domingo, 30 de maio de 2021

 

Tem gente morrendo de Covid, tem gente morrendo por bala, tem gente morrendo de solidão, tem gente morrendo de fome; mas morre-se mesmo é de desgoverno

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“Todas as semanas, atendo mais ou menos cinco pacientes dizendo que estão doentes, mas, quando examinamos, notamos que, na verdade, não é doença, é fome”,  disse  médica que trabalha em uma unidade de saúde de Sobradinho, cidade-satélite do Distrito Federal. “Em 15 anos de profissão, nunca imaginei que ouviria relatos como os que tenho ouvido ultimamente. Ainda mais em uma cidade tão rica”, completa a profissional, em entrevista para reportagem de El País.

 

 

Os profissionais ouvidos constatam que os pacientes estão doentes de fome e o único remédio para isso é comida. Mas, como pudemos demonstrar em trabalho realizado pela FIAN Brasil (Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas) e pelo Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, conforme o livro recentemente lançado O Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas: Enunciados Jurídicos (Brasília, 1ª edição, 2020), essa situação é resultado do empobrecimento da população brasileira, com o desemprego alcançando a cifra 14,5% em 2021. Em 2020, o país ficou na 22ª colocação, devendo alcançar a 14ª maior taxa de desemprego do mundo em 2021, conforme levantamento da Austin Rating, a partir das projeções do último relatório do FMI.

 

 

Desemprego e fome. O número de pessoas com insegurança alimentar grave ou moderada, 27,7% da população está neste grupo. Significa dizer que cerca de 58 milhões de brasileiros correm o risco de deixar de comer por não terem dinheiro. Os atendentes da área de saúde ouvidos na entrevista do El País, lançam o diagnóstico: fome e crise de ansiedade. O nervosismo ocorre principalmente por não saber como proporcionar uma vida digna à família.

 

 

Por isso a FIAN BRASIL pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) para ingressar como amicus curiae na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 831, exatamente para obrigar o governo federal a investir em medidas de combate à fome no contexto da pandemia de Covid-19.

 

 

Mas o vírus capitalista do cansaço incessante, diz em artigo o filósofo e ensaísta Byung-Chul, autor, entre outras obras, de Sociedade do Cansaço, fará que “Em breve teremos vacinas suficientes para vencer o vírus. Mas não haverá vacinas contra a pandemia da depressão”.

 

 

De fato, em pesquisa realizada por Unas (União de Núcleos e Associações dos Moradores de Heliópolis e Região), com o apoio de pesquisadores da área da saúde pública da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), o quadro de adoecimento de moradores de uma favela relata depressão: “A falta de políticas públicas para o combate [da pandemia] como a demora na definição do auxílio emergencial, além da falta de testagem nos casos suspeitos e a de informações sobre os casos de mortes e contaminados deixou a periferia em uma espécie de apagão de informações”, 86% dos entrevistados relataram depressão e 90% disseram que não estavam desfrutando das atividades normais. Morte foi uma das palavras mais citadas pelos moradores da favela – (Portal Uol, 12-01-2021).

 

 

É preciso reconhecer que os efeitos letais do coronavírus são, infelizmente, não apenas as mortes, mas também a imposição da distância com tudo o que traz consigo: tristeza, raiva, sensação de desamparo, frustração, solidão, insônia, angústia, depressão. A epidemia é psíquica. E tem proporções imponderáveis, escreve Donatella Di Cesare, filósofa italiana, em artigo publicado por Il Manifesto, 29-03-2020: “Não é apenas um evento histórico, que marca um antes e um depois na história. É também um choque coletivo que afeta nossos corpos. Não seguimos apenas os eventos na tela; sofremos os efeitos todos os dias. O biovírus assassino, invisível e incompreensível, que impede a respiração e causa uma morte horrível, também afeta a vida cotidiana de milhares de maneiras, dificultando o começo do futuro que nos projete para a utopia como indica Boaventura de Sousa Santos (O Futuro Começa Agora. Da pandemia à utopia. São Paulo: Boitempo, 2021).

 

 

Isso quando não se morre de morte matada ou de morte negligente, à falta de cuidados protocolares nas operações em todas as periferias de todas as regiões do Brasil. O Brasil é o país com maior número de mortes por balas perdidas entre os países da América Latina e Caribe durante os anos de 2014 e 2015, segundo relatório do Centro Regional das Nações Unidas para a Paz, Desarmamento e Desenvolvimento na América Latina e Caribe (Unlirec, sigla em inglês), órgão da Organização das Nações Unidas (ONU). O ranking internacional mostrou que, das 741 ocorrências envolvendo balas perdidas na América Latina e Caribe, 197 foram no Brasil, resultando em 98 mortos e 115 feridos.

 

 

De outra parte, os dados apontam 7.743 assassinatos nos primeiros dois meses de 2020. O levantamento faz parte do Monitor da Violência, uma parceria do G1 com o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública: “Estaria havendo algum tipo de tensão no mercado de drogas que antes não havia? Será que o aumento de armas em circulação pode estar promovendo seus efeitos agora? A autoridade dos novos governadores e do presidente, que assumiram em 2019, estaria perdendo capacidade de dissuasão?”. Os coordenadores da pesquisa levantam suas hipóteses, mas ponderam: “Precisamos esperar mais tempo para responder. A pandemia tornou o contexto mais imprevisível. Mas os estados devem se preocupar desde já para a situação de violência não sair do controle”. Isso não explica, contudo, a chacina com contornos ainda misteriosos, ocorrida em Jacarezinho.

 

 

Morre-se de todos os modos na pandemia. Vivemos um luto contínuo, como me disse hoje uma aluna no correr da disciplina do Mestrado da Fiocruz Brasília (Fiocruz que, juntamente com o Instituto Butantan, acabam de ter a concessão do título de Patrimônio Nacional da Saúde Pública, já aprovada no Plenário da Câmara e encaminhada para o Senado Federal) Tópicos em Bioética e Saúde Pública, no qual desenvolvi a convite do coordenador Swedenberger do Nascimento Barbosa, o tema Direitos Humanos e Covid19. Grupos sociais vulnerabilizados e o contexto da pandemia (mesma titulação do livro que co-organizei para a Editora D’Plácido, Belo Horizonte, 2021). Nas palavras de Márcia Pisano, a aluna, “estamos todos vivendo o luto de maneira geral. Seja pela perda de algum ente querido, pessoa próxima, seja da nossa própria liberdade de ir e vir, luto pelos nossos direitos de socializar, luto por privações e incapacidades que até mesmo pessoas “curadas” ainda tem que lutar pelas sequelas, seja o transtorno/ trauma da hospitalização dentre tantas outras perdas…”.

 

 

Mas morre-se, principalmente de desgoverno. É o que sustentamos (como autores os professores Alfredo Attié, Renato Janine Ribeiro, Roberto Romano, Pedro Dallari e eu; os advogados Alberto Toron e Fábio Gaspar; e como advogados da causa Mauro de Azevedo Menezes e Roberta de Bragança Freitas Attié)  em Ação Civil Originária, protocolada no Supremo Tribunal Federal, cujo objeto é o reconhecimento da incapacidade civil de exercer o cargo e as funções atinentes à Presidência da República, com seu consequente afastamento desse exercício, numa atuação destrutiva que provoca a situação de risco e insegurança a que expõe o povo brasileiro e provocando uma letalidade que ultrapassa em linha ascendente um total superior a quatrocentas mil mortes de pacientes por Covid-19. Conforme demonstramos na Ação e o confirmam mais de cem petições de impeachment, no Brasil hoje, tem gente morrendo de Covid, tem gente morrendo por bala, tem gente morrendo de solidão, tem gente morrendo de fome; mas morre-se mesmo é de desgoverno.

 

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

 

 


quarta-feira, 26 de maio de 2021

 

Participação social e parlamentar na Comissão de Legislação Pariticipativa (CLP)

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

 

 

Aldo Matos Moreno. PARTICIPAÇÃO SOCIAL E PARLAMENTAR NA COMISSÃO DE LEGISLAÇÃOPARTICIPATIVA (CLP): Uma análise da efetividade das audiências públicas e reuniões deliberativas. Dissertação apresentada como pré-requisito para obtenção do título de Mestre no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestrado Profissional em Direitos Sociais e Processos Reivindicatórios, área de concentração Direitos Sociais e Processos Reivindicatórios, pelo Centro Universitário IESB. Brasília/DF, 2021, 387 p. 

            Trata-se de um trabalho valioso por duplo enquadramento. Primeiro, um estudo descritivo-analítico, por dentro do sistema parlamentar e de seu processo legislativo, pondo em relevo um instrumento de diálogo entre a sociedade e o Parlamento, por meio da elaboração legislativa participativa. Depois, como pré-requisito para a obtenção de título num mestrado profissional, ressalta-se um estudo que traz dados detalhados de manifestações de deputados, da sociedade e de outros atores durante as reuniões e audiências públicas da Comissão de Legislação Participativa. 

           Para o Autor da Dissertação, “a despeito de ser de extrema relevância para a sociedade brasileira, ainda é merecedora de atenção e de maior valorização para alcançar os propósitos plenos de sua criação. Embora mecanismos de transparência e participação estejam sendo utilizados pela Câmara dos Deputados, inclusive por meio das novas tecnologias, o que demonstra que existe um esforço para atender aos conceitos de ‘Parlamento Aberto’, a contribuição social no processo legiferante parece ainda incipiente, necessitando ser mais efetiva”. 

           Nos Anexos há um bem elaborado e completo catálogo desses elementos, útil em sua sistematização facilitadora, para consultas de pesquisadores e de interesse mais pragmático. Assim como “uma carta-proposta, com sugestões de melhorias nas rotinas procedimentais e outras ações, a ser apresentada à CLP, cuja expressão democrática sobressai na voz da sociedade, quando das discussões de questões referentes à construção legislativa que afeta diretamente o povo, haja vista a participação social traduzir dignidade, devendo ser encarada como direito fundamental de proteção do cidadão”. 

           Participei da etapa de qualificação da dissertação e, com os ilustres integrantes da Comissão Julgadora, pude fazer observações que com as dos demais colegas, encontrei coligidas no trabalho afinal apresentado em versão definitiva, à Banca, constituída pela Professora Dra. Any Ávila Assunção – Orientadora, do Programa de Mestrado Profissional em Direitos Sociais do IESB; pela Professora Dra Neide Malard – Membro Interno, do mesmo Programa; por mim, membro externo; e pelo Professor Ulisses Borges de Resende – Membro Interno Suplente, também Professor Titular do Programa Programa de Mestrado Profissional em Direitos Sociais do IESB. 

           A Dissertação, guardando fidelidade aos seus pressupostos e objetivos tem o intuito de analisar a efetividade dos trabalhos realizados pela CLP, dando enfoque especial ao papel desenvolvido pelos atores nas reuniões realizadas pela Comissão, a pesquisa buscou propiciar uma visão endógena do órgão, garantindo melhor compreensão dos aspectos procedimentais e do contexto fático dos debates e das deliberações. Quis o Autor verificar “a necessidade de entender como os deputados membros da CLP, além de outros parlamentares daquela Casa de Leis, respondem às sugestões e às demais demandas apresentadas pela sociedade civil, o que também se mostra essencial para a conclusão do estudo”, com o propósito ele diz “de desvelar como se dá o diálogo entre sociedade e Parlamento, tendo como cenário principal as reuniões deliberativas e as audiências públicas da CLP no período de 2015 a 2018. Assim, em pesquisa descritiva e exploratória que adotou métodos quantitativos e qualitativos e que buscou fundamento em extenso levantamento bibliográfico e documental, foram observadas as atas das reuniões, o regulamento, os relatórios, os discursos parlamentares e da sociedade, outros dados constantes da página do colegiado na internet, além das impressões dos servidores coletadas por meio de aplicação de questionário semiestruturado”. 

Foto: Pixabay

           A estrutura do trabalho se revela no Sumário, que abre com uma Introdução e a demarcação empírica do estudo, indicando os procedimentos metodológicos. Segue-se o arranjo teórico do estudo amparado no estudo da “evolução da democracia como corolário da participação social”, sua “importância e a regra da maioria” e uma exposição sobre “modelos de democracia e tipologias de regimes”. Depois destaca a “importância dos movimentos sociais como precursores do resgate democrático”, para logo fixar “o direito fundamental à participação e a legitimidade das decisões em face do conceito de cidadania”, Então, forte no pressuposto da “participação da sociedade nas decisões políticas como direito fundamental”, orienta a atenção analítica no sentido de extrair da “sociedade nos cenários decisórios como fator essencial para a valorização do cidadão e consequente fortalecimento da representatividade”, pretende operar com o “conceito de terceiro setor e de organização social” com a pretensão de “requalificação do Parlamento em convergência com o debate público” e o “debate democrático”. Distingue aí o núcleo procedimental da análise focalizada nas “reuniões de audiência pública e das políticas públicas”, da “Open Governament Partnership (OGP) e a responsabilidade parlamentar” e das “novas tecnologias de comunicação e informação como instrumentos de otimização da democracia participativa”. 

           No item 6 do Sumário –  PODER LEGISLATIVO BRASILEIRO – O PROCESSO LEGISLATIVO E A COMISSÃO DE LEGISLAÇÃO PARTICIPATIVA – ENTENDENDO O PROCESSO, o seu desenho esquematizado circunscreve o cerne da pesquisa desenvolvida na Dissertação: 

6.1 – O Processo Legiferante do Legislativo Federal;  

6.2 – Conhecendo as Competências das Comissões Parlamentares;  

6.3 – Conhecendo a Comissão de Legislação Participativa (CLP). Competências, Realizações e Atores; 

 7 – A Participação da Sociedade Civil na Comissão de Legislação Participativa: Uma Análise dos Trabalhos da CLP;  

7.1 – Breve Explanação do que se Pretende Analisar nas Reuniões de Audiência Pública Realizadas pela CLP; 

7.2 – Breves Explicações sobre as Reuniões Deliberativas da CLP e do que se Pretende Analisar nesses Eventos; 

7.3 – Dos Trabalhos da CLP em 2015;  

7.3.1 – Da análise dos debates nas Audiências Públicas da CLP em 2015; 

7.3.2 – Da análise das Reuniões Deliberativas da CLP em 2015;  

7.4 – Dos Trabalhos da CLP em 2016;  

7.4.1 – Da análise dos debates nas Audiências Públicas da CLP em 2016;  

7.4.2 – Da análise das Reuniões Deliberativas da CLP em 2016;  

7.5 – Dos Trabalhos da CLP em 2017;  

7.5.1 – Da análise dos debates nas Audiências Públicas da CLP em 2017; 

7.5.2 – Da análise das reuniões deliberativas da CLP em 2017; 

7.6 – Dos Trabalhos da CLP em 2018; 

7.6.1 – Da análise dos debates nas audiências públicas da CLP em 2018; 

7.6.2 – Da análise das reuniões deliberativas da CLP em 2018; 

7.7 – Síntese das Análises Realizadas nos Documentos Relativos às Reuniões da CLP na 55ª Legislatura (Audiências Públicas e Reuniões Deliberativas. 

           Seguem-se, no Sumário, devidamente indicados as Conclusões, os Anexos e as Referências. 

           O Autor introduz o tema a partir do que considera crise de representatividade do Parlamento e uma crescente expectativa de participação da Sociedade no processo legislativo. O faz, entretanto, tomando como ponto de inflexão, a abertura no espaço do Legislativo de instrumentos para fazer incidir essa participação: 

Nesse sentido, merece cuidadosa atenção, pela relevância do assunto, o espaço deliberativo que a sociedade obteve há poucos anos no Poder Legislativo, uma grande e valiosa conquista no quesito participação, com a criação, em 2001, na Câmara dos Deputados, da Comissão de Legislação Participativa (CLP), hoje uma das vinte e cinco comissões permanentes da Câmara, mas que possui uma prerrogativa muito especial e singular que a difere dos demais colegiados, pois é a única comissão da Câmara em que a sociedade civil organizada pode apresentar sugestões de proposições legislativas, de audiências públicas, de seminários entre outras, cujas matérias são invariavelmente relacionadas a questões sociais” (p. 16). 

           Não obstante conduzir o escopo de sua pesquisa para a dimensão endógena do processo e do instrumental que remete a uma certa funcionalidade programática da gestão do que designa como “Open Governament Partnership (OGP) e a responsabilidade parlamentar” e das “novas tecnologias de comunicação e informação como instrumentos de otimização da democracia participativa”, há no trabalho uma atenção à formidável clivagem teórico-política inscrita na transição do regime autoritário para o de enunciado democrático, mediado pela Constituinte de 1988 e a disputa que nela se travou entre projetos de sociedade e de democracia. 

           Tratei desse processo em várias oportunidades, a partir mesmo de depoimento que ofereci no próprio espaço da Constituinte, em audiência pública, representando a Comissão Brasileira de Justiça e Paz (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. A Nova Constituição e os Direitos do Cidadão. Petrópolis: Editora Vozes. Revista de Cultura Vozes, ano 82, volume LXXXII, julho/dezembro 1988, nº 2; Ser Constituinte. Brasília: Editora UnB. Revista Humanidades nº 11, novembro/janeiro 1986/1987, ano III; Obstáculos à Efetivação da Democracia no Brasil. CNBB Seminário “Exigências Éticas da Ordem Democrática”. São Paulo: Edições Loyola, 1989; com ESCRIVÃO FILHO, Antonio. Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019; e mais recentemente, Uma Promessa Vazia?. Dossiê Constituição Federal 1988: 30 Anos Depois, o que Restou?. Brasília: Editora UnB. Revista Humanidades, nº 62, dezembro 2018). 

           Em todos esses trabalhos e, antes, no próprio testemunho, a confirmação de um protagonismo social coletivo e organizado, de movimentos sociais, nos quais se inscrevem sujeitos coletivos de direitos, que lograram configurar e disputar na Constituinte, enquanto projeto, a constitucionalização de uma democracia participativa, com instrumentos que aprofundam o caráter representativo do exercício do poder político, mas que instaura a novidade constitucional, em todos os âmbitos, do poder exercido diretamente pelo Povo. 

           Conforme anoto, o Autor, em que pese esse exame funcional, não perde de vista o alcance político-teórico da transição democrática. Basta ver as suas referências. “O marco teórico utilizado nesta dissertação – diz ele –  perpassa pelo trabalho de autores que contribuíram com análises referentes à democracia, à representatividade, aos movimentos sociais e à participação social nos espaços decisórios, aos debates públicos, a direitos fundamentais, ao Poder Legislativo, ao Parlamento brasileiro, à Câmara dos Deputados, ao processo legislativo, à Comissão de Legislação Participativa, à legitimidade das decisões públicas, às políticas públicas, às novas Tecnologias de Informação e Comunicação”. “Assim – ele elenca -, foram empregados, entre outros, como escólio teórico: Habermas (1993,2002); Bonavides (2003 e 2016); Bobbio (2015); Gohn (2015); Barroso (2018); Jucá (2007); Lenza (2019); Faria (2015); Coutinho (2002); Marques (2008); Macedo (2018); Pinochet (2014); Pitkin (1976); Silva (2016); Vieira (2019); Dezen Junior (2017); Góes (2013); Cyrino (2016); Burgos (2007); Dallari (2013); Carneiro, Santos e Nóbrega Netto (2016); Sousa Santos (2019); Sousa Santos e Mendes (2018)”. Autores que dão suporte ao pressuposto participativo e ao protagonismo dos sujeitos coletivos (inscritos nos movimentos sociais), para afirmar a sua titularidade instituinte nesse processo. Ainda que figure nesse elenco, de modo insidioso, felizmente não transportado para as referências, o nome Pinochet que remete ao que há de mais antidemocrático na história política. 

           De todo a sorte, tomo do autor uma de suas principais referências, até para registro de homenagem, considerando a páscoa recente, do constitucionalista Paulo Bonavides. Retiro, a propósito, sobre o tema da Dissertação, excerto de entrevista que me concedeu, para o Observatório da Constituição e da Democracia (nº 22, maio de 2008), publicação que mantivemos por três anos na Faculdade de Direito da UnB e que estamos reeditando em base digital, por sua atualidade (https://odireitoachadonarua.blogspot.com/search/label/Constitui%C3%A7%C3%A3o%20%26%20Democracia): 

O Senhor é, dentre os constitucionalistas mais destacados, quem trouxe para o Direito Constitucional a perspectiva da democracia participativa, constituindo-se no principal intérprete e defensor da democracia direta inscrita na Constituição de 1988. 20 anos depois de sua promulgação como o avalia a “Constituição Cidadã”?  

 É uma grande Constituição. É a mais formosa. Todos os reacionários deste país a combatem. Combatem-na porque ela tem as chaves de solução para problemas que eles não querem que sejam resolvidos. Pior para eles. Como ela própria prevê, é o povo que os vai resolver. A Constituição de 1988 é a primeira Constituição principiológica de toda a nossa história Constitucional. Mas, princípios com normatividade, com juridicidade, que podem ser, portanto, concretizados. Cabe ao povo, tomá-la para si e lhe imprimir avanços, galgando degraus no patamar da democracia e do constitucionalismo. 

 

Ela ainda conserva o potencial democrático da participação popular ou esta é uma condição da política que esgotou-se no momento constituinte e nos limites das mobilizações daquela conjuntura? 

 Ao contrário, a Constituição, tal qual ela se realiza hoje, oferece o caminho para a formação da consciência da democracia participativa, da soberania da cidadania. E isso permite aprofundar a condição dessa soberania que é soberania popular, aperfeiçoando, nos termos da própria Constituição, a iniciativa popular, na autenticidade da sua fonte, portanto, a fonte de último grau de democracia. 

O povo tem na formação das leis, segundo a Constituição de 1988, a iniciativa de legislador ordinário, mas não tem a de legislador constituinte. Essa derradeira iniciativa é a mais importante, a mais fundamental, a mais sólida, por garantir o exercício de sua capacidade legitimadora da ordem normativa, debaixo da qual se organizam e repousam as instituições do ordenamento jurídico nacional. 

Mas, para isso, é necessário superar um grande obstáculo à participação democrática mais vertical, mais rigorosa, mais extensiva. É que a Constituição estabeleceu a participação popular, primeiro por uma via, a mais árida possível, que tem o grau supremo de legitimidade, que é o parágrafo único de seu artigo primeiro. A soberania nacional se exerce por representantes ou pelo próprio povo. Mas, como o constituinte de 1988 estabeleceu esses termos? Primeiro, no artigo 14, com a previsão de mecanismos plebiscitários e de iniciativa popular legislativa, porém subordinados à competência autorizativa exclusiva do Congresso Nacional, o que acabou limitando o alcance da participação. 

Por isso tenho me empenhado fortemente, com o apoio do Conselho Federal da OAB, numa campanha ou movimento, no sentido de atualizar a Constituição para incluir nela a possibilidade de emenda constitucional por iniciativa popular, com o intuito de dar protagonismo à participação popular como exercício efetivo do poder constituinte de segundo grau. A campanha tem recebido também o apoio de distintas assembléias estaduais, onde o poder constituinte das unidades autônomas da Federação já escreveu em suas respectivas Cartas o dispositivo instituidor da iniciativa popular em matéria constitucional. 

 

Qual o significado da iniciativa popular constituinte para a Democracia? 

 Só assim a democracia do porvir, emancipadora dos povos periféricos, e concretizada como direito fundamental do homem, há de ser na escala de valores mais nação que Estado, mais consciência nacional do povo solidário que razão de Estado dos governos autocráticos. 

Estado social e nação pressupõem também, ao lado da democracia, em seu teor contemporâneo de legitimidade, o primado da justiça, porque sem justiça a autoridade não se legitima, é dissimulação; a liberdade constitui privilégio; a igualdade, retórica; a segurança, argumento da opressão; a lei, mais regra de força que norma de direito; e o Estado, mais absolutismo que harmonia e separação de poderes. 

Sem justiça, a governabilidade é o dogma da tirania, é a nova razão de Estado das ditaduras constitucionais, a dimensão injusta e soez das invasões executivas nas órbitas de competências do legislador e do juiz. 

Sem justiça, o governo é ingovernabilidade. É a Constituição desamparada, malferida, humilhada, devastada, conculcada. E por que não dizer? Anexada ao arbítrio, à barbaridade e à onipotência de um Executivo supressor da livre fruição dos direitos fundamentais e das liberdades públicas. Executivo que, se lhe não puserem amarras, aniquilará a essência da cidadania. 

Sem justiça, a nação fica a um passo do abismo onde a democracia já não pode respirar e os laços morais e políticos da união republicana se dissolvem. 

O Estado social deixa então de ser Estado de direito por se converter tão-somente em Estado social de um sistema totalitário, em que o Legislativo, numa flagrante cumplicidade de submissão, se fez também fantasma do sistema representativo e da Constituição que abjurou e quebrantou. Fazendo mão comum com o Executivo, ambos podem implantar uma ditadura funesta ao futuro da nacionalidade, em razão de dissolver os vínculos democráticos e os valores que os atavam à Constituição. 

O triângulo da liberdade na periferia é justiça, nação e Estado social. Fora daí, as tribunas vazias, a sombra do absolutismo, o silêncio das ditaduras”. 

Bonavides se foi mas a sua mensagem permanece: “a Constituição, tal qual ela se realiza hoje, oferece o caminho para a formação da consciência da democracia participativa, da soberania da cidadania”. É preciso realizá-la. E se “os reacionários a combatem, pior para eles”. 

Mas é preciso realiza-la e a máxima dessa realização é o povo investir-se da formulação das leis. Daí a importância dessa Dissertação. Que quer aferir a virtude democrática no processo legislativo participativo. 

Minha questão para o Autor é dimensionar, a partir de seu texto, o lugar de relevo que atribui à “estratégia que está sendo utilizada internacionalmente trata da Parceria para Governo Aberto (Open Governament Partnership – OGP), que visa propiciar, entre outras coisas, maior transparência dos governos, acesso à informação e à participação social. Esse modelo de governo vem sendo desenvolvido e tem conseguido rápida importância no cenário nacional, merecendo uma abordagem mais detalhada neste estudo”. 

Não será uma contradição, destacar, como está nas suas Conclusões, que a “urgência de a sociedade participar de decisões políticas de maneira mais efetiva” deva-se mais “ao fato de existir uma crise de representação, que há algum tempo afeta a credibilidade de instituições, a exemplo do que ocorre atualmente no Congresso Nacional, refletindo na desconfiança da sociedade para com os parlamentares, o que pode enfraquecer o Parlamento e a própria democracia”? 

Não parece redutor, em face de suas convicções teóricas, apesar dos limites que a sua experiência constata, e a partir dessa constatação, “com intuito de aproximar a sociedade dos espaços decisórios, principalmente em relação à construção legislativa, a Constituição Federal de 1988, que contou com a contribuição de vários segmentos sociais para a sua confecção, disciplinou, por exemplo, a possibilidade de o cidadão poder apresentar o chamado “projeto de iniciativa popular de leis”, conformar-se em que  “esse instituto não logrou o sucesso esperado”?. 

            Afinal, tal como propõe, em seu exercício de projeto de intervenção, o que deve mobilizar é, sim, atribuir (letra e) “prioridade na realização de audiências públicas provenientes de sugestões das entidades da sociedade civil organizada em relação àquelas oriundas somente de requerimento parlamentar (embora legítima a possibilidade de realização de audiências públicas requeridas por parlamentares, a CLP é a única Comissão da Câmara que possibilita audiências sugeridas pelas entidades da sociedade civil organizada)”; e também (letra f), “conclusividade dos projetos de lei de autoria da Comissão de Legislação Participativa, retirando a obrigatoriedade regimental de essas proposições serem submetidas ao Plenário da Câmara dos Deputados”. 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

quarta-feira, 19 de maio de 2021

 

Diccionario Crítico de los Derechos Humanos

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

 

 

SORIANO DÍAZ, Ramón; ALARCÓN CABRERA, Carlos; MORA MOLINA, Juan (Directores). Diccionario Crítico de los Derechos Humanos. Huelva (España): Universidad Internacional de Andalucia, Sede Iberoamericana, 2000, 315 p.

             A disposição para o exame desse belo projeto, a edição de um dicionário crítico de direitos humanos, não advém apenas da concordância com a razões da iniciativa. De fato estou de acordo com os diretores e coordenadores da edição, quanto aos motivos e à oportunidade da publicação da obra: “o interesse social que suscita esta classe de direitos pela relevância dos bens jurídicos protegidos, o extraordinário desenvolvimento normativo e institucional, ao nível interno-estatal e internacional, na defesa e promoção dos direitos humanos, e as constantes controvérsias entre os estudiosos e na opinião pública sobre seu significado e alcance, que são a causa do caráter antagônico de seu exercício, de sua ineficácia na prática social e da fácil instrumentalização de que são objeto pelas esferas de poder”.

            A disposição vem, principalmente, da mobilização comum em torno de um projeto que leva em conta razões teóricas que sustentem aqueles motivos, enquanto programa continuado de uma instituição, a Universidade Internacional da Andalucia, em sua Sede Iberoamericana de La Rábida, programaticamente vocacionada para o diálogo aberto com a sociedade e para a produção de análises esclarecedoras acerca de ideias controvertidas.

            Em torno do mosteiro medieval, ao abrigo do qual Colombo encontrou as condições que lhe permitiram organizar a expedição de 1492, lançando-se ao mar, ao largo de Palos de la Frontera, o belo campus internacional de La Rábida, recebe estudantes de toda a América para estudos pós-graduados.

            Em 1999, a convite do Programa de Mestrado em Pluralismo Jurídico e Direitos Humanos, dirigido àquela altura por Joaquin Herrera Flores e David Sanchez Rubio, ambos da Universidade de Sevilha, desenvolvi um dos módulos do curso, como professor visitante, recolhendo dessa atmosfera acadêmica a solidariedade intelectual compartilhada de preocupações com os direitos humanos.

            Na antiga biblioteca, ambiente profícuo para a reflexão, monografias especializadas, manuais e obras gerais sobre o tema, dão a medida dos assuntos que circulam por impulso das interpelações dos alunos a seus professores. E agora, a esses textos, vem agregar-se esta nova publicação, “sintética e acessível, na qual possamos encontrar, cômoda e rapidamente, noções gerais sobre um tema concreto dentro da ampla matéria dos direitos humanos”. Essa, efetivamente, a intenção dos organizadores deste Diccionário Crítico dos Direitos Humanos”. “Dicionário – eles dizem – porque contém o conceito e a problemática geral de uma série de vozes relevantes da matéria. Crítico, porque a exposição não consiste numa mera descrição, mas numa ordenação comum de orientações teóricas controvertidas sobre a vozes selecionadas, desenvolvida com espírito crítico”.

            O arranjo, com efeito, tal como procurei chamar a atenção para isso em outro texto mais resumido, em formato específico de resenha (in Ser Social 8, Revista do Programa de Pós-Graduação em Política Social, do Departamento de Serviço Social, da Universidade de Brasília, janeiro a junho de 2001) menos que adensar tematicamente o conteúdo da obra, opta por acentuar a pluralidade de participações, com um elenco altamente representativo de autores, cuja expressão científica, é reconhecidamente apta a traduzir o amplo debate contemporâneo que se desenvolve doutrinariamente, em torno ao tema dos direitos humanos, com aportes interdisciplinares próprios a essa matéria – história, fundamentos, positivação, teoria geral. Assim, a edição se desdobra em quatro partes por meio das quais procura apreender a complexidade temática dos direitos humanos: introdução, valores jurídicos, teoria geral e tipologia de direitos.

            Na primeira parte, desenvolvendo noções introdutórias, estão presentes com seus respectivos temas, Norberto Bobbio, El fundamento de los derechos humanos; Franscico J. Laporta, El concepto de los derechos humanos; Antonio E. Pérez Luño, La universalidade de los derechos humanos; Gregório Peces-Barba, Multiculturalismo y derechos humanos; Francisco J. Ansuátegui Roig, La historia de los derechos humanos; Vittorio Frosini, Los derechos humanos em la era tecnológica.

            É conhecida a exortação de Bobbio dirigida ao fato de que a questão atual relativa aos direitos humanos já não é a de fundamentá-los, mas de garanti-los. Ou seja, o problema deixa de ser filosófico para ser político e, em última análise, jurídico. Vê-se que a preocupação com os fundamentos ainda é relevante e a ela se dedica o melhor pensamento hispânico contemporâneo, sem dúvida instigado pelos debates que se seguiram à promulgação de sua Constituição inspirada nos protocolos de Moncloa, roteiro para uma Espanha que se redemocratizava.

            Na segunda parte, tendo como roteiro o tema dos valores jurídicos, comparecem Eusébio Fernández, Dignidad y derechos humanos; Alfonso Ruiz Miguel, Libertad y derechos humanos; Ernesto Vidal Gil, Solidaridad y derechos humanos; Juan A. García Amado, Legitimidad y derechos humanos.

            A aproximação ao debate nesse contexto, ou seja, numa conjuntura de redemocratização, se bem insira os valores, como os próprios temas o indicam, numa experiência europeia ocidental, o faz como estratégia de reconstrução emancipatória que inscreve os direitos humanos, conforme salienta Boaventura de Sousa Santos, como elementaridade da linguagem da política progressista.

            Na terceira parte ordenam-se os temas relativos à teoria geral dos direitos humanos: Derechos humanos y estado de derecho, de Elias Díaz; Derechos humanos y democracia, de Pablo A. Bulcourf; Derechos humanos y derechos subjetivos, de Juan R. de Páramo Argüelles; Los limites de los derechos humanos, de Rafael de Asís Roig; La protección estatal de los derechos humanos, de Ana Salado Osuna; Garantismo y derechos humanos, de Marina Gascón; Seguridad pública y derechos humanos, de Marcelo Sain.

            O eixo temático, orientado pelo garantismo, remete à exigência de conversão da linguagem dos direitos em políticas públicas para a sua realização, o que consiste em transformar conceitos em práticas efetivas.

            A partir da consideração do pluralismo jurídico, e de um modelo de interlegalidades que nele se fundamenta, Boaventura de Sousa Santos aponta para o que designa porosidades de diferentes ordens jurídicas que obrigam a constantes transições e transgressões. É nesse contexto que o sociólogo português repõe o tema dos direitos humanos referidos às práticas sociais emancipatórias, nas quais transgressões concretas são sempre, diz ele, produto de uma negociação e de um juízo político.

            Para Boaventura, a reciprocidade é o critério geral de uma política democrática emancipatória, enquanto a forma e os meios de negociação deverão ser privilegiadamente os direitos humanos como expressão avançada de lutas pela reciprocidade.

            A articulação dos elementos conceituais que aqui foram apresentados abre uma perspectiva orientada para que as categorias mobilizáveis desse tema possam contribuir para um programa de “reinvenção dos direitos humanos”. Recolhemos essa possibilidade a partir da leitura criativa que a esse respeito é localizada em considerações indicadas por Joaquín Herrera Flores, aliás, um dos mais destacados formuladores do programa de La Rábida.

             Esse  notável  professor,  tão  precocemente  falecido,  havia  lançado essa ideia a partir da “Cátedra de Direitos Humanos José Carlos Mariátegui” e do “Programa Oficial de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Desenvolvimento”, instalados na Universidade Pablo de Olavide, em Sevilha, onde desenvolveu seus trabalhos finais.

             Chama a atenção, nas propostas de sua docência e de seus últimos escritos, essa clara atitude de reinvenção dos direitos humanos enquanto premissa teórica apta a sustentar “a abertura de processos de luta pela dignidade humana” e premissa política apta a orientar projetos de sociedade originados de “práticas sociais que aspirem a se realizar social e institucionalmente”.

             Em entrevista por ele concedida, quando de sua última visita a Brasília, o significado dessa reinvenção foi formulado, com o intuito de aferir o seu alcance criativo para ser base de projetos de construção de sociedades (retiro essas referências de texto que publiquei aqui na Coluna Lido para Você: http://estadodedireito.com.br/os-direitos-humanos-como-um-projeto-de-sociedade/.

             Com efeito, ao lhe ser colocada a questão sobre as novas perspectivas e como, a partir delas, o direito se relaciona com processos institucionais e sociais que levem à abertura e consolidação de espaços de luta pela dignidade humana, a sua resposta se orienta para esboçar, com base em direitos humanos, projetos possíveis no nível institucional e de sociedade. Diz Herrera Flores:

Creio que, ao falar em direitos humanos, devemos ser conscientes de uma série de fatos históricos e sociais. Celebramos, em 2008, os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), mas, também os 42 anos de sua ruptura em dois pactos internacionais (1966): o de direitos civis e políticos e o de direitos sociais, econômicos e culturais. Se a estrutura da declaração era unitária, que razões fundamentaram e, o que é mais importante, que razões seguem fundamentando a visão dualista dos direitos? Se lermos com atenção os Informes de Desenvolvimento Humano que anualmente são publicados pelas Nações Unidas, observamos que, a cada ano que passa, aumenta o abismo entre ricos e pobres, e que não há modo de conter a pobreza e a mortalidade por fome nos países empobrecidos pelas políticas coloniais globais do modo de produção capitalista. E, por fim, se acessamos o último informe da Anistia Internacional [veremos que], de um modo direto, são questionados os avanços em direitos civis e políticos no mundo depois de seis décadas da assinatura da Declaração. Se fazemos estas leituras, creio que todos e todas perceberemos a necessidade de “reinventar os direitos humanos” desde uma perspectiva mais atenta ao que está ocorrendo ao nosso redor. Creio, sinceramente, que chegou o momento de redefinir uma categoria tão importante para compreender os desafios com os quais se depara a humanidade em início do século XXI. Neste sentido, nós definimos os direitos humanos como “processos de luta pela dignidade”, ou seja, o conjunto de práticas sociais, institucionais, econômicas, políticas e culturais levadas a cabo pelos movimentos e grupos sociais em sua luta por um acesso igualitário e não hierarquizado a priori aos bens que fazem digna a vida que vivemos (Flores, 2008-b: 12-13).

             A nota distintiva, sob o aspecto da fundamentação de projetos de sociedade em direitos humanos, reside, certamente, na noção de “dignidade material da cidadania”, que se vislumbra no pensamento instigante desse autor. Rebelde a qualquer forma de colonialismo e imperialismo ocidental que privilegie unicamente o que se faz desde os países centrais, desprezando tudo o que provém de países “periferizados” pela ordem hegemônica global, pensar em projetos de sociedade – para ele – é estar acessível a experiências de gestão democrático-participativa da cidade e das comunidades, como condição para concretizar, à luz de direitos humanos reinventados, a dupla condição, em articulação simultânea, dos princípios de “igualdade de poder político” (próprio das democracias representativas) com o de “distribuição de poder político” (próprio das democracias participativas), que se apresentam atualmente como “desafio para nossos sistemas políticos tendencialmente fechados às novas formas de gestão do público”.

             Logo, seguindo a linha argumentativa do autor, tem-se que os direitos humanos não podem existir num mundo ideal, naturalizado, mas devem ser postos em prática por meio de uma ação social voltada para um projeto de construção da realidade, vale dizer, ter como referência que os direitos humanos não podem ser entendidos separadamente do político.

            Por isso se diz que a história dos direitos humanos não é a história das declarações que os enunciam, não é a história das instituições, nem sequer a história das ideias filosóficas e dos valores (LESBAUPIN, Ivo. As Classes Populares e os Direitos Humanos. Petrópolis: Editora Vozes, 1984). É sim, a história dessas lutas sociais, enquanto ensaio de positivação da liberdade conscientizada e conquistada no processo de criação dos direitos que realizam as aspirações à reciprocidade, tal como podemos encontrar em Roberto Lyra Filho, ao fundamentar seu conceito de direito (O que é Direito, São Paulo: Brasiliense, 1ª edição, 1982).

            No quarto e último bloco, abre-se espaço a um catálogo de direitos humanos controvertidos. Desse elenco figuram Juan J. Mora Molina, El derecho a la vida; Luis García-San Miguel, El derecho a la intimidad; Modesto Saavedra López, El derecho a la libertad de expresión; Benito de Castro Cid, Los derechos sociales; Fernando León Jiménez, Los derechos ecológicos; José I. Lacasta Zabalza, El derecho de autodeterminación; Ramón L. Soriano Díaz, Los derechos de las minorias.

            Os temas, na sua atualidade crítica, abrem ensejo a pelo menos duas ordens de considerações. De um lado, uma designação de protagonismos, gerando concepções e uma pluralidade de discursos que reclamam diálogo intercultural compreendendo diferentes particularismos. São os movimentos sociais, as ONGs, são atores sociais constituídos em grupos de interesses elaborando agendas não diretamente referidas aos padrões hegemonistas da tradição institucional ocidental. De outro, a constatação de que esse processo, aludindo a práticas plurais emancipatórias, aponta para uma realidade, segundo a qual, na sua aplicação, os direitos humanos não são sociologicamente, como é assente na cultura ocidental, ao menos filosoficamente, universais, indivisíveis, interdependentes.

            No seu conjunto, os textos do Diccionario não dão respostas conclusivas para essas questões, mas abrem, sem dúvida, perspectivas para que elas sejam enfrentadas. São temas que, por sua qualificação, transcendem as culturas e interpelam o que nelas há de comum, enquanto expressão de humanidade, algo mais pertinente que a ilusão corrente de universalismo metafísico.

            Essa mesma disposição está presente no projeto de edição da Enciclopédia Latino-Americana dos Direitos Humanos, que foi objeto de minha atenção nesta Coluna Lido para Você (http://estadodedireito.com.br/enciclopedia-latino-americana-dos-direitos-humanos/).   Na Apresentação da obra (pp. 7-9), o filósofo salvadorenho, Héctor Samour, da Universidade Centro-Americana José Simeón Cañas (ex-Vice Ministro da Educação de El Salvador) esclarece que a proposta visa a apreender, na abordagem dos direitos humanos, os acontecimentos históricos e as possibilidades atuais, com as quais contam a região para pensar e iluminar sua libertação; e, assim, colaborar para a construção histórica de instituições que assegurem a satisfação das necessidades básicas e a vigência efetiva daqueles direitos, sem os quais não se poderia cogitar uma vida humana digna para todos.

             Com a preocupação decolonial e de emancipar-se do enquadramento eurocêntrico que preside a constituição dos paradigmas e dos enfoques de um modo de produção que lhe é determinante, sobretudo ideologicamente, recortando categorias fundamentais para o tema, como liberdade e democracia, a Enciclopédia pretende historicizar a teoria e a prática dos direitos humanos com o fim de contribuir para a desideologização desses direitos e evitar, desta maneira, que sejam utilizados para justificar e legitimar as situações de injustiça predominantes na região latino-americana e no resto dos países pobres do mundo.

             Trata-se, como dissemos eu e Antonio Escrivão Filho, em nosso Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos (Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016), de pensar os Direitos Humanos enquanto projeto de sociedade. Ou seja, rastrear a sua emergência, na consideração de que não se realizam enquanto expectativas de indivíduos, senão em perspectiva de coletividade, como tarefa cuja concretização se dá em ação de conjunto.

             Assim sendo, partimos do debate conceitual dos direitos humanos, para esboçar o panorama do cenário internacional e de sua emergência histórica, no mundo e no Brasil, para, desse modo, articular o seu percurso no contexto da conquista da democracia, assim designada enquanto protagonismo de movimentos sociais, ao mesmo tempo sujeitos de afirmação e de aquisição dos direitos humanos. Em relevo, pois, a historicidade latino-americana para acentuar a singularidade da questão pós-colonial forte na caracterização de um modo de desenvolvimento que abra ensejo para um constitucionalismo “Achado na Rua”.

             Ali como aqui, problematiza-se, em consequência, os modos de conhecer e de realizar os direitos humanos, em razão das lutas para o seu reconhecimento, a partir das quais se constituem como núcleo da expansão política da justiça e condição de legitimação das formas de articulação do poder e de distribuição equitativa dos bens e valores socialmente produzidos.

             Em suma, compreender os direitos humanos dentro de “um programa que dá conteúdo ao protagonismo humanista, conquanto orienta projetos de vida e percursos emancipatórios que levam à formulação de projetos de sociedade para instaurar espaços recriados pelas lutas sociais pela dignidade”, numa dinâmica, diz David Sánchez Rubio, também muito orgânico política e teoricamente no programa da Universidade Internacional da Andalucia, orientada para uma recuperação da democracia como poder popular e dos direitos humanos a partir de suas lutas instituintes (cf. SÁNCHEZ RUBIO, David. Derechos Humanos Instituyentes, Pensamento Crítico y Praxis de Liberación. Ciudad de México: Edicionesakal, 2018; e também na intensa interlocução que esse professor mantem com o programa de pós-graduação em direitos humanos da Universidade de Brasília).

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.