sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Artigo de Sinara Gumieri Vieira sobre aplicação da Lei Maria da Penha nos casos de homicídio venceu uma das categorias da 9ª edição do Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero

RECONHECIMENTO - 28/02/2014
Versão para impressão Enviar por e-mail
Mariana Costa/UnB Agência
 
Bacharel recebe prêmio da Secretaria de Políticas para Mulheres
Artigo de Sinara Gumieri Vieira sobre aplicação da Lei Maria da Penha nos casos de homicídio venceu uma das categorias da 9ª edição do Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero

Helen Lopes - Da Secretaria de Comunicação da UnB

 Tamanho do Texto

Graduada pela Universidade de Brasília no ano passado, a bacharel em Direito Sinara Gumieri Vieira é uma das ganhadoras da 9ª edição do Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero. O resultado do concurso, promovido pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), do Ministério da Educação e das Organizações das Nações Unidas, foi divulgado nesta terça-feira (25).
Sinara venceu na categoria Graduado, Especialista e Estudante de Mestrado com um artigo sobre a aplicação da Lei Maria da Penha nos casos de homicídio. O trabalho é um extrato de sua monografia de graduação, feito sob a orientação da professora Debora Diniz, e analisa 35 casos de homicídios com trânsito em julgado. Os crimes foram cometidos no Distrito Federal entre 2006 e 2012.
A pesquisa constatou uma baixa aplicação da Lei Maria da Penha em casos de homicídios de mulheres em situação de violência doméstica. “Apesar de abordar a violência doméstica de forma geral e de não focalizar diretamente o homicídio, a lei traz um agravante que deveria ser usado nesses casos. No entanto, ela não é citada nem tratada como relevante. Isso aponta certa dificuldade de compreensão da perspectiva de gênero que a Lei Maria da Penha tentou trazer, uma vez que, na expressão máxima da violência contra a mulher, a norma não aparece como mediadora das relações”, explica Sinara, que neste ano vai iniciar o mestrado na Faculdade de Direito.
A bacharel verificou ainda que o número de condenações foi alto, mais de 80%. Entretanto, os discursos jurídicos mudaram pouco. “Muitas vezes, o Ministério Público contextualiza esses casos como situações isoladas, decorrentes de desentendimentos domésticos exacerbados. Falta a dimensão estrutural da violência. A defesa, por sua vez, em metade dos casos, usou argumentos que reproduzem os estereótipos de gênero, como traição ou aspectos ligados à virilidade”, diz a vencedora, que chegou aos casos por meio de laudos do Instituto Médico Legal.
De acordo com a professora Debora Diniz, o prêmio, cujo objetivo é estimular e fortalecer a reflexão crítica e a pesquisa acerca das desigualdades existentes entre homens e mulheres, é o mais importante do país sobre pesquisa de gênero. “É um reconhecimento muito importante, esse prêmio é bastante concorrido”, ressalta Debora.
A professora diz ainda que Sinara representa uma nova geração de juristas que pensa o Direito com base em pesquisas sólidas. “Ela fez uma pesquisa muito séria. A violência contra a mulher é um tema muito relevante no Brasil, e esse prêmio reconhece a contribuição que o estudo pode trazer para tomarmos medidas para reduzir essa violência”, salienta Debora.
Além de receber R$ 8 mil, a bacharel concorre a bolsa de mestrado. A cerimônia de entrega das premiações acontecerá em maio.
Todos os textos e fotos podem ser utilizados e reproduzidos desde que a fonte seja citada. Textos: UnB Agência. Fotos: nome do fotógrafo/UnB Agência.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

A gestação do povo brasileiro, a universidade e o saber popular


                 por    Leonardo Boff, teólogo e escritor
O povo brasileiro ainda não acabou de nascer. Vindos de 60 países diferentes, aqui estão se mesclando representantes destes povos num processo aberto, todos contribuindo na gestação de um povo novo que um dia acabará de nascer.
O que herdamos da Colônia foi um estado altamente seletivo, uma elite excludente e uma imensa massa de destituídos e descendentes de escravos. O cientista político Luiz Gonzaga de Souza Lima na sua original interpretação do Brasil nos diz que nascemos como Empresa Tranacionalizada, condenada a ser até hoje fornecedora de produtos in natura para o mercado mundial (cf. A refundação do Brasil, 2011).
Mas apesar deste constrangimento histórico-social, no meio desta massa enorme maduraram lentamente lideranças e movimentos que propiciaram o surgimento de todo tipo de comunidades, associações, grupos de ação e de reflexão que vão das quebradeiras de côco do Maranhão, aos povos da floresta do Acre, dos  sem-terra do sul e do nordeste, das comunidades de base, aos sindicatos do ABC paulista.
Do exercício democrático no interior destes movimentos nasceram cidadãos ativos; da articulação entre eles, cada um mantendo sua autonomia, está nascendo uma energia geradora do povo brasileiro que lentamente chega à consciência de sua história e projeta um futuro diferente e melhor para todos.
Nenhum processo desta magnitude se faz sem aliados, sem a ligação orgânica daqueles que manejam um saber especializado com os movimentos sociais comprometidos. É aqui que a universidade é desafiada a alargar o seu horizonte. Importa que os mestres e alunos  frequentem a escola viva do povo, como praticava Paulo Freire, e permitir que gente do povo possa entrar nas salas de aula e escutar os professores na matérias relevantes para eles como eu mesmo fazia nos meus cursos na UERJ do Rio de Janeiro.
 Essa visão supõe a criação de uma aliança entre a inteligência acadêmica com a miséria popular. Todas as universidades, especialmente após a reforma de seu estatuto por Humboldt em 1809 em Berlim que permitiu as ciências modernas ganharem sua cidadania acadêmica ao lado da reflexão humanística que criou outrora a universidade, se tornaram o lugar clássico da problematização da cultura, da vida, do homem, de seu destino e de Deus. As duas culturas – a  humanística e a  científica - mais e mais se intercomunicam no sentido de pensar o todo, o destino do próprio projeto científico-técnico face àss intervenções que faz na natureza e sua responsabilidade pelo futuro comum da nação e da Terra. Tal desafio exige um novo modo de pensar que não segue uma lógica do simples e linear mas do complexo e do dialógico.
As universidades são urgidas a buscar um enraizamento orgânico nas periferias, nas bases populares e nos setores ligados diretamente  à produção. Aqui pode se estabelecer uma fecunda troca de saberes, entre  o saber popular, de experiências feito, e o saber acadêmico, constituído pelo espírito crítico; dessa aliança surgirão seguramente novas temáticas teóricas nascidas do confronto com a anti-realidade popular e da valorização da riqueza incomensurável do povo na sua capacidade de encontrar, sozinho, saídas para os seus problemas. Aqui se dá a troca de saberes, uns completando os outros, no estilo proposto pelo prêmio Nobel de Química (1977) Ilya Prigorine (cf.A nova aliança, UNB 1984).
Deste casamento, se acelera a gênese de um povo; permite um novo tipo de cidadania, baseada na con-cidadania dos representantes da sociedade civil e acadêmica e das bases populares que tomam iniciativas por si mesmos e submetem o Estado a um controle democrático, cobrando-lhe os serviços básicos especialmente para as grande populações periféricas.
Nestas iniciativas populares, com suas várias frentes (casa, saúde, educação, direitos humanos, transporte coletivo etc), os movimentos sociais sentem necessidade de um saber profissional. É onde a universidade pode e deve entrar, socializando o saber, oferencendo encaminhamentos para soluções originais e abrindo perspectivas às vezes insuspeitadas por quem é condenado a lutar só para sobreviver.      
Deste ir-e-vir fecundo entre pensamento universitário e saber popular  pode surgir o bioregionalismo com um desenvolvimento adequado àquele ecossistema e à cultura local. A partir desta prática, a universidade pública resgatará seu caráter público, será realmente a servidora da sociedade. E a universidade privada realizará sua função social, já que em grande parte é refém dos interesses privados das classes proprietárias e feita  chocadeira de sua reprodução social.
Esse processo dinâmico e contraditório só prosperará se estiver imbuído de um grande sonho: de ser um povo novo, autônomo livre e orgulhoso de sua terra. O antropólogo Roberto da Matta bem enfatizou que o povo brasileiro criou um patrimônio realmente invejável: “toda essa nossa capacidade de sintetizar, relacionar, reconciliar, criando com isso zonas e valores ligados à  alegria, ao futuro e à esperança” (Porque o brasil é Brasil, 1986,121).
Apesar de todas tribulações históricas, apesar de ter sido considerado, tantas vezes, jeca-tatu e joão-ninguém, o povo brasileiro nunca perdeu sua auto- estima e o encantamento do mundo. É um povo de grandes sonhos, de esperanças inarredáveis e utopias generosas, um povo que se sente tão imbuído pelas energias divinas que estima ser Deus brasileiro.
Talvez seja esta visão encantada do mundo, uma das maiores contribuições que nós brasileiro podemos dar à cultura mundial emergente, tão pouco mágica  e tão pouco sensível ao jogo, ao humor e à convivência dos contrários.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Não carecemos de uma lei assim


JOSÉ CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO*

No campo político e na esfera institucional da sociedade brasileira, o medo tem sido sempre o combustível de decisões equivocadas e de resultados violentos. O medo gera atitudes irracionais e bruscas e quase sempre possui dimensões irreais e fantasiosas que escondem interesses e preconceitos.
Por isto mesmo, estimular o ambiente de temor e apreensão, mesmo quando falsos ou superdimensionados os motivos, é quase sempre uma poderosa arma política manuseada pelos grupos interessados em seus efeitos.
Um bom exemplo disto, magistralmente demonstrado no filme O Dia que Durou 21 Anos, dirigido por Camilo Tavares, foi a atuação, no início dos anos 60, do Instituto de Ação Democrática (Ibad), fortemente ligado à CIA, e que amplificou, por meio de uma maciça propaganda e com apoio de certas elites conservadoras do país, o fantasma de uma ameaça inexistente de revolução comunista. O resultado foram 21 anos de ditadura e terrorismo de Estado e a produção de uma forte estrutura jurídico-autoritária que até hoje não foi totalmente rompida.
Diante da lamentável morte do cinegrafista Santiago e da proximidade da Copa, o Senado Federal, com o apoio das forças de sustentação do atual governo, tem contribuído para estimular um pânico irracional ao propor a criação de mais um mostrengo autoritário: uma lei que tipifique o crime de terrorismo.
Em primeiro lugar, não carecemos de uma lei assim, pelo simples fato de que no Brasil não há evidência alguma de atividade terrorista. Não temos nada parecido com a Al-Qaeda ou com o ETA por aqui, nem mesmo ramificações desses grupos na Tríplice Fronteira. Em segundo lugar, o projeto de lei (PL 499/2013) não define o que é “infundir terror ou pânico generalizado”, ou ainda pior “incitar o terrorismo”, cabendo neste vácuo semântico toda sorte de generalizações e abusos. Em terceiro lugar, já temos leis penais suficientes para coibir a violência em manifestações e forças de segurança que não hesitam em usar a força bruta, muitas vezes até de modo abusivo e ilegal. Em quarto lugar, ações de violência por parte dos manifestantes são a exceção, sendo pacífica a maciça maioria das manifestações. Em quinto lugar, esta lei servirá para criminalizar e estigmatizar ainda mais os movimentos sociais populares que vão às ruas reivindicar os seus direitos (quem acha que a ação destes grupos é baderna não pode depois reclamar que o povo brasileiro é acomodado e que os políticos nada fazem). Em sexto lugar, é lamentável que senadores do PT, um partido criado a partir dos movimentos sociais populares, apoiem abertamente este projeto de lei, atitude indigna da trajetória desses senadores e do próprio partido. Por fim, é evidente que a preocupação maior da proposta é imediatista: a Copa, o que é evidente quando “estádios esportivos” são considerados bens ou serviços essenciais, cujo dano pode enquadrar o seu causador como terrorista.
Leis e políticas de ocasião insufladas pelo medo irracional resultam em mais autoritarismo e violência e menos paz e democracia.

*Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS. O autor fez sua graduação na UnB, participando da construção pedagógica de O Direito Achado na Rua. Este artigo foi originalmente publicado em Zero Hora, Porto Alegre, em 19/02/2014

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

A VAQUINHA E A CONSTITUIÇÃO

Fábio de Sá e Silva (*)

Desde que teve início o julgamento da Ação Penal 470, o chamado processo do “mensalão”, bate-bocas em plenário e duras críticas aos pares por meio de veículos da grande imprensa já haviam cuidado de sepultar a liturgia que deve caracterizar os trabalhos dos Ministros do STF, enquanto integrantes do órgão de cúpula do poder judiciário.

Frente ao sucesso das “vaquinhas” voltadas à arrecadação de verbas para o pagamento das multas penais fixadas naquele processo, notadamente a do ex-parlamentar e ex-presidente do PT, José Genoíno, o Ministro Gilmar Mendes parece não ter resistido em oferecer mais uma contribuição para essa crescente desfiguração.

“Está tudo muito esquisito,” disse Gilmar em referência à arrecadação. “E se for um fenômeno de lavagem? O Ministério Público precisa olhar isso”.

A frase de Mendes incendiou a blogosfera e ensejou rápida resposta do Senador Eduardo Suplicy. Em carta enviada ao Ministro, Suplicy não apenas declarou ter sido um dos doadores ao lado de outras figuras públicas, como o ex-Ministro do STF Nelson Jobim, como também defendeu os procedimentos para a coleta das doações, registrando que os “documentos que comprovam tudo quanto por ora se afirma estão à disposição da Justiça, e, comprovarão, de forma inequívoca, a precocidade e inconveniência de declarações dadas no calor dos debates”.

Gilmar perdeu nova chance de guardar o silêncio litúrgico próprio do cargo e enviou resposta a Suplicy.

Desta vez, além de reiterar o entendimento de que, mesmo do alto do plenário da Suprema Corte, lhe é legítimo “perquirir a respeito das movimentações financeiras dos condenados... em proveito da transparência e da dignidade da lei penal e do Poder Judiciário,” o Ministro ainda desafiou o Senador a “liderar o ressarcimento ao erário público das vultosas cifras desviadas”.

A tese de que as “vaquinhas” para o pagamento das multas penais poderiam ocultar qualquer prática de lavagem de dinheiro não resiste a qualquer escrutínio básico da razão. Afinal, se há valores desviados ou sonegados que transitam por mãos próximas às dos condenados, o que os envolvidos nisso ganhariam em canalizar o dinheiro para os cofres públicos – destino último, pois, das multas penais?

De um ponto de vista prático, a lavagem de dinheiro só faz sentido se der aparência de legalidade a valores dos quais se possa usufruir de maneira direta e imediata. O pagamento da multa não “libertaria” os réus; ao passo que seria muito mais racional deixar o dinheiro rendendo em algum lugar ou abastecendo algum outro negócio, para usufruir dele depois, em liberdade. Dispor do dinheiro de modo definitivo e sem obter nada objetivo em troca pode merecer outras suspeitas, como a de altruísmo ou loucura, mas jamais o de lavagem.

Mas Gilmar não parou aí nas suas considerações críticas.

Na resposta a Suplicy, o Ministro argumenta que a alegada falta de transparência apenas torna “mais questionável procedimento que, mediando o pagamento de multa punitiva fixada em sentença de processo criminal, em última análise sabota e ridiculariza o cumprimento da pena – que a Constituição estabelece como individual e intransferível – pelo próprio apenado, fazendo aumentar a sensação de impunidade que tanto prejudica a paz social no País”.

Tais preocupações não apenas animam debates epistolares, mas já encontram eco no Parlamento. Na Câmara, o Deputado João Campos (PSDB-GO) – autor de proposições com forte conteúdo moralista e polêmico, como a da “cura gay” e a da criminalização da prostituição – correu a dar entrada no PL 7123/2014.

Segundo o texto desse PL, “é vedada, no pagamento da multa aplicada ao condenado, a utilização de recursos, bens ou direitos provenientes de terceiros, pessoas físicas ou jurídicas, personalizadas ou não, entidades sindicais, associações, partidos políticos ou fundações, públicas ou privadas, sejam eles advindos de doação ou qualquer outra forma de ato ou negócio jurídico”.

“O inciso XLV do artigo 5º da Constituição Federal institui o princípio da intranscendência da pena ao dispor que ‘nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido’,” afirma o parlamentar na justificativa para essa nova proposição.

Esse antecedente, no entanto, está longe de levar ao consequente almejado por ele e por Mendes.

O princípio da intranscendência da pena surgiu como forma de proteger terceiros que nada têm a ver com o crime de que o réu é acusado. É bom lembrar que ele remete a um tempo no qual as penas não recaíam apenas sobre os réus condenados, mas também aos seus familiares, amigos e descendentes de muitas gerações.

Trata-se, assim, de uma forma de proteger terceiros alheios à prática do crime contra o exercício – a esta altura já considerado ilegítimo – do poder do Estado. Jamais uma forma de blindar os condenados por crimes de qualquer forma de apoio desses terceiros no cumprimento das penas que lhe foram impostas.

Quem pretende defender “a dignidade da lei penal e do Poder Judiciário” deveria se preocupar essencialmente sobre se as penas de multa cominadas na ação do “mensalão” estão ou não sendo cumpridas, pois a “sensação de impunidade” de que fala Mendes vem da tendência contrária: são os inúmeros réus do país, no cível e no criminal, que transferem e ocultam patrimônio a fim de que jamais possam ser responsabilizados.

“Perquirir” inquisitorialmente de onde os réus obtêm dinheiro para cumprir uma obrigação penal – e, pior que isso, tentar proibir que estes procurem levantar dinheiro para fazê-lo por meio de doações ou mesmo de empréstimos (“qualquer outra forma de ato ou negócio jurídico”), como quer Campos – é colocar “a lei penal e o Poder Judiciário” em segundo plano, em nome de outros interesses, como o da estigmatização permanente dos condenados. Esse, sim, o verdadeiro fantasma que as reformas penais do século XVIII, em vão, tentaram enfrentar.

Afinal, enquanto for possível dizer que esses réus “devem” à sociedade, será sempre mais fácil justificar o porquê de alguns deles cumprirem pena em regime mais gravoso do que o que foram condenados – sem ter acesso, por exemplo, ao trabalho externo  –, ou o porquê de outros condenados no mesmo processo ainda estarem soltos, ou ainda o porquê de processos idênticos ao do “mensalão” estarem sendo desmembrados, ao contrário do que ocorreu nesta ação.

O que faz “vaquinhas” de apoio aos petistas “profanas” aos olhos de gente como Mendes, em suma, é o fato de que, assim como a sua correspondente da música de Caetano, elas e seus colaboradores ousaram “por os cornos pra fora e acima da manada,” rompendo com a expectativa de exclusão permanente dos réus da vida pública e política que muitos depositavam sobre aquele processo. Sobrou, como na música, uma boa dose de leite derramado na cara dos caretas. É leite bom, porque consistente com princípios fundamentais ao progresso histórico das punições. Ainda que alguns sejam ou tenham se tornado caretas demais para conseguir compreendê-lo.

***

Em tempo:

Em nome de amizade antiga com Miruna Genoíno, que conheceu durante sua graduação na USP, o autor deste artigo emprestou à família desta algumas horas de sua força de trabalho para ajudar a gerir a caixa de e-mail pela qual os doadores enviavam comprovantes, além de dados como RG e CPF.

Além de apagar os quatro ou cinco e-mails ofensivos recebidos, a tarefa que lhe foi incumbida consistia em montar uma planilha com os nomes, valores e dados pessoais dos doadores para instruir as devidas prestações de contas. Era ainda o começo da “vaquinha”, mas apenas naquele dia o saldo apurado foi de quase R$ 30 mil. A média das doações foi de R$ 294, e os doadores envolviam desde militantes humildes, que enviavam comprovantes de R$ 1,00 por “Lan Houses”, até políticos de partidos da oposição.

Com base, portanto, nesse conhecimento de primeira mão, somo-me ao Senador Suplicy, atestando a higidez da campanha e o caráter absolutamente sincero e solidário das doações ao ex-parlamentar e ex-presidente do PT.

***

(*) PhD em Direito, Política e Sociedade pela Northeastern University (EUA). As opiniões expressas neste artigo são de caráter estritamente pessoal. Participa dos "Diálogos Lyrianos". Este texto foi originalmente publicado no Blogue da Carta Maior, na Seção Princípios Fundamentais, da qual o autor é o editor.

ELA, uma resenha instigante

José Carlos Moreira da Silva Filho, Professor da PUC-RS; vice-presidente da Comissão de Anistia; prepara o volume 7, de O Direito Achado na Rua (Justiça de Transição)
 
Tenho visto algumas sinopses sobre o filme ELA, que estreou na sexta aqui em POA. Creio que elas induzem o leitor a fazer uma ideia equivocada do que verão. Indicam que o filme trata de um homem solitário que se apaixona por um computador e que o cerne do filme é a questão da cada vez maior interação tecnológica.

Fui ao cinema esperando um filme sombrio permeado por uma esfera emocional deprimente e pervertida. Por um lado, foi bom ter ido com esta expectativa, pois a minha surpresa foi total. Trata-se de um filme belíssimo, lírico, que extrai leveza das profundezas.

Theodore, o personagem interpretado por Joaquim Phoenix, não se encaixa no estereótipo do homem solitário que recorre ao bate-papo virtual ou às relações sexuais telemáticas e telefônicas. Ele não é uma pessoa reclusa que não tem amigos, ou que começa a suar frio só de pensar na possibilidade de encontrar com alguma possível namorada de carne e osso. Theodore é uma pessoa inteligente, espirituosa, que conversa simpaticamente com as pessoas, que faz aquelas piadinhas de "small talk" naturalmente.

Ele simplesmente vive a ressaca de uma separação. Foi casado por muito tempo com Catherine, namorada do tempo de Faculdade, com quem teve uma filhinha. Nos flashs que vão sendo distribuídos ao longo da película, surgem momentos de grande erotismo, descontração, cumplicidade, intimidade. A separação não se deu por uma traição ou algo assim. Simplesmente, aconteceu. Natural que Theodore hesite em se envolver logo depois em um relacionamento (o enredo do filme se desenrola no período que compreende 1 ano após a separação), o que não o impede de ter pequenos flertes e até algumas transas, inclusive por telefone com uma mulher desconhecida (em uma cena até engraçada logo no início).

O grande diferencial do enredo é a sensibilidade e lirismo do personagem. Não é à toa que a profissão de Theodore consiste em escrever cartas de amor para outras pessoas assinarem e enviarem aos alvos dos seus afetos. Em suas cartas, por mais que elas não estejam representando diretamente relacionamentos vividos por quem de fato as escreve, Theodore consegue transmitir sentimentos simples, genuínos e tocantes, que encantam os seus colegas de trabalho, e editores interessados em publicá-las com o título de "Letters from your life".

Em uma Los Angeles do futuro, representada na fotografia do filme com paisagens urbanas matizadas por cores e luminosidades que parecem ter saído de um filtro do Instagram, a interação entre pessoas e dispositivos eletrônicos e telemáticos é cada vez maior. Os computadores atendem por comando de voz, podendo ser acionados por pequenos dispositivos móveis com microfones e atrelados a um fone de ouvido, podendo organizar pastas, redigir e enviar e-mails, fazer correções em textos, entre outras tarefas. Chega-se a um ponto em que é lançado no mercado um sistema operacional, OS1, que como diz a propaganda: "É mais do que uma inteligência artificial, é uma consciência". Outro atributo divulgado é que se trata de um sistema marcadamente intuitivo que interage e se adapta de maneira humana com o seu usuário. Theodore decide experimentar e opta por um sistema com voz feminina, a voz de Scarlett Johansson. A atuação da Scarlett, mesmo sem ter um corpo no filme, é incrível. Já nas primeiras conversas com Theodore, eu também fiquei cativado pelo tom ao mesmo tempo sexy, engraçado, inteligente e confortável da voz da Samantha, nome que o próprio sistema se deu logo que Theodore lhe perguntou como se chamava (após uma vertiginosa pesquisa de dois centésimos de segundo em um livro que listava milhares de nomes para bebês).

Os diálogos que vão sendo construídos na interação entre Theodore e Samantha são preciosos. Eles vão tecendo a atmosfera ideal para que brotem a poesia e o pensamento (as cartas de Theodore, as reflexões sobre a existência e a sua natureza encarnada), o humor com intimidade (interpretações sobre casais desconhecidos pinçados em lugares públicos), a música (as belas composições que vão sendo feitas ao piano por Samantha, na medida em que ela vai se envolvendo com Theodore, na tentativa de registrar momentos indescritíveis, como a tarde de sol na qual Theodore a leva á praia munido do fone de ouvido e de um dispositivo ótico de bolso), o erotismo (as transas virtuais, as palavras sedutoras, os suspiros, os sons da respiração ofegante, os orgasmos, quantas são as relações sexuais que mesmo com o contato corporal são tão distantes e frias...).

O nível de intimidade atingido na relação entre Theodore e Samantha contrasta com a frieza das transas por telefone com pessoas de carne e osso, ou com a impessoalidade dos "blind dates", como exemplifica um jantar que Theodore tem com uma pretendente sugerida por seus amigos e convidada por email. A existência de uma máquina como Samantha é uma ficção sobre uma máquina que se torna humana. Penso que o foco verdadeiro do filme é o humano que sentimos, difuso entre atores improváveis do mundo, sejam pessoas desconhecidas, uma bela paisagem, um livro que nos emociona, uma música que nos toca. O importante é entrar em contato com este manancial inesgotável que temos em sentir a beleza e a plenitude, a serenidade de um conforto conosco mesmo, a disposição em conviver com os outros a partir dela, de cultivar as amizades (fica claro que a relação dele com sua vizinha, vivida por Amy Adams, é de uma intimidade amiga, não erótica, como insinuam algumas críticas e comentários sobre o filme), os amores, as compaixões.

Não vejo nenhum problema em que a tecnologia possa ser ela também, como de fato é, mais um meio para que isto se expresse. As pessoas nas ruas não deixam de se comunicar por causa dos seus smartphones, elas já não se comunicavam antes deles. A solidão da vida contemporânea vem de algo muito mais profundo e está associada com o conceito moderno de progresso e a sua lógica justificadora dos custos humanos, que deixa em segundo plano, as dores, os sonhos, os projetos, os afetos. Lógica que permeia as tendências políticas majoritárias, sejam de direita ou de esquerda, como Walter Benjamin, de modo tão sensível e também lírico captou em seus escritos.

Os sentimentos compartilhados nas cartas de Theodore ou nas conversas de Samantha são reais, pairam no ar que respiramos, tecem o mundo que vivemos e que nos constitui. Chico captou bem em uma linda canção que compôs: "Futuros amantes quiçá se amarão sem saber, com o amor que um dia guardei pra você". A subjetividade vai além de uma consciência fixa e ensimesmada, ela é um movimento, que perpassa nossa memória, nossas experiências, nossa sociedade, nosso planeta.

Não escrevo mais para não turvar as impressões de quem queira assistir o filme, mas termino recomendando fortemente que o façam e registrando que eu também me apaixonaria pela voz da Scarlett Johansson!

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

O terrorismo da impaciência



Texto publicado originalmente no Blog Carta Maior (Seção Princípios Fundamentais)

Fabio de Sá e Silva (*)
Mídia Ninja
A trágica morte do cinegrafista Santiago Andrade, vítima de rojão disparado em protesto no Rio de Janeiro, gerou súbita movimentação no Congresso Nacional. O Senador Romero Jucá (PMDB-RR) aproveitou a comoção para tentar impulsionar, na agenda de votações, o projeto de sua autoria que tipifica o crime de terrorismo.
O projeto define terrorismo como “provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa ou tentativa de ofensa à vida, à integridade física ou à saúde ou à privação da liberdade de pessoa”. As penas previstas vão de 15 a 30 anos, ampliadas se houver mortos em consequência do crime ou se o crime for praticado por explosivo, fogo ou arma química.
Apesar de ensejar pedidos de cautela do Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, o gesto atraiu apoio e simpatia de parlamentares de diversos partidos da base, inclusive no PT.
“Mediante o acontecido com o cinegrafista, que foi covardemente assassinado, acredito que o Senado tem que responder, não só para esse fato, mas para alguns que já aconteceram e outros que vão acontecer se nada for feito,” disse o Senador Paulo Paim (PT-RS). A aprovação dessa lei dará um “sinal concreto” à sociedade de que crimes como a morte de Santiago serão punidos “com mais de 30 anos de cadeia,” corroborou o Senador Jorge Viana (PT-AC).
A esta altura de nossa mais recente, mas ao mesmo tempo mais longeva experiência democrática, o script dessas movimentações já é bastante conhecido na sociedade brasileira.
Eventos críticos, ainda mais quando envolvem vítimas fatais, se apresentam como oportunidades únicas para ganhos políticos que podem ser preciosos em um ano eleitoral. Basta trabalhar (e, em especial, ser visto trabalhando) pela aprovação de lei que cria um novo crime ou prevê penas mais duras para crimes já existentes: a “resposta” de que falavaPaim, o “sinal concreto” à sociedade de que falava Viana.
“O Brasil assinou várias convenções e tratados internacionais, nos quais assumiu o compromisso de combater o terrorismo. Por isso é preciso defini-lo”, é o que diz Jucá.
É verdade. Mas tais convenções e tratados têm como objetivo criar condições para combater redes internacionais ou transnacionais de terrorismo, jamais gerir conflitos locais, como os que tiveram início no Brasil a partir dos protestos de junho e que tiveram na morte de Santiago o que parece ser o seu ponto mais crítico. E é improvável, ademais, que o conceito de “terrorismo” ajude a gerir bem esses conflitos. Até porque, em geral, eles passam longe de práticas “terroristas”.
Viana enxerga na morte de Santiago um episódio que se encaixaria bem na definição proposta por Jucá. “Foi usado um explosivo. Não é um rojão de festa junina. Foi usada uma bomba,” argumenta o parlamentar.
Mas alto lá. O que o projeto de Jucá define como terrorismo é a conduta de “provocar ou difundir terror ou pânico generalizado”. Há que haver, portanto, uma intenção clara de “aterrorizar”.
Quem quer que assista os vídeos que registram o disparo do rojão contra Santiago concordará que, naquele caso, não era disso que se tratava. O disparo do rojão (ato irresponsável e digno de censura moral, política e jurídica, é bom que se registre) se deu muito mais como desdobramento de um conflito físico entre manifestantes e forças de ordem do que como ação voltada consciente e/ou objetivamente a “causar terror ou pânico”.
O que a tipificação do terrorismo tem feito em toda a parte, por sua vez, é criar uma segunda classe de indivíduos – que, a esta altura já nem merecem mais o título de cidadãos –, aos quais, posteriormente, outras leis e políticas públicas conferem tratamento diferenciado, despido dos direitos e garantias mais fundamentais a qualquer experiência de democracia constitucional.
É o que se vê nos Estados Unidos, onde a “guerra contra o terror” impulsionada pelo 11 de setembro passou a justificar medidas e políticas antes inconcebíveis, como prisões por tempo indefinido em Guantánamo ou a invasão da privacidade de outros chefes de Estado sobre os quais não há qualquer razão objetiva para classificar de terroristas ou aliados do terrorismo.
Têm razão, portanto, os que veem com preocupação a tentativa explícita de se vender a tipificação do terrorismo como “resposta” ao trágico incidente envolvendo o cinegrafista Santiago. Pois, além de inadequado para gerir o problema específico que motiva a sua criação, o tipo penal proposto por Jucá tende a ser funcional para segregações e perseguições que nem a imaginação consegue limitar, como a história recente da “maior democracia do mundo” bem está a demonstrar.
Enquanto isso, apesar de suas imperfeições, as instituições vigentes vão buscando dar conta do problema. Dois suspeitos de terem disparado o rojão estão presos, um deles acusado de crimes que podem somar 35 anos de prisão. São 5 a mais que a pena máxima do crime de terrorismo pretendida por Jucá. As versões que aparecem para o crime e para as condições de participação desses suspeitos, defendidos, aliás, por um advogado bastante controvertido, têm sido rápida e livremente escrutinadas pela imprensa e por autores da blogosfera.
Será mesmo que, como diz Viana, é preciso algum sinal concreto adicional?
O quadro que vivemos requer outro tipo de postura, especialmente das lideranças políticas do campo progressista.
O PSOL andou bem ao se desvincular expressamente dos manifestantes que aderem às táticas Black Block, sinalizando para o compromisso com as instituições democráticas que deve ser pressuposto de qualquer partido político sério. Grupos e organizações autônomos, em especial de jovens, devem seguir o exemplo, ainda que para isso tenham que abrir mão de slogans que indiquem disposição para posturas autoritárias, como foi o caso do “não vai ter Copa”.
O governo federal não deve tergiversar quanto aos pedidos de cautela formulados por Cardozo mas, principalmente, deve coordenar esforços para garantir o direito ao protesto pacífico, com o repúdio e a responsabilização de ações violentas por parte das polícias. E eventuais excessos devem ser punidos, mas com o respeito às garantias do devido processo legal.
O compromisso com a democracia convida-nos a reiterar, e não a subverter os princípios sobre os quais se assenta o nosso projeto sempre inacabado de constituir uma sociedade “livre, justa e solidária”. Frente a esse desafio, o afã e o destempero podem representar o que Kafka, em seus Vinte e Oito Aforismos, denominou como o único pecado capital: “a impaciência. Devido à impaciência, fomos expulsos do Paraíso; devido à impaciência, não podemos voltar”.
***

(*) PhD em Direito, Política e Sociedade pela Northeastern University (EUA) e Professor substituto de Teoria Geral do Direito da Universidade de Brasília. As opiniões expressas neste artigo são de caráter estritamente pessoal.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

UNDB (São Luis - MA) realiza solenidade de entrega do Prêmio João Maurício Adeodato: palestra “Direito achado na rua”, a ser ministrada pelo Prof. Dr. José Geraldo de Sousa Júnior

Notícias | Geral

Direito Achado na Rua

UNDB realiza solenidade de entrega do Prêmio João Maurício Adeodato
Direito Achado na Rua
O Prêmio João Maurício Adeodato, concurso de papers jurídicos promovido pela Coordenação do Curso de Direito da UNDB, promete uma grande noite de debates e premiação, no próximo dia 25 de fevereiro, às 18h, no Teatro Maria Izabel Rodrigues.
Em sua nona edição, além de apresentar os seus vencedores, o Prêmio contará com a palestra  “Direito achado na rua”, a ser ministrada pelo Prof. Dr. José Geraldo de Sousa Júnior, iminente jurista brasileiro, criador da linha de pesquisa O Direito Achado na Rua e ex-reitor da Universidade de Brasília.
O Prêmio é mais uma demonstração do compromisso da UNDB com a prática efetiva da pesquisa jurídica e o estímulo à produção de conhecimento por seus alunos, além de uma homenagem ao jusfilósofo pernambucano Prof. Dr. João Maurício Adeodato, um dos mais renomados autores do cenário jurídico atual.
Contamos com a participação de todos os alunos e professores no evento!
Conheça mais um pouco sobre a linha de pesquisa Direito Achado na Rua:
Blog da linha de pesquisa: http://odireitoachadonarua.blogspot.com.br/
Vídeo: http://www.youtube.com/watch?v=1zOhxb7WyVg&feature=share

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Entrevista Néviton de Oliveira Batista Guedes

Entrevista do professor e Desembargador Federal (TRF 1a. Região) Néviton de Oliveira Batista Guedes, publicada na Revista  dos Estudantes de Direito da UnB:
"(...) REDUnB: O senhor foi membro do Centro Acadêmico dos Estudantes de Direito, do Diretário Central dos Estudantes Honestino Guimarães e do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da UnB. Como era o movimento estudantil dessa época, mormente marcado pelos debates e trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, bem como a entrada em vigor da própria Constituição Federal? Como a sua participação na política estudantil ajudou na sua formação?
Bastante, eu considero isso uma das coisas mais importantes. Se eu tivesse oportunidade de aconselhar — e eu sempre aconselho aos jovens-, eu diria que esse é um aspecto-a participação na política estudantil - essencial na vida de qualquer aluno e, sobretudo, de um aluno que faça o curso de Direito. Porque eu não concebo um aluno de Direito que esteja alheio ao que acontece em torno de si, seja no âmbito da faculdade, seja no âmbito da universidade, seja no âmbito da sua cidade ou do seu país. E a experiência me comprovou essa ideia de que essas atividades extracurriculares, sejam em um grupo de extensão, em um projeto de extensão, seja em um grupo de pesquisa, em um projeto de pesquisa, sejam na política estudantil, é que ao final marcam os grandes alunos.
Hoje olhando para o passado, quase todos os colegas que encontraram sucesso na profissão, de uma forma ou de outra, tiveram atividades além das atividades meramente curriculares. Isso também não é uma regra que não tem exceção, certamente eu tenho excepciona is amigos, colegas que tivera m grande sucesso sem jamais terem se envolvido em qualquer atividade político-acadêrnica, ou de extensão. Mas a regra demonstra isso: que esse envolvimento é testemunha de uma disposição de espírito, já que, ao demonstrar que você quer participar de um projeto de extensão, de um centro acadêmico, você está demonstrando algo: que você quer mais, que você se compromete com aquilo que você está fazendo. Aquele aluno que passa pelo curso de Direito e só no curso de Direito, diz pouco sobre a experiência que está tendo. O professor Roberto Lyra Filho tinha uma frase muito famosa que dizia: "quem só sabe Direito nem Direito sabe", e isso resume tudo o que eu quero dizer: o aluno de direito tem que demandar necessariamente uma ação mais ampla, política, filosófica e teórica. E a minha participação na política estudantil foi muito importante para minha formação, ainda que eu não visse isso na época, pois o envolvimento era essencialmente político. Não havia um sentido utilitário tão próximo, no sentido de que "eu vou utilizar disso porque isso vai me dar uma boa formação", coisa que, aliás, ocorre em muitas universidades do mundo, ou seja, essas instituições estimulam a ou exigem dos bons alunos atividades extracurriculares. Aqui era comum a crítica contra a participação na política estudantil ou atividades extracurriculares.
Na verdade, percebi de minha experiência algo muito diferente: o espírito do homem público, do jurista é isso também (participação política), e isso com o mesmo grau de importância que a formação de disciplinas dogmáticas. A época que eu estive na universidade era uma época de transição, nós estávamos saindo do regime da ditadura militar, tinha acabado o último governo militar, do presidente-general João Figueiredo, e entrando em um período democrático, com a eleição do presidente José Sarney, na verdade do Tancredo Neves, que morreria sem tomar posse. O meu período, tanto no DCE quanto no Centro Acadêmico, foi o período central da discussão das eleições diretas, da emenda que não conseguimos aprovar. Houve mobilização popular, época em que foi decretado estado de emergência, tendo à frente o general Newton Cruz. Então tudo isso nós vivíamos, mas não era um período propriamente de ditadura, havia já uma ampla liberdade, nós dizíamos o que queríamos, e havia um projeto de construção de democracia que se chocava com aquilo que aprendíamos em sala de aula. Havia todo um arcabouço institucional, legal, uma constituição que se construiu na ditadura, e que impedia, precisamente, o nascer de uma nova democracia. Essa também é a senda da própria constituinte, da nova constituição.
Os alunos que estavam na Universidade de Brasília, naquele momento, que participaram do centro acadêmico, que participaram do DCE, tiveram oportunidade de participa r de tudo isso. Pra mim foi muito estimulante, engrandecedor. O fato de estarmos no DCE e também no Centro Acadêmico levava-nos a uma
busca que normalmente não era com um ao aluno, quer dizer, além do curso de direito, eu fiz boa parte do curso de filosofia, eu fiz muitas disciplinas do curso de sociologia, algo que, à época, o currículo permitia. Eu não sei se hoje fecharam mais o currículo de vocês. Na minha época, basicamente a gente tinha poucas disciplinas obrigatórias, e como disciplinas optativas você podia fazer o mundo, então a minha experiência com política estudantil foi sobre todos os aspectos, e, por incrível que pareça, mesmo para a minha formação de estudioso do direito, foi excepcional. Muito do que eu penso, autores que depois acabaram tendo importância e que muitos hoje reverenciam, não eram comuns na órbita do Direito, como Niklas Luhmann, ou Júrgen Habermas. Naquela época se a gente quisesse travar contato com esses autores, tínhamos que buscar em outros cursos (filosofia ou sociologia), à exceção do professor José Geraldo, que até pela formação dele nos colocava em contato com eles. Dentro do curso de direito isso era completamente excluído. Aliás, mesmo autores do direito mesmo, como Robert Alexy, você não tinha contato com eles. Era comum você ter contato com eles através de professores da filosofia e da sociologia, e não ter contato com eles, salvo um ou outro curso no Brasil, como a pós-graduação lá em Santa Catarina ou na DSP, graças ao Warat, o professor Tércio e José Eduardo Faria na USP,mas isso era incomum. A formação na minha época era estrita mente dogmática e por dogmático aqui eu quero dizer um ensino voltado pura e simplesmente para a compreensão dos textos legais. Basicamente isso. Numa época em que
essas leis eram feitas, basicamente, por um poder autocrático, você compreende perfeitamente porque nasceram movimentos como o direito alternativo, como o direito achado na rua, que tinham como proposta comum, não obstante suas diferenças, precisamente um olhar de transformação do direito.
REDUnB: Durante sua graduação, o senhor se envolveu nos debates de uma linha teórica e prática que ainda hodiernamente possui relevância dentro da Faculdade de Direito, o ''Direito Achado na Rua" formulado por Roberto Lyra Filho. Como o senhor aprecia essa participação? A seu parecer, quais são as limitações e pote n ciai idade s dessa linha de pesquisa no contexto atual?
À época, quando nós estávamos dentro da universidade e do curso de Direito, isso envolvia um pouco de academia e um pouco de política estudantil, então nós formamos um grupo que acabou disputando o Centro Acadêmico e sendo vencedor, nós formamos acho que 3 ou 4 diretorias, chamava-se quid iuris? ("Qual é o Direito?"). Eu me lembro que o professor José Geraldo lançou uma crítica bastante acerba com relação à escolha do nome e isso dentro até de uma discussão na aula de filosofia, salvo engano do Direito, porque ele dizia que a escolha havia sido errada, porque, dizia ele, "se vocês querem discutir o direito posto, ou seja, se vocês querem colocar sob discussão o direito como um todo, por um direito que, segundo o seu olhar concretize justiça, a sua pergunta não se volta a partir do direito posto, é uma pergunta de fora, e a pergunta então que vocês deveriam ter é quid ius? "Qual a resposta de justiça?", qual a resposta, qual o direito no sentido filosófico, ma is justo, o direito essencial. Se vocês querem perguntar qual é a resposta a partir do direito posto, urna pergunta, digamos, kelseniana, assím a pergunta de vocês deveria ser quid iuris?, que era o nome do grupo. E de fato, a nossa vocação, a nossa preocupação era outra, era muito mais vasta, ninguém estava formando um grupo para buscar respostas a partir do direito posto, até porque isso era precisamente o ponto contra o qual nós lutávamos. A resposta, ou melhor, a pergunta correta teria sido "quidius?", a pergunta mais vasta, e o professor José Geraldo sempre mais amplo, mais fundamental, chegou a colocar a velha questão do conflito das faculdades, em que Kant teria perfeitamente respondido isto, "olha, se a pergunta é 'qual a resposta de Direito?' Esse quem tem que responder é a Faculdade de Direito, se a pergunta é 'qual é o direito do ponto de vista da justiça?' isso é uma resposta que a filosofia tem que dar". Então, o nosso grupo, aqueles que formavam essa ideia, teve como aporte teórico precisamente as preocupações do professor Roberto Lyra Filho, que na época já tinha saído da faculdade, quando nós efetivamente formamos o grupo. Em 1986, o Lyra tinha ido para, salvo engano, dar aula em São Paulo, mas tinha aqui um dileto discípulo seu, que era o professor José Geraldo, que naquele conjunto de professores era o que tinha uma abertura maior. Hoje em dia a Faculdade de Direito tem um amplo leque de professores que tem uma visão mais aberta do direito, mas naquela época era algo bem mais restrito. Então, se você me pergunta, o quê que isso importou na época, importou compartilhar ideias que confrontavam o status quo. Passados mais de 20 anos, o engraçado é que essa proposta do "direito alternativo" e do "direito achado na rua", na minha opinião, acabou sendo vítima de suas próprias virtudes. De fato, saindo amplamente vitoriosa,
essa proposta, com o passar do tempo, com a promulgação da Constituição de 88, que incorporava todos os valores de democracia e se mostrou eficaz, hoje eu não posso recusar aplicação ao Direito, eu não posso propor confrontar um Direito-como fazia m os movimentos alternativos-que concretiza precisamente os valores com os quais eu concordo e pelos quais nós lutávamos. Há um momento de lutar, um momento de reformar, um momento de consolidar. Eu acho que, passados 20, 30 anos, se nós tivéssemos mantido o mesmo sistema jurídico, a mesma institucionalidade, a mesma autocracia, a mesma ditadura, o caso seria ainda de levar adiante aquelas bandeiras; mas hoje, isso perdeu o sentido. Na minha opinião, o jurista democrático,o jurista que tem compromisso com a justiça, ele tem que fazer a afirmação desses valores hoje positivados na Constituição. Tanto é que o meu maior problema hoje, aquilo que me motiva, nos meus estudos de direito constitucional, teoria da constituição, teoria jurídica, é exatamente buscar padrões de racionalidade, padrões de pré visibilidade, e de concretização desses princípios. Então, eu acho que a nossa mobilização teve seu momento, teve grande importância, mas eu não sei se eu me inspiraria pelo
mesmo movimento hoje"
Para ler a entrevista completa, acesse http://periodicos.bce.unb.br/index.php/redunb/article/view/10099

Cincos Ideias Falsas Sobres as Praxes ("Trotes")*


                                     Rui Bebiano
 
Sempre que as praxes académicas são noticiadas e debatidas, são-no pelas piores razões. Mas nunca como agora se tomaram tão visíveis, devido às repercussões públicas dos trágicos acontecimentos da praia do Meco. Muito tem sido dito e escrito a propósito do tema, pelo que me vou cingir a aspetos menos abordados, subinhando cinco ideias falsas projetadas principalmente pelos que defendem a sua manutenção, ainda que regulada.
           
A primeira ideia falsa define as praxes como herança e expressão de uma tradição. Eric Hobsbawm mostrou como a "invenção da tradição" é uma experiência que integra mais inovação que conservação. Nesta direção, elas são periodicamente alteradas, subvertendo os seus próprios códigos. Veja-se, em Coimbra, a forma como foram recentemente criadas "tradições" inexistentes: trupes diurnas, punições "debaixo de telha", a inclusão como território de tais da Rua Larga até do interior de algumas faculdades, a extensão das praxes a praticamente todo o ano letivo e a inovação da "noite dos horários", ou, pasme-se, de um Halloween coimbrão.
A segunda ideia falsa tem sido construída em redor do mito de uma simpatia popular a respeito das atuais praxes. Quem ouve a generalidade das populações que moram nas cidades com uma universidade, ou, mais ainda, que habitam a proximidade dos seus "campi", sabe como tais práticas são, sobretudo nos últimos anos, particularmente mal recebidas. Dada a ampliação das práticas vexatórias e o alargamento incontrolado dos períodos e dos espaços da praxe, atualmente até professores universitários ou ex-alunos que no passado foram seus adeptos têm repudiado essas manifestações.

A terceira é a ideia de uma aceitação entusiástica por parte dos "calores". É verdade que ela até ocorrerá entre boa parte deles, mas é muito difícil falar de uma adesão livre quando esses alunos são colocados perante um cenário de inevitabilidade. Sabem que se tentarem resistir serão ostracizados, "desintegrados", quando não coagidos psicologicamente ou mesmo fisicamente. Ou, pior, tudo aceitam na expetativa de no ano seguinte serem eles a coagir. Existe pois "unanimidade", bem como uma rejeição da liberdade de divergir, que são impostas pelo medo e pela coação.
A quarta ideia falsa assenta no suposto prestígio que estas práticas conferem aos cursos e às escolas nas quais têm lugar. Uma das modalidades recorrentes consiste em proclamar que um dado curso é "melhor" que outro. Ao mesmo tempo, porém, os mesmos alunos que o fazem abandonam frequência das aulas e os lugares de estudo e de sociabilidade inter-cursos, para se dedicarem, quase a tempo inteiro, a mostrar essa suposta «superioridade», mais próxima de uma gabarolice socialmente desconsiderada que do natural orgulho de quem faz um trabalho bem feito e prestigiado.
Mas a ideia falsa mais pesada, a quinta, construída em redor das razões que leva um grande número de alunos a aceitar tais práticas. O argumento da «integração» ou da «preparação para a vida» é invocada da pior forma: ele impõe o triunfo da hierarquia e do conformismo sobre o espírito Coimbrão e o direito à diferença, sublinhando uma aceitação cega da autoridade e bloqueando reconhecimento da liberdade, fundamental num ambiente universitário, de cada um escolher o que quer ou não fazer, pensar, parecer ou dizer. Esse padrão de bloquei sempre conteve a lógica mais profunda totalitarismo.
Mesmo sem proibir as praxes, é pois possível formalmente as suas práticas mais degradantes, cujas dinâmicas começam no simples vexame e depois escala em violência. Até em Coimbra considerada «exemplar», como lugar de uma praxe menos rígida, tal tem acontecido nos últimos tempos. O Estado, as universidades, as associações de estudantes, os partidos políticos e as suas organizações de juventude, até famílias, podem aqui ter um papel pedagógico e regulamentador. Competirá depois aos próprios estudantes perceberem que existem atividades bem mais emocionantes, arejadas, solidárias e libertadoras.

* Copiado do sítio do CES - Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra