sábado, 16 de abril de 2016


CARTA ABERTA

TEMERÁRIAS INCONSISTÊNCIAS E FRAGILIDADES JURÍDICAS DO PARECER APRESENTADO PELO RELATOR DA COMISSÃO ESPECIAL

O Estado Democrático e Constitucional de Direito não admite violações a garantias fundamentais estabelecidas nem a condução de um julgamento de exceção, consubstanciado por um processo de impeachment sem fundamento jurídico. O princípio democrático não pode, em absoluto, ser relativizado.

O requisito central para o impeachment é a prova da existência de crime de responsabilidade, o que não há. Além disso, os fins não justificam os meios: mesmo no afã de se tentar provar a existência de um crime de responsabilidade não ocorrido, o devido processo legal precisa ser respeitado e não pode ser admitida qualquer violação ao contraditório, à ampla defesa e à garantia de um processo hígido.

O processo de impeachment instaurado no âmbito da Comissão Especial vem sendo conduzido de forma temerária e deve ser anulado e rejeitado por, entre outras, as seguintes razões: 

1.    Do desrespeito aos limites da denúncia admitida

A denúncia contra a Presidenta da República por suposta prática de crime de responsabilidade foi recebida pelo Presidente da Câmara dos Deputados apenas parcialmente, tendo sido rejeitada em sua maior parte, especialmente quanto aos fatos ocorridos em 2014, ou seja, anteriores ao atual mandato presidencial. A decisão de admissibilidade da peça acusatória estabeleceu os limites das atividades da Comissão Especial.

A primeira ilegalidade, nesse contexto, é a decisão do Presidente da Câmara dos Deputados que deferiu o pedido dos denunciantes para anexar aos autos a íntegra da colaboração (delação) premiada, celebrada entre a Procuradoria-Geral da República e o Senador da República Delcídio do Amaral. Não há absolutamente nenhuma relação fática ou jurídica com o objeto delimitado no procedimento instaurado, além de também versar sobre fatos pretéritos ao presente mandato, o que é vedado pelo art. 86, § 4º, da Constituição Federal de 1988.

O Presidente da Câmara dos Deputados, paradoxalmente, contrariou a sua própria decisão.

Esse fato, mais do que uma nulidade formal, contaminou debates realizados na Comissão Especial, afastando-os dos estreitos limites definidos na decisão de admissibilidade, provocando violação do direito de defesa da Presidenta da República.

Como se não bastasse, é absolutamente impossível a utilização de prova emprestada de processo judicial quando, neste, ainda não foi exercido o direito ao contraditório. A juntada colaboração premiada nulifica o processo sob qualquer perspectiva que se analise.

2.    Da invenção de etapas procedimentais

A despeito da inexistência de previsão em lei ou no regramento estabelecido no processo de impeachment do ex-Presidente Fernando Collor, que serviu de parâmetro para o Supremo Tribunal Federal na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 378, a Comissão Especial criou uma etapa destinada ao “esclarecimento da denúncia”, para a qual foram convocados os próprios subscritores da peça acusatória.

Apesar de a denúncia ter sido recebida de forma apenas parcial, o Presidente da Comissão Especial anunciou que os subscritores da denúncia iriam se manifestar sobre o conteúdo integral da denúncia por eles originalmente apresentada. Ou seja, embora o objeto do procedimento de impeachment tenha sido rigorosamente delimitado, o Presidente da Comissão Especial permitiu que os denunciantes se manifestassem sobre o conteúdo não admitido da denúncia, o que efetivamente aconteceu.

A pretexto de “esclarecer a denúncia”, os denunciantes abordaram questões totalmente estranhas à acusação recebida, abordando fatos, inclusive, anteriores ao exercício do mandato da Presidenta da República.

Uma denúncia cujo conteúdo precise ser esclarecido merece ser rejeitada por inépcia. Não há obviedade maior do que essa.

Esse procedimento ofendeu o princípio do devido processo legal, do contraditório, da estabilização objetiva da demanda e da possibilidade de oferta de uma defesa que, com segurança e certeza, pudesse propiciar uma adequada apreciação do que está sendo debatido no processo de apuração de crime de responsabilidade, de forma que resta patente a violação ao disposto no art. 5º, LV, da Constituição Federal, bem como na Lei nº 1.079, de 1950, e no próprio Código de Processo Penal, a ela subsidiariamente aplicado. Finalmente, esse procedimento inventivo contrariou a decisão proferida pelo STF na ADPF nº 378.       

3.    Da ausência de intimação da acusada

Tendo sido designada a oitiva dos denunciantes para prestar esclarecimentos sobre a denúncia originalmente apresentada, procedimento ilegal pela própria natureza, a Presidenta da República, na qualidade de acusada, deveria ter sido intimada para que pudesse comparecer à sessão, diretamente ou por intermédio de seus advogados.

Não se pode admitir que a defesa da acusada tenha sido privada do acompanhamento da sessão que buscou “esclarecer os fatos denunciados”. Não há como negar, portanto, o prejuízo ao exercício do direito de defesa da Presidenta da República no processo de apuração de crime de responsabilidade. As violações perpetradas ofendem os princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV, da Constituição Federal).

O Parecer do Relator, por sua vez, afirma que a ausência de intimação da defesa para comparecer ao depoimento dos denunciantes “não trouxe prejuízo”. Todavia, o prejuízo restou claramente consubstanciado na inviabilização à defesa da possibilidade de intervir para apresentar quesitos, esclarecer equívoco ou dúvida surgida em relação a fatos, documentos ou afirmações que influam no julgamento, bem como para replicar acusação ou censura que lhe forem feitas, direitos expressamente assegurados aos advogados pelo Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906, de 1994).


4.    Do indeferimento de voz ao Advogado da acusada

Na sessão em que foi apresentado o Parecer do Relator, realizada no dia 06 de abril de 2016, houve mais uma violação ao Estatuto da Advocacia e ao direito de defesa da Presidenta da República.

O advogado da Presidenta da República designado para acompanhar a sessão foi impedido de fazer uso da palavra, negando-se vigência ao disposto no art. 7º, XI, do Estatuto da Advocacia, sob a alegação improcedente de que não se estaria diante de um "tribunal". Ora, de acordo com os explícitos termos do referido dispositivo, é direito do advogado "reclamar, verbalmente ou por escrito, perante qualquer juízo, tribunal ou autoridade, contra a inobservância de preceito de lei, regulamento ou regimento".

5.    Da ampliação do espectro das imputações no Parecer do Relator

O Relator, em seu Parecer, afirma que o Presidente da Câmara dos Deputados, ao receber a denúncia, emitiu um mero juízo “precário, sumário e não vinculante” e que a Comissão Especial poderia analisar todo o teor da denúncia, mesmo a parte não admitida pelo Presidente, o que é um absurdo.

Entretanto, o próprio Relator, apesar da premissa anunciada, manipula a informação e afirma várias vezes que o Parecer só analisaria os pontos da denúncia admitidos pelo Presidente.

Não é dado ao Relator o poder de escolher arbitrariamente o que quer relatar. Por imposição do princípio da imparcialidade e para garantir a ampla defesa, ou tinha o dever de analisar tudo (seguindo a equivocada linha de raciocínio inicialmente esposada pelo próprio) ou deveria se limitar ao circunscrito pela decisão que admitiu apenas parcialmente a denúncia apresentada, abstendo-se de inserir qualquer conteúdo estranho ao objeto do processo, notadamente o que já houvesse sido expressamente afastado pela decisão do Presidente da Câmara dos Deputados.

No plano semântico, da interpretação dos fatos, é admissível e perfeitamente natural que coexistam posições divergentes. Por essa exata razão, a Constituição não outorgou o poder de proferir a drástica decisão do afastamento de uma Presidenta da República a um único julgador, mas, antes, exigiu a concordância de dois terços dos membros da Câmara dos Deputados e de dois terços dos membros do Senado Federal. Todavia, a fidedignidade no relato dos fatos, atribuição desempenhada individualmente pelo Relator na Comissão Especial, configura, acima de tudo, um imperativo ético.

Ao afirmar que todo objeto da denúncia poderia ser analisado, o Parecer ofendeu, ainda, o princípio da estabilização objetiva do processo e deixou de respeitar a delimitação dos fatos que deveriam ser abordados pela defesa, deixando-a insegura quanto às acusações a que deveria responder.

Contraditoriamente, embora tenha afirmado que só analisaria o objeto das denúncias no quanto fora recebido pela decisão do Presidente da Câmara dos Deputados, o Relator fez inúmeras menções a fatos que não guardam nenhuma relação com a delimitação original, conforme se verifica, exemplificativamente, nas páginas 9 a 14, 91 a 110, 118 e 127.

Também deturpou o que deverá ser decidido pela Comissão Especial e, posteriormente, pelo Plenário da Câmara dos Deputados, tendo em vista que abriu margem para que a decisão dos parlamentares se lastreasse em qualquer fato ou argumento, independentemente de comprovação. Ao assim proceder, construiu-se uma absurda possibilidade de a Presidenta da República poder vir a ser responsabilizada por um fato que não constou da denúncia ou da defesa, e sobre o qual, portanto, não houve qualquer contraditório.

Outrossim, o Parecer violou o Regimento Interno da Câmara dos Deputados, na medida em que desconsiderou totalmente que a via adequada para ampliar o objeto do processo seria a interposição de recurso ao Plenário contra a decisão que admitiu apenas parcialmente a denúncia, nos termos do art. 218, § 3º.

6.    Banalização do Processo de Impeachment

O Relator adota a premissa inconstitucional de que bastariam meros indícios plausíveis da ocorrência de ilícitos para a Câmara dos Deputados autorizar a abertura do processo de impeachment da Presidenta da República.

Fosse essa a intenção do constituinte, não estariam previstos na própria Constituição rígidos requisitos para a instauração de processo contra a Presidenta da República, que requer quórum qualificado de dois terços dos membros da Câmara dos Deputados, tipificação em lei especial e adstrição a atos praticados na vigência do mandato, relacionados diretamente ao exercício das suas funções.

Em verdade, o Relatório uma vez mais manipula a informação, haja vista que na sua introdução tece extensas - e adequadas - considerações acerca da natureza do processo de impeachment no âmbito dos regimes presidencialistas, inclusive corroborando o quanto exposto na defesa apresentada pela Presidenta da República, para, na conclusão, propor um verdadeiro juízo político, sem base jurídica, acerca da conveniência de sua permanência no mandato.

Faz-se necessário, pois, reafirmar que no regime presidencialista adotado pela Constituição Federal de 1988, o Parlamento não possui o poder de afastar um Presidente legitimamente eleito por razões de conveniência política, o que somente poderia ocorrer caso houvesse a previsão de um instituto similar à "moção de desconfiança", própria do parlamentarismo.

Ademais, desconsiderar essa importante distinção é transformar em letra morta também a cláusula pétrea inserta no parágrafo único do primeiro artigo da nossa Carta Magna, que dispõe que todo o poder emana do povo e por ele será exercido, diretamente ou por meio de representantes eleitos, nos termos da Constituição. O poder exercido pelos parlamentares, portanto, é delegatário da soberania popular e se encontra estritamente delimitado pelo texto constitucional. Não foi outorgado a nenhum parlamentar brasileiro, no momento da sua investidura, o poder ou a legitimidade para fazer um juízo de conveniência política, em substituição à vontade do povo expressa diretamente nas urnas.



7.    Omissão do parecer quanto ao desvio de finalidade do Presidente da Câmara

O Parecer foi omisso quanto às preliminares de nulidade arguidas pela defesa da Presidenta da República, abstendo-se de analisar as alegações, acompanhadas de robustas evidências de conhecimento público, do desvio de finalidade que maculou de forma insanável o ato de recebimento da denúncia pelo Presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha.

Não se pode aceitar que uma alegação tão contundente quanto a ocorrência de nulidade absolta de um ato derivado de desvio de finalidade, posto que motivado em vingança pessoal, simplesmente seja ignorado pela relatoria. 


8.    Ausência de ilegalidade nos Decretos que abrem créditos orçamentários na meta fiscal

O Parecer não logrou demonstrar que a abertura dos créditos suplementares tenha efetivamente violado as disposições normativas vigentes, sobretudo em face da interpretação majoritária ao tempo da edição dos aludidos decretos.

Em verdade, a abertura dos créditos suplementares ocorreu em estrita observância às regras de regência, em especial ao art. 167, inciso V, da Constituição Federal de 1988 e ao art. 4º da Lei nº 13.115/2005.

Ainda, a atuação da Presidenta da República foi amparada em pareceres técnicos e jurídicos que recomendavam a sua edição, na prática consolidada da Administração em governos anteriores e em outros Estados da federação, bem como na jurisprudência do Tribunal de Contas da União que vigorou até o entendimento firmado em outubro de 2015, antes, portanto, da edição dos decretos questionados.

Tais elementos descaracterizam, portanto, o dolo na conduta da Presidenta da República, sem o que se afigura impossível a caracterização de crime de responsabilidade.

Ao contrário, na tentativa falseada de apontar má-fé na atuação da Presidenta da República, o parecer alega a existência de discussão pública acerca da regularidade dos decretos. Admitindo-se que existiria a aludida controvérsia, é de se notar que o próprio TCU ainda perfilhava o entendimento ostentado pelo Poder Executivo por ocasião da edição dos decretos, ou seja, se havia discussão pública, era no sentido de confirmar a posição adotada pelo Executivo, o que, por si só, afastaria qualquer má-fé da Presidenta.

A conclusão do Parecer apenas seria sustentável caso se admitisse a aviltante hipótese de retroatividade da interpretação do Tribunal de Contas da União, adotada apenas a partir de outubro de 2015, a fim de penalizar a Presidenta da República por agir de acordo com práticas consolidadas por mais de 50 anos, desde a edição da Lei nº 4.320/64, e 15 anos de vigência da Lei de Responsabilidade Fiscal. Não há que se falar em má-fé, portanto, diante de práticas admitidas e adotadas pelo próprio órgão responsável por atuar na fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União.

Com efeito, o Parecer não logrou refutar tais questões trazidas pela defesa, não contradizendo em nenhum momento o fato de que a partir da guinada jurisprudencial, não mais foi editado qualquer Decreto para abertura de créditos suplementares à conta de excesso de arrecadação ou superávit financeiro do exercício anterior.

Consta, sim, que no relatório preliminar do Ministro Augusto Nardes acerca das Contas de 2014, apresentado em junho de 2015, não havia qualquer menção sobre a irregularidade desta prática. A mudança da interpretação do TCU se deu apenas em outubro de 2015, consubstanciada no Acórdão 2.461, posteriormente à edição dos decretos em tela, publicados em julho e agosto de 2015.

Nesse ponto, observa-se que o TCU havia se manifestado anteriormente sobre a legalidade e aceito como conduta condizente com a LRF a utilização da proposta de alteração da meta fiscal nos relatórios bimestrais. (http://portal.tcu.gov.br/tcu/paginas/contas_governo/contas_2009/Textos/CG%202009%20Relat%C3%B3rio.pdf)

Observa-se, ainda, que o Parecer do Relator aponta a possibilidade de ao menos duas interpretações para o caput do art. 4º da LOA, o que por si só já indica que há controvérsia jurídica na sua interpretação. Mais curioso é notar que nenhuma das interpretações apontadas no relatório corresponde à compreensão vigente nos últimos 15 anos.

Oportunamente, observa-se que o TCU já se manifestou no sentido de que ainda se encontram pendentes de análise os Decretos de abertura de créditos suplementares ao Orçamento Geral da União de 2015, não havendo quaisquer elementos no processo que indiquem irregularidades praticadas no curso do atual mandato presidencial (http://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/nota-de-esclarecimento-32.htm).

Como dito anteriormente, fidedignidade no relato dos fatos é um imperativo ético.

Subsidiariamente, no mérito, cumpre reafirmar a distinção conceitual, teórica e normativa, entre gestão orçamentária e gestão financeira, que passa ao largo do Parecer apresentado pelo Relator, o qual confunde a autorização de limites orçamentários com o efetivo dispêndio de recursos, este sim elemento relacionado à meta de resultado primário.

Na medida em que os decretos de abertura de créditos orçamentários apenas ampliam a dotação orçamentária, não promovendo dispêndio, incabível falar-se que estes por si constituem violação da meta fiscal. Em outras palavras, tem-se que a mera ampliação da autorização orçamentária não implica maior gasto, pois encontra-se restringida pela limitação de empenho e movimentação financeira (contingenciamento). Haveria violação da LOA se a abertura de crédito não tivesse sido acompanhada de contingenciamento financeiro, o que não foi demonstrado pela denúncia ou pelo Parecer.


9.    Ausência de conduta da Presidenta da República no tocante às "pedaladas fiscais"

Não há crime sem conduta.

Verifica-se que o Parecer do Relator não superou a falha basilar da denúncia oferecida contra a Presidenta da República no tocante à não configuração de sua conduta no âmbito do que foi - erroneamente - apelidado de "pedalada fiscal". Isto é, não demonstrou, sob nenhum aspecto, qual haveria sido a ação ou omissão imputável pessoalmente à Presidenta, diretamente orientada à violação da Lei de Responsabilidade Fiscal, o que, demais disso, nem abstratamente configuraria crime de responsabilidade dentro dos estritos parâmetros constitucionais e legais.

Conforme consignado pelo eminente criminalista Eugenio Raúl Zaffaroni, "o princípio nullum crimen sine conducta é uma garantia jurídica elementar. Se fosse eliminado, o delito poderia ser qualquer coisa, abarcando a possibilidade de penalizar o pensamento, a forma de ser, as características pessoais etc". O professor prossegue pontuando que "no momento de nossa cultura isto parece suficientemente óbvio, mas apesar disto, não faltam tentativas de suprimir ou de obstaculizar este princípio elementar". (Zaffaroni, Eugenio Raúl. Manual de direito penal brasileiro, vol. 1: parte geral. 7ª ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 354)

De fato, os tempos atuais exigem cada vez mais que reafirmemos e defendamos aquilo que se acreditava ser óbvio, sobremaneira no plano da garantia dos direitos fundamentais, da preservação dos princípios republicanos e da ordem democrática.

Em certas situações o óbvio precisa ser lembrado e reafirmado:

I - A democracia permite a divergência sobre a correção das decisões políticas, mas a decisão última sobre os erros e acertos, em um regime democrático, repousa no voto popular;

II - Mesmo aos parlamentares eleitos pelo povo não é dado pela Constituição o poder de excluir o chefe do Executivo, também eleito pelo sufrágio, com base em dissensos políticos, mas apenas na hipótese estrita e excepcional do crime de responsabilidade, o que até agora não se provou;

III - Ainda quando estivermos diante de uma hipótese que se enquadre à moldura típica abstrata de um crime de responsabilidade, é indispensável que o processamento, desde o seu início, se dê com plena observância do devido processo legal, do direito ao contraditório e à ampla defesa e todas as garantias constitucionais do Estado Democrático de Direito;

IV - A fidedignidade no relato dos fatos é um imperativo ético, pois a ninguém é dado, muito menos a um julgador, escolher arbitrariamente qual parcela da realidade incluirá na sua narrativa, bem como quais fatos levará em consideração para fundamentar sua decisão, passando por cima do direito ao contraditório e obstaculizando injustificadamente o exercício da ampla defesa;

V - Não há crime de responsabilidade sem dolo e não há dolo, nem má-fé, quando uma ação é praticada com base em entendimentos amparados em pareceres técnicos, jurídicos, decisões de tribunais de contas e práticas consolidadas no tempo por governos anteriores, inclusive em outros entes da federação;

VI - Não há crime de responsabilidade sem conduta e conduta não se pressupõe em abstrato, devendo ser demonstrada concretamente pela acusação, pois é uma impossibilidade lógica, fática e jurídica que alguém comprove que não praticou um ato que a própria acusação não sabe apontar qual foi;

VII - No âmbito de um processo que pode culminar no afastamento de uma Presidenta da República, é medular que se promova um processo hígido e sem vícios, motivado por razões verdadeiras, legítimas e republicanas, fundado em indícios com lastro probatório, que respeite o contraditório e a ampla defesa em todos os momentos, e se desenvolva conforme um rito processual regular e que garanta a segurança jurídica. Trata-se de direito fundamental e inafastável não apenas da acusada, mas, sim, de todo o povo brasileiro. Muito especialmente, trata-se de um dever e um compromisso vital para com as gerações vindouras.

Brasília, 12 de abril de 2016



MARCELLO LAVENÈRE
Ex-Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil


CEZAR BRITTO
Ex-Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil



MARCELO DA COSTA PINTO NEVES
Professor Titular de Direito Público da Universidade de Brasília
Doutor em Direito pela Universidade de Bremen
Pós-Doutorado na Universidade de Frankfurt
Pós-Doutorado na London School of Economics and Political Science



JOSÉ GERALDO DE SOUSA JÚNIOR
Ex-Reitor da UnB
Professor de Direito da Universidade de Brasília
Doutor em Direito pela Universidade de Brasília


PEDRO ESTEVAM ALVES PINTO SERRANO
Advogado
Professor de Direito Constitucional da PUC/SP
Doutor em Direito do Estado pela PUC/SP
Pós-Doutorado na Universidade de Lisboa


JULIANO ZAIDEN BENVINDO
Professor de Direito da Universidade de Brasília
Doutor em Direito Público pela Universidade Humboldt de Berlim e UnB


BEATRIZ VARGAS RAMOS
Professora de Direito Penal e Criminologia da UnB
Doutora em Direito pela Universidade de Brasília


MENELICK DE CARVALHO NETO
Professor de Direito da Universidade de Brasília
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais


CRISTIANO PAIXÃO
Professor de Direito da Universidade de Brasília
Doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais



quarta-feira, 13 de abril de 2016

"Os fins justificam os meios no Estado Democrático de Direito?" [1]

Por Sara Côrtes, professora da Faculdade de Direito da UFBA
O filósofo alemão Friedrich Hegel nos ensina que o Direito é algo que se sabe (e nós tratamos aqui deste saber jurídico), mas também é algo que se quer (e por isso há sempre escolhas no emaranhado de saberes).
Assim, Hegel afirma que o Direito é acima de tudo aquilo que se reconhece, retirando o Direito do campo do saber, exclusivamente, e do campo da autonomia da vontade, colocando-o num campo do reconhecimento.
A pergunta que orienta esse debate pode ser: o que nós, diante dos nossos diferentes saberes (técnicos e humanísticos), que, necessariamente envolvem uma opção por valores, e diante dos nossos quereres que necessariamente envolvem uma opção sobre interesses vamos reconhecer, socialmente, como Direito neste momento da vida política nacional?
A socióloga Vera Malaguti Batista, em um livro denominado O Medo na Cidade do Rio de Janeiro – em que debate a histórica Revolta dos Malês, que tanto marcou a formação de um espírito na cidade de Salvador – nos ajuda ao dizer que “as formas de saber são sempre e, inevitavelmente, locais, inseparáveis de sua vida concreta, de sua história”. Alma, olho e mão. O que sentimos, o que vemos e o que fazemos, é o que nos faz quem somos. É na ação que sabemos quem efetivamente somos.
Diante do que sinto, vejo e da minha ação até aqui, tomo como pressuposto que não se dará um único passo no conhecimento da vida política e jurídica do nosso tempo sem nos interrogarmos sobre o autoritarismo ainda presente na sociedade brasileira e os métodos autoritários dos regimes ditatoriais que vivemos até aqui no Brasil.
As prerrogativas constitucionais – os meios dados a essas carreiras do modo como estão sendo usados têm como fim um regime de terror que se tornará insuportável para a própria burocracia, cujos efeitos serão sofridos por todos se o princípio da organização política e social não for modificado, se a noção de Direito não for elevada. Quando se amedrontam corpos, se enervam espíritos. É preciso dizer as palavras e colocá-las ao vento: são tempos autoritários, opressivos, arbitrários, seletivos, despóticos.
Vemos vociferações contra o Estado como tal na sua dimensão de Direito social, constitucionalmente garantido – corte de gastos, menos impostos, privatização, contingenciamento... Numa palavra: neoliberalismo.
Fomos acostumados nos últimos tempos com uma política de destruição de direitos civis pela privatização de serviços públicos, com uma economia de monopólio e desemprego estrutural em que se desmantelavam direitos trabalhistas sob o signo da “flexibilização”, e mais uma vez os professores de Direito falam em acabar, reduzir a Justiça do Trabalho.
Vociferam por um Estado policialesco que se reduza à repressão dos movimentos sociais. Vemos vociferações contra a política como tal na sua dimensão de direitos políticos democráticos – inclusive a organização partidária, contra todos os poderes pequenos ou grandes organizados em partido.
Ao mesmo tempo, vemos uma sanha para aumentar o gasto público das carreiras da segurança pública, aumento do encarceramento em geral e do encarceramento preventivo, cautelar, sem julgamento.
Se estamos excitados com tantas prisões e conduções coercitivas, e delações, e grampos, numa ordem quase frenética, onde o clamor popular ora é fundamento de condução coercitiva para evitar clamor público, ora é incitado por nota do juiz via Rede Globo, eu pergunto: onde mora o seu Leviatã?
O que fizemos com o liberalismo de Locke e a democracia de Rousseau? Somente Hobbes fincará a nossa história de tempos em tempos, nesta infantilização da sociedade pela ideia de um Direito do Estado e de um Estado que age, supostamente, nos limites do Direito?
Parte dessas instituições ao mesmo tempo que vocifera contra a política, transforma-se em partidos políticos, com pautas legislativas próprias, articulações com a mídia, com as ruas, com ideólogos ativos, publicitários que criam nomes das fases das operações, a de hoje chama-se “Acarajé”.
E por que é arriscado? Porque superam o sistema representativo, porque aniquilam a soberania popular, porque não são eleitos e não estão submetidos ao crivo da crítica e da avaliação pública como os membros dos partidos, do Executivo e do Legislativo. Porque não construíram modos de participação e controle social destes seus poderes.
Mas, principalmente, neste momento, porque incitam as ruas, como uma “onda”, como multidão, mas não possuem métodos e meios de organização legítima para fazer desaguar as contestações, passando pelo crivo do debate público em propostas concretas, onde valham o melhor argumento. É um incitar a multidão sem dia seguinte, sem esperança.
Forma-se um partido com um juiz como liderança política, com ministro do Supremo definindo governabilidade e quem será o ministério da Presidenta – com forte apelo personalíssimo – sem regras de organização partidárias, cotas para mulheres, congressos, eleições, votações, sem formação de opinião e responsabilidade de escolha pelo voto desta ou daquela proposta. Há um ódio à democracia – não como os generais, pior, pois é o sentimento maquiado sob os traços de direito.
Nada mais importante neste momento do que processar a ingenuidade, revelar o que se esconde sob aparências. Há uma justiça para as ideias como para os indivíduos e ela ignora a generosidade dos sentimentos.
O Estado autoritário não é apenas um Estado em que a arbitrariedade flagela, e nós já vemos isso na atuação deste Estado com os movimentos sociais com um aumento da força militar, usada na transposição do São Francisco, contra os índios e comunidades tradicionais no campo, contra os jovens negros nas favelas e bairros periféricos, nas manifestações da Copa, legalizadas por Decreto de Lei e de ordem e lei antiterrorismo.
O Estado autoritário é um Estado que em seu princípio denega o direito, denega o livre exercício do pensamento, da expressão numa cor, numa estética, (o vermelho), da expressão num autor (Marx) e sua tradição de pensamento revolucionário onde insere o direito na luta de classes.
Quem vai ser o baluarte entre a sociedade pervertida e a boa sociedade? O Poder Judiciário? O nosso empreendimento se apresenta sob o signo da criação do novo, sem explorar mitos, petrificar relações sociais, desarmar os conflitos de uma sociedade patriarcal, ou expulsar tudo que dê sinal de autonomia e criatividade.
Tenho apenas por hipótese, seguindo Jessé Souza na obra A Tolice da Inteligência Brasileira ou como um país se deixa manipular pelas Elites, que nos mantivemos enclausurados, dogmáticos, por não conseguirmos romper com duas anistias – a de senhores de escravos e a dos militares – para seguir garantindo uma sociedade dos 1% de ricos e um Estado gerido para 20%.
Bloquearam-se os efeitos jurídicos dos atos de fim da escravidão e reconhecimento dos negros escravizados como sujeitos de direito. Bloquearam-se os efeitos jurídicos do fim da ditadura – com novo desenho institucional para relação Estado – Sociedade Civil – sem desmilitarização das polícias, sem auditoria da dívida pública contraída na ditadura.
Ao não desbloquear de uma vez por todas os efeitos jurídicos que passam pela distribuição mais justa da terra, produção de riqueza pelo trabalho e do conhecimento e cultura, e apostar numa ampliação do estado policial e direito penal do inimigo, sujeitaremos indivíduos e grupos a não conseguirem nada melhor do que apodrecer os laços de sociabilidade e construir uma imensa rede de coerção.
A democracia carrega dentro dela a potência adversa do Estado autoritário que já opera nas periferias como estado policial. Operou, por exemplo, em junho de 2013 com as prisões políticas, a prisão ilegal de Rafael Braga por ser morador de rua e portar Pinho Sol.
Nos nossos dias os protestos provenientes da rua podem vir a dar sentido à invenção democrática e no mesmo passo podem desaguar em fragilidades, fracassos e contradições de um tipo de Estado que num prazo curto justifique o sufocamento das liberdades.
Enquanto isso é importante saber, conhecer e reconhecer um direito que ajude este país, estes jovens, a livrar-se da imagem de um Leviatã que bloqueará o nosso horizonte para sempre, ou por um longo tempo, livrar-se da imagem de um juiz egocracta que quer superar uma revolução democrática que correu por séculos e faz uma divisão social, na ideia dos direitos, diferenciando pela primeira vez entre Poder, lei e saber, que ficam expostos aos conflitos de classe de grupos e de indivíduos.
Como nos ensina Claude Lefort: A democracia é invenção, pois longe de ser a mera conservação de direitos, ou garantia de lei e ordem, é a criação ininterrupta de novos direitos, a reinstituição permanente do social e do político.
Como criação de direitos como reconhecimento das divisões internas e das diferenças constitutivas do social e do político, a democracia abre para história a alteridade em toda a espessura do social, o reconhecimento do outro, da diferença e assim impedido de se petrificar."
[1] O texto também pode ser conferido na publicação de "Cara Capital", no campo "Democracia", sob o título "Os fins justificam os meios no Estado Democrático de Direito?". A postagem original do texto foi realizada por Maira Kubík Mano, aos 31/003/2016, no site da revista.
Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/no-estado-democratico-de-direito-os-fins-justificam-os-meios>. Acesso: 13 abr. 2016.