ALAI,
América Latina en Movimiento
2013-11-19
Apesar
de toda a propaganda que se faz do Equador, colocando-o dentro de um espectro de
"país dirigido pela esquerda", não são poucas as contradições vivenciadas pelo
governo de Rafael Correa, cada vez mais distante do que se poderia considerar um
mandato com o povo. Indiscutivelmente o primeiro mandato trouxe avanços
importantes, como a realização de uma nova Constituinte, soberana e autônoma,
que, apesar de todos os percalços, conseguiu levar para dentro do documento que
rege a vida das gentes numa nação uma série de avanços fundamentais que,
inclusive, servem de exemplo a todo o mundo.
Mas,
no cotidiano da vida, quando a Constituição começou a ser regulamentada, os
interesses econômicos e políticos começaram a aparecer com força e a ditar
regras que, de certa forma, destroem toda a lógica do sumak kausai (o bem viver
- que é o bem viver de corte indígena, não é o consumismo do mundo capitalista),
centro de toda a Constituição nacional. Um dos exemplos mais visíveis é o da
mineração e da exploração de petróleo. Mesmo que a natureza tenha ganhado um
capítulo dentro da carta magna, revestindo-se de direitos, na prática tudo cai
por terra quando os interesses econômicos cobram a conta do que chamam
"progresso". Em nome do que denominam "desenvolvimento", as classes dominantes
impõem seu modelo e passam por cima do que foi construído coletivamente com
muita luta pela população do país.
Os
povos indígenas são os que mais têm sofrido nesse processo. Primeiro porque
sistematicamente sofrem desqualificações sobre a sua maneira de viver a
política. Não é raro que a qualquer grito de rebeldia eles sejam imediatamente
ligados a setores da direita raivosa do Equador, tal qual o grupo do
ex-presidente Lucio Gutierrez, de descendência indígena. Basta que haja qualquer
oposição ao projeto governamental e lá vem o velho discurso de que os índios
estão sendo manipulados, que fazem o jogo da direita,
etc...
É
fato que a direita se aproveita - e muito bem - das batalhas travadas pelos
indígenas contra as propostas do governo, mas daí a dizer que eles são
manipulados é pura ideologia. E também mostra que a elite dominante continua
mantendo pelas populações originárias um profundo desprezo, a tal ponto de nunca
admitir que os indígenas possam pensar, formular políticas e definir suas
demandas de maneira autônoma e livre.
Outro
discurso que o governo usa com bastante maestria, até porque Rafael Correa é
bastante carismático e uma figura midiática, é o da necessidade do progresso.
Alegando que o país tem imensas riquezas minerais que necessitam ser exploradas
para que as gentes possam ascender a bons níveis de consumo, o governo vem
passando por cima daquilo que foi a pedra fundamental da nova Constituição: a
vontade popular. No caso dos territórios indígenas está na lei que, para
qualquer tipo de exploração dos recursos, a comunidade precisa ser ouvida. Mas,
não é o que acontece. Mesmo que as comunidades estejam gritando contra a
exploração, fazendo lutas, enfrentando a polícia, o governo permanece surdo. E
ainda joga o restante da população contra os indígenas alegando que eles estão
tentando impedir o "progresso" do país. De certa forma, o governo alimenta o
velho ódio, de origem colonial, entre brancos e índios. Não são raros os textos
e opiniões de gente da esquerda de toda a América Latina que também cai nesse
canto de sereia.
Ataque
à educação indígena
O
mais novo ataque do governo de Rafael Correa é contra a educação indígena. Mesmo
que a Constituição tenha garantido o direito a pluriculturalidade, na prática o
que está acontecendo no campo da educação é o soterramento de toda e qualquer
iniciativa indígena, ganhando força a homogeneização da educação. O primeiro
golpe foi na Universidade Intercultural Amawtay Wasi, universidade indígena que
existe no Equador desde 2004 com o objetivo de atuar na educação superior a
partir de uma pedagogia autóctone. Ou seja, a forma de ensinar e os conteúdos do
ensino estão completamente ligados ao jeito de ser das comunidades indígenas
que, ao contrário do que muitos pensam, mantiveram vivos seus pressupostos
éticos e pedagógicos apesar de mais de 500 anos de dominação. Assim, a
universidade surgiu justamente para se contrapor ao modelo bancário de educação
segmentada, descontextualizada e colonizada. Entre seus princípios está a
proposta de criar um sistema de educação superior que tenha a sua identidade
(indígena), dentro de um marco da integralidade do conhecimento, permitindo
assim superar a ruptura usual que existe entre teoria e prática. Busca ainda
formar profissionais que tenham uma visão intercultural, descolonizada, capazes
de entender onde vivem e de buscar soluções para os problemas concretos das
nacionalidades e populações. Gente que também seja capaz de conhecer os mais
diversos saberes que existem nas comunidades, apropriando-se deles para melhorar
a vida e para construir, de verdade, uma sociedade intercultural, na qual o
saber científico conquistado pelo mundo ocidental dialogue com os saberes
originários, sem dominação.
Não
bastasse essa "heresia" descolonial, a Amawtay Wasi tem uma estrutura física e
pedagógica que está totalmente integrada à cosmovisão dos povos indígenas. Todo
o trabalho se ampara nos princípios de vincularidade (a relação entre o todo e
as partes), complementariedade (a necessidade de um `outro`, com o qual se
dialoga), simbólico (relação entre o saber científico e o que ele significa no
âmbito simbólico), e a reciprocidade (a troca de saberes). Esses são conceitos
muito difíceis de serem compreendidos por aqueles que tem uma formação racional,
ocidental. É praticamente outra episteme e precisa ser compreendida como uma
forma radicalmente diferente de atuar, de educar e de
viver.
Pois
com a nova lei de educação, o governo de Rafael Correa decidiu homogeneizar o
processo educativo, sem levar em consideração a própria Constituição que
garante a pluriculturalidade. Depois de vários meses sendo visitada por
tecnocratas governamentais, a Universidade teve seu registro suspenso. Não pode
mais funcionar da forma como se organiza, a partir dos princípios que regem o
mundo indígena. Os "educadores" governamentais querem que a Amawtay Wasi morra
ou se iguale às demais universidades organizadas dentro dos cânones ocidentais.
Mas, não é essa a proposta da universidade indígena. Ela quer, justamente, se
contrapor a essa pedagogia desestruturante e colonial. No contexto de uma
sociedade pluricultural, não há motivo para que isso não aconteça. É só uma
universidade diferente, que atua dentro da episteme dos povos indígenas que ali
vivem desde muito antes dos espanhóis chegarem e invadirem seus mundos, impondo
uma cultura de dominação e de extermínio.
Mas,
Rafael Correa tem sido implacável, espalhando ainda que a universidade é foco de
resistência de grupos ligados à Lúcio Gutierrez. Como argumento usa o fato de a
mesma ter sido criada durante o governo daquele presidente. Na verdade, o que
quer é destruir um espaço de formação indígena construído a duras penas pelas
comunidades.
As
escolas comunitárias
Todo
esse ataque ao mundo indígena ainda não terminou. Agora, o governo decidiu
também eliminar as pequenas escolas comunitárias que atuam na lógica
intercultural, ensinando em duas línguas. Não quer mais que a educação
alternativa (leia-se indígena) se faça nas pequenas unidades que atuam com a
proposta de unidocência, porque os indígenas acreditam que o conhecimento é um
só, e não pode ser dividido em aulas de 50 minutos desconectadas do mundo
real.
Mais
uma vez, os tecnocratas governamentais decidiram que a educação de primeiro e
segundo grau do Equador devem seguir as propostas do Banco Mundial e precisam se
constituir em "Unidades Educativas do Milênio", as quais são reputadas as
novidades tecnológicas e todas aquelas "maravilhas" que os projetos vindos de
fora apregoam. Falam em escolas equipadas com computadores, alto nível de
ensino, novos conceitos pedagógicos. Tudo dentro da proposta ocidental, sem
considerar as especificidades da pedagogia indígena. Segundo a pedagoga e
comunicadora Rosa María Torres (http://otra-educacion.blogspot.com.br
), a proposta está centrada na aparência, sem que sequer se mencione a situação
dos professores, por exemplo, categoria que tem protagonizado grandes lutas no
país.
No
campo da propaganda o governo de Correa consegue convencer. Desde 2008 vem
construindo uma série de UEMs (Unidades Educativas do Milênio), cujo número já
ultrapassa as 24, atendendo 23 mil estudantes. E segue construindo outras
tantas, dizendo que aumentará esse número em mais de 30 até 2014. Os prédios
bonitos e bem pintados aparecem como o "progresso para todos". E justificam a
exploração de petróleo na região do Parque de Yasuní. "Com o petróleo teremos
mais saúde e educação para todos", diz, na tentativa de buscar apoio para as
ações de fechamento das escolas indígenas. Conforme anunciou, das 18 mil escolas
comunitárias que existem, apenas cinco mil seguirão abertas. Conforme diz, as
escolas comunitárias, aquelas que são geridas de forma alternativa, "são o
atraso, a marca da pobreza". Já os educadores que sempre estiveram nas
comunidades quando o estado as abandonava, têm outra posição. Eles dizem que
essas escolas que vivem à margem do sistema oficial são, recorrentemente,
referência na inovação e na transformação cultural, tanto no Equador quanto no
mundo. Segundo eles, esse tipo de escola multigrau e unidocente não é
necessariamente uma escola para pobres. Ao contrário, é uma escola que se
contrapõe ao sistema bancário imposto pelo Banco Mundial a toda América Latina.
Como exemplo lembram do programa Escola Nova, que existe na Colômbia e o das
Escolas Não-Formais, experiência de Bangladesh, ambas modelos premiados
internacionalmente.
Mas,
ainda assim, segue a "planificação" da educação, sem que se leve em conta a voz
dos educadores e das comunidades. Toda a proposta vem sendo construída por
burocratas, apresentando as modernidades como a solução do problema educativo.
"Fecharemos as escolinhas precárias e os alunos serão realocados nas Unidades
Educativas do Milênio", diz, sorridente, Correa, na televisão. Num primeiro
momento, tudo pode parecer muito bom. Novos prédios, fusão de escolas,
urbanização de escolas rurais, transporte escolar. Tudo preparado para a criação
de grandes complexos escolares com educação igualada/homogênea/ocidental, sem
que se leve em conta as especificidades culturais, tal como reza a própria
Constituição.
Diz
a comunicadora Rosa María Torres sobre uma UEM que visitou: "Em Otavalo, norte
de Quito, inaugurada em abril de 2009, com grande presença da mídia. Era a
terceira UEM construída no país e custara 2 milhões de dólares. Os alunos, 800,
são de maioria indígena. A escola abriu com os sete primeiros anos de educação
básica. Tem 38 salas de aula, quadros digitais, cozinha, restaurante, espaços
esportivos, laboratórios, bibliotecas, 38 computadores e internet banda larga. O
desenho da escola é tradicional, frio, sem qualquer presença da cultura local.
Os professores sequer sabem usar o quadro negro digital, é visível a falta de
capacitação. Nota-se que os espaços são subutilizados, há problemas de segurança
e não se vê qualquer preocupação com a capacitação dos professores". Ou seja,
tudo conspira para uma ode a tecnologia, sem cuidado pedagógico e muito menos o
contexto cultural.
A
experiência das escolas indígenas
Inka
Samana é uma pequena escola indígena no sul do país, reconhecida
internacionalmente como espaço de uma "revolução educacional", por sua proposta
diferenciada de ensino de saberes que vão além do formal. Pois também ela deverá
entrar no sistema homogeneizado da "educação nacional", abrindo mão dos aspectos
simbólicos e culturais que a caracterizam. Os protestos tem sido grandes, mas o
governo segue surdo. Quem quiser conhecer melhor essa bonita experiência de
educação indígena pode encontrar sua voz nas redes sociais (https://www.facebook.com/pages/INKA-SAMANA/101245569927872?fref=ts
). Rosa María Torres lembra ainda de outras experiências comunitárias indígenas
como as da província de Pichincha, a Escola Ecológica Samay e a Yachay Huasi
(Escola do Saber), que atuam no diálogo entre educação formal e educação
indígena. Há coisas do mundo das comunidades que as UEMs não tocarão, com
certeza, como a sabedoria dos mais velhos, fazer uma rede ou como reconhecer uma
semente, reforçando a ideia de que só a educação
formal/ocidental/moderna/científica é que é importante. Enfim, são dezenas de
experiências comunais, culturais e alternativas que estão prestes a sucumbir
diante da ideia de uma "educação única, nacional". Isso não pode ser possível
num país com tantos povos indígenas, já tão acostumados a atuar dentro de seu
mundo cosmogônico e simbólico.
A
luta é desigual. O governo constrói prédios vistosos e garante a gratuidade do
ensino formal, mesmo que a qualidade desse ensino esteja submetida aos ditames
internacionais. As pequenas escolas indígenas vivem de contribuições da
comunidade ou de ajuda externa. O governo já declarou que não aportará recursos
a essas experiências. Sufoca todas elas no campo econômico e depois acusa os
educadores de aliança com ONGs estrangeiras e grupos direitistas. É um cenário
difícil de se assimilar.
A
mesma prática tem se dado no campo universitário. No mesmo momento em que
anuncia o descredenciamento da Universidade Intercultural Amawtay Wasi, o
governo divulga a criação de quatro novas universidades estatais, onde os
equatorianos poderão ter ensino superior gratuito. Difícil para quem segue
acreditando que as culturas indígenas não têm nada a dizer no mundo, aceitar que
as mudanças da educação equatorianas não sejam boas. Pois se aumentam as
universidades públicas, se constroem novas escolas, se amplia o ensino gratuito.
Poucos são os que questionam esse processo de destruição do saber indígena, da
forma indígena de educar. Para boa parte das gentes, rendidas ao mundo
ocidental, racionalizado e dependente mais vale uma escola grande que um ensino
de qualidade. Se as diretrizes vêm do Banco Mundial, melhor ainda, vão aprender
conforme aprendem os "gringos".
Poucos
são aqueles que observam criticamente o processo de aprofundamento do
colonialismo mental em pleno governo dito "progressista". A destruição das
escolas comunitárias, dos espaços indígenas de saber e da universidade Amawtay
Wasi são, na verdade, uma grande ofensiva do capital contra os povos
indígenas,
tradicionalmente um entrave nos planos de ganância e destruição de empresas
transnacionais, da elite local e de muitos governantes. Estrangular essas
experiências é um ato de força e de beligerância.
Os
indígenas agora denunciam e não deverão aceitar tudo isso sentados. Eles
encontrarão suas formas de resistir e manter viva suas culturas. Serão acusados
de alianças com Gutierrez, com forças estrangeiras que querem destruir o governo
"popular" e muitas outras coisas mais. Algumas comunidades podem até se enredar
nessas armadilhas, isso não se descarta. Mas, qualquer guinada para a direita
dos povos originários só se dará por conta do desrespeito às culturas antigas,
por conta da insensibilidade do governo em dialogar, pela arrogância - herança
colonial - e pela intransigência de Correa. Ou seja, o Equador vive uma hora
importante de aprofundamento da dependência e da submissão aos grandes
interesses internacionais. Não há interesse em se aliar aos povos autóctones
para a construção do sumak kausai, conforme grita a Constituição. O que parece
direcionar a ação do governo é o mesmo modelo desenvolvimentista que já mostrou
todas as suas tristes e destruidoras faces por onde passou. Explorar petróleo,
explorar minério, desalojar famílias, garantir um consumo fictício a uma classe
média emergente, provocar a destruição do ambiente, incutir uma educação
alienante e colonizada e maquiar o sistema de saúde. Tudo isso pode estar sendo
construído para servir de base para a consolidação daquilo que "la radio buemba"
(o que se diz nas ruas, boatos) já anuncia: a vinda de um acordo comercial de
livre comércio com os Estados Unidos. Se isso se confirmar, o futuro será
sombrio, com o aprofundamento da dependência econômica, política e cultural.
Tudo como antes.
Então,
nada de novo no front. A não ser a força viva das gentes de Abya Yala que, mesmo
derrotadas, se reorganizam e voltam a se levantar.
Elaine
Tavares - jornalista
http://alainet.org/active/69052&lang=es
* O texto chega com a cortesia de Rosane Lacerda que prepara sua tese de doutoramento sobre a contribuição dos movimentos indígenas para a construção de um novo modelo de Estado pelas vias da descolonialidade, da desobediência epistêmica e da interculturalidade crítica, comparando Brasil, Bolívia e Equador. Diz Rosane: "Sugiro a leitura deste breve relato da jornalista Elaine
Tavares sobre a atual situação no Equador. Nos mostra que, independentemente das
Constituições, os governos desenvolvimentistas/colonialistas são todos a mesma
coisa, só mudam o endereço".
Nenhum comentário:
Postar um comentário