segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Carta da Nicarágua: LA REVOLUCIÓN

Ísis Menezes Táboas[1].

El Crucero /Nicarágua, outubro de 2016.


A estrada é de terra e a mata, fechada. Quanto mais caminhava, mais ameno o clima ficava, em cima da montanha havia brisa fresca, apesar do sol quente. A placa indicava que chegávamos à Comunidad Santa Julia del Crucero, de longe vi que a comunidade estava em festa. Decorada com bexigas verdes e lilás e faixas de boas-vindas, a Cooperativa de Mulheres Glória Quintanilla se apresentou como espaço político em que jovens, adultas e idosas da comunidade se organizam, buscando alcançar a soberania alimentar com projetos que promovem a agroecologia e estabelecer relações igualitárias entre mulheres e homens da comunidade, enfrentando relações de violência e de opressão.
Ao longo do dia, elas nos apresentaram suas construções, uma escola que conta com duas professoras e atende a trinta e cinco crianças pequenas da comunidade, suas casas e, especialmente, suas lavouras. A produção é desenvolvida com sementes crioulas, sem agrotóxicos, com variedade na plantação de alimentos saudáveis e diversas técnicas para o armazenamento de água da chuva. A comunidade não tem água encanada, possui apenas um poço feito durante a ditadura Somozista. Há um projeto, parceria entre a Cooperativa de Mulheres e a ATC (Asociación de Trabajadores del Campo), que já arrecadou parte do valor para a construção de um novo poço.
Esta é uma das montanhas onde acampavam guerrilheiras e guerrilheiros na época clandestina da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), assim chamada desde 1963, quando a Frente de Libertação Nacional se inspirou nas ideias anti-imperialistas de Augusto César Sandino, general guerrilheiro do Exército Defensor da Soberania Nacional composto por camponeses que combateram fuzileiros navais estadunidenses de 1927 a 1932. Dois anos depois de vencerem os marines, General Sandino foi assassinado pela Guarda Nacional, financiada e treinada por norte-americanos, a mando de Anastásio Somoza García.
Na década de 1970, neste acampamento nas montanhas de El Crucero, os guerrilheiros e as guerrilheiras inspiradas pela Revolução Cubana estudavam marxismo-leninismo, e treinavam para luta armada organizadas pela clandestina FSLN, que teve o protagonismo e o comando feminino em diversas batalhas.
Dora Maria Tellez comandou a Frente Ocidental do exército guerrilheiro e foi a “Comandante Dois” do ataque ao Palácio Nacional. Nora Astorga foi a responsável pela emboscada que levou à morte um dos mais odiados torturadores da Guarda Nacional de Somoza. Doris Tijerino, com 23 anos, de classe média, compunha as fileiras da FSLN e assinou o manifesto “Sandino sim, Somoza não” como integrante do Diretório Nacional e foi descrita pelo jornal como traidora da sua classe e sexo, “comunista fanática, não teve escrúpulos em oferecer sua intimidade feminina como elemento de escândalo”.

Em Ticuantepe, na Escuela Obrera Campesina Internacional - Francisco Morazán, eu ouvi depoimentos de algumas senhoras que na juventude lutaram contra a Ditadura de Somoza, uma delas contou como perdeu o braço em uma emboscada da Guarda Nacional, outra porque com 12 anos contribuía com a guerrilha, e aos 16 subiu às montanhas. A terceira contou sobre gravidez, parto e maternidade durante a guerrilha. Conheci também como homens da Guarda Nacional que subestimaram a força e a capacidade política e militar das mulheres sandinistas foram enganados e executados por elas; com as mulheres armadas e preparadas para guerrear, as relações de poder com os homens foram alteradas.
 Contaram-me algumas das regras para as guerrilheiras mulheres: aquelas que ficavam nos aparelhos deveriam dormir de calças compridas e botas para fugir rapidamente em caso de ataque; durante a guerrilha, deveriam cortar relações com familiares, companheiras/os e filhas/os que não compusessem a FSLN. Para casais em que ambas/os estivessem na organização, era permitido viverem juntas/os, desde que obtivessem autorização de suas/seus superioras/es. A história é tão viva como suas sobreviventes e faz brilhar os olhos de cada uma que a construiu e, agora, a conta.
No centro de Manágua, ouvi o cantor Carlos Mejía Godoy que, juntamente com seu irmão, criou a Guitarra Armada, uma tática da guerrilha sandinista em que, através de música, passavam instruções militares e informações sobre armas e explosivos para a população majoritariamente analfabeta.
O fato é que na década de 1970, a massa popular nicaraguense se armou contra o regime ditatorial financiado pelo Império Estadunidense, que detinha grande parte das terras nacionais e explorava camponesas/es e trabalhadoras/es urbanas/os. Nas regiões rurais, o índice de analfabetismo era de setenta e cinco por cento e no caso da população feminina tendia a cem por cento; oitenta por cento dos lares não tinham nem água encanada, nem eletricidade. Com a crescente concentração de terras nas mãos de estrangeiros, o povo camponês migrava para as cidades, especialmente para Manágua, onde viviam em favelas de casas de papelão. Nicarágua tinha a mais baixa expectativa de vida da América Central (53 anos) e segundo maior índice de mortalidade infantil.
Essa intensificação da crise capitalista e a violência do regime ditatorial contribuíram com o aumento da revolta popular e a criação de condições concretas para o triunfo a Revolução Popular Sandinista. Em 1979, a FSLN venceu a Guarda Nacional e o povo tomou o poder. Anastásio Somoza, cuja família governava o país havia quatro décadas, fugiu para Miami.
Os anos subsequentes à Insurreição Popular foram de reforma agrária, confisco das terras de estrangeiros e de somozistas, alfabetização da população, reconstrução da história nicaraguense e renomeação de espaços públicos, a partir dos anseios populares. Ao mesmo tempo, foi uma década de bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos e fortes ataques contrarrevolucionários.
No início da década de 90, diante das intensas pressões políticas e econômicas imperialistas, o neoliberalismo ganhou as eleições para Presidência da Nicarágua. Tão logo assumiu o governo, entregou aos estrangeiros as terras que haviam sido confiscadas pelo povo, e rebatizou os espaços com nomes que possuíam antes da Insurreição Popular.
Voltando ao dia em que estive em El Crucero, uma refeição foi gentilmente servida pela Cooperativa. Em um prato verde, eu comi feijão vermelho sentada nas longas e envolventes raízes de uma árvore que me dava sombra. A minha cabeça estava a milhão, recordava cada uma das histórias que conheci nos dias anteriores e sentia a experiência pulsante daquela cooperativa de mulheres na montanha de El Crucero. Em cada colherada eu sentia o gosto irresistível de sonhar com uma outra sociedade, de desconstruir as relações desiguais de poder entre ricos e pobres, homens e mulheres. Cada colherada tinha o gosto da realidade: da relação dialética entre a dor das mulheres que passam cotidianamente por situações de violência e opressão naturalizadas pelo patriarcado e têm seus trabalhos reprodutivos invisibilizados e produtivos super explorados pelo capitalismo, em contraposição à energia feminina, socialista e feminista de resistência, de denúncia das injustiças, de organização e de luta para transformar os espaços políticos, públicos e privados. Desceu em minha garganta o feijão mais denso que já comi, temperado ao sabor da mística feminista, camponesa e popular.
Foi naquela mesma tarde que Lola, a dirigenta da comunidade, foi questionada por uma liderança do Anamuri, organização chilena de mulheres rurais e indígenas, sobre uma possível troca de nome da comunidade, cuja placa na entrada indicava Comunidad Santa Julia (nome dado em homenagem à genitora do ditador Somoza).  Com absurda convicção e um pequeno sorriso entre os lábios, Lola nos explicou que há um projeto de lei municipal para, formalmente, retirar o nome da placa e dos documentos, retornando ao nome escolhido pelo povo logo que triunfou a Insurreição de 1979. Com voz firme e segura, a dirigenta termina: el nombre de esta comunidad es La Revolución!




[1] Integrante de O Direito Achado na Rua, doutoranda em Direito, Estado e Constituição na Universidade de Brasília. Participante da III Escuela Continental de Mujeres Lideresas de la CLOC- La Via Campesina como representante do Movimento de Mulheres Camponesas- MMC. 

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Cartas de Oviedo: Día de la Resistencia Decolonial, e de chuva


Por Patrícia Vilanova Becker*

Oviedo, 13 de outubro de 2016

Está chovendo em Oviedo. Agora sim posso escrever. Nas últimas semanas parecia que a cidade estava se negando a chorar. As tardes eram de céu claro com um sol acolhedor. Ontem Oviedo resolveu chover, como dizem que sempre chove por aqui. Ontem era feriado nacional. Não apenas em Oviedo que chove, mas em toda a Espanha. Era o 'Día de la Hispanidad'. Uma festa nacional que se celebra com base na data de 12 de outubro de 1492. Esta mesmo, a chegada de Cristóvão Colombo na América, quando confuso pensava que estava no Japão. Sorte dos japoneses. A terra era outra. O sangue nosso. Para ser marcado e derramado para sempre. Segundo essas coisas que a gente encontra perdidas pela internet, a data do Día de la Hispanidad foi precedida de uma outra comemoração: "Fiesta de la Raza Española". Parece que um sujeito chamado Zacarias de Vizcarra propôs em 1926 que a festa, estabelecida em 1918, mudasse de nome. De “raza” para “hispanidad”. Parece que foi feita a sua vontade. E aqui estamos. 

Dizem as fontes difusas que a data também coincide com a coroação canônica de La Virgen de Guadalupe, como Reina de la Hispanidad em 12 de outubro de 1928. Parece que La Virgen del Pilar, patrona das cidades de Aragón e Zaragoza, também tem algo que celebrar em 12 de outubro. Também foi o dia em que, em 1943, a Cidade Universitária de Madrid foi reinaugurada após ser destruída durante a Guerra Civil. Oficialmente, o termo “raza” imperou até 1958, quando a ditadura franquista reconheceu por decreto o nome de Dia de la Hispanidad. Em 1987, outra vez a festa mudou de nome. Passou a ser o Día de la Fiesta Nacional de España através da Ley 18/1987. Parece que houve quem defendesse que se mudasse também o dia, passando a contemplar o 06 de dezembro em comemoração à aprovação da Constituição Espanhola de 1978. Não vingou. Venceu o “descubrimiento”.

Ontem passei o dia em casa. Debaixo das cobertas. Ouvindo a cidade que chovia. Não deu vontade de sair. Parecia que não era a minha festa. Não fui convidada. Mas confesso que pela televisão espiei disfarçadamente a festa dos outros. Tinha bandeiras, militares, marchas. Nada muito diferente de algumas coisas estranhas que fazemos no Brasil quando esquecemos nosso passado de ditadura. Talvez esse pessoal do Día de la Hispanidad tenha escolhido esta data porque leram Enrique Dussel. Sabiam que a Europa se tornou o centro do mundo a partir da criação da sua periferia: 

"Se ‘inventó’ el ‘ser-asiático’ de lo encontrado. De todas maneras, la ‘invención’ en América de su momento ‘asiático’ transformó al Mar Océano, al Atlántico, en el ‘centro’ entre Europa y el continente al oeste del Océano" (DUSSEL, 1994, p. 39).

"Era una figura económico-política, América Latina fue la primera colonia de la Europa moderna - sin metáforas, ya que historicamente fue la primera ‘periferia’ antes que Africa y Asia” (Idem, p. 61)

Sim eu sei. Espanha não é Europa. Ou ao menos consta que parte da Europa acha que a Espanha não seria suficientemente europeia. Seria então a afirmação de uma “raza” espanhola uma resistência contra-hegemônica ao histórico desprezo europeu aos povos Ibéricos? 

“España, el mundo ibérico, es visto como un pueblo aferrado al pasado sin capacidad e ímpetu para caminar, seguir adelante, cambiando. […] En el siglo XVI, sigue Costa, ‘las naciones europeas se dividieron en dos bandos: a un lado, el porvenir, la edad moderna del mundo representada por Inglaterra, Italia, Alemania, Francia; y al otro el pasado, la resistencia obstinada al progreso y a la vida nueva representada por Espana’”. (ZEA, 1990, p. 98)

“Pero ¿por qué sucedió todo esto en España y no en pueblos que de alguna forma sufrieron los mismos males? ‘Yo me inclino a pensar - sigue Costa - que la causa de nuestra decadencia es étnica y tiene su raiz en los mas hondos estratos de la corteza del cerebro’. Es algo natural al ibero, lo lleva como algo ineludible de su conformación física. Como algo que no puede ser de otra manera, algo propio de su especie. Un problema, al parecer, racial.” (ZEA, 1990, p. 99)

Pensando melhor, creio que não. Não pareciam contra-hegemônicos aqueles espanhóis do tempo dos navios. Naquela época, a “raza” da Espanha contrastava com a “raza” do seu Outro fundamental. O Outro tornado “O mesmo”. Na sua colônia, no seu grande jardim. Parece que a justificativa da data é então uma homenagem a esse “encuentro de dos mundos”. Sobre isso mais uma vez deixo falar Dussel:  

"Se  trata del eufemismo del ‘encuentro de dos mundos’, de dos culturas - que las clases dominantes criollas o mestizas latinoamericanas hoy son las primeras en proponer - intenta elaborar un mito: el del nuevo mundo como una cultura construída desde la armoniosa unidad de dos mundos y culturas: europeo e indígena. […] Digo que hablar del encuentro es un eufeminismo - ‘Gran Palabra’ diría Rorty - porque oculta la violencia y la destrucción del mundo del Otro, y de la otra cultura. Fue un ‘choque’, y un choque debastador, genocida, absolutamente destruidor del mundo indígena. Nacera, a pesar de todo, una nueva cultura (tema que trataremos en el Epílogo, más adelante), pero dicha cultura sincrética, híbrida, cuyo sujeto será de raza mestiza, lejos de ser el fruto de una alianza o un proceso cultural de síntesis, será el efecto de una dominación o de un trauma originario (que, como expresión de la misma vida, tendrá oportunidad de una ambígua creación). (DUSSEL, 1994, p. 75)

Mas vamos encerrar por aqui, não quero ser repetitiva escrevendo sempre cartas sobre festas que não eram minhas. Mas é que esta não era mesmo. Não era nossa. Aliás, a data também é comemorada na América Latina - assim foi chamado o antigo jardim, aonde os europeus insistem em voltar para roubar as flores que restaram. Na terra de Simón Bolívar, de Che Guevara, de Zumbi e de Dandara, e de outros líderes cujo o povo do norte gosta de dizer que não eram assim tão heróicos, a data ganhou nomes diferentes. Na Venezuela e na Nicarágua, a data passou a ser chamada Día de la Resistencia Indígena. Na Argentina, teve o nome alterado para  Día del Respeto a la Diversidad Cultural. Acho que faz sentido. Que a gente mude ao menos o nome, já que a história cambia pouco. Para que aprendamos a viver com ela e apesar dela. Para fechar nossas veias abertas. Ou expô-las ao mundo de tempos em tempos, deixando que todos saibam que elas ainda sangram.

Enquanto isso chove em Oviedo. Cidade doce. Feita de peregrinas e caminhos. De passageiras. De feministas que entendem o valor da solidariedade. De senhoras e senhores gentis com bengalas bonitas, mesmo quando não precisam. Oviedo do Paco e da Blanca, da gentileza e da amizade. Sobre isso dedicarei novos capítulos. Urge agora descobrir o que faz de Oviedo uma cidade tão encantadora. A cidade prometida da aposentadoria de Woody Allen, que sem nenhum pudor disse que “Oviedo es como si no perteneciera a este mundo, como si no existiera... Oviedo es como un cuento de hadas”. Se não fossem essas veias abertas, e a festa a que eu não fui convidada, falaria apenas sobre isso. Sobre Oviedo que decide chover. Ou seria toda a Espanha que chove?


*Patricia Vilanova Becker, integra o Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua; mestranda em Direito pela UnB, participa atualmente do Programa Erasmus Mundus Master´s Degree in Women's and Gender Studies na Universidade de Bolonha e Universidade de Oviedo. Co-fundadora de Freeda: espaços de diversidade.

Referências: 
DUSSEL, Enrique. 1492. El encubrimiento del otro. Hacia el origen del mito de la modernidad. Quito: Abya Ayala, 1994.

ZEA, Leopoldo. Discurso desde la Marginalización y la Barbarie. Ed. Fondo de cultura económica, Mexico, DF, 1990.


segunda-feira, 10 de outubro de 2016

28 anos esta noite: o futuro da Constituição de 1988



"Publicado 5 de Outubro, 2016

Por Cristiano Paixão
Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UnB. Procurador Regional do Trabalho em Brasília. Mestre em Teoria e Filosofia do Direito (UFSC). Doutor em Direito Constitucional (UFMG). Estágios pós-doutorais em História Moderna na Scuola Normale Superiore di Pisa e em Teoria da História na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (Paris). Foi Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2012-2016) e Coordenador de Relações Institucionais da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB (2012-2015).

Na data em que a Constituição da República completa 28 anos, muitas dúvidas se apresentam acerca do futuro da “Constituição Cidadã”. Os efeitos e desdobramentos do processo de impeachment inconstitucional e ilegítimo consumado em agosto de 2016 ainda se farão sentir por muito tempo. As medidas propostas pelo governo federal afetam diretamente o conjunto de princípios e direitos construído pelo texto constitucional de 1988. Os movimentos sociais e entidades sindicais que possuem um vínculo histórico com as lutas e conquistas obtidas no processo constituinte de 1987-1988 encontram-se dispersos e fragmentados, com pouca capacidade de mobilização.
Diante desse quadro, o que se pode esperar do futuro da Constituição?
As constituições possuem estruturas temporais complexas. Como documento político, uma constituição cristaliza as opções fundamentais adotadas pelas chamadas “gerações favorecidas”, aquelas que possuem a capacidade de elaborar as decisões cruciais de uma determinada comunidade. Em sua função de norma jurídica de tipo superior, uma constituição redefine todo o direito preexistente e estabelece as bases da normatividade que se seguirá.
Contudo, esse “momento privilegiado”, ou seja, essa enorme abertura para deliberação sobre o futuro que marca a atividade do poder constituinte originário, não deve ter sua importância supervalorizada. A principal qualidade de uma constituição é sua capacidade de durar: a possibilidade de ter uma vigência que sobreviva à geração que a criou.
Para que isso ocorra, é necessário, talvez paradoxalmente, que a constituição não seja a mesma ao longo do tempo. É fundamental que ela se transforme e que seja passível de constante atualização. Mantendo seus compromissos originários, suas normas (aqui compreendidas numa dimensão interpretativa) precisam ser ativadas em novos contextos, transformadas pela realidade, moldadas por novas demandas e reivindicações. A chave, portanto, para o êxito de uma constituição é a sua plasticidade, o que significa dizer que ela deve modificar-se constantemente, conservando, neste movimento de mudança, seu conjunto de princípios estruturantes.
No caso do Brasil, percebe-se que as aspirações da sociedade civil que se mobilizou em 1987-1988 para o processo constituinte permanecem válidas. A sociedade daquela época, impulsionada pela pluralidade de sujeitos coletivos que lutaram contra a ditadura durante todo o regime, foi a responsável pela elaboração de um texto constitucional avançado e comprometido com os direitos fundamentais. A Assembleia Constituinte de 1987-1988, que tinha um perfil conservador, com muitos constituintes ligados ao regime militar, foi o veículo das reivindicações sociais.
Evidentemente, há na Constituição muitos elementos de continuidade em relação à ordem jurídica autoritária. Basta pensar na estruturação das polícias e na organização da segurança pública. Mesmo assim, numa perspectiva comparativa em relação ao regime inaugurado em 1964, fica claro que o texto de 1988 representa uma ruptura com a ordem constitucional anterior. Como exemplos disso, estão o compromisso do Estado brasileiro com os direitos humanos (art. 4º, II), o respeito à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), a previsão da tortura como crime inafiançável e insuscetível de graça e anistia (art. 5º, XLIII), o reconhecimento de que o regime militar praticou atos de exceção contra os cidadãos brasileiros (art. 8º do ADCT) e, principalmente, a opção em constituir-se como Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput).
Esses exemplos são úteis para demonstrar que as principais bandeiras dos amplos setores sociais que lutaram pela redemocratização eram a liberdade e a igualdade. Quem poderia afirmar que a sociedade brasileira não anseia, hoje, por essas mesmas causas? Qual discurso político sobreviveria, no Brasil de hoje, sem incluir essas demandas?
Exatamente por isso, é cedo, demasiadamente cedo, para decretar o fim da ordem constitucional inaugurada em 5 de outubro de 1988. As lutas políticas de hoje continuam a ser pautadas pela Constituição. Devemos estar atentos, nessas lutas, às práticas constituintes e desconstituintes que se manifestam nas dimensões políticas e sociais do Brasil contemporâneo.
Uma constituição democrática se reescreve a todo momento. Essa reescritura se manifesta por meios de práticas constituintes, ou seja, por atos, discursos, movimentos e gestos de aprofundamento da democracia existente. O Brasil tem frutíferos exemplos dessas práticas. As manifestações da sociedade voltadas à melhoria da educação, por exemplo, são típicos casos de práticas constituintes. Assim deve ser interpretada a resistência de estudantes secundaristas de São Paulo que se opuseram a uma reforma que precarizava o acesso à educação. Algumas práticas constituintes atingem uma tal repercussão na sociedade que terminam por ser reconhecidas por órgãos do Estado. Os movimentos em prol da liberdade de opção sexual e de combate às desigualdades produzidas pelo racismo foram responsáveis pela geração de vários direitos: casamento homossexual, uso de nome social em espaços públicos, políticas de ação afirmativa, cotas para negros e indígenas.
Nenhuma sociedade, contudo, está imune ao efeito de práticas desconstituintes. No Brasil isso é ainda mais visível, considerando que alguns setores da sociedade – aqueles mais identificados com o regime anterior – nunca aceitaram completamente o resultado do processo constituinte de 1987-1988. Essas forças, que não são insignificantes, estão sempre se articulando para desmontar o arcabouço normativo construído em 1988. E muitas delas estão representadas no Estado e nos partidos políticos. Como dito em artigo anteriormente veiculado no Jota (http://jota.uol.com.br/democracia-e-constituicao-um-golpe-desconstituinte), todo o processo de impeachment (iniciado em dezembro de 2015 e encerrado em agosto de 2016) pode ser compreendido como um golpe desconstituinte: por detrás do afastamento ilegítimo, sem crime de responsabilidade, de uma Presidente da República eleita diretamente, reside uma resistência à Constituição de 1988, cujos movimentos já vinham sendo percebidos desde a década de 1990, quando começaram a surgir tentativas de modificar os processos de alteração das normas constitucionais. Além disso, a apresentação, pelo Governo, da PEC 241/2016, que congela os investimentos públicos e impõe um regime de corte de despesas pelos 20 anos subsequentes à sua aprovação, retirando o direito da próxima geração de dispor sobre política econômica, é uma prática desconstituinte (http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2088351).

O futuro da Constituição de 1988 será escrito no confronto entre práticas constituintes e desconstituintes, nas arenas públicas e privadas de discussão e deliberação e nos processos eleitorais. É impossível antever o resultado dessas disputas. Mas é possível afirmar que a Constituição de 1988 continuará a ser a referência fundamental para setores da sociedade que persistirem lutando por liberdade e igualdade. Nessa perspectiva, muitos outros aniversários da Constituição poderão ser celebrados."
FONTE: Texto de autoria de Cristiano Paixão, publicado em "Jota", online, aos 5 de outubro de 2016. Disponível em: <http://jota.uol.com.br/28-anos-esta-noite-o-futuro-da-constituicao-de-1988>.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Direitos não são quantidades, são relações

Para José Geraldo de Sousa Junior, direitos são resultado de lutas sociais pelo reconhecimento no percurso emancipatório. Imprensa é “cão de guarda da democracia”, e apesar de necessitar ser fiscalizada, não pode perder seu princípio fundamental de liberdade

Por: João Vitor dos Santos | Edição: Márcia Junges

“Não alcançaremos amadurecimento democrático e verdadeiramente republicano, sem uma profunda transformação institucional do campo da política e sem introduzir no sistema democrático, como impõe a Constituição, formas claras e legítimas de controle social dos meios de comunicação, para garantir pluralidade e acesso pleno à informação”, pontua José Geraldo de Sousa Junior em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para ele, “os meios de comunicação, principalmente os abertos — rádio e TV — mas também os jornais, são indispensáveis para informar e contribuir para a formação de opinião. Por isso que, mesmo em sociedades de livre iniciativa, nas quais todo valor acaba sendo o de troca, eles são fundamentais e até os que acabam se tornando alvos selecionados de sua atenção, nem sempre isenta, reconhecem a sua importância.” 
O jurista destaca que é preciso contrapor o “princípio da liberdade de imprensa contra toda forma de censura e de cerceamento de seu papel como veículo da livre expressão. Mesmo em sistemas em que os meios de comunicação se constituem, como tudo o mais, bem de mercado e de apropriação de grandes proprietários, mantêm-se a salvaguarda de que há prerrogativas a proteger e de que o controle e a fiscalização de suas atividades não podem ser subterfúgios para reduzir o princípio fundamental que é a liberdade de imprensa”. José Geraldo pondera, ainda, que a expressão jurídica das “lutas por dignidade se realizam não como dons, artefatos estocáveis em prateleiras de algum almoxarifado legislativo, mas como invenção, como cidadania expandida.”
José Geraldo de Sousa Junior possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal - AEUDF, mestrado e doutorado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto O Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos. Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais. Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - No Brasil, os sujeitos sociais têm protagonismo no Poder Judiciário? Por quê?
José Geraldo de Sousa Junior - Minha resposta imediata é sim. Mas é um sim contextualizado. De um lado, pelo aspecto formal, isto é, aquele que deriva da institucionalidade constituída, o protagonismo está inscrito no conjunto de procedimentos abertos a esses sujeitos, para acesso a uma titularidade judicante muito ampliada com o sentido participativo que a Constituição Federal de 1988 proporcionou. Chamada de cidadã porque configurada num modelo de exercício direto da democracia, os protagonismos daí decorrentes abriram no sistema político, no Executivo e no Legislativo, mas também no Judiciário alternativas de participação ou inéditas ou pouco exploradas. 
Refiro-me, no caso do Judiciário, à ampliação do elenco de ações populares, dos instrumentos de salvaguarda de direitos (petição, habeas data, acesso à informação), à expansão da titularidade para as ações declaratórias de constitucionalidade e de cumprimento de preceito constitucional, o reconhecimento do amicus curiae, especialmente as audiências públicas dando espaço e voz para a manifestação de segmentos sociais aptos a opinar sobre temas candentes e de permitir a contribuição de expertise necessária ao melhor conhecimento de temas difíceis que escapam ao juízo limitado dos próprios julgadores. Isso foi exercitado em situações complexas, bastando lembrar os julgamentos, no Supremo Tribunal Federal, das ações relativas à antecipação de parto em casos de anencefalia, à demarcação das terras indígenas (Raposa Serra do Sol ) e a ações afirmativas para a admissão de negros e negras nas universidades brasileiras. 
A resposta a esta pergunta leva, por outro lado, para uma consideração de ordem material, que situa o protagonismo dos sujeitos sociais (não considero aqui a questão do protagonismo dos operadores, no campo do chamado ativismo judicial, tratado noutro momento) em outra dimensão, vale dizer, a que insere o tema Justiça na agenda das disputas que se dão no território real e simbólico da Política. Tratei desse tema em muitas aproximações, mas de forma muito definida no trabalho de pesquisa lançado pela então Secretaria de Reforma do Judiciário, do Ministério da Justiça. A propósito, conferir em http://bit.ly/2dF5Tzb, os resultados da pesquisa realizada, cujo ponto de partida leva em conta o fato de que “a consolidação de um regime democrático minimamente estável, alcançado com relativo atraso no Brasil, requer uma atualização rápida e decisiva de todas as formas institucionais e práticas sociais pelas quais se dá o exercício legítimo do poder. Os processos de gestão dos conflitos pela linguagem do direito, que se desenvolvem no campo aqui designado pela expressão mais ampla de Justiça, evidentemente não escapam dessa exigência. Ao contrário, a atualização democrática da Justiça parece envolver tarefas ainda mais problemáticas e desafiadoras que em outras áreas do governo e da sociedade”. 

IHU On-Line - Em que medida se pode afirmar que a Constituição, enquanto construção de direitos no Brasil, é uma obra inacabada?
José Geraldo de Sousa Junior - A filósofa Marilena Chaui , em prefácio ao livro de Claude Lefort , A Invenção Democrática, definiu a democracia como invenção por ser a possibilidade de criação permanente de direitos. Ou seja, conferiu à Constituição como projeto de sociedade, esse caráter de incompletude que reconhece no protagonismo social a sua condição de contínua atualização. Com efeito, tomando a Constituição brasileira em vigor (ainda em vigor), vemos no seu artigo 5º., após o elenco de direitos nele descritos, o reconhecimento dessa incompletude logo no parágrafo (2º.), quando o Constituinte anota que o elenco não exclui outros (direitos) “decorrentes do regime (democrático) e dos princípios por ela adotados” (os direitos humanos, por exemplo).  
É claro que reduzida ao formato de um documento jurídico, a Constituição fica engolfada num intenso processo de despolitização inversamente proporcional à sua captura técnica e ideológica pelas instituições do sistema de justiça e pelos profissionais do Direito. Desse modo, como testamento de um ente não mais vivente, uma abstração idealizada como a soberania popular, a Constituição se descola do cotidiano social, alienando completamente da sociedade a função — ou seja, o direito em formato de poder-dever — de atribuir ou disputar o significado do texto constitucional. Assim, como testamento da soberania popular a Constituição passa à condição de refém de um corpo de especialistas técnicos vinculados à institucionalidade estatal, transformando a função judicial em poder-dever exclusivo e soberano de atribuir sentidos e definir o significado político do Direito. 
Por isso tenho sustentado, no debate com os companheiros e companheiras do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq), a abertura para um debate construtivo a partir de um Constitucionalismo Achado na Rua (cf. SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (org). O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2015), uma leitura em sentido contrário, enfim, que aliada à Teoria Constitucional, percorra outro caminho, o caminho do retorno à sua função social. Uma espécie de devolução conceitual para a sociedade, da função constitucional de atribuir o sentido político do Direito, através do reconhecimento teórico-conceitual da luta social como expressão cotidiana da soberania popular. Um reencontro entre a Teoria Constitucional e o Direito compreendido como a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade, como define Roberto Lyra Filho (O que é Direito. São Paulo, Editora Brasiliense, 1982).
Algo que corresponda à observação que me fez o Professor J. J. Gomes Canotilho , numa entrevista que dele obtive (Pela Necessidade de o Sujeito de Direito se Aproximar dos ‘Sujeitos Densos’ da Vida Real. Observatório da Constituição e da Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB/Sindjus, n. 24, junho, 2008), a propósito da multiplicidade de sujeitos que se movem no debate constitucional contemporâneo e que levam a abrir expectativas de diálogo político estruturado na linguagem do Direito e do qual emergem as principais ‘posições interpretativas da Constituição’. Para ele, no que estou de acordo, a ‘luta constituinte’ era (e é) uma luta por posições constituintes e a lógica do ‘pluralismo de intérpretes’ não raro esconde que essa luta continua depois de aprovada a Constituição. Portanto, o elemento central dessa questão reconduz-se ainda à ideia de conformação constitucional dos problemas segundo o princípio democrático e não de acordo com princípios a priori ou transcendentais. Para ele não se pode esquecer que “Do outro lado da rua, há o ‘direito achado na rua’ e, perante o sangue vivo que brota dos vasos normativos da realidade e a sedução de um direito outro, alternativo ao direito formal das constituições, códigos e leis, compreende-se que o discurso hermenêutico dos juristas mais não seja que um manto ocultador do insustentável peso do poder”.

IHU On-Line - Como o senhor compreende a ideia de judicialização da política? Em que medida a judicialização tende a reduzir a democracia ao Estado de Direito? E que avanços ela pode inspirar?
José Geraldo de Sousa Junior - Na abertura do livro Ética, Justiça e Direito: reflexões sobre a reforma do Judiciário (Editora Vozes,1996), que organizei juntamente com o Padre José Ernanne Pinheiro , Melillo Dinis  e Plínio de Arruda Sampaio , livro, por sua vez, fruto de seminário com o mesmo título organizado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, a propósito das iniciativas legislativas para a reforma da Justiça no Brasil, é dito com ênfase que “da contraposição entre o direito oficialmente instituído e formalmente vigente e a normatividade emergente das relações sociais, de um lado; e da distinção entre a norma abstrata e fria das regras que regem os comportamentos e a normatividade concreta aplicada pelos juízes, de outro; têm-se acentuado a necessidade de compreender novas condições sociais como a emergência dos movimentos sociais, de novos conflitos, de novos sujeitos de direitos, com a valorização de um efetivo pluralismo jurídico” (p 9-10). 
Em decorrência, ali foi dito ainda, aliás em texto de minha autoria — Novas Sociabilidades, Novos Conflitos, Novos Direitos —, que “num contexto de profunda mudança na sociedade brasileira, também os operadores jurídicos vivenciam perplexidades que têm gerado impasses que recaem na atuação desses mesmos operadores, e nos defrontamos com um quadro de perda de referência e até de perda de confiança no papel das instituições e no papel dos instrumentos que foram constituídos no plano de formação da nossa sociedade. No que diz respeito à atuação da magistratura e a sua visibilidade no plano social, esta perda de confiança e de referência tem gerado algumas ambiguidades que vão se localizar, especialmente no que diz respeito aos operadores, na convicção sobre a sua formação jurídica de um lado, e na convicção sobre o seu papel social, de outro”.
Desse fenômeno resulta o que tem sido chamado ativismo judicial e judicialização da política, juízas e juízes assumem, cada vez mais, função pública e social, e nela incorporam a dimensão orgânica que institucionaliza a sua judicatura. Assim, da alternatividade que move o juiz diligente em busca da refuncionalização de sua judicatura e de reorientação da cultura jurídica de sua formação, ressalta o dilema a que alude Márcio de Oliveira Puggina , magistrado engajado no movimento “juízes para um direito alternativo”, para os quais, ele disse naquele Seminário: “Certo de que a lei justa é responsabilidade ética do legislador [...] a sentença justa ou injusta é inalienável responsabilidade ética do juiz”.
A alternatividade emerge, assim, lembra Urbano Ruiz , fundador e primeiro presidente da Associação Juízes para a Democracia - AJD, também presente no Seminário já referido, como consequência da exigência de liberdade que se inscreve no ato de julgar, seguindo imperativo do artigo 10 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e ela decorre, certamente, de uma tendência dos tempos correntes, qual seja, o deslocamento do juiz ao papel de mediador político. O juiz, nesse contexto, disse Ruiz durante o Seminário, deveria assumir outros papéis, como o de mediador político, porque a ação, processualmente considerada, passa a ser encarada como instrumento de participação, de atuação política, mesmo porque os cidadãos, organizados, percebem que individualmente são fracos mas, aglutinados, conseguem, através do processo, espaços na mídia, de modo a pelo menos chamar atenção para os gritantes problemas que enfrentam no dia a dia, sem que possam ser acudidos. A política, na verdade, migra dos foros até então conhecidos, dos partidos e do Parlamento para os movimentos organizados (sem-teto, sem-terra, comunidades de base, mutuários do SFH, de mensalidade escolar, de defesa do consumidor etc.). É crescente, portanto, a politização dos conflitos, mesmo porque deixaram de ser intersubjetivos individuais, para assumirem feição coletiva”.
Certamente trato aqui do fenômeno da judicialização e do ativismo em seu sentido criativo, aquele segundo o qual em sua complexização o Estado alcança uma base para refuncionalizar sua operatividade promovendo deslocamentos razoáveis, entre os quais, o do ato de julgar tendo como núcleo realizador não mais a norma (unidade de análise do sistema jurídico inscrita no processo legislativo), mas a concretude da sociabilidade dinâmica, cuja unidade de análise é o próprio conflito submetido ao juiz para mediação pretensamente solucionadora. Claro que estou falando, nesse passo, menos de um juiz voluntarista e carregado de entusiasmo, Hércules ou Hermes, mas daquela estirpe de íntegros juízes de que falava Anatole France , que sabe fazer a jurisprudência andar pelas ruas. Uma estirpe de juízes — Victor Nunes Leal , Evandro Lins e Silva , entre eles — que sabem exercitar a compreensão plena do ato de julgar, rejeitando a falsa oposição entre o político e o jurídico, ao entendimento de que, para se realizar, a justiça não deve encontrar o empecilho da lei, nem torná-la uma promessa vazia preenchida pelos seus critérios valorativos, mas de modo a levar a jurisprudência a andar pelas ruas porque, lembrava Victor Nunes Leal, “quando anda pelas ruas, colhe melhor a vida nos seus contrastes e se prolonga pela clarividência da observação reduzida a aresto”.
Assim, pode-se falar de judicialização em sentido forte, quando se trate dessa capacidade construtiva, prevista na hermenêutica de integração, que sabe combinar regras e princípios, que possibilita ao juiz e ao jurista, lembro mais uma vez o professor Canotilho (Teoria da Constituição e do Direito Constitucional), lançar o olhar vigilante sobre as exigências do justo e, orientados por teorias de sociedade e teorias de justiça, abrir-se a outros modos de consideração do Direito, inscrito nas práticas sociais e em O Direito Achado na Rua, portanto, teórica e politicamente assentadas em hipóteses críticas que alavancam as possibilidades proporcionadas pela leitura sociológica do pluralismo jurídico. Mas, há que se prevenir das injunções de uma judicialização em sentido fraco, vulgarizada pelas pré-compreensões de operadores jurídicos mal formados, imersos nas reduções ideológicas de uma cultura jurídica limitada pelo paradigma das ideologias rasteiramente difundidas por um ensino jurídico de reprodução, acrítico, rendido a argumentos de autoridade, a vieses paradigmáticos esgotados, rebaixando, por sua vez, todo o potencial realizador da atuação profissional incapaz de se materializar em verdadeira função social (a  advocacia e a magistratura como dimensões essenciais da Justiça, CF artigos 127, 133), para além dos lugares batidos das expectativas corporativas ou de prestígio e privilégio de classe. 

IHU On-Line - Como a perspectiva da judicialização da política se imprime nos casos do Mensalão  e da Operação Lava Jato ?
José Geraldo de Sousa Junior - Penso que na dupla consideração a que acima me referi. De uma parte, há o limite determinado pela percepção reduzida da função social que os operadores de Direito – advogados, membros do Ministério Público, magistrados – são chamados a exercer numa sociedade democrática realizada pela mediação de um verdadeiro estado de Direito. Com meu colega Antonio Escrivão Filho  tratei dessa questão em livro recentemente publicado intitulado Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos (Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016). Trata-se de considerar as alternativas abertas para lidar com as aporias derivadas dessas múltiplas crises que têm apontado para a necessidade de reconhecer novos paradigmas sociais e epistemológicos que instauram e reclamam reconhecimento. No plano epistemológico, por exemplo, a redução acrítica do jurídico ao legal ou ao jurisprudencial positivados, revelam o obstáculo da cultura jurídica em que são formados os operadores, levando ao desalento expresso pelos teóricos críticos do positivismo, que denunciam de longa data os práticos da cabotagem no direito, circum-navegando ao redor dos códigos (Orlando Gomes, A Crise do Direito, 1958), o ensino errado do Direito, pela inadequada apreensão de seu objeto de conhecimento, gerando os equívocos da pedagogia (Roberto Lyra Filho, O Direito que se ensina errado, 1982) e, mais recentemente, a constatação feita pelo jurista brasileiro Antonio Augusto Cançado Trindade , por duas vezes presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, para quem o principal obstáculo à internalização no sistema nacional de Direito, dos enunciados de direitos humanos inscritos nos tratados e convenções sobre o tema radica no positivismo que constitui a base do conhecimento e da prática jurídica dos magistrados brasileiros.
A esses obstáculos que se inscrevem no conhecimento e no ensino jurídico e empobrecem a prática dos operadores, muitas vezes contidos de boa-fé num campo de concentração epistemológico, se agrega uma outra área de contenção pelo jurídico, neste caso, como posicionamento ideológico e visão de mundo e de sociedade, do movimento emancipatório e existencial e histórico de reivindicar reconhecimento das expectativas sociais por dignidade e por cidadania. Se lá atrás sustentamos que os direitos não são quantidades, são relações, são a resultante das lutas sociais por reconhecimento no percurso emancipatório, que nos constitui sempre mais plenamente humanos, a expressão jurídica dessas lutas por dignidade se realiza não como dons, artefatos estocáveis em prateleiras de algum almoxarifado legislativo, mas como invenção, como cidadania expandida.

Direito inquisitorial
É dramático constatar as objeções funcionais e conceituais tradutoras desse processo, especialmente no campo de aplicação formal do Direito, com a criminalização das reivindicações sociais por novos direitos, a seletividade semântica do discurso jurídico (invadir x ocupar) e a defesa intransigente e leal ao privilégio/favor na contraposição entre o egoísmo (propriedade privada) e a distribuição solidária (função social da terra e do território).
Em nome dessa lealdade, constituída na cultura do colonialismo ainda tão fortemente arraigado em nossa formação econômica, social e cultural (patrimonialismo, racismo, patriarcalismo, coronelismo, clientelismo, prebendismo, filhotismo, cunhadismo, nepotismo), tão bem designados nos estudos de Darcy Ribeiro  (O Povo Brasileiro), Victor Nunes Leal  (Coronelismo, Enxada e Voto), Raymundo Faoro  (Os Donos do Poder), as características hierárquicas, segregacionistas, correcionais,  rotuladoras, estigmatizantes, expressas numa variação de aplicações de estereótipos, tal como se assiste no elenco de práticas presentes no modelo inquisitorial do aparato disciplinar do Direito. É aqui o punitivismo encarcerador impermeável aos avanços civilizatórios do sistema de direito criminal, tendente ao abolicionismo e a alternatividade penais, sob o pressuposto, desde Beccaria , de que a história da pena de prisão é a história de sua constante abolição e de que o suplício em si não realiza justiça, apenas afirma poder, fecha-se na ignorância das múltiplas causas do fenômeno da delinquência para se afirmar apenas em propostas de penas aflitivas, de agravamento de penas e de redução das conquistas civilizatórias do campo, a presunção de inocência, o encurtamento do duplo grau de jurisdição, a restrição à liberdade com a vulgarização das prisões preventivas e cautelares, a adoção de modelos indolentes de tipificação com a adoção das formas torpes de delação erigidas à categoria de premiação, e, para culminar, tal como se constatou e se vem constatando, a leniência às salvaguardas constitucionais de aceitação do ilegal para a produção de provas e da presunção em lugar da facticidade probante. Tudo isso ornado com a mobilização propagandística que ilude a justa expectativa social de por cobro à criminalidade, à impunidade, com medidas entusiasticamente oferecidas para efeito placebo da moralidade subtraída. 
Ainda não se apurou devidamente — há inclusive interpelação de instâncias supranacionais — a exacerbação instrucional com violação de garantias e de direitos constitucionais e supralegais — promovidos pela condução espetacularizada e midiática dos procedimentos por isso mesmo literariamente designados: Mensalão, Lava Jato e outras modalidades de realizar o que a criminologia, não só a crítica, mas também a liberal (Reação Social), codinomina de Processo de Criminalização.

IHU On-Line - No Brasil de hoje, o Judiciário tende a ser visto como poder moderador, desde os aspectos políticos aos sociais?  Em que medida isso ocorre pela inércia de Executivo e Legislativo? Quais os riscos de tomar o Judiciário como superpoder?
José Geraldo de Sousa Junior - A partir da experiência do protagonismo social, por seus movimentos, fazendo avançar a democracia e reinstitucionalizando os processos políticos, relegitimando-os, luta pela anistia, constituinte, memória e verdade, deu-se um sentido afluente à cidadania e à consciência de se constituir sujeito da própria história. Esse fenômeno manifestou-se também como uma expansão política da justiça e de judicialização dos direitos, em algum sentido, uma forma de transferência de competências políticas do Executivo e Legislativo para o Judiciário, por impulso de mobilizações sociais. Como tratei, juntamente com meu colega Escrivão Filho, no livro mencionado, ainda que este cenário de expansão política e judicialização não se resuma à transferência de competências em sentido estrito, é fato que esta transferência se observa, seja em razão da incapacidade dos outros Poderes efetivar matérias, políticas ou decisões de sua competência, seja como expressão de inconformismo político em relação à decisão tomada por estes Poderes, vide as centenas de casos de ações judiciais que visam reverter a demarcação de terras indígenas, territórios quilombolas e assentamentos da reforma agrária realizados na medida de complexas decisões políticas e ao cabo de extensos procedimentos administrativos onde às partes é garantido, pela própria Constituição (art. 5º, LV), o direito ao contraditório e à ampla defesa. 
Ocorre, então, que transferindo-se a competência, há que se transferir também os instrumentos correspondentes para uma adequada atuação sobre o problema, não apenas preservando, mas inovando e aprofundando as garantias de autonomia e independência judicial com moldes radicalmente democráticos. E há que se projetar de igual modo, não só o acesso à justiça, mas a transformação da justiça a que se tem acesso.

IHU On-Line - Como analisa a relação tão estreita entre a mídia e os operadores do Direito na Operação Lava Jato? O que os vazamentos da Operação revelam acerca das relações políticas no âmbito do Judiciário e Ministério Público?
José Geraldo de Sousa Junior - Os meios de comunicação, principalmente os abertos — rádio e TV — mas também os jornais, são indispensáveis para informar e contribuir para a formação de opinião. Por isso que, mesmo em sociedades de livre iniciativa, nas quais todo valor acaba sendo o de troca, eles são fundamentais e até os que acabam se tornando alvos selecionados de sua atenção, nem sempre isenta, reconhecem a sua importância. Marx, que viveu às turras com os jornais de sua época, para lembrar os processos que disputou com a Gazeta Renana, nem por isso deixava de atribuir à imprensa o papel de “cão de guarda da democracia”.
Daí o princípio da liberdade de imprensa contra toda forma de censura e de cerceamento de seu papel como veículo da livre expressão. Mesmo em sistemas em que os meios de comunicação se constituem, como tudo o mais, bem de mercado e de apropriação de grandes proprietários, mantém-se a salvaguarda de que há prerrogativas a proteger e de que o controle e a fiscalização de suas atividades não podem ser subterfúgios para reduzir o princípio fundamental que é a liberdade de imprensa.
Certamente a contrapartida para essa valorização simbólica é não descuidar, que mesmo propriedade, os meios de comunicação se constituem uma esfera pública e têm que realizar os valores democráticos que asseguram o direito à livre informação.
Não é o que assistimos no Brasil quando a opinião fica adstrita a uma linha editorial que confere aos meios de comunicação o aparato político de ideologização da opinião única, divulgada como se fosse proselitismo de um partido político. E, principalmente quando se associa ou se articula com estratégias de rotulação estigmatizante que se prestam a forjar uma orientação criminalizadora. É esse o fenômeno que estamos presenciando no Brasil hoje, com os grandes meios mobilizando a sociedade para assumir pontos de vista sobre os problemas sociais, espetacularizando de forma prestidigitadora, manipulando mesmo, a opinião, para alcançar objetivos que servem as suas alianças políticas e econômicas (em países mais nitidamente constituídos no modelo capitalista, o que acontece no Brasil é inaceitável, e a divulgação espetacularizada de procedimentos de ofício como denúncias com o ilusionismo de apresentações valendo-se de efeitos especiais têm sido base para a anulação judicial dos processos levados a cabo com esses artifícios). E é desastroso quando esse processo agrega agentes públicos que se valem desse espetáculo ilusório para calçar seus objetivos confessáveis ou inconfessáveis de vigilantismo messiânico. São aqui os vazamentos seletivos (conferindo perfis criminais sob o manto da informação jornalística), ali a glamourização do arbítrio (a justificação eficiente da colheita de provas ilegais e abusivas, a tolerância com a banalização das prisões cautelares e preventivas), ali a introdução de instrumentalidade processual na contracorrente do avanço civilizatório (a desqualificação do habeas corpus, da proteção recursal e do duplo grau de jurisdição) e, em suma, para subliminarmente inculcar na mentalidade social a imagem do bode expiatório oferecido em expiação para cumprir função sacrificial, e logo entregar-se às acomodações ao modo de reformas, cujo único intuito, lembra Lampedusa , é conservar.
Não alcançaremos amadurecimento democrático e verdadeiramente republicano, sem uma profunda transformação institucional do campo da política e sem introduzir no sistema democrático, como impõe a Constituição, formas claras e legítimas de controle social dos meios de comunicação, para garantir pluralidade e acesso pleno à informação.  

IHU On-Line - Qual a importância de órgãos reguladores do Judiciário e Ministério Público? E como avalia as atuais formas de regulação do Judiciário e Ministério Público hoje?
José Geraldo de Sousa Junior - Este tema já foi objeto de minha consideração anteriormente (Controle Democrático do Judiciário e do Ministério Público, in Ideias para a Cidadania e para a Justiça, Sergio Fabris Editor, 2008). Mantenho o mesmo entendimento de então. Os dois institutos criados pela EC 45/2004, introduzem o conceito de controle da administração da Justiça e representam a mais nítida iniciativa de abrir o Poder Judiciário e o Ministério Público ao controle democrático próprio da cidadania participativa consagrada com a Constituição de 1988.
Entretanto, para meu espanto, embora saudados como um passo importante na direção de uma democratização desse aparato, a criação dos dois Conselhos foi logo repudiada tendo a AMB proposto objeção constitucional sob o fundamento de violação do princípio da separação e da independência dos poderes. Vê-se, assim, a tentação de aprisionar o modelo concebido como projeto participativo, num enquadramento corporativo. No modelo proposto pela EC-45, os Conselhos foram concebidos como órgãos do Poder. As funções de controle por meio deles exercidas apenas alargam a administração do sistema com a participação qualificada de cidadãos e sequer alcançam a dimensão de exterioridade a que conduz o debate político que traça contornos e que deve ser mais ainda aprofundado, como condição de concretização institucional democrática e republicana.

IHU On-Line - No que todo o processo de impeachment e seus desdobramentos, desde a Operação Lava Jato a ações do Ministério Público de São Paulo contra o ex-presidente Lula, até o afastamento do presidente da Câmara Eduardo Cunha , pode impactar na – ou a leitura que se faz da – Constituição de 1988?
José Geraldo de Sousa Junior - Estou entre os que, por diversos modos — atos públicos, petições, manifestos, seminários, entrevistas, publicações —, conferiram ao processo em curso que se revelou por inteiro com o afastamento da presidenta da República a interpretação de que ele configurou um golpe institucional armado contra um projeto de sociedade, uma plataforma política e uma concepção de democracia. Por isso, ele se realiza e é conduzido contra a Constituição que representa esses valores e contra os sujeitos que nela se inscrevem, os trabalhadores, os marginalizados, os excluídos, os subalternos emergentes das lutas decoloniais que estão na base da formação social brasileira e das múltiplas lutas por identidade e reconhecimento. A fidelidade a esse projeto emancipatório coloca como tarefa política no pós-impeachment defender intransigentemente a Constituição.

IHU On-Line - A Constituição de 1988 estabelece o Ministério Público a serviço da cidadania, deixando para trás a ideia de apêndice jurídico do Executivo. Que avanços isso proporciona e que distorções também acaba causando?
José Geraldo de Sousa Junior - O capítulo do Ministério Público na Constituinte foi uma das mais qualificadas construções de todo aquele processo. O relator, deputado Plínio de Arruda Sampaio, ele próprio egresso da corporação soube, a partir de sua visão de sociedade e de mundo, compreender que a mobilização de seus membros, desconfortáveis no lugar de “procuradores do rei” e de “agentes plenipotenciários do poder” se orientava, em sintonia com o social, para se revestirem da investidura de defensores do povo e da cidadania. Assim foi desenhado o modelo do Ministério Público na Constituição. É certo que, assim como não é possível colocar vinho novo em odre velho, o odre novo se desfaz com a fermentação do vinho velho. Muito da velha concepção própria à mentalidade funcional e cultural dos integrantes da Corporação logo migrou para a nova institucionalidade. Notadamente quando se trate de pensar as aberturas cognitivas para a inteligibilidade das transformações desafiadoras da realidade. Elas ainda se apresentam opacas e ininteligíveis para a velha mentalidade mal acondicionada nas novas instituições. Estou pensando o constrangimento do MP e da Magistratura diante dos desenhos novos do social em movimento, no exame das cotas nas universidades, do reconhecimento dos direitos dos povos tradicionais aos seus modos de vida, de apropriação e de produção, dos indígenas e seus modos de subjetivar o território, das reivindicações camponesas politizando o processo de expansão da Justiça, com a negação à formação das turmas especiais para assentados instaladas nas universidades e a notável dificuldade de fazer a leitura inclusiva das manifestações para a ampliação dos direitos humanos em suas múltiplas dimensões. Uma nota de ilustração para fechar este item. 
Aludo à mensagem alvissareira, com esperado reflexo de mudança nas decisões do STF e da magistratura em geral, a partir de um ponto do discurso de posse do ministro Ricardo Lewandovski  na presidência do Supremo. Ali, o chefe do Poder Judiciário afirmou ser “preciso, também, que os nossos magistrados tenham uma interlocução maior com os organismos internacionais, como a ONU e a OEA, por exemplo, especialmente com os tribunais supranacionais quanto à aplicação dos tratados de proteção dos direitos fundamentais, inclusive com a observância da jurisprudência dessas cortes”. É alvissareiro porque significa a disposição política para orientar uma virada no campo dos direitos humanos internacionais. Mas é aí que reside o obstáculo cultural que inibe juízes e procuradores chamados a esse exercício de abertura ao jus cogens. Pesquisa conduzida pelas ONGs Terra de Direitos e Dignitatis Assessoria Técnica Popular (GEDIEL, José Antonio P. et al. Mapa Territorial, Temático e Instrumental da Assessoria Jurídica e Advocacia Popular no Brasil. Curitiba: FAFCH/Ford Foundation, 2012) dá conta de que “40% dos juízes (entrevistados pela pesquisa) nunca estudaram direitos humanos, e apenas 16% sabem como funcionam os sistemas de proteção internacional dos direitos humanos da ONU e OEA [...]”. Não esqueçamos que a formação dos magistrados é a mesma formação dos membros do Ministério Público.

IHU On-Line - Como o senhor analisa a fala da ministra Cármen Lúcia  ao assumir a presidência do Supremo Tribunal Federal? É possível afirmar que ela é capaz de inaugurar outro momento do Judiciário brasileiro?
José Geraldo de Sousa Junior - Há que se ter em mente, neste sentido, que o cenário de judicialização dos direitos humanos e de expansão política da justiça reivindicam, e justificam, o deslocamento da agenda política de participação e controle social — historicamente desenvolvida e adequada para a atuação junto aos Poderes Executivo e Legislativo — para o Poder Judiciário, com vistas à sua correspondente democratização. Sem ignorar a polêmica que tal afirmação carrega consigo, observa-se que tal deslocamento da participação e controle democrático encontra esteio e possibilidade seja na via jurisdicional, seja na via da organização político-institucional e administrativa da Justiça.
Pela via jurisdicional, estamos a nos referir tanto às diversas experiências de países latino-americanos, e até dos Estados Unidos, de autonomia das jurisdições indígenas e outras experiências de justiça comunitária, até as práticas de jurisdição dialógica inseridos em marcos mais tradicionais da justiça estatal. Pela via da organização administrativa, por seu turno, estamos a refletir sobre inovações político-institucionais como, por exemplo, a implementação de práticas de orçamento participativo e ouvidorias externas em todas as instituições do sistema de Justiça, a começar pelo Poder Judiciário.
A ministra parece se dar conta dessa agenda. E ela tem trajetória consistente na advocacia, na docência e na magistratura para compreender a ordem de prioridades que deve conduzir essa agenda. Por isso ela diz que não basta reformar o Judiciário, “faz-se urgente transformá-lo”. Ela está atenta à realidade de ensimesmamento que o Poder vivencia, encastelado e distante, e compreende que é necessário estabelecer ligações, concertações, embora reduza a dialogicidade desse processo à “comunidade jurídica”, mesmo com expectativa de alguma disposição homologatória, dirigida a uma manifestação do social que opere como referendo daquilo que se realize endogenicamente, e que apenas receba “a compreensão de toda a sociedade do que se está a propor e a praticar”. No limite, diz ela, “o que se proporá a transformar diz com o aperfeiçoamento dos instrumentos jurisdicionais”, confiante de que “cada proposta será transparente e imediatamente explicitada à sociedade”.
Por isso é necessário conduzir em linha crítica essas expectativas. Re-funcionalizar, modernizar, pode representar apenas mais do mesmo e de forma ainda mais excludente. Na pesquisa sobre a Observação da Justiça já mencionada, o que está em causa, para além do somente modernizado é o que o social coloca como sujeito com expectativa de transformação. Cito a partir do relatório daquela pesquisa: “A pesquisa não tinha a intenção de esgotar o universo representativo dos movimentos sociais, nem de sistematizar boas práticas, mas apenas de explorar visões sociais sobre o direito e a Justiça. A análise de dados permitiu que se verificasse que as organizações, movimentos e redes conhecem e buscam a Justiça pelos meios tradicionais de gestão dos conflitos pelo direito. No entanto, também permitem elaborar uma vasta categorização de estratégias não-convencionais de promoção da Justiça, com grande potencial de aprendizagem coletiva para direitos e cidadania”.
Finalmente, pensando num outro momento do Judiciário, chama a atenção o modo muito direto com o qual ela se dirige ao Juiz e o faz com a circunstância não ocasional de ter ali entre seus convidados para a cerimônia o ex-presidente Lula, que no dia seguinte seria confrontado a um modo inusitado de sofrer uma denúncia. Vale dizer, mais que inscrever uma personalidade em sua lista de convidados, ela sinalizava a um cidadão em vias de indiciamento que lhe assegurava as salvaguardas jurídicas estabelecidas na Constituição e, em última instância, a guarida correcional do Supremo tribunal Federal. Com efeito, ela diz no discurso: “É o juiz o depositário desta fé, garantidor da satisfação desse sentimento. Com homens lidamos nós, os juízes. O homem é a nossa matéria, sua vida, sua morte, seus sonhos, suas dores, suas alegrias e dissabores. A este dever nunca faltará o verdadeiro juiz, muito menos o juiz brasileiro, menos ainda este Supremo Tribunal, que atuará com rigor e respeito à Constituição e a todos os valores que predominam e que forjaram este ordenamento hoje em vigor”.