domingo, 12 de dezembro de 2010

Pode a universidade não ser emancipatória?

José Humberto de Góes Junior/Betinho*

Em meio a questões, tais como “o que se concebe como educação?”; o que se compreende por universidade?”; e, “o que é educação jurídica?”, é possível constituir um ponto de partida para observar que papel deve assumir a universidade frente aos problemas sociais. Para tanto, é preciso voltar a análise para o imaginário que se formou em torno da instituição universitária, a partir da visão moderna do século XVIII, fundado, por sua vez, em uma forma de pensar dicotômica, pretensamente neutra, porque puramente racional, como mecanismo de construção da universidade como centro exclusivo da produção do conhecimento verdadeiro, portanto, válido.

De outra forma, sendo o que se entende por “conhecimento” o que move a universidade na sua direção hegemônica, é também o que, paradoxalmente, incita no espaço universitário o surgimento de percepções novas sobre o ato de conhecer, sobre formatos contra-hegemônicos da relação da educação superior com a realidade social, bem assim com um propósito transformador, emancipatório.

Em sua visão tradicional, de uniformização, de padronização moral dos seres humanos, ainda que sob pretexto de constituição do “homem racional”, do “homem novo”, a educação superior tende a afastar as distintas possibilidades de conhecer e de interferir no mundo, estigmatizando-as como formas falsas de pensamento, como senso comum, como saber padecente de cientificidade, com efeito, passível de descarte.

É o que se dá, por exemplo, quando se colocam frente a frente os saberes indígenas e o saber universitário ou mesmo as distintas formas de comunicação humana do cotidiano e a gramática. Numa tentativa de desqualificar ou mesmo de acomodar as complexidades cognitivas em modos incapazes de lidar com as contingências do mundo da vida, o conhecimento indígena e a linguagem popular são exilados do debate epistemológico, anulando, por outro lado, qualquer possibilidade de serem avaliados como indicadores de formas de pensar distintas daquelas hegemonicamente postas, cujos pressupostos de validade são a certeza, a previsibilidade e a segurança, elementos que só se sustentam no campo dos conceitos abstratos e universalizados desde relações de poder localizadas que se globalizam e se impõem como conhecimento único, como saber de/para toda a humanidade.

Sob a perspectiva de uma visão crítica, a universidade, distinta, mas não necessariamente negativa daquilo que há de positivo nas conquistas paradigmáticas que, apesar de seus limites epistemológicos, o pensamento cartesiano-demonstrativo foi capaz de proporcionar, é preciso reconhecer o modo elitista de ser da universidade. E, para tanto, hão de se produzir reflexões importantes sobre a universidade nos seus mínimos detalhes. Sua linguagem, seu imaginário social, sua auto-imagem, seus modos de acesso e permanência para os estudantes, os seus modos de produzir ciência, e, entre outras coisas, o que se percebe por educar na universidade, precisam vir à tona para produzir a dúvida, para questionar esquemas referencias. É também um meio para que se apresentem os limites de uma forma de pensar e da educação que se produz a partir desse entendimento acerca do que significa pensar, do que é conhecer, para, por conseguinte, através de uma práxis criativa, produzir reflexões teóricas e práticas educacionais transformadoras.

Por trás de uma concepção de educação que se esboça em seu cotidiano de forma, muitas vezes, não-verbal e inconsciente, a universidade apresenta também sua intencionalidade política. Decerto, no seio de suas práticas institucionalizadas, inculcadas, introjetadas, cuja repetição se faz de forma maquinal, essa intencionalidade política se dissolve, dando a aparência de inexistente, de manifestação prática neutra oriunda de uma forma de pensar também axiológica e teleologicamente neutra, isto é, desideologizada, puramente racional. O pensar crítico, a seu turno, reconhece a intencionalidade política da universidade para avaliar o lugar social, cultural, histórico e político que precisa ser ocupado pela instituição educacional. Mas, para além disso, o pensamento crítico precisa fazer a ponte imediata do mundo universitário com a eticidade, de modo a tornar possível seu vínculo com um projeto de sociedade produzido desde as necessidades das classes exploradas e dos grupos sociais oprimidos.

E, apesar da angústia gerada com esse processo, não é no resultado que deve residir a preocupação da atividade crítica e criativa, não é para o final do processo que devem se direcionar os olhares das pensadoras e dos pensadores críticos, sob pena de cometerem erros metodológicos já vivenciados na trajetória tradicional de produção teórica. É na dinâmica do processo em si, capaz de gerar distintas possibilidades, que devem estar focados os pensadores críticos e focadas as pensadoras críticas.

Para tanto, é preciso fazer reverberar a capacidade emancipatória da universidade, a partir de uma perspectiva também libertadora de educação, cujo mote está na superação de todas as formas de opressão e desigualdades sociais para gerar justiça.

O que se pode entender por justiça, não é uma fórmula abstrata de compreender que vai indicar. É também a práxis de superação das vulnerabilidades à violação de direitos, de eliminação das diversas formas de opressão e desigualdade que vão formatando compreensões possíveis de justiça. Contudo, é preciso lembrar que, mesmo o que se entende por opressão e desigualdade, por libertação e emancipação, vão se alterando a partir da caminhada reivindicatória e das conquistas parciais que se fazem na sociedade, produzindo também alterações no que se compreende por justiça social. Como diria Lyra Filho, a justiça vai se atualizando na história e apontando os caminhos a serem seguidos com vistas a produzir mais justiça.

Neste sentido, não haveria sentido perguntar se “pode a universidade ser emancipatória?”. Ao contrário disso, seria necessário inverter a indagação de modo a não mais admitir a universidade como não-lugar da emancipação e reconhecer que toda educação é política (se faz a favor de alguém e contra alguém, como diria Paulo Freire) para ligá-la, de fato, ao propósito libertador. A pergunta, portanto, se refaz como horizonte ético-utópico constante e incansavelmente presente na práxis cognitiva: “pode a universidade não ser emancipatória?”

Em tempo, novas perguntas se erigem a partir desta, de modo que o pensamento em torno do viés emancipatório da universidade se aprofunde e não perca a sua capacidade dialético-renovadora, sendo que, de igual modo, são estas mesmas perguntas ensejadoras de outras, como se pode perceber a seguir:

1) O que significa ser a universidade emancipatória? – é promover inclusão, acessibilidade a determinados grupos sociais, é pensar a realidade, é pensar um modo de gestão compartilhada, é ter pesquisa socialmente referenciada?

2) Como se organiza o sistema de produção de conhecimento numa universidade emancipatória? – é como a ruptura com a positivação do conhecimento, como se pode dar essa ruptura?; é com a construção de outras estruturas de distribuição de poder, distinta daquela estabelecida por departamentos?

3) A universidade pode se assumir como elemento que vai além da produção de certificados para habilitação profissional? Como é possível compatibilizar a certificação, se é possível, como a liberdade de pesquisa e produção de conhecimento?

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* Membro do grupo de pesquisa “O direito achado na rua”, da Universidade de Brasília; advogado popular; mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal da Paraíba; professor licenciado do curso de Direito da Faculdade de Sergipe (FaSe).

domingo, 7 de novembro de 2010

Boas vindas!

“Kant e Fichte buscavam o país distante
pelo gosto de andar lá no mundo da lua,
mas eu tento só ver, sem viés deformante,
o que pude encontrar bem no meio da rua”
(Epigrama Hegeliano n° 3, de Karl Marx)

Sejam bem-vindas e bem-vindos,

O grupo de estudos “Diálogos Lyrianos” é um espaço de articulação de reflexões e ações em torno das questões atuais da sociedade brasileira a partir do arcabouço teórico de “O Direito Achado na Rua”.
A concepção de "O Direito Achado na Rua" é fruto da reflexão e da prática de um grupo de intelectuais reunidos no movimento Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR), cujo principal expoente foi o professor Roberto Lyra Filho[1].

A proposta do grupo “Diálogos Lyrianos” e deste blog é manter aberto e permanente o diálogo entre o pensamento do Prof. Roberto Lyra Filho e o pensamento de outros e outras que, como ele, distinguem-se pela sensível preocupação com a emancipação de mulheres e homens.
Esse diálogo é a vocação permanente de “O Direito Achado na Rua”. Para além do espaço de pesquisa acadêmica e institucional propriamente dita, que tem como referência a linha de pesquisa de mesmo nome no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), é um espaço aberto e democrático de dinamização das interlocuções de pessoas que buscam criticamente pensar e viver o Direito, sob o signo da libertação de mulheres e homens.
Por fim, as atividades do grupo de estudos são integrantes do processo de constituição e consolidação do pensamento do prof. Rberto Lyra Filho nas múltiplas leituras que são feitas de sua obra, a partir dos olhos, das práticas e das interlocuções de quem vive o tempo e os dilemas do presente.

Está feito o convite!!!


[1] SOUSA JUNIOR, José Geraldo, Introdução Crítica ao Direito, Série O Direito Achado na Rua, vol. 01, 1993, p. 07)