segunda-feira, 19 de junho de 2023

 


O que é direito? Uma homenagem a Roberto Lyra Filho, o “jurista marginal”

Por Raique Lucas de Jesus Correia

Capa do livro “O que é Direito?” (Ed. Brasiliense, 1982)

Publicado por Roberto Lyra Filho em 1982, “O Que é Direito?” é um livreto introdutório em que o autor explora e questiona conceitos fundamentais da ciência jurídica, oferecendo uma visão profunda e reflexiva sobre a natureza, propriedades e aspectos essenciais do fenômeno jurídico em sua manifestação na sociedade. Apesar de ser um livro curto, vale ressaltar como muito bem lembrou Marilena Chauí[1] citando Kant, que os livros mais densos costumam ser os mais parcimoniosos quanto ao número de páginas; e esse pequenino opúsculo de Lyra Filho é a prova irrefutável das grandes surpresas que os pequenos livros podem nos proporcionar.

Lembro-me que a primeira vez que li “O Que é Direito?” foi em um momento de grande aflição pessoal, logo nos primeiros semestres da faculdade, em que eu estava buscando de alguma forma me situar nesse universo tão confuso e ao mesmo tempo tão instigante do Direito. Ao ler este “pequenino”, encontrei uma via de fuga ante as minhas angústias jurídico-existenciais, o que me incentivou a buscar no Direito não aquilo que a dogmática oferecia como prêmio de consolação, mas o verdadeiro Direito escamoteado pelos suspiros inebriantes da “besta de sete cabeças e dez chifres” que, neste caso, tem apenas três cabeças (quanto aos chifres confesso que eu não cheguei a contar).

A primeira cabeça é a Lei, terrível e quase que inescapável. Essa é a cabeça com que todo jovem estudante se depara ao ingressar no curso de Direito. É que subsiste, mesmo no senso comum, essa identificação quase que automática entre Direito e Lei. Alguns chegam até a afirmar que “Direito é Lei”. No entanto, como nos ensina Lyra Filho[2], essa identificação entre Direito e Lei é parte do repertório ideológico do Estado, que produz a lei e, por isso, busca convencer-nos de que tudo o que vem da lei é imaculadamente jurídico, neutro e imparcial. Essa visão simplista e reducionista do Direito é que conduz à perpetuação das estruturas de poder classistas e à manutenção das desigualdades existentes na sociedade, visto que a lei, como instrumento do Estado, muitas vezes reflete os interesses da classe dominante em detrimento das necessidades das classes espoliadas e oprimidas.

A segunda cabeça é a Doutrina, aparentemente inofensiva e adornada com adereços sofisticados. Essa é a cabeça que se apresenta como o conhecimento científico do Direito, regido por teorias, conceitos e interpretações elaboradas pelos sábios e estudiosos, oferecendo uma perspectiva embasada (algumas até, diria Lyra Filho, “embalsamadas”) e aparentemente sólida sobre o que é o Direito. Assim como a Lei, a Doutrina também possui suas limitações e contradições. Muitas vezes, as teorias jurídicas refletem determinados interesses e visões de mundo, reproduzindo ideologias dominantes e tentando “desproblematizar” as questões jurídicas complexas, oferecendo respostas genéricas, quase sempre óbvias e superficiais para os problemas concretos (paradoxalmente abstraídos da realidade social em que se manifestam). Como propõe Lyra Filho[3], devemos buscar uma abordagem crítica que questione os fundamentos e pressupostos da teoria jurídica. Desse modo, é necessário ir além das construções teóricas estabelecidas, para fundar uma visão dialética e emancipatória do Direito, capaz de responder as demandas sociais e situar o Direito no processo histórico em que ele se desenvolve — na historicidade das lutas sociais que está na base de toda construção e transformação do Direito.

A terceira e última cabeça é a Jurisprudência, implacável e mais soberba que as demais. Ela se apresenta como a interpretação última e suprema do Direito, emanada pelos tribunais e revestida de grande autoridade. A Jurisprudência desempenha um papel fundamental na evolução do Direito, pois permite a adaptação e o desenvolvimento das normas jurídica à medida que novas questões e desafios surgem na sociedade. Através da análise de casos e da aplicação/interpretação das leis, os tribunais contribuem para a definição do significado e alcance das normas jurídicas. No entanto, a interpretação das leis pelos tribunais nem sempre é uniforme e pode variar entre diferentes jurisdições e juízes. Além disso, as decisões judiciais estão sujeitas a influências políticas, ideológicas e individuais, o que pode levar a resultados divergentes e até mesmo contraditórios (e isso é mais comum do parece ou do que alguns preferem acreditar). Outra questão importante é que a Jurisprudência pode refletir a mentalidade e os valores predominantes em determinado momento histórico, o que pode resultar na perpetuação de desigualdades e injustiças sociais. A interpretação conservadora do Direito pelos tribunais pode reforçar estruturas de poder existentes, mantendo privilégios e reproduzindo opressões.

Essas três cabeças irmanadas em um mesmo corpo (o “corpus juridicus”) representam os três pilares da estrutura dominante do Estado. A superação dessa estrutura, implica, por outro lado, a necessidade de repensar e reconfigurar os fundamentos do sistema jurídico que a mantém. É que o Direito, a despeito da visão marxista tradicional, não é apenas parte da “superestrutura” (como um mero reflexo determinado pelas relações de produção e pelas condições econômicas dominantes), mas, como corretamente observado por Marilena Chauí[4] a partir da leitura de Lyra Filho, ele está, na verdade, disseminado em todas as relações sociais. Isso nos permite pensar o Direito, como quer Lyra Filho, não apenas como campo de disputa entre classes, mas também e, precipuamente, como motor revolucionário de afirmação da liberdade e realização da justiça — evidentemente, não da liberdade absoluta e individualista, muito menos da justiça ilegítima e abstrata, mas da liberdade e da justiça conscientizadas e conquistadas nas lutas sociais.

Segundo as irretocáveis palavras do próprio Lyra Filho[5]: “O Direito, em resumo, se apresenta como positivação da liberdade conscientizada e conquistada nas lutas sociais e formula os princípios supremos da Justiça Social que nelas se desvenda. Por isso, é importante não confundi-lo com as normas em que venha a ser vazado, com nenhuma das séries contraditórias de normas que aparecem na dialética social. Estas últimas pretendem concretizar o Direito, realizar a Justiça, mas nelas pode estar a oposição entre a Justiça mesma, a Justiça Social atualizada na História, e a ‘justiça’ de classes e grupos dominadores, cuja ilegitimidade então desvirtua o ‘direito’ que invocam. Também é um erro ver o Direito como pura restrição à liberdade, pois, ao contrário, ele constitui a afirmação da liberdade conscientizada e viável, na coexistência social; e as restrições que impõe à liberdade de cada um legitimam-se apenas na medida em que garantem a liberdade de todos. A absoluta liberdade de todos, obviamente, redundaria em liberdade para ninguém, pois tantas liberdades particulares atropelariam a liberdade geral”.

“Seja marginal, seja herói”, Hélio Oiticica (1968).

Neste mês de junho, ao recordar a morte de Roberto Lyra Filho, que nos deixou há 37 anos, é importante refletir sobre o impacto duradouro de sua obra e seu legado no campo do Direito. Sua abordagem dialética e inovadora desafiou as concepções jurídicas convencionais, buscando entender o Direito como uma ferramenta de transformação social e luta por justiça. Como um “jurista marginal”, Lyra Filho, nos lembra Raymundo Faoro[6], marginal permaneceu até o fim, “denunciando o apetite de uns e a retórica de outros”. Sobre sua trajetória, ela mesma construída na esteira do “humanismo dialético” escreveu seu amigo e mais fiel discípulo, José Geraldo de Sousa Junior[7], a seguinte declaração: “Em Roberto Lyra Filho a vida foi uma procura constante de sua dimensão de humanidade, como um ‘Prometeu reconciliado, protótipo de Homem na faina de transformar o mundo e a si mesmo, de aperfeiçoá-lo e de aperfeiçoar-se, quer no campo íntimo de suas tarefas individuais, quer no inseparável terreno coletivo, das lutas sociais libertadoras’. Seu itinerário de rupturas e continuidades concretizou-se na expressão de suas múltiplas e não-heterônimas personalidades e na sobrevivência de sua pregação noutras personalidades e noutras idéias, em seus discípulos e em seus amigos. […] Sob o pseudônimo Noel Delamare, com o qual Roberto Lyra Filho vestiu a sua personalidade de crítico, de poeta e de mestre experiente do ofício de tradutor, habita o mesmo professor, que encontra na expressão celebrante do verso a mesma pregação para a temática libertadora: ‘… Temos de inventar juntos / Outro socialismo, / Que não vai nascer / Por decreto da velha ditadura. / Segue a práxis, envelheço, / E já não tarda o fim do itinerário / Minúsculo, cinzento. / Que fazer do meu resto de vida. / Senão dom aos que lutam. / Erram, corrigem, perdem, recomeçam? …’ (Noel Delamare, ‘Sátira Desesperada’)”.

Com essa declaração emocionante e repleta de saudade e afeto, concluo este ensaio ao qual dedico a memória viva de Roberto Lyra Filho, pois foi ele que me mostrou não apenas o que é Direito, mas, precipuamente, aquilo que o Direito pode ser, como expressão autêntica e verdadeira de um “modelo avançado de legítima organização social da liberdade”. Essa foi a chama que ele acendeu e que hoje, mais do que nunca, todos nós temos o dever de levar fraternalmente adiante. Se como escreveu Ihering[8], “a luta é o trabalho eterno do direito”, então como nos ensinou Roberto Lyra Filho, essa luta deve ser não apenas incessante, mas, sobretudo, deve estar comprometida com a libertação das classes espoliadas e oprimidas. “Esta luta faz parte do Direito, porque o Direito não é uma ‘coisa’ fixa, parada, definitiva e eterna, mas um processo de libertação permanente[9].

* Raique Lucas de Jesus Correia, Doutorando em Desenvolvimento Regional e Urbano pela Universidade Salvador (UNIFACS), na condição de bolsista CAPES. Mestre em Desenvolvimento Regional e Urbano pela UNIFACS. Graduado em Direito pelo Centro Universitário Social da Bahia (UNISBA). Membro do Grupo de Pesquisa Políticas e Epistemes da Cidadania (GPPES/UNIFACS/CNPq). Autor da obra “Direito, Literatura & Sertão” (Ed. Porta, 2022).

Referências:


[1] CHAUÍ, Marilena. Roberto Lyra Filho ou Da Dignidade Política do Direito. In:LYRA, Doreodó Araújo (Org.). Desordem e Processo: estudos sobre o Direito em homenagem a Roberto Lyra Filho, na ocasião do 60º aniversário. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986, p. 19.

[2] LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito?. São Paulo: Brasiliense, 2006, p. 3-4.

[3] Ibidem, p. 17.

[4] CHAUÍ, Marilena. Roberto Lyra Filho ou Da Dignidade Política do Direito. In:LYRA, Doreodó Araújo (Org.). Desordem e Processo: estudos sobre o Direito em homenagem a Roberto Lyra Filho, na ocasião do 60º aniversário. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986, p. 26.

[5] LYRA FILHO, op. cit., p. 57.

[6] FAORO, Raymundo. O Jurista “Marginal”. In:LYRA, Doreodó Araújo (Org.). Desordem e Processo: estudos sobre o Direito em homenagem a Roberto Lyra Filho, na ocasião do 60º aniversário. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986, p. 29.

[7] SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. In Memorian: Indivíduo e coletivo em plena harmonia. Revista Humanidades, Brasília, v. 11, p. 125, 1986/1987.

[8] IHERING, Rudolf von. A Luta pelo Direito. São Paulo: Forense, 2006, p. 56.

[9] LYRA FILHO, op. cit., p. 53.

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