quarta-feira, 28 de junho de 2023

 

Continuidades e Descontinuidades da Posse e Apropriação da Terra/Território na Região Oeste da Bahia

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

Cloves dos Santos Araújo. Continuidades e Descontinuidades da Posse e Apropriação da Terra/Território na Região Oeste da Bahia. Tese de Doutorado em Geografia. Salvador: Universidade Federal da Bahia. Programa de Pós-graduação em Geografia do Instituto de Geociências, 2023, 301 fls.

 

Trata-se de tese de doutoramento, apresentada e defendida perante a Banca Examinadora constituída pelas professoras e pelos professores Guiomar Inez Germani – Orientadora, Universidade Federal da Bahia; Stella Rodrigues dos Santos, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Universidade do Estado da Bahia (UNEB); Celso Antonio Favero, Universidade do Estado da Bahia (UNEB); Valney Dias Rigonatto, IESA/UFG, Universidade Federal do Oeste da Bahia, UFOB; Iremar Barbosa de Araújo; Coletivo de Comunidades de Fundos e Fechos de Pasto da Bacia do Rio Corrente (Membro Externo); Gilca Garcia de Oliveira (Suplente), Universidade Federal da Bahia (UFBA). Também eu tive a honra de integrar, essa banca singular, para a defesa de uma tese que articula geografia e direito.

 

            A tese, a partir de sua abertura, já coloca a banca num espaço delimitado pelo Autor, epistemologicamente geo-referenciado. Diz ele:

Esta pesquisa surge de um processo que compreende a articulação de quatro espaço-tempos fundamentais: i) o espaço-tempo da minha vivência com a conflitualidade socioterritorial, que é mais alargado e se encontra com os demais no meio do caminho; ii) o espaço-tempo da minha formação acadêmica, cujos debates em seminários e grupos de estudo e pesquisa exerceram papel crucial para a problematização e a apreensão dos conceitos e categorias de análise, tais como os de espaço, território e renda da terra; iii) o espaço-tempo de minha participação na extensão, que articula os dois primeiros no contato e na troca de saberes com comunidades camponesas e das periferias urbanas e, iv) o espaço-tempo de minha atuação profissional como advogado de movimentos sociais urbanos e rurais.

Portanto, a tese começa e termina com uma consideração que equivale a uma licença epistemológica para estabelecer um Carrefour entre racionalidades e mapas cognitivos que permitam o trânsito entre a Geografia e o Direito.

            Na conclusão, aliás, Cloves justifica essa opção (p. 284):

 

Abrimos o caminho ou reavivamos caminhos já abertos por pesquisas anteriores, entendendo que os problemas da espacialização (da produção histórico-social dos espaços e dos territórios) e da produção/transformações dos campos político-jurídicos, e das suas inter-relações, estão situados dentre os principais desafios desta Tese. Em outros termos, na condição de pesquisador em Geografia, com a trajetória percorrida no campo do Direito, o propósito inicial foi olhar essa conflitualidade e identificar como se dão os processos de espacialização e de produção do político-jurídico de forma articulada. Essa articulação entre a Geografia e o sistema Político-Jurídico está na base da formação histórica do sistema-mundo, desde a fundação do Estado Moderno no Século XVI, com o processo de colonização da América que se inicia naquele contexto, com a Filosofia e a Ciência a serviço deste projeto de mundo cartografado e regulado, conforme já dissemos em outro lugar (ARAÚJO, 2019).

Justificativa até desnecessária, em boa medida. Basta ver Boaventura de Sousa Santos em sua emblemática aula maior proferida na Universidade de Coimbra na abertura do ano letivo 1985/1986, posta depois amplamente em circulação no formato de Um Discurso sobre as Ciências (Porto: Edições Afrontamento, 1987).

Nesse texto que teve o alcance de um protocolo para o estabelecimento de um paradigma emergente para um conhecimento emancipatório e humanizador, Boaventura vai caracterizar um mal-estar no racional cognitivo (hoje ele já fala em império cognitivo agonizante), para identificar o desconforto de campos mal dispostos nas dicotomias impotentes do paradigma dominante fundado no positivismo científico (natureza/cultura; mente/matéria; observador/observado; subjectivo/objetivo; colectivo/individual; animal/pessoa). E, para superar essas distinções dicotômicas nas disciplinas científicas, ele vai localizar mobilizações internas a alguns desses campos para se reverem em seus protocolos epistemológicos, e nesse passo, considerar a exemplaridade…da Geografia (p. 40):

Sempre houve ciências que se reconheceram mal nestas distinções e tanto que se tiveram de fracturar internamente para se lhes adequarem minimamente. Refiro-me à antropologia, à geografia e também à psicologia. Condensaram-se nelas privilegiadamente as contradições da separação ciências naturais/ciências sociais. Daí que, num período de transição entre paradigmas, seja particularmente, do ponto de vista epistemológico, observar o que se passa nessas ciências.

Pode-se, sim, mesmo em recorte mais disciplinar, chegar-se a modelos em que o pluralismo de sistemas geográficos e jurídicos (urbano, rural, ambiental, energético, transportes, saneamento etc.) seja percebido em limite que “inviabilize a compreensão da Geografia de Estado e do Direito Administrativo como um todo, sem uma governança que possibilite a produção de informações espaciais que sejam oficiais e confiáveis, e tampouco o emprego de uma tecnologia que impeça a ausência de padronização, de sobreposição de mapas com conceitos antagônicos, bem como de espaços territoriais não cartografados”, conforme  Luiz Ugeda, em Direito administrativo geográfico : fundamentos na geografia e na cartografia oficial do Brasil. Brasília: Geodireito, 2017, p. 388, originada de tese de doutorado defendida na UnB, em 2014, no Departamento de Geografia, quando tive a oportunidade de examinar o trabalho, na banca examinadora, formada por mim e pelos professores Alcindo José de Sá, Marilia Luiza Peluso, Ricardo Mendes Antas Júnior e do orientador Rafael Sanzio Araújo dos Anjos.

Mas, para mim, primeiro território epistemológico demarcado por Cloves é o da subjetividade, posição que o Autor assume de saída. O que me leva também a me posicionar sobre a legitimidade dessa perspectiva, e o faço, repetindo ponto de vista que externei há poucos dias no exame de outro trabalho com características epistemológico-metodológicas de igual estirpe.

Refiro-me a Dissertação de Carlos Henrique Naegeli Gondim, cuja defesa Cloves acompanhou “É LIVRE: o Direito Achado nas terras coletivas de Quebradeiras de Coco Babaçu, de Quilombolas e de assentados da Reforma Agrária em Monte Alegre – Olho d’Água dos Grilos, Maranhão”. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2023, 199 fls.:

 

 

Uma subjetividade, contudo, convertida em rigor teórico-metodológico, que não se deixa refletir em subjetivismo enviesado. Mas que repercute todo esse enlace de saber-sentimento tecido por racionalidades sensíveis (Maffesoli) ou poéticas (Martha Nussbaum), que possam animar compromissos de solidariedade, em linguagem inclusive pastoral própria dos seus engajamentos com a ação emancipatória, libertadora, agora se reencontrando depois de um purgatório pontifício, com a teologia poética do Papa Francisco, que a mim também me tem tocado, não fosse eu membro ativo da Comissão Justiça e Paz de Brasília, para preservar a formação pastoral e missionária que o Autor revela, numa referência a sua adesão a uma teologia posta a serviço do mundo e da história, feita de libertação.

Epistemologicamente preservado o distanciamento que o científico positivista tanto valoriza, mesmo num campo de conhecimento que admite juízos de valor e não somente juízos de fato, a Dissertação felizmente mantem, no estilo, na estrutura, nas metáforas, o arranjo co-razonado, senti-pensante (Fals Borda), de forte aplicação nas abordagens de O Direito Achado na Rua. Para uma referência de aplicação, ver PEÑA AYMARA, Shyrley Tatiana. A Subjetividade do Sujeito Coletivo de Direito: Senti-pensar e Co-razonar, in FIGUEIREDO, Ana Cláudia Mendes de et al (organizadores)O Direito Achado na Rua: sujeitos coletivos. Só a luta garante os direitos do povo! Coleção Direito Vivo volume 7. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2023.

Também o trabalho de Cloves se reveste dessa licença autorizada para literalizar a narrativa, inserindo biografia e projeto de vida, afetos que trazem amorosidade para o enredo da Dissertação, com histórias, em primeira pessoa (Boaventura de Sousa Santos. Sociologia na Primeira Pessoa: fazendo pesquisa nas favelas do Rio de Janeiro. Revista da Ordem dos Advogados do Brasil, nº 49, São Paulo: Editora Brasiliense, primavera/1988), de amizades e de afetos, também de referências acadêmicas eletivas.

Essa subjetividade, contudo, não é um delírio, mas como lembra Eduardo Lourenço, no âmbito literário falando dos heterônimos de Fernando Pessoa, para designar a apropriação do real por meio de outra linguagem (Eduardo Lourenço. A Mitologia da Saudade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999). Não é essa a mediação que aparece em Itamar Vieira Junior, em seu Torto Arado, literalizando os mesmos temas? Sobre esses sujeitos que ele diz ser: “gente forte que atravessou um oceano, que foi separada de sua terra, que deixou para trás sonhos e forjou no desterro uma vida nova e iluminada. Gente que atravessou tudo, suportando a crueldade que lhes foi imposta” (VIEIRA JUNIOR, Itamar. Torto arado. [s.l.]: Leya, 2019, p. 261). Gente que, “graças as suas crenças [fez vigorar] uma ordem própria, [para] atravessar o tempo até o presente” p. 196.

O propósito da tese, ou antes, a sua motivação, voltado para “compreender a atuação do sistema políticojurídico nos conflitos fundiários coletivos e de que modo essa atuação contribui com o processo de produção do espaço agrário. Entendia, e continuo entendendo, que os problemas da espacialização (da produção histórico-social dos espaços e dos territórios) e da produção/transformações dos campos político-jurídicos, e das suas inter-relações”, logo se orientou para designar “as mudanças  e permanências (como continuidades/descontinuidades) que acontecem nos processos de valorização do espaço, sobretudo na área desta pesquisa, visto que se trata de região de fronteira agrícola; e, igualmente, de como essas mudanças e permanências repercutem no campo político-jurídico”.

O Autor, originado do campo do Direito, encontrou na Geografia e sobretudo nas ações de extensão, notadamente no Geografia Pés no Chão, ambiente para aprofundar “estudos da formação do espaço agrário e da teoria da renda da terra, abordada no século XIX por Marx (2017) e revisitada por autores contemporâneos, como David Harvey (2013)” e com esse aporte dar-se conta de que  “o processo de valorização do espaço provocou e provoca mudanças profundas na região Oeste da Bahia, no conjunto contraditório de sujeitos sociais que a habitam e na vida das pessoas; provoca, sobretudo, conflitos cada vez mais complexos em torno do apossamento e da apropriação da terra, nas suas diversas formas, com repercussões ambientais irreversíveis. Em outros termos, o que se percebe com o processo de valorização do espaço é a intensificação dos conflitos fundiários na região, e, ao mesmo tempo, a reconfiguração dos sujeitos sociais envolvidos nesses conflitos. Se, inicialmente, tínhamos os camponeses, e se, nesse contexto, a posse era a relação quase exclusiva dos mesmos com a terra, tudo isso passou por profundas transformações nessas últimas décadas”.

Tal como ele explica, p. 31-32:

ante esse processo de valorização do espaço que provoca a intensificação dos conflitos, e, concomitantemente, o surgimento de novos sujeitos sociais e da reconfiguração dos sujeitos tradicionais neles envolvidos, a preocupação segue no sentido de entender como ocorrem as mediações entre esses sujeitos, inclusive as de caráter político e jurídico que entranham os conflitos. Nesse sentido, pergunta-se, o Estado, em sua função enquanto um dos mediadores, como é que ele atua nesses conflitos? Como atuam o agronegócio, o empresário e o latifundiário, com as suas diversas expressões? E como os camponeses resistem e enfrentam nos conflitos decorrentes das mudanças introduzidas na região? Aqui reside uma das preocupações deste pesquisador. Os modos de mediação são diversos, pois os conflitos socioterritoriais são complexos. São diversos os mediadores nos tempos e nos espaços. Ou seja, não só o Estado é mediador, e a mediação acontece não só por intervenção/decisão judicial.

Por isso, na medida em que o processo de apreensão do objeto e do método foi se tornando mais claro, na qualificação e no diálogo com os sujeitos sociais em conflito, e com pesquisadores do tema, percebi a necessidade de dar visibilidade a sujeitos sociais diversos (camponeses/posseiros, geraizeiros, agricultores familiares, latifundiários, empresários, agronegociantes, mineradores, Estado) que participam direta ou indiretamente do processo de produção do espaço e das relações nos conflitos em estudo.

Deste modo, não se trata de focar apenas no Judiciário, mas, principalmente, nos sujeitos sociais diversos que participam e estruturam as teias, com suas fraturas, das relações sociais em estudo.

 

Conforme propõe o Autor, o eixo da sua tese é o estudo da atuação dos diversos e contraditórios sujeitos sociais em conflito e seus mediadores. Seguindo em certa medida o enunciado nos objetivos específicos, o trabalho foi desenvolvido em quatro capítulos. Da Introdução extrai-se os pressupostos já indicados. No segundo capítulo, ao lado da revisão da literatura (teórico/conceitual) sobre os processos sociais de produção e valorização do espaço e dos conflitos socioterritoriais, são ununciados os conceitos centrais que estruturam a tese: produção e valorização do espaço, conflitos socioterritoriais que produzem espaços e os sujeitos sociais que se relacionam nos processos de produção do espaço.

O terceiro capítulo é dedicado à identificação dos conflitos agrários coletivos, dos sujeitos sociais e das suas ações nos processos de apossamento e apropriação da terra/território no Oeste da Bahia. A abordagem neste capítulo concentra-se, como primeiro passo, na espacialização dos conflitos socioterritoriais nos Territórios de Identidade Bacia do Rio Corrente e Bacia do Rio Grande, Oeste da Bahia, buscando alargar os caminhos da pesquisa. Na sequência, aborda-se os processos sociais de apropriação e produção do espaço, buscando identificar as suas contradições e múltiplas formas de superações.

No quarto capítulo a abordagem é centrada na análise do processo de produção e valorização do espaço agrário no Oeste da Bahia, suas contradições e implicações na emergência dos conflitos socioterritoriais coletivos. Retoma-se, para essa finalidade, a base teórica e analítica definida no primeiro capítulo, e, igualmente, o conteúdo do segundo capítulo, onde são apresentados os conflitos e os múltiplos sujeitos neles envolvidos, através das suas ações. Esta análise é focada em dois conflitos socioterritoriais inscritos em diferentes bacias hidrográficas: a) o conflito que tem, de um lado, as Comunidades Geraizeiras do Alto Rio Preto, e, de outro, o Condomínio Cachoeira do Estrondo, localizado na Bacia do Rio Grande; b) o Conflito da “Larga” de Porteira de Santa Cruz, localizado na Bacia do Rio Corrente.

A tese é um precioso exercício de articulação dessas possibilidades, as quais, em seus desdobramentos são examinados em profundidade pelas diferentes formas de aproximação propostas pelos membros da Banca.

De minha parte, em relação a esses aspectos, quero me cingir aqueles que mais diretamente tocam o marco teórico cuja base o Autor confirma ter sido um encontro potente para ancorar sua análise, notadamente quando ela se aproxima da formulação de Roberto Lyra Filho, em sua concepção dialética do direito pautada no pluralismo jurídico. Daí que adota a proposta não dogmática do Direito Achado na Rua, nos sentidos de legitimidade atribuídos ao direito a partir das práticas sociais, da rua, para a construção de uma rede urbana popular e para a própria criação do direito à cidade, em movimento, bem como no seu objetivo central de (i) determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos ainda que contra legem; (ii) definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social e elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; e (iii) enquadrar os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurídicas.

São esses referenciais que vão lhe dar confiança para aventar categorias fundantes de sua análise, a de espaço e a de sujeito, retiradas da fortuna crítica que em O Direito Achado na Rua, que tem levado a alargar, na ação dos sujeitos coletivos de direitos e suas práticas instituintes de novos direitos, a demarcação de novos espaços sociais, para além da metáfora da rua, e assim discernir, ressignificando, espaços críticos como direitos achados na rede, nas águas, nas aldeias, nas florestas, no campo, no cárcere, no manicômio, no armário, no gueto…na noite. Uma construção que dialoga com os sujeitos em seu protagonismo inter-subjetivo quando assumem a titularidade coletiva de direitos.

 O próprio Cloves e seus co-organizadores da obra O direito para além do capital: janelas e trilhas / Paulo Rosa Torres, Carlos Eduardo Soares de Freitas, Cloves dos Santos Araújo, Celso Antonio Favero, organizadores. – Feira de Santana: UEFS Editora, 2023, 488 p., entre eles Celso Antonio Favero presente aqui nesta Banca, já havia sinalizado para essa aproximação, quando incluíram nesse livro e o justificaram, meu ensaio elaborado com Sara da Nova Quadros Côrtes, “Direito achado na rua e perspectivas para além do capital”. Sobre esse trabalho conferir minha recensão em Lido para Você: http://estadodedireito.com.br/o-direito-para-alem-do-capital-janelas-e-trilhas/.

Com efeito, tal como anotaram, o ensaio, após contextualizar o momento da escrita acerca das reflexões aqui correntes afetadas pelo  quadro geral de “intenso sofrimento na Pandemia do COVID-19 e agudização da crise nacional brasileira” e, mais especificamente, pelo balanço    “autorreflexivo da crítica coletiva que ocorreu no evento internacional realizado entre 11 e 13 de dezembro de 2019 na Universidade de Brasília, denominado o Direito como Liberdade: 30 Anos de O Direito Achado na Rua”, propõem  a abertura de um diálogo crítico e autorreflexivo  para interrogar  sobre o lugar da experiência do  Direito Achado na Rua, no sentido  “propor projetos de vida para a humanidade em geral. Aludem a três eixos discursivos que situam, justificam, refletem e abrem janelas para o agir emancipatório: fundamentos e possibilidades; retomada da travessia e as questões emergentes; o “‘achado’ como ‘elo fraco’ do Direito Achado na Rua.” E, nesse passo, o relevo para as dimensões imperativas na base do Direito Achado na Rua, como:    assumir o sujeito coletivo como central nos movimentos de luta, interpelar os sistemas formais estatais e burocráticos do direito para humanizar a formação jurídica, promover a coparticipação, dentre outras.

Eis que o próprio Cloves, agora em co-autoria com Sara Côrtes, antecipando o que se põe na tese, vêm a falar em espaço político, como o território no qual “sujeitos podem adquirir consciência coletiva, estabelecer redes, operar afetos, desenvolver práticas sociais, visibilizar e consolidar direitos, conduzir transformação social emancipadora, estruturar solidariedade e materializar alternativas contra-hegemônicas, como sugere o percurso de O Direito Achado na Rua”. Espaços que se afiguram, ontologicamente, como eu com meu colega co-autor Antonio Escrivão Filho (Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D‘Plácido, 2016), sugerimos se constituirem lugares  de criação e realização do direito, apresentado e posto à disposição do povo na qualidade de sujeito histórico com capacidade criativa, criadora e instituinte de direitos, e, metaforicamente, como a esfera pública onde se reivindica a cidadania e os direitos, onde se agregam cidadãos, onde se lhes protege da dispersão e da desmobilização.

Esses são os espaços de cidadania, como sustenta Milton Santos, enquanto compreendem territórios como lugares em disputa na construção das cidades, quando se envolve relações humanas e suas produções materiais, formando uma geografia cidadã e ativa, conforme lembram Sara da Nova Quadros Cortes e Cloves Araújo, em belo texto – “Dialética Social no Rastro dos Pensamentos de Roberto Lyra Filho e de Milton Santos: aportes teóricos no campo do direito e da geografia” – também publicado nesse dia 1º de setembro, na Revista Direito.UnB (volume 6, número 2 – maio/agosto 2022), com um dossiê em homenagem a O Direito Achado na Rua e a Contribuições para a Teoria Crítica do Direito.

Aplicadas essas noções à cidades ou à territorialização que se dá no campo, para Cloves, na tese, as obras públicas e as outras ações dos sujeitos sociais no processo de valorização do espaço contribuem para mudar a localização do lugar em relação aos outros lugares. A relação entre lugar e localização, como coisas diferentes, na abordagem de Milton Santos, é relevante para a compreensão do que acontece no âmbito desses processos sociais de reconfiguração territorial da região e da produção de novos espaços. Para este autor, “O lugar pode ser o mesmo, as localizações mudam. E lugar é o objeto ou conjunto de objetos. A localização é um feixe de forças sociais se exercendo em um lugar”.

Mas a minha atenção mais definida na tese de Cloves se dá sobre a designação da categoria sujeito de direito e, mais distinguidamente, a categoria sujeito coletivo de direito. Essa é uma categoria fundante de O Direito Achado na Rua enquanto concepção político-teórica.

A tese já estaria depositada e portanto sem que tivesse acessível obra que já está publicada mas que ainda não foi lançada: O Direito Achado na Rua. Sujeitos Coletivos: Só a Luta Garante os Direitos do Povo!, volume 7, Coleção Direito Vivo. Ana Cláudia Mendes de Figueiredo, Andréa Brasil Teixeira Martins, Edilane Neves, José Geraldo de Sousa Junior, José Roberto Nogueira de Sousa Carvalho, Luana Nery Moraes, Shyrley Tatiana Peña Aymara, Vítor Boaventura Xavier (Organizadores). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2023, 428 p.

Penso que a Apresentação, para cuja redação colaborei como co-autor expõe e situa a obra. Dela se vê que o livro, O Direito Achado na Rua. Sujeitos Coletivos: Só a Luta Garante os Direitos do Povo!, volume 7, da Coleção Direito Vivo, da Editora Lumen Juris, é o resultado do esforço continuado de reflexão teórico-prática sobre o Direito, promovida por pesquisadores e pesquisadoras, estudantes, professores e professoras, em atividades de ensino, pesquisa e extensão, que formam o acervo crítico que dá identidade à Coleção Direito Vivo.

A obra reúne ensaios preparados por participantes do programa acadêmico de O Direito Achado na Rua – que é a designação geral dos seis volumes já publicados e que tem continuidade no trabalho desenvolvido no segundo semestre de 2022, na Universidade de Brasília (nas Pós-graduações em Direito – Faculdade de Direito e Direitos Humanos e Cidadania – Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares), sob a coordenação do professor José Geraldo de Sousa Junior, também regente da disciplina O Direito Achado na Rua, vinculada à linha de pesquisa com a mesma denominação.

Deste modo, apesar das múltiplas trajetórias dos autores e das autoras, o elemento aglutinador dentre suas histórias é o fato de sua participação num programa comum e de assumirem o compromisso autoral de elaboração narrativa sobre uma questão também compartilhada, definida para mobilizar a disponibilidade analítica de sua atuação no coletivo assim constituído. O componente que mantém a coesão do livro, portanto, não é a formação dos autores e das autoras, mas, sim, a temática da obra, as estratégias para a sua composição, com etapas preparatórias de leituras e recensões sobre textos previamente discutidos, de modo individual num primeiro momento e em seminários numa etapa subsequente.

Assim, os artigos do livro tratam, cada um do seu modo, da categoria jurídica do sujeito coletivo de direito. Com cerca de três décadas desde a formulação do conceito, tal como indicado nessas leituras preparatórias, a obra em questão serve como uma espécie de compêndio que promove balanços, inovações e direcionamentos acerca da fortuna crítica dessa categoria e de seu alcance nos âmbitos da teoria e da práxis.

A identidade política dos movimentos sociais e a possibilidade de que eles venham a se investir de uma titularidade jurídica coletiva, ou seja, de atuarem como um sujeito coletivo de direito, são questões caras para a política e para o ensino jurídico. Assim, as reflexões com o pano de fundo teórico do Humanismo Dialético e d’O Direito Achado na Rua são, por sua vez, uma referência para a leitura crítica da realidade.

Os textos foram organizados em quatro eixos, tendo em vista o modo como os ensaios foram construídos em sua elaboração autoral ou co-autoral, processo que acabou por pautar os diferentes enfoques e as aproximações que as leituras lograram trazer para a atualização, a revisitação, as aplicações de um protagonismo do sujeito coletivo de direito, na pluralidade de múltiplos desafios para o seu reconhecimento teórico e político no movimento complexo do social.

Nessas condições, coube às autoras e aos autores e às organizadoras e aos organizadores desta obra enunciar 4 eixos, que, conforme o seu descritivo, permitiram agrupar e aproximar os ensaios que formam o sumário:

Eixo 1 – Discussões teórico-filosóficas sobre a categoria sujeito coletivo de direito;

Eixo 2 – Aproximações sobre a noção de sujeito coletivo de direito;

Eixo 3 – Sujeitos coletivos de direito achados nos territórios indígenas e no campo;

Eixo 4 – Lutas dos movimentos das pessoas com deficiência, negros, mulheres e contra a ditadura.

Embora o desenho editorial do livro, no balizamento da Coleção e na linha teórica que decorre da concepção e da prática de O Direito Achado na Rua, tenha indicado um fio diretor para “validar” as opções temáticas e os enfoques de cada autor ou autora ou grupos de autores ou autoras – portanto, um compromisso político-teórico inafastável que quer se inscrever na síntese conceitual que designa O Direito Achado na Rua, vale dizer, conceber o Direito, seguindo a diretriz formulada por Roberto Lyra Filho, como “a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade” –, é possível encontrar num texto ou noutro alguma singularidade autoral que não seja acordo unânime da edição sobre a fidelidade a esse enunciado.

Contudo, todos os textos, produzidos segundo o protocolo da autonomia subjetiva de quem os assina, vieram para a edição porque neles, em contexto, esse protocolo, na linha dos princípios, foi lealmente seguido, guardando os ensaios o objetivo de contribuir para a emancipação do humano, contra todas as formas de opressão ou de espoliação, no engajamento para a construção de uma sociedade democrática que se realize enquanto projeto de reconhecimento dos direitos humanos que designam o protagonismo instituinte dos sujeitos coletivos de direito.

No meu ensaio de Introdução, entretanto, recupero o itinerário dessa categoria cara, em seus registros antecedentes, discorrendo sobre  O Sujeito Coletivo de Direito: uma Categoria Fundante de o Direito Achado na Rua  que, na condição de texto de Introdução à Obra,  localiza e rastreia o percurso de um conceito forte, sua concepção e prática como contribuição à teoria crítica do Direito, de seus primeiros enunciados nos anos 1980 ao seu protagonismo, inscrito nos movimentos sociais, e sua ação democrática e instituinte atual para criar direitos. Aliás, os estudantes de graduação em Direito da UnB, na disciplina Pesquisa Jurídica, têm desenvolvido verbetes para a wikipedia, articulados à perspectiva crítica de O Direito Achado na Rua, e um desses verbetes é exatamente Sujeitos Coletivos de Direito, por eles caracterizado como “aquele que adquire fundamento jurídico por meio da ação coletiva dos movimentos sociais. Esse conceito envolve o entendimento da atuação dos movimentos sociais, os quais conciliam a bagagem histórica e o conhecimento prático de suas reivindicações no contexto político e social em que se encontram. Dessa forma, os movimentos sociais coletivos são protagonistas nos processos de transformação social” (https://pt.wikipedia.org/wiki/Sujeito_coletivo_de_direito).

Note-se que o Eixo 3 – Sujeitos coletivos de direito achados nos territórios indígenas e no campo, reúne ensaios que guardam proximidade com a tese de Cloves e que podem ser úteis para agregar sobretudo referências bibliográficas que contribuam para a bem posta tese, no seu contexto, prescindindo desses elementos para a sua completude.

Até porque, e esse é o ponto da tese que foco para justificar minha participação na Banca, em que localizo uma significativa contribuição de Cloves. De resto, por ele próprio posta em relevo, com uma convicção que dá como pressuposta a relevância do achado de sua pesquisa: os sujeitos sociais em conflito.

Na conclusão Cloves reafirma a centralidade do “conceito de sujeitos sociais diversos e contraditórios que se relacionam nos processos sociais de produção e valorização do espaço”.

E é categórico ao afirmar, também em conclusão, p. 292, até me trazendo para apoio de suas considerações, que

É na totalidade dialética em movimento permanente que deparamos com as contradições decorrentes das relações socioterritoriais que produzem espaços hegemônicos ou espaços de opressão, através dos grandes projetos direcionados à produção capitalista, nas diversas conjunturas que mudam as localizações dos lugares. Mas é também neste mesmo movimento que são produzidos contraespaços ou espaços de liberdade, através dos diversos levantes populares identificados nos diversos momentos históricos da formação espacial brasileira (MOREIRA, 2014). E é também neste mesmo movimento dialético da história que os levantes populares conseguem impulsionar a produção do Direito como Liberdade (SOUSA JUNIOR, 2011).

Contudo, de minha leitura da tese restou uma ligeira impressão de ambiguidade o que Cloves formula na p. 31:

na medida em que o processo de apreensão do objeto e do método foi se tornando mais claro, na qualificação e no diálogo com os sujeitos sociais em conflito, e com pesquisadores do tema, percebi a necessidade de dar visibilidade a sujeitos sociais diversos (camponeses/posseiros, geraizeiros, agricultores familiares, latifundiários, empresários, agronegociantes, mineradores, Estado) que participam direta ou indiretamente do processo de produção do espaço e das relações nos conflitos em estudo.

Deste modo, não se trata de focar apenas no Judiciário, mas, principalmente, nos sujeitos sociais diversos que participam e estruturam as teias, com suas fraturas, das relações sociais em estudo.

 

O próprio Cloves, na sua condição de intelectual orgânico do Coletivo (Grupo de Pesquisa) O Direito Achado na Rua, e nessa atribuição, durante o Seminário Internacional Direito como Liberdade – 30 anos do Projeto O Direito Achado na Rua (2019), se distinguiu como garante de uma posição em plano de relatoria –  Seção VIII – Movimentos Sociais e os Desafios da Assessoria Jurídica e Advocacia Popular, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (orgs). O Direito Achado na Rua – volume 10: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora UnB/Editora OAB Nacional, 2021. Texto de síntese da Seção: Assessoria Jurídica Popular em Tempos de Barbárie: resistência, luta e memória histórica. Cloves dos Santos Araújo, Érika Lula de Medeiros, Helga Martins de Paula, Ludmila Cerqueira Correia e Pedro Teixeira Diamantino (p. 599-609; em destaque p. 607).

E nesse texto, está afirmado:

Dessas experiências repletas de abordagens com os pés no chão, o direito revela-se uma criação sociopolítica, econômica, cultural e, decisivamente, intersubjetiva, coletiva, pluralista, conflitiva, processual. Nas experiências trazidas, o direito passa a ser refletido com corpos e olhares deslocados dos gabinetes para as lutas e conflitos, criando-se um espaço de diálogo horizontal em torno de O Direito Achado na Rua como referência, justamente por ser uma concepção forjada no seio da teoria crítica no Brasil e que gravita em torno da atuação jurídica dos novos sujeitos coletivos e das experiências sociojurídicas de criação e defesa de direitos por estes desenvolvidas.

 

Minha questão para o Cloves, assim, é para que esclareça essa promiscuidade que põe na mesma identificação de subjetidade ativa coletiva – camponeses/posseiros, geraizeiros, agricultores familiares, latifundiários, empresários, agronegociantes, mineradores, Estado .Tal como os estudantes na wikipedia, indicam, a caracterização de sujeito coletivo de direito, a partir de O Direito Achado na Rua, não permite essa extensão descaracterizadora.

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

 

Silenciar Vozes Femininas no Poder Legislativo: Violência Política de Gênero

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Com esse núcleo de denúncia e de repúdio, O Fórum Social Mundial Justiça e Democracia (FSMJD) e a Coalizão Brasileira em Defesa da Democracia (CBDD), acabam de divulgar nota em defesa das Deputadas levadas ao Conselho de Ética da Câmara Federal, por pretensa quebra de decoro, ao se posicionarem contra o Marco Tempora. A Nota, com efeito, busca expressar “inteira solidariedade às Deputadas Federais Célia Xacriabá (MG), Fernanda Melchionna (RS), Sâmia Bomfim (SP) e Talíria Petrone (RJ), do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), e às Deputadas Federais Érika Kokay (DF) e Juliana Cardoso (SP), do Partido dos Trabalhadores (PT), que respondem a processo disciplinar no Conselho de Ética da Câmara Federal por falas proferidas quando da aprovação do projeto de lei que impõe marco temporal para a demarcação das terras indígenas”.

 

 

Mais do que isso, as duas articulações que assinam a Nota, afirmam incisivamente que conquanto “manifestações enfáticas e debates acalorados façam parte da prática política”, elas não podem ser pretexto válidopara “calar dissidências”. Conforme entendem as subscritoras, essas condições, põem a descoberto “a existência de processo sem justa causa [que]materializa – no interior do Parlamento – o uso incontestável das normas para perseguir e aniquilar oponentes políticos (o chamado lawfare), uma prova inequívoca de misoginia e uma atitude muito pouco afeita à democracia, para dizer o mínimo”.

 

 

Contra essa violência, aliás, e em defesa de um protagonismo feminino parlamentar que tem denunciado tratamento desigual que a redução patriarcal só acentua, é que o Forum Social Mundial Justiça e Democracia, reunido em Porto Agre ao final de 2022, pontuou em sua declaração de encerramento, a urgência de  arregimentar “as forças sociais para permanente de avaliação, de denúncia e de transformação dos sistemas de justiça para a garantia da democracia – identifica(r) a ação dos sistemas de justiça fragilizados na sua independência, que se prestam a aprofundar o fosso entre a institucionalidade e a cidadania. Denuncia(r), então, tais sistemas instruídos pelo neoliberalismo, conformados à burocracia e pouco entusiastas da democracia, que se mostram antes propensos a abrir do que fechar as portas para o fascismo”.

 

 

E por isso, em face de tal propensão, acentuou, “além de gerar críticas, impõe a autocrítica como necessidade inescapável de quem atua no interior desses sistemas… demanda um agir concentrado para extrair o racismo, o poder patriarcal cis-heteronormativo e o elitismo que contaminam os sistemas de justiça instituídos nos territórios dos países colonizados e que contribuem para sequestrar a democracia. […] uma autocrítica disposta a mirar essas marcas históricas e a comprometer-se com a superação delas”.

 

Por isso que faz muito sentido, voltando a Nota, chamo a atenção para o relevo posto no tema da guerra híbrida, como tem sido designada a questão do lawfare. Em relação às deputadas, a Nota é contundente:

 

 

Derrotado nas eleições presidenciais, mas com maioria na Câmara Federal, o ultraconservador Partido Liberal (PL) apresentou à Mesa Diretora da Casa, no dia 30/05/23, uma representação coletiva contra seis das mais combativas deputadas da esquerda.

 

 

Mirou, de uma só vez, 1/5 do total das parlamentares de esquerda, mulheres que defendem de forma aguerrida as teses programáticas do atual governo, a exemplo do direito dos povos indígenas sobre as terras por eles tradicionalmente ocupadas, consagrado na Constituição de 1988 e na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.

 

 

Em desprezo à vedação regimental de representação coletiva, o presidente da Câmara acolheu e despachou, no dia 31/05, a iniciativa do PL, enviando-a ao Conselho de Ética, o qual deu pronto andamento à demanda. O PL, porém, desistiu dela em 12/06, quando também ofereceu à Mesa seis outras peças acusatórias individuais contra as parlamentares. As peças foram protocoladas, acolhidas e redistribuídas ao Conselho de Ética em menos de quatro horas desde sua apresentação. Enquanto isso, as representações mirando os parlamentares partícipes dos atos golpistas de 8 de janeiro, esperam há quase 150 dias o despacho do presidente da Casa, pelo visto ainda pouco sensível aos atentados contra a Democracia e à presença das mulheres na política. Aliás, a misoginia parece ser regra no Parlamento brasileiro, evidenciada por estratégias que vão desde a anistia aos partidos políticos inadimplentes com a obrigação legal de destinar recursos às candidaturas de mulheres até a tentativa de cassação de mandato das eleitas. Embora ocupem menos de 18% do total de cadeiras da Câmara, as mulheres são alvo de 71% dos processos em tramitação no Conselho de Ética da Casa, quase todos contra deputadas de esquerda. Diante de intervenções potencialmente danosas ao decoro parlamentar, a misoginia leva à complacência com os homens e à intransigência com as mulheres, realidade também verificada nas assembleias legislativas estaduais e nas câmaras municipais”.

 

 

Confesso ter intuído essa já não sutil sobredeterminação misógina que o esforço decolonial configura como postura patriarcal, tão hierarquizante e alienante quanto o racismo e o patrimonialismo classista. Presente em audiência na CPI do MST, aliás, por meio de convite de parlamentares progressistas entre elas essas mulheres que honram o parlamento, o que me fez homenageá-las em minha exposição durante a sessão (cf. https://www.brasilpopular.com/cpi-do-mst-contexto-e-diagnostico-da-situacao-agraria-brasileira/; também https://www.youtube.com/watch?v=Q1n5TEJpzpw.

 

 

Daí que a Nota seja dura: “Essa obstinada campanha de silenciamento das vozes femininas no PoderLegislativo configura inegável violência política de gênero e, no caso da perseguição das seis deputadas federais, é igualmente explícita a violência política étnico-racial”. O Parlamento é o espelho da sociedade. Resultado de pesquisa divulgada hoje: “A fome esteve presente em 20,6% das famílias chefiadas por pessoas que se autodeclaram pretas, em 17% daquelas comandadas por pardas e em 10,6%, por brancas entre o fim de 2021 e o início de 2022. E em 35,5% das residências chefiadas por mulheres ocorria uma ou nenhuma refeição por dia porque não havia dinheiro frente a 22,1% de domicílios comandados por homens. Os dados, divulgados nesta segunda (26), fazem parte de um desdobramento do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (Vigisan), realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) e executado pelo Vox Populi.Em junho do ano passado, a primeira leva de dados do Vigisan revelou que 15,5% da população, ou 33,1 milhões de pessoas, passavam fome entre o final de 2021 e o início de 2022. Agora, os novos dados apontam que a fome tem cor de pele e gênero: quanto mais escura a pele, maior a incidência da fome” (https://ifz.org.br/fome-atinge-22-das-familias-de-mulheres-negras-e-8-de-homens-brancos/).

 

 

Ao investir contra duas deputadas indígenas e uma negra, diz a Nota, “o partido ultraconservador e majoritário no Parlamento atinge a pluralidade das mulheres brasileiras, em busca de aumentar – ao invés de reduzir – o déficit de representatividade da população nacional, feminina e negra em sua maioria. Essa estratégia visivelmente antidemocrática não pode prosperar na Casa do Povo. Aocontrário disso, compete à Câmara Federal assumir o compromisso com a garantia dos direitos políticos das mulheres brasileiras, conforme determina a Lei Maior do País, e avançar no sentido de construir a paridade de gênero e raça necessária à existência da verdadeira democracia”.

 

 

Mobilizados em defesa da dignidade parlamentar das Deputadas Célia Xacriabá, Érika Kokay, Fernanda Melchionna, Juliana Cardoso, Sâmia Bomfim e Talíria Petrone, o Fórum e a Coalizão “convocam alianças para demonstrar a absoluta ausência de justa causa de que se revestem as imputações contra essas bravas guerreiras e esperam que as relatorias dos seus processos concluam pela inadmissibilidade das representações, pois acreditam que outro mundo é possível: livre da violência política, mais justo, fraterno, pluralista e efetivamente democrático”.

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Para essa disposição que representa mobilizar, convocar alianças, sair em defesa da dignidade parlamentar dessas bravas mulheres, cabe instar com a futura Relatoria para que se posicione em parecer pela inadmissibilidade das representações e esperar que o mais amplo diálogo na esfera pública do social e da política, logre demonstrar ao próprio Parlamento, a absoluta ausência de justa causa de que se revestem cada uma das representações.

 

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

 

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

 

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).

quinta-feira, 22 de junho de 2023

 

Crisis de Representación Política y Demandas Indígenas para la Descolonización del Estado

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

Dosier Perú. Crisis de Representación Política y Demandas Indígenas para la Descolonización del Estado. Instituto Internacional de Derecho y Sociedad (IIDS). (2023). Lima, junio 2023, pp. 282.

 

No final do ano passado (2022), foi publicado, em formato e-book, o livro Sociologia do novo constitucionalismo latino-americano: debates e desafios contemporâneos / [Organizadores], Gustavo Menon, Maurício Palma, Douglas Zaidan. –São Paulo: Edições EACH, 2022.1 ebook ISBN 978-65-88503-38-6 (recurso eletrônico) DOI 10.11606/97865885033861 Acesso: https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/view/939/851/3088.

Contribui em co-autoria com meu colega professor da Universidade Federal Fluminense do Rio de Janeiro, Gladstone Leonel da Silva Junior, com um artigo que abre essa obra e traz reflexões realizadas há alguns anos cujo título é: Constitucionalismo Achado na Rua a Partir da América Latina: Elementos Iniciais. O livro foi publicado numa conjuntura interpelante, que em toda a América Latina expõe momentos tensos, no embate entre o horizonte histórico de descolonização e as recrudescências autoritárias do processo capitalista de acumulação, que em sua exacerbação neoliberal, fomenta a emergência de radicalismos políticos ao extremo da direita ideológica.

No Brasil, felizmente, e em método democrático movido pelo sufrágio, estamos agora na transição para o resgate da democracia e dos direitos humanos ao impulso utópico da emancipação. Na Argentina, que mais cedo encaminhou-se para esse movimento, há ainda sobressaltos e a vice-presidenta Cristina Kirchner acaba de ser sentenciada com o acréscimo de “inabilitação perpétua” de seus direitos políticos, em outra extravagância do lawfare, que embora desmascarado em sua ocorrência no Brasil para impedir o Presidente Lula de participar de eleições, e não tenha podido impedir sua eleição para um terceiro mandato presidencial, ainda produz consequências graves.

A publicação do livro também coincidiu com reflexos dessa conjuntura no Peru, com a destituição do Presidente Pedro Castillo e logo a sua prisão, num primeiro momento, a partir da comunicação corporativa e muitos analistas, entre eles progressistas, convirjindo para uma interpretação que desabona Castillo, caracterizando-o como protagonista de um auto-golpe. Conquanto, na América Latina outras vozes sugeriam que se podia identificar mais um movimento da direita para arrancar da governança um dirigente de extração popular.

Nesse diapasão a manifestação do presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador que via na crise política do Peru “los intereses de las élites económicas y políticas” que, desde el inicio del Gobierno de Pedro Castillo, han mantenido “un ambiente de confrontación y hostilidad” en su contra” (https://elpais.com/mexico/2022-12-07/lopez-obrador-achaca-la-crisis-en-peru-a-los-intereses-de-las-elites-economicas-y-politicas.html).

Assim que, pondo sob suspeição uma difundida convergência de posicionamentos que se associaram para afastar o presidente, numa orquestração de hostilidades, logo começaram a crescer las protestas en Perú que piden disolver el Congreso y liberar a Pedro Castillo (https://actualidad.rt.com/actualidad/451329-crecen-protestas-peru-piden-disolver-congreso-liberar-castillo): “Los seguidores de Castillo demandan que lo liberen y lo restituyen en la Presidencia, que Dina Boluarte salga de la jefatura de Estado tras su designación como mandataria por el Parlamento, que el Congreso sea disuelto, que se convoque a una Asamblea Nacional Constituyente para reformar el país y se realicen elecciones generales”.

Entre essas manifestações também as Rondas Campesinas, a mais autônoma e representativa organização de base popular, pela voz do presidente da CUNARC-Perú Santos Saavedra Vasquez, também pediram Assembleia Constituinte Plurinacional.

O fato é que o País ficou convulsionado e com um acumulado de mortes devido à repressão policial e militar. Nesse contexto, o Congresso aprovou parecer para antecipar as eleições, conforme proposta do Executivo, para abril de 2024, mas a consulta para Assembleia Constituinte não foi aprovada. Finalmente, o Congresso não aprovou nenhuma eleição antecipada.

O comentário acima, feito no calor dos tumultos que se seguiram ao afastamento de Castillo, é de minha cara amiga Raquel Yrigoyen Fajardo, diretora do IIDS – Instituto Internacional de Derecho y Sociedad (www.derechoysociedad.org), a mais engajada instituição de sociedade civil que assessora os povos originários no Perú, na defesa intransigente dos direitos humanos já ao largo de vinte anos. Ela o fez em mensagem particular que me dirigiu, quando procurei me socorrer de sua interpretação sobre os acontecimentos, na confiança de seu alto discernimento. O IIDS, em seguida, publicou, com o apoio de todas as entidades organizativas desses povos, uma “Agenda de los Pueblos para el Bicentenário”. A minha questão posta para foi “Qué está pasando en el Perú?

Na verdade, naquela semana, em dezembro de 2022, Raquel esteve em Brasília participando de um círculo de reflexões sobre os direitos dos povos indígenas e quilombolas, e os desafios da descolonização, no Bicentenário da sua independência, em Simpósio organizado pela OIT e o Ministério Público do Trabalho.

Então, tive o privilégio de ouvir dessa acadêmica e militante, consultora da OEA e das Nações Unidas, que acabava de ser convidada pelo Papa Francisco para um colóquio sobre Colonialismo, Descolonização e Neocolonialismo (colóquio a que esteve presente no Vaticano agora em março de 2023, juntamente com os mais destacados juristas da América Latina e da África, sobretudo e cuja conferência brilhante pude assistir virtualmente), uma completa e precisa avaliação sobre o que está se passando no Perú, algo que interessa a toda a Região.

De memória retive, do que me disse Raquel, naquela altura. O que está acontecendo e o que fazer no Peru? Nesta hora no Peru, é necessária uma reflexão-ação participativa sobre vários assuntos prioritários como estes:

1) sobre o tema imediato da violência:

– ao Estado, exigimos que cesse a violência e proíba o uso de armas letais; que investigue e sancione responsáveis e instaure o diálogo;

– à sociedade, pedimos-lhe: solidariedade imediata com familiares de mortos, feridos; aconselhamento a detidos e acolhimento-apoio a organizações sociais e indígenas em mobilização pacífica;

2) Sobre a crise do executivo e a rejeição do Congresso:

– encontrar saídas legais já para as eleições gerais, onde as organizações de povos possam participar e os seus direitos sejam garantidos; isto requer acordos políticos e modificações legais e uma disposição final transitória da Constituição. titulação que o habilite.

– Vale lembrar que existe, por exemplo, o Art. 191 da Constituição que garante a participação mínima de género bem como de povos originários, CC e CN nos governos regionais e locais, e não foi aplicado, e o Art. 6 b da Convenção 16. 9 da OIT exige a participação dos povos em todas as instâncias eletivas e administrativas susceptíveis de os afetar, mas nunca foi implementada! ,

Sobre este tema, urge o apoio da academia, para formular as saídas legais para estas exigências políticas;

3) sobre a nova Constituição:

É necessária a convocação de um referendo para consultar por uma Assembleia Constituinte Paritária e com a participação de organizações de povos indígenas ou originários e afroperuanos e organizações sociais.

– Isso poderia ser feito através de uma disposição final transitória da Constituição, o que requer a aprovação da lei pelo Congresso e um referendo, que pode ser convocado no mais curto prazo possível, para que as eleições gerais sejam e aproveite para esta consulta.

Aqui também urge o apoio da Academia e das organizações irmãs de outros países para considerar as melhores experiências da região.

4) Concertar uma agenda mínima de transição. – Enquanto a agenda consensual estiver sendo executada, promover um acordo de paz e adotar medidas que viabilizem essa participação e direitos.

– que seja acordado que nenhum ator político (executivo ou congresso) tome decisões que comprometam o futuro do país, como aprovar a prorrogação de concessões mineiras ou petrolíferas por mais 20-30 anos, etc.; que não se aproveite estas reformas constitucionais para “colar” outras já rejeitadas pela população e que exigem ser matéria da discussão constituinte (como a bicameralidade ou a reeleição de congressistas; outras medidas ou reformas que generalizam mais indignação social.

Convidamos a continuar procurando saídas! E agora que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos anuncia a sua visita ao Peru, esperamos que desta vez sim, se reúna com as organizações de povos e não apenas com as organizações que o Estado lhe encaminha.

            Eis que agora, o IIDS publica esse  Dosier Perú. Crisis de Representación Polítca y Demandas Indígenas para la Descolonización del Estado, um alentado e circunstanciado documento de análise, memória e proposições, produzido pelo esforço mobilizado de um dos mais importantes centros de estudos e pesquisas do continente, mas realizado por uma equipe de investigação e de redação coordenada pelas irmãs Yrigoyen Fajardo Raquel e Soraia: Waldo Alor Loayza, Yasser Benancio Vásquez, Brian Colonia Mendoza, Renato León Mazza; contando com a coordenação de impressão da estimada Araceli H. Guillermo Ybárcena. Anoto também a destacada ilustração da portada da edição, em reprodução do óleo sobre lienzo (40x 30 cm) – La marcha de los pueblos originários – de mais um irmão Yrigoyen Fajardo, o prestigiado pintor Mauro, autor muito presente em outras ilustrações de publicações do IIDS, além das galerias de arte do Perú.

            Do que trata o Dossiê, cuida o seu resumo:

Actualmente, el Perú vive una enorme convulsión política, desatada desde el 7 de diciembre del 2022 a raíz de una secuencia de actos inconstitucionales de todos los poderes públicos; con el resultado de la violación de la voluntad popular y la alteración del orden democrático constitucional y hemisférico.

Ello fue contestado con movilizaciones indígenas a nivel nacional, que hicieron demandas políticas.

Las manifestaciones iniciaron en las regiones del Sur del Perú, donde se concentra el mayor porcentaje de población indígena (76-91%) y donde Pedro Castillo obtuvo el mayor porcentaje de votos (83-89%). En vez de respuestas políticas, el Gobierno de Dina Boluarte respondió com represión. Las regiones indígenas son las que concentran el 82% de víctimas fatales, como consecuencia de la represión policial y militar.

Este Dosier analiza, desde un enfoque jurídico-político, los hechos que han dado lugar a la crisis de representación y alteración del orden democrático en el país, y que explican la demanda de los pueblos indígenas por respeto y restitución de derechos políticos.

Asimismo, analiza la historia de exclusión constituyente de los pueblos indígenas y fundamenta la demanda de los pueblos de participar en una Asamblea Constituyente con base en los derechos que el derecho internacional ya reconoce a los pueblos indígenas y tribales. También da cuenta de uma propuesta normativa de los pueblos al respecto.

Y, finalmente, analiza las graves violaciones a los derechos humanos que se han producido a raíz de la represión de las movilizaciones indígenas y que explican la demanda de cese del genocidio, la criminalización y la estigmatización de los indígenas como “terroristas” por hacer reclamos políticos.

Em suas 270 páginas, conforme um índice geral desdobrado em um analítico repertório, que parte de um prólogo e de uma apresentação das professoras coordenadoras, o Dossiê apresenta o mais completo panorama da crise atual ou atualizada que vive o Perú e formula um programa para a superação da Crise de Representação Política e as Demandas de Restituição de Direitos Políticos que desafiam as forças democráticas do país.

Logo de caracterizar a Exclusão Histórica dos Povos e as Demandas para uma Assembleia Constituinte Plurinacional, o Dossiê, em pormenor, expõe as Graves Violações de Direitos Humanos e as Demandas para Cessar o Genocídio de Povos Indígenas. E logo as Propostas e Demandas de Participação Política de Povos Indígenas e Afroperuanos no Estado. O Dossiê se completa com uma Infografías: Cronologia dos Fatos e Referências Bibliográficas que documentam a narrativa e as Conclusões do Documento.

Sem hierarquizar as participações, detenho-me nas anotações que procedem de Raquel Yrigoyen Fajardo, com quem aprendi a aferir as mais eloquentes experiências constitucionais na América Latina, incluindo o Canadá, me valendo de seu modelo de classificação dos sistemas constitucionais latino-americanos. Ela alude a um primeiro ciclo caracterizado como “constitucionalismo multicultural” (Canadá, 1982), (Guatemala, 1985), (Nicarágua 1987) e (Brasil, 1988). O segundo ciclo referente ao “constitucionalismo pluricultural” (Colômbia, 1991), (México e Paraguai, 1992), (Peru, 1993), Bolívia e Argentina, 1994), (Equador, 1996 e 1998) e (Venezuela, 1999). E o terceiro ciclo, finalmente, é reconhecido pelo alcance de um “constitucionalismo plurinacional”, a partir das inovadoras Constituições do (Equador, 2008) e (Bolívia, 2009), nas quais, diz Raquel, já se trata de um ciclo pluricultural, plurinacional e ecológico, nas quais “se pluraliza a definição de direitos, a democracia e a composição dos órgãos públicos e as formas de exercício do poder”.

Raquel Yrigoyen, que já inscrevera em sua concepção a tese de um constitucionalismo plurinacional, tem avançado fortemente, desde seu diálogo com as cosmogonias e cosmovisões dos povos ancestrais, em direção a um constitucionalismo ecológico ou eco-constitucionalismo, sem contudo abdicar de suas teses originais sobre o pluralismo jurídico.

Ainda com foco da leitura do pluralismo jurídico, desde as indicações de Raquel Yrigoyen, é que se torna possível compreender propriamente o que tem sido designado como pluralismo jurídico igualitário (consulte-se entre outros estudos, os escritos fundamentais com aberturas inéditas para a aplicação dessa categoria, de Boaventura de Sousa Santos – sempre presente nas atividades do IIDS -, até o mais recente de Antonio Carlos Wolkmer e de Maria de Fatima S. Wolkmer, se dirija aos povos indígenas e originários, essa acepção, orientada “por uma racionalidade jurídica diferente”, que nela, alcança também os ronderos campesinos, em enfoque autoral bem conhecido, pois como afirma Bettina Sonza, um “claro ejemplo de racionalidade jurídica diferente, resulta em palavras de Raquel Yrigoyen, la de las Rondas Campesinas, que si bien nacen em uma primera etapa, como respuesta a uma demanda de seguridade, frente al robo y el abigeato se traduce finalmente, em prácticas sociales de auto administración de justicia” (SONZA, Bettina. El outro Derecho ‘Rondas Campesinas’ em la Selva y Sierra Peruana. In ETHOS. Boletin de Antropologia Juridica, ano 2 – número 4. Lima: Universidad de Lima/Facultad de Ciencias Humanas/Facultad de Drecho y Ciencias Políticas/Centro de Investigación Jurídica, 1993).

Agradeço a confiança da equipe do IIDS ao me pedir um comentário que pudesse compor a obra no Prefácio e assim, de me associar a outros interpretes da conjuntura político-constitucional latino-americana: 1. Roberto Gargarella (Argentina); 2. Silvina Ramírez (Argentina); 3. Ramiro Ávila Santamaría (Ecuador); 4. Carlos F. Marés de Souza Filho (Brasil); 5. María Elena Attard (Bolivia).

O que encontro no Dossiê, ali tomando o seu pulso pela diretriz senti-pensante que lhe imprime Raquel Yrigoyen Fajardo, é o que pude acompanhar pela transmissão dos painéis, importantes participações, entre elas, de convidados pelo Papa Francisco, pela Pontifícia Academia de Ciências Sociais do Vaticano e pelo Comitê Pan-Americano de Juízes para os Direitos Sociais e Doutrina Franciscana, da exposição dessa estimada amiga, diretora do IIDS – Instituto Internacional Derecho y Sociedad, de Lima (Peru), com o qual e com ela temos importante intercâmbio de cooperação a partir da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, da UnB. Raquel apresentou elogiada exposição sobre “Pluralidade jurídica igualitária e descolonização da justiça, desde a perspectiva dos direitos dos povos indígenas”, tema que tem sido a base de nosso intercâmbio. Segundo ela própria, discorrer sobre esse tema permitiu“trazer reflexões que vêm dos povos originários do Peru e de outros lugares, e da equipe do Instituto Internacional de Direito e Sociedade-IIDS”.

Com ela, sigo considerando o quanto é importante “recordar que o constitucionalismo é permanente tentativa de se instaurar e se efetivar concretamente a exigência idealizante que inaugura uma modernidade no nível da organização de uma sociedade complexa, incapaz de lançar mão de fundamentos absolutos e que, por isso, só pode legitimar seu próprio sistema de direitos na medida em que os potenciais podem se reconhecer como coautores e autoras das normas que os regem. Ou seja, ou o direito é constitucionalmente achado na rua e nas ruas, e com as ruas, é construído e reconstruído de forma plural e inclusiva, ou, sem dúvida, tende-se a privatizar o próprio Estado, mediante a colonização do direito por uma lógica simplista binária de cunho plebiscitário e nada democrática, pois infensa a qualquer eficaz debate”.

O que se assiste no Perú, conforme mostra o Dossiê, é uma situação de risco. A mesma situação que em sua recente visita ao Brasil disse ter encontrado a subsecretária-geral das Nações Unidas e Assessora Especial para Prevenção do Genocídio Alice Wairimu Nderitu.

Sua declaração, ao final da visita ela foi contundente e adverte para o que se passa em nossos países. De fato, esses fatores, agravados pela redução de povos e comunidades, podem chegar a caracterizar crimes de genocídio e atrocidades em relação à situação dos povos indígenas e afrodescendentes e outros grupos de risco, pois há registros de graves violações do direito internacional dos direitos humanos contra esses grupos; situações de instabilidade, principalmente no que se refere ao conflito entre indígenas e fazendeiros; uso excessivo da força pelas agências de segurança, especialmente contra pessoas negras; tensões intergrupais entre comunidades indígenas e outros grupos; e uma série de políticas que facilitaram a discriminação e o abuso desses grupos protegidos com base em sua identidade.

No Brasil, como no Perú, a seguir a preocupação da Sub-Secretária, ou aquelas ocorrências identificadas no Dossiê,  exigem-se medidas urgentes por parte das autoridades, da sociedade civil, da mídia, das Nações Unidas e de outros atores relevantes para corrigir, para as prevenir, para estabelecer responsabilidades e para promover reparações.

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.