta forma, com processos de solidariedade transnacionais e de descolonização.
 
Estas são algumas dimensões que têm sido ocultadas neste tipo sistemático de campanhas em redes sociais. De fato, o dia da consciência negra continua cada vez mais necessário para questionar os distintos privilégios da “branquitude” e para recordar que o racismo, da mesma forma que o colonialismo e o sexismo, está longe de estar erradicado em nossas sociedades pós-coloniais, mesmo quando elas estabelecem como um de seus objetivos fundamentais: “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (CF, art. 3, IV).

(*) Este texto foi publicado na Seção Princípios Fundamentais, do Blog Carta Maior. A editoria da Seção está a cargo de Fábio Sá e Silva
 
(**) Mestre em Direito (ULBRA/RS), doutorando pela Universidad Pablo Olavide (Espanha), servidor do TRF-4ª Região desde 1989 e organizador do livro “Direitos humanos na sociedade cosmopolita” (Ed. Renovar, 2004).

Equador: a opção pela dependencia*

ALAI, América Latina en Movimiento
2013-11-19
Apesar de toda a propaganda que se faz do Equador, colocando-o dentro de um espectro de "país dirigido pela esquerda", não são poucas as contradições vivenciadas pelo governo de Rafael Correa, cada vez mais distante do que se poderia considerar um mandato com o povo. Indiscutivelmente o primeiro mandato trouxe avanços importantes, como a realização de uma nova Constituinte, soberana e autônoma, que, apesar de todos os percalços, conseguiu levar para dentro do documento que rege a vida das gentes numa nação uma série de avanços fundamentais que, inclusive, servem de exemplo a todo o mundo.
Mas, no cotidiano da vida, quando a Constituição começou a ser regulamentada, os interesses econômicos e políticos começaram a aparecer com força e a ditar regras que, de certa forma, destroem toda a lógica do sumak kausai (o bem viver - que é o bem viver de corte indígena, não é o consumismo do mundo capitalista), centro de toda a Constituição nacional. Um dos exemplos mais visíveis é o da mineração e da exploração de petróleo. Mesmo que a natureza tenha ganhado um capítulo dentro da carta magna, revestindo-se de direitos, na prática tudo cai por terra quando os interesses econômicos cobram a conta do que chamam "progresso". Em nome do que denominam "desenvolvimento", as classes dominantes impõem seu modelo e passam por cima do que foi construído coletivamente com muita luta pela população do país.
Os povos indígenas são os que mais têm sofrido nesse processo. Primeiro porque sistematicamente sofrem desqualificações sobre a sua maneira de viver a política. Não é raro que a qualquer grito de rebeldia eles sejam imediatamente ligados a setores da direita raivosa do Equador, tal qual o grupo do ex-presidente Lucio Gutierrez, de descendência indígena. Basta que haja qualquer oposição ao projeto governamental e lá vem o velho discurso de que os índios estão sendo manipulados, que fazem o jogo da direita, etc...
É fato que a direita se aproveita - e muito bem - das batalhas travadas pelos indígenas contra as propostas do governo, mas daí a dizer que eles são manipulados é pura ideologia. E também mostra que a elite dominante continua mantendo pelas populações originárias um profundo desprezo, a tal ponto de nunca admitir que os indígenas possam pensar, formular políticas e definir suas demandas de maneira autônoma e livre. 
Outro discurso que o governo usa com bastante maestria, até porque Rafael Correa é bastante carismático e uma figura midiática, é o da necessidade do progresso. Alegando que o país tem imensas riquezas minerais que necessitam ser exploradas para que as gentes possam ascender a bons níveis de consumo, o governo vem passando por cima daquilo que foi a pedra fundamental da nova Constituição: a vontade popular. No caso dos territórios indígenas está na lei que, para qualquer tipo de exploração dos recursos, a comunidade precisa ser ouvida. Mas, não é o que acontece. Mesmo que as comunidades estejam gritando contra a exploração, fazendo lutas, enfrentando a polícia, o governo permanece surdo. E ainda joga o restante da população contra os indígenas alegando que eles estão tentando impedir o "progresso" do país. De certa forma, o governo alimenta o velho ódio, de origem colonial, entre brancos e índios. Não são raros os textos e opiniões de gente da esquerda de toda a América Latina que também cai nesse canto de sereia.
Ataque à educação indígena
O mais novo ataque do governo de Rafael Correa é contra a educação indígena. Mesmo que a Constituição tenha garantido o direito a pluriculturalidade, na prática o que está acontecendo no campo da educação é o soterramento de toda e qualquer iniciativa indígena, ganhando força a homogeneização da educação. O primeiro golpe foi na Universidade Intercultural Amawtay Wasi, universidade indígena que existe no Equador desde 2004 com o objetivo de atuar na educação superior a partir de uma pedagogia autóctone. Ou seja, a forma de ensinar e os conteúdos do ensino estão completamente ligados ao jeito de ser das comunidades indígenas que, ao contrário do que muitos pensam, mantiveram vivos seus pressupostos éticos e pedagógicos apesar de mais de 500 anos de dominação. Assim, a universidade surgiu justamente para se contrapor ao modelo bancário de educação segmentada, descontextualizada e colonizada. Entre seus princípios está a proposta de criar um sistema de educação superior que tenha a sua identidade (indígena), dentro de um marco da integralidade do conhecimento, permitindo assim superar a ruptura usual que existe entre teoria e prática. Busca ainda formar profissionais que tenham uma visão intercultural, descolonizada, capazes de entender onde vivem e de buscar soluções para os problemas concretos das nacionalidades e populações. Gente que também seja capaz de conhecer os mais diversos saberes que existem nas comunidades, apropriando-se deles para melhorar a vida e para construir, de verdade, uma sociedade intercultural, na qual o saber científico conquistado pelo mundo ocidental dialogue com os saberes originários, sem dominação.
Não bastasse essa "heresia" descolonial, a Amawtay Wasi tem uma estrutura física e pedagógica que está totalmente integrada à cosmovisão dos povos indígenas. Todo o trabalho se ampara nos princípios de vincularidade (a relação entre o todo e as partes), complementariedade (a necessidade de um `outro`, com o qual se dialoga), simbólico (relação entre o saber científico e o que ele significa no âmbito simbólico), e a reciprocidade (a troca de saberes). Esses são conceitos muito difíceis de serem compreendidos por aqueles que tem uma formação racional, ocidental. É praticamente outra episteme e precisa ser compreendida como uma forma radicalmente diferente de atuar, de educar e de viver.
Pois com a nova lei de educação, o governo de Rafael Correa decidiu homogeneizar o processo educativo, sem levar em consideração a própria Constituição que garante a pluriculturalidade. Depois de vários meses sendo visitada por tecnocratas governamentais, a Universidade teve seu registro suspenso. Não pode mais funcionar da forma como se organiza, a partir dos princípios que regem o mundo indígena. Os "educadores" governamentais querem que a Amawtay Wasi morra ou se iguale às demais universidades organizadas dentro dos cânones ocidentais. Mas, não é essa a proposta da universidade indígena. Ela quer, justamente, se contrapor a essa pedagogia desestruturante e colonial. No contexto de uma sociedade pluricultural, não há motivo para que isso não aconteça. É só uma universidade diferente, que atua dentro da episteme dos povos indígenas que ali vivem desde muito antes dos espanhóis chegarem e invadirem seus mundos, impondo uma cultura de dominação e de extermínio.
Mas, Rafael Correa tem sido implacável, espalhando ainda que a universidade é foco de resistência de grupos ligados à Lúcio Gutierrez. Como argumento usa o fato de a mesma ter sido criada durante o governo daquele presidente. Na verdade, o que quer é destruir um espaço de formação indígena construído a duras penas pelas comunidades.
As escolas comunitárias
Todo esse ataque ao mundo indígena ainda não terminou. Agora, o governo decidiu também eliminar as pequenas escolas comunitárias que atuam na lógica intercultural, ensinando em duas línguas. Não quer mais que a educação alternativa (leia-se indígena) se faça nas pequenas unidades que atuam com a proposta de unidocência, porque os indígenas acreditam que o conhecimento é um só, e não pode ser dividido em aulas de 50 minutos desconectadas do mundo real.  
Mais uma vez, os tecnocratas governamentais decidiram que a educação de primeiro e segundo grau do Equador devem seguir as propostas do Banco Mundial e precisam se constituir em "Unidades Educativas do Milênio", as quais são reputadas as novidades tecnológicas e todas aquelas "maravilhas" que os projetos vindos de fora apregoam. Falam em escolas equipadas com computadores, alto nível de ensino, novos conceitos pedagógicos. Tudo dentro da proposta ocidental, sem considerar as especificidades da pedagogia indígena. Segundo a pedagoga e comunicadora Rosa María Torres (http://otra-educacion.blogspot.com.br ), a proposta está centrada na aparência, sem que sequer se mencione a situação dos professores, por exemplo, categoria que tem protagonizado grandes lutas no país.
No campo da propaganda o governo de Correa consegue convencer. Desde 2008 vem construindo uma série de UEMs (Unidades Educativas do Milênio), cujo número já ultrapassa as 24, atendendo 23 mil estudantes. E segue construindo outras tantas, dizendo que aumentará esse número em mais de 30 até 2014. Os prédios bonitos e bem pintados aparecem como o "progresso para todos". E justificam a exploração de petróleo na região do Parque de Yasuní. "Com o petróleo teremos mais saúde e educação para todos", diz, na tentativa de buscar apoio para as ações de fechamento das escolas indígenas. Conforme anunciou, das 18 mil escolas comunitárias que existem, apenas cinco mil seguirão abertas. Conforme diz, as escolas comunitárias, aquelas que são geridas de forma alternativa, "são o atraso, a marca da pobreza". Já os educadores que sempre estiveram nas comunidades quando o estado as abandonava, têm outra posição. Eles dizem que essas escolas que vivem à margem do sistema oficial são, recorrentemente, referência na inovação e na transformação cultural, tanto no Equador quanto no mundo. Segundo eles, esse tipo de escola multigrau e unidocente não é necessariamente uma escola para pobres. Ao contrário, é uma escola que se contrapõe ao sistema bancário imposto pelo Banco Mundial a toda América Latina. Como exemplo lembram do programa Escola Nova, que existe na Colômbia e o das Escolas Não-Formais, experiência de Bangladesh, ambas modelos premiados internacionalmente.
Mas, ainda assim, segue a "planificação" da educação, sem que se leve em conta a voz dos educadores e das comunidades. Toda a proposta vem sendo construída por burocratas, apresentando as modernidades como a solução do problema educativo. "Fecharemos as escolinhas precárias e os alunos serão realocados nas Unidades Educativas do Milênio", diz, sorridente, Correa, na televisão. Num primeiro momento, tudo pode parecer muito bom. Novos prédios, fusão de escolas, urbanização de escolas rurais, transporte escolar. Tudo preparado para a criação de grandes complexos escolares com educação igualada/homogênea/ocidental, sem que se leve em conta as especificidades culturais, tal como reza a própria Constituição.
Diz a comunicadora Rosa María Torres sobre uma UEM que visitou: "Em Otavalo, norte de Quito, inaugurada em abril de 2009, com grande presença da mídia. Era a terceira UEM construída no país e custara 2 milhões de dólares. Os alunos, 800, são de maioria indígena. A escola abriu com os sete primeiros anos de educação básica. Tem 38 salas de aula, quadros digitais, cozinha, restaurante, espaços esportivos, laboratórios, bibliotecas, 38 computadores e internet banda larga. O desenho da escola é tradicional, frio, sem qualquer presença da cultura local. Os professores sequer sabem usar o quadro negro digital, é visível a falta de capacitação. Nota-se que os espaços são subutilizados, há problemas de segurança e não se vê qualquer preocupação com a capacitação dos professores". Ou seja, tudo conspira para uma ode a tecnologia, sem cuidado pedagógico e muito menos o contexto cultural.
A experiência das escolas indígenas
 Inka Samana é uma pequena escola indígena no sul do país, reconhecida internacionalmente como espaço de uma "revolução educacional", por sua proposta diferenciada de ensino de saberes que vão além do formal. Pois também ela deverá entrar no sistema homogeneizado da "educação nacional", abrindo mão dos aspectos simbólicos e culturais que a caracterizam. Os protestos tem sido grandes, mas o governo segue surdo. Quem quiser conhecer melhor essa bonita experiência de educação indígena pode encontrar sua voz nas redes sociais (https://www.facebook.com/pages/INKA-SAMANA/101245569927872?fref=ts  ). Rosa María Torres lembra ainda de outras experiências comunitárias indígenas como as da província de Pichincha, a Escola Ecológica Samay e a Yachay Huasi (Escola do Saber), que atuam no diálogo entre educação formal e educação indígena. Há coisas do mundo das comunidades que as UEMs não tocarão, com certeza, como a sabedoria dos mais velhos, fazer uma rede ou como reconhecer uma semente, reforçando a ideia de que só a educação formal/ocidental/moderna/científica é que é importante. Enfim, são dezenas de experiências comunais, culturais e alternativas que estão prestes a sucumbir diante da ideia de uma "educação única, nacional". Isso não pode ser possível num país com tantos povos indígenas, já tão acostumados a atuar dentro de seu mundo cosmogônico e simbólico.
A luta é desigual. O governo constrói prédios vistosos e garante a gratuidade do ensino formal, mesmo que a qualidade desse ensino esteja submetida aos ditames internacionais. As pequenas escolas indígenas vivem de contribuições da comunidade ou de ajuda externa. O governo já declarou que não aportará recursos a essas experiências. Sufoca todas elas no campo econômico e depois acusa os educadores de aliança com ONGs estrangeiras e grupos direitistas. É um cenário difícil de se assimilar.
A mesma prática tem se dado no campo universitário. No mesmo momento em que anuncia o descredenciamento da Universidade Intercultural Amawtay Wasi, o governo divulga a criação de quatro novas universidades estatais, onde os equatorianos poderão ter ensino superior gratuito. Difícil para quem segue acreditando que as culturas indígenas não têm nada a dizer no mundo, aceitar que as mudanças da educação equatorianas não sejam boas. Pois se aumentam as universidades públicas, se constroem novas escolas, se amplia o ensino gratuito. Poucos são os que questionam esse processo de destruição do saber indígena, da forma indígena de educar. Para boa parte das gentes, rendidas ao mundo ocidental, racionalizado e dependente mais vale uma escola grande que um ensino de qualidade. Se as diretrizes vêm do Banco Mundial, melhor ainda, vão aprender conforme aprendem os "gringos".
Poucos são aqueles que observam criticamente o processo de aprofundamento do colonialismo mental em pleno governo dito "progressista". A destruição das escolas comunitárias, dos espaços indígenas de saber e da universidade Amawtay Wasi são, na verdade, uma grande ofensiva do capital contra os povos indígenas, tradicionalmente um entrave nos planos de ganância e destruição de empresas transnacionais, da elite local e de muitos governantes. Estrangular essas experiências é um ato de força e de beligerância.
Os indígenas agora denunciam e não deverão aceitar tudo isso sentados. Eles encontrarão suas formas de resistir e manter viva suas culturas. Serão acusados de alianças com Gutierrez, com forças estrangeiras que querem destruir o governo "popular" e muitas outras coisas mais. Algumas comunidades podem até se enredar nessas armadilhas, isso não se descarta. Mas, qualquer guinada para a direita dos povos originários só se dará por conta do desrespeito às culturas antigas, por conta da insensibilidade do governo em dialogar, pela arrogância - herança colonial - e pela intransigência de Correa. Ou seja, o Equador vive uma hora importante de aprofundamento da dependência e da submissão aos grandes interesses internacionais. Não há interesse em se aliar aos povos autóctones para a construção do sumak kausai, conforme grita a Constituição. O que parece direcionar a ação do governo é o mesmo modelo desenvolvimentista que já mostrou todas as suas tristes e destruidoras faces por onde passou. Explorar petróleo, explorar minério, desalojar famílias, garantir um consumo fictício a uma classe média emergente, provocar a destruição do ambiente, incutir uma educação alienante e colonizada e maquiar o sistema de saúde. Tudo isso pode estar sendo construído para servir de base para a consolidação daquilo que "la radio buemba" (o que se diz nas ruas, boatos) já anuncia: a vinda de um acordo comercial de livre comércio com os Estados Unidos. Se isso se confirmar, o futuro será sombrio, com o aprofundamento da dependência econômica, política e cultural. Tudo como antes.
Então, nada de novo no front. A não ser a força viva das gentes de Abya Yala que, mesmo derrotadas, se reorganizam e voltam a se levantar.
 Elaine Tavares - jornalista

 http://alainet.org/active/69052&lang=es

O texto chega com a cortesia de Rosane Lacerda que prepara sua tese de doutoramento sobre a contribuição dos movimentos indígenas para a construção de um novo modelo de Estado pelas vias da descolonialidade, da desobediência epistêmica e da interculturalidade crítica, comparando Brasil, Bolívia e Equador. Diz Rosane: "Sugiro a leitura deste breve relato da jornalista Elaine Tavares sobre a atual situação no Equador. Nos mostra que, independentemente das Constituições, os governos desenvolvimentistas/colonialistas são todos a mesma coisa, só mudam o endereço".

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Dossiê Jango abre mostra de cinema sobre a ditadura

19-novembro-2013
Dossiê Jango abre mostra de cinema sobre a ditadura Brasília, 19/11/2013 – Começou nesta segunda-feira (18/11) a mostra de cinema realizada pela Comissão Especial da Verdade da OAB/DF, que exibirá filmes e documentários relacionados à época da ditadura militar. Serão exibidos filmes e realizados debates até sexta-feira (22/11). Com o tema “Cinema insurgente, dialogando com a verdade”, a mostra rememora os 30 anos da interdição e do incêndio da Seccional, além de ter como objetivo consolidar a verdade histórica sobre a resistência da instituição e dos advogados que lutaram contra a ditadura.
O presidente Ibaneis Rocha participou da abertura do evento e destacou sobre a importância de se conhecer a verdade sobre o período pela ótica dos advogados. “Devemos analisar o período da ditadura e da resistência através da memória dos advogados, daquilo que eles fizeram durante aquela fase. Essa mostra cumpre esse objetivo, pois dá voz aos advogados que vivenciaram a ditadura”, afirmou.
Em seu discurso, Ibaneis Rocha anunciou que os resultados do trabalho da Comissão Especial da Verdade da Seccional serão reunidos em um livro, editado pela OAB/DF, contando a história da resistência e da redemocratização pela ótica dos advogados. Na ocasião, Ibaneis também homenageou a memória do membro honorário vitalício, Maurício Corrêa, com uma placa representando todos os advogados que lutaram para defender a entidade e o Estado Democrático de Direito. Auda Corrêa, viúva do homenageado, recebeu a placa.
A presidente da Comissão Especial da Verdade e coordenadora do evento, Herilda Balduíno, disse que a mostra quer revelar aos mais jovens o que realmente aconteceu naquela época. “As pessoas não sabem como a ditadura foi realmente. Queremos fazer algo que lembre isso e traga a memória, a discussão e a crítica. Tínhamos, nós advogados, a incumbência de mostrar os fatos que violavam os direitos humanos. A OAB era, naquele tempo, um espaço de reação de Brasília, um espaço político de liberdade”.
José Geraldo de Sousa Júnior, ex-reitor e professor da Universidade de Brasília, relembrou os bastidores das decisões tomadas para defender o edifício-sede da OAB/DF. “Lembro-me que um dia após a invasão nos reunimos no escritório do Maurício Corrêa para avaliar a situação e decidimos todos ir para a Ordem, porque se alguma coisa acontecesse os advogados deveriam está na sua cidadela, guardando a sua casa, o seu espaço vital”.
A palestra da noite foi proferida pelo deputado federal Chico Alencar (PSOL-RJ). O parlamentar falou sobre o golpe de Estado e a ditadura militar. “Falar sobre o golpe de 64 e o regime que se instalou a partir desse momento é fazer essa visitação histórica. A construção dura, e ainda em curso, da democracia no Brasil representou uma enorme missão porque nós muitas vezes apostamos no século passado para vislumbrar o futuro. A história é uma ciência rigorosamente humana que pede releituras, de forma necessária, buscando a veracidade a partir de diferentes atores”.
Dossiê Jango foi o filme de estreia da mostra. João Goulart havia sido eleito democraticamente presidente do Brasil, mas foi expulso do cargo após o golpe de Estado de 1 de abril de 1964. Depois disso, Jango viveu exilado na Argentina, onde morreu em 1976. As circunstâncias de sua morte no país vizinho não foram bem explicadas até hoje. Seu corpo foi enterrado imediatamente após a sua morte, aumentando as suspeitas de assassinato premeditado. O documentário traz o assunto de volta à tona e tenta esclarecer publicamente alguns fatos obscuros da história do Brasil.
Reportagem – Priscila Gonçalves
Foto – Valter Zica
Comunicação Social – Jornalismo
OAB/DF