terça-feira, 26 de maio de 2020

Requiem pela democracia


"Os fascistas nem sequer escondem os seus intentos. O Presidente faz um apelo direto e inequívoco à luta armada", diz o sociólogo Boaventura de Sousa Santos. "Mais do que um apelo, informa que está disposto a dirigir o armamento de civis à margem das forças armadas", afirma. "Está a confessar um crime de responsabilidade e um crime contra a segurança nacional".

Confira o texto, na íntegra, que foi publicado originalmente no jornal Público, de Portugal.

Requiem pela democracia


por Boaventura de Sousa Santos 
Sociólogo, diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra


Mais uma vez, depois de tantas, as elites brasileiras preferiram correr o risco de cair na ditadura (quando não a desejaram desde o início) sempre que as classes populares manifestaram a sua aspiração a ser incluídas na nação, a nação que as elites sempre conceberam como sua propriedade privada. A leitura do transcrito da reunião do conselho de ministros do Brasil no dia 22 de Abril é uma experiência dolorosa, assustadora e revoltante. O ter sido dado conhecimento público desse vídeo e transcrito é um sinal eloquente de que a democracia ainda sobrevive. Ocorreu no seguimento da denúncia do ex-Ministro Sérgio Moro de que o Presidente tentara interferir com as investigações em curso na Polícia Federal do Rio de Janeiro contra um dos seus filhos por suspeita de graves condutas criminosas. Ao ordenar a divulgação do vídeo, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, inscreveu o seu nome no livro de ouro da breve e tormentosa história da democracia brasileira. Esperemos que o sinal de esperança que ele nos deu seja potenciador do despertar das forças democráticas de esquerda e de direita, o despertar de um sono profundo e inquietante, feito de ignorância histórica e de vaidade míope, um sono que lhes permite sonhar com cálculos eleitorais sem se dar conta da frivolidade de tais intentos quando a própria democracia está por um fio.

Os fascistas nem sequer escondem os seus intentos. O Presidente faz um apelo directo e inequívoco à luta armada. Mais do que um apelo, informa que está disposto a dirigir o armamento de civis à margem das forças armadas. E faz isso ladeado por generais! Está a confessar um crime de responsabilidade e um crime contra a segurança nacional. E nada a acontece. Ao lado do vice-presidente, está sentado impávida e parvamente o então Ministro da Justiça Sérgio Moro, o grande responsável pela destruição da institucionalidade democrática, para o que sempre contou com a cumplicidade das elites e dos seus media. O anúncio do Presidente não só é recebido com sorrisos complacentes de quem o ouve, como vários ministros se esmeram em soltar por conta própria as cloacas do ódio e do preconceito. Para além de outras aleivosias avulsas.

O que se lê é de tal modo torpe que é melhor ler para crer:

Presidente: “É putaria o tempo todo para me atingir, mexendo com a minha família. Já tentei trocar gente da segurança nossa, oficialmente, e não consegui. Isso acabou. Eu não vou esperar f. minha família toda de sacanagem, ou amigos meus, porque não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha — que pertence à estrutura nossa. Vai trocar! Se não puder trocar, troca o chefe dele; não pode o chefe dele? Troca o ministro. E ponto final… Eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme! Que é a garantia que não vai ter um filho da puta aparecer pra impor uma ditadura aqui! Que é fácil impor uma ditadura! Facílimo! Um bosta de um prefeito faz um bosta de um decreto, algema, e deixa todo mundo dentro de casa. Se tivesse armado, ia pra rua. E se eu fosse ditador, né? Eu queria desarmar a população, como todos fizeram no passado quando queriam, antes de impor a sua respectiva ditadura. Aí, que é a demonstração nossa, eu peço ao Fernando e ao Moro que, por favor, assine essa portaria hoje que eu quero dar um puta de um recado pra esses bosta! Por que que eu tô armando o povo? Porque eu não quero uma ditadura! E não dá pra segurar mais! Não é? Não dá pra segurar mais”.


Ministro da Educação (extrema-direita) : “Eu, por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia. Começando no STF. E é isso que me choca… A gente tá conversando com quem a gente tinha que lutar. A gente não tá sendo duro o bastante contra os privilégios, com o tamanho do Estado e é o ... eu realmente tô aqui aberto, como cês sabem disso, levo tiro ... odeia ... odeio o prutido (sic) comunista. Ele tá querendo transformar a gente numa colônia. Esse país não é ... odeio o termo "povos indígenas", odeio esse termo. Odeio. O "povo cigano". Só tem um povo nesse país. Quer, quer. Não quer, sai de ré. É povo brasileiro, só tem um povo”.


Ministro do Meio Ambiente (momento maquiavélico): “porque tudo que agente faz é pau no judiciário, no dia seguinte. Então pra isso precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspeto de cobertura de imprensa, porque só fala de COVID e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas…Agora é hora de unir esforços pra dar de baciada a simplificação.”


Ministra da Mulher da Família e dos Direitos Humanos (evangelismo reacionário): “Neste momento de pandemia a gente tá vendo aí a palhaçada do STF trazer o aborto de novo para a pauta, e lá tava a questão de ... as mulheres que são vítima do zika vírus vão abortar, e agora vem do coronavírus? Será que vão querer liberar que todos que tiveram coronavírus poderão abortar no Brasil? Vão liberar geral? (dirigindo-se ao Ministro da Saúde) O seu ministério, ministro, tá lotado de feminista que tem uma pauta única que é a liberação de aborto… Porque nós recebemos a notícia que haveria contaminação criminosa em Roraima e Amazônia, de propósito, em índios, pra dizimar aldeias e povos inteiro pra colocar nas costas do presidente”.


Ministro da Economia (feira de vaidades): “Eu conheço profundamente, no detalhe, não é de ouvir falar. É de ler oito livros sobre cada reconstrução dessa (Alemanha, Chile). Então, eu li Keynes, é ... três vezes no original antes de eu chegar a Chicago. Então pra mim não tem música, não tem dogma, não tem blá-blá-blá”.

Nada disto é novo. Sobre o que disse o Presidente, basta referir que, depois das eleições de 1932, foi assim que se expressou Hitler, invocando a necessidade da ditadura para se defender da ditadura…da democracia. A reunião teve lugar no dia em que o Brasil se aproximava de 3000 mortos pelo coronavírus. Este, no entanto, foi um tema ausente. Ou, ainda mais perversamente, pretendeu-se usar a preocupação mediática com a pandemia para fazer avançar a perda de direitos, os casinos, a privatização, o desmatamento da amazónia e a eliminação das restrições ambientais. O sistema democrático brasileiro está em tamanho desequilíbrio que vive um momento de bifurcação, uma qualquer acção ou omissão política tanto o pode resgatar como afundar de vez.

PET NEWS - Boletim Informativo do Programa de Educação Tutorial Direito - UnB


O Programa de Educação Tutorial Direito - UnB (PET Direito UnB) lançou o seu primeiro Boletim Informativo intitulado "PET NEWS", iniciativa extensionista "que, entendendo a comunicação como elemento primordial para uma educação em direitos humanos, tem por objetivo divulgar informações de interesse da comunidade acadêmica e da externa acerca dos direitos sociais." (PET NEWS, 2020, p.1).

Além de informações sobre o próprio projeto (Conheça o PET, p.22), o Boletim apresenta a campanha #VALORIZAPET (p.9), mobilizada pelo InterPET como estratégia de valorização dos Programas de Educação Tutoriais diante da atual conjuntura:

"O Programa de Educação Tutorial (PET) está presente na maioria das Universidades públicas, nos mais diversos cursos. Um PET é um grupo de estudantes que desenvolvem diversos projetos de ensino (palestras, cursos, workshops, oficinas), pesquisas e extensões, levando o conhecimento acadêmico para a comunidade das mais diversas formas.
O PET muda a vida de centenas de estudantes da graduação, transformando suas trajetórias profissionais e pessoais. Mesmo sendo um programa de excelência, também vem sofrendo ataques constantes, como toda a produção científica de nosso país.
Assim, petianes da Universidade de Brasília lançam a campanha #VALORIZAPET, em vista de mostrar minimamente o quão vasta e rica é a produção que esse programa viabiliza acontecer. Por meio da hashtag, será possível acessar tudo que todos os grupos têm produzido e divulgado ultimamente."
O PET Resiste, por isso Ele Existe!

Nesta edição, o Boletim divulga dois artigos. O primeiro deles trata da atual conjuntura pandêmica e seus reflexos nas relações de trabalho ("COVID e as Relações de Trabalho", p.4, de coautoria de Érica Fernandes e Kelle Cristina Silva), refletindo sobre o cenário de retrocesso dos direitos sociais e dos direitos humanos, e a delegação do 'custo da crise' para as trabalhadoras e trabalhadores.

Nesse sentido, identificamos várias medidas (muito mais eficientes e urgentes) a serem tomadas, sem reduzir o salário do cidadão obreiro, como: criar políticas públicas efetivas com base na solidariedade; realizar a intervenção do Estado para melhor haver distribuição de riqueza acumulada e proporcionar a renda mínima necessária ao cidadão (pagamento de renda básica de cidadania a todas as famílias carentes); implantar a tributação de grandes fortunas, aumentar a tributação incidente sobre heranças e doações; suspender imediatamente os benefícios fiscais e proibir a prorrogação de prazos para pagamento.

Já o segundo artigo ("PET na História", p.10, de autoria de Giovana Dill) enfoca o 1º de Maio e problematiza "Dia do trabalhador ou dia do trabalho?". Denunciando a "fragilização das garantias trabalhistas e revela um enorme descaso do atual governo", o conclui pelo necessário resgate da essência da luta trabalhista, do protagonismo e da visibilidade da classe operária.

O Boletim também divulga uma entrevista realizada por Kelle Cristina Silva (PET Entrevista, p.13) com a estudante Débora da Silva de Oliveira sobre sua experiência extensionista e visão universitária, e uma seção de "Guia de profissões", subscrita por Ítalo Silva, que é dedicada a analisar a "realidade de algumas profissões possíveis para os estudantes de direito.".

Através dele também é possível obter indicações de livros e outras obras artísticas, reunidos na seção "PET Indica", elaborada por Giovana Dill e Ingrid Borges, sugestões estas que, somadas àquelas de eventos virtuais apresentados por Ingrid Borges na seção "Fique por Dentro", nos ajudam a criar uma agenda cultural própria.

Para conhecer mais sobre o PET Direito UnB, acesse o blog (http://www.petdireitounb.com.br/) e o acompanhe nas redes sociais:
Instagram @petdireitounb
Facebook PET Direito UnB
petdireitounb@gmail.com

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Democracia: da crise à ruptura

Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito




DEMOCRACIA: DA CRISE À RUPTURA. Jogos de Armar: Reflexões para a Ação.  Roberto Bueno (Organizador). São Paulo: Editora Max Limonad, 2017, 1131 p.
     O livro vem a ser uma obra alentada. São 1131 páginas, média dos volumes organizados pelo Professor Roberto Bueno, da Universidade Federal de Uberlândia que concluiu sua edição quando se encontrava em programa de cooperação técnica na Universidade de Brasília. No ano seguinte, 2018, pela mesma Editora Max Limonad, o professor Roberto Bueno publicou outro volume também muito denso, 641 páginas, com o título Democracia Sequestrada. Oligarquia transnacional, pós-neoliberalismo e mídia.
     No livro de 2018, a finalidade é “a análise e a exposição pública de uma dura, inflexível, cruel e universal forma de poder e domínio aqui classificada como oligárquica-pós-neoliberal (e) seu exitoso desiderato (é) o de sequestrar a democracia de suas raízes sobreano-populares, e para isto (lançar) mão de instrumentos de domínio midiático-judicial-parlamentares articulados pela esfera financista oligárquico transacional”.
     Estudioso do pensamento autoritário, que inclui referências teórico-doutrinárias, engajadas em projetos políticos de traços despóticos, desde Carl Schmitt, no contexto filosófico a partir de sua contribuição ao nacional-socialismo alemão; a Francisco Campos, que serviu à ordem ditatorial brasileira em seus diferentes momentos no Estado Novo e na Ditadura civil-militar de 1964-1985, o professor Bueno se tornou um voz acadêmico-militante contra o golpe parlamentar-judicial-midiático que se estabeleceu no Brasil desde 2016.
     Esse engajamento se manifesta nos pronunciamentos agudos desse professor que jamais se omite, está candente em seus artigos semanais em diversos veículos (jornais e blogs) e orienta a edição do livro ora Lido para Você.
Créditos: PixaBay
     Ainda agora, às vésperas de enviar este texto para edição, o Autor, guardando o compromisso com a sua leitura crítica da realidade, adverte, em face das movimentações e dos jogos táticos da conjuntura, sobre a urgência de que os militares devam voltar à caserna, e não só pelo desvario de seu representante sazonal em surto contínuo, pois, conforme ele diz em artigo, no Blog Cartas Proféticas, “mesmo que orientados por forte pressão política é preciso que os militares assumam clara e resolutamente uma posição de desentranhar-se da vida política e, por conseguinte, dos milhares de cargos que ocupam em todas as esferas do Governo Federal. A chave para a retomada da estabilidade e da democracia passa, inexoravelmente, pelo regresso dos militares à caserna”, e que se coloquem “as condições de possibilidade para a restauração democrática (com) a convocação de eleições gerais” (acesso em 14.05.2020).
     Uma consideração tanto mais forte quanto, de certo modo como o personagem de Almodóvar (em Ata-me), que foge de internação, “fingindo ser normal”, o que mais requer atenção é essa outra face de Janus (talvez fosse mais adequado dizer, parecendo ser Dr. Jekyll quando é verdadeiramente, Mr. Hyde), na iminência de um 18 Brumário à brasileira, conforme a chave que desenvolvo neste Lido para Você, testemunhando a Constituição ser arguida contra a Constituição, tal como mostram Gladstone Leonel Jr, Diego Diehl, Emiliano Maldonado, Ricardo Pazello, Enzo Bello, Lucas Machado, Rene Keller (O perigo do golpe dentro da Constituição em meio à pandemia in https://www.thetricontinental.org/pt-pt/brasil/o-perigo-do-golpe-dentro-da-constituicao-em-meio-a-pandemia/, publicado em 13.05.2020): “Os militares se apressam a dizer o mesmo que seu chefe: “cumpriremos a Constituição”. O significado de “cumprir a Constituição”, ou, mais a fundo, questionar “o que é a Constituição”, é matéria fundamental, mas tão complexa que a urgência da atual conjuntura não permite analisá-la agora com a devida profundidade. O que importa nesse momento é atentar para o fato de que, não raras vezes, verdadeiros golpes de Estado ocorrem “dentro da Constituição” para depois se voltarem contra ela e, por fim eliminá-la do cenário jurídico e político nacional. Contanto, inclusive, com a chancela de parte do poder Judiciário”.
     Assim que, essa face “gentil”, em retrato de discurso aparentemente elegante e consistente (lembremos Schopenhauer, e seus 38 estratagemas de Como Vencer um Debate sem Precisar Ter Razão) não oculta os sofismas e as falácias, de artigo de opinião publicado dia 14/05/2020 no Jornal Estado de São Paulo – Limites e Responsabilidades – assinado pelo general vice-presidente da República, logo identificadas em síntese pelo professor Enzo Bello, da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense: “Ou Mourão não entendeu o que é federalismo (todos os entes federativos devem ter o mesmo patamar) ou Mourão não entendeu que “Os Federalistas” formaram parte de um golpe (a Convenção da Philadelphia não tinha como objetivo formar uma constituinte, muito menos uma federação) ou Mourão não entendeu o que deve ser a separação de poderes (controle recíproco) ou Mourão entendeu que a tal “ameaça de desorganização do sistema produtivo [capitalismo]” só ocorre no Brasil e em mais nenhum outro país capitalista do mundo ou Mourão está armando cama para um golpe de estado mesmo…”.
     Volto ao livro. A obra, expõe o seu Organizador, “está composta por trinta artigos de autores latino-americanos (Brasil, Argentina, Chile e Peru), da Europa (Espanha, França, Itália e Portugal) e dos Estados Unidos da América, cujos trabalhos expressam a pluralidade de formações e culturas políticas às quais pertencem e contextos nos quais exercem as suas funções intelectuais. Esta riqueza contribuiu decisivamente para o êxito final deste projeto que propõe a crítica dos dilemas que atravessam a democracia contemporânea sugerindo para além de sua anunciada crise a existência de uma possível ruptura conceitual. Diversos campos teóricos foram mobilizados para analisar a profundidade das armadilhas e ataques sofridos pela democracia contemporânea que virtualmente a colocam em xeque através de estratégias políticas deslegitimadoras. As práticas antidemocráticas de viés autoritário bem descrevem diversos momentos da história brasileira que é tomada como preocupação por este livro ao lançar olhar analítico-compreensivo de seus fenômenos mais recentes”.
     Assim é que concorreram para o livro, além de seu Organizador Roberto Bueno que o apresenta, faz um estudo introdutório: Democracia em crise e as suas alternativas. Reflexões sobre a democracia avançada a partir do conceito de conflito como eixo das instituições democráticas e desenvolve os capítulos Democracia y derechos humanos: expansión y calificación de la democracia; e A invisibilidade do poder e as democracias: dirigentes globais e economia à sombra da política;  Pablo Holmes, autor do Prefácio e do capítulo Crise da democracia como crise de legitimação: um teorema sociológico para os desafios evolutivos contemporâneos do sistema político; e ainda (talvez o último artigo publicado no Brasil antes de seu falecimento, em julho do ano passado), Ágnes Heller, Are there obligations withoiut rights?; Philippe C. Schmitter, A Sketch of what a ‘Post-Liberal’ Democracy Might Look Like; Luís Oro Tapia, Aspectos de la conflictividad; Ricardo Cueva Fernández, Locke, los Padres Fundadores y la ideologia: balance sobre la historiografia “revisionista” de la emancipación norteamericana; Juan Ramón Álvares Cobelas, Democracia directa y referendum: a propósito de lãs consultas unilaterales de autodeterminación; Claudio Martyniuk, Poética de la libertad; Franciele Vieira Oliveira, El déficit democrático de la Unión Europea y sus críticas: entre la experiência del pasado y El horizobte de la integración; Jorge J. Moreno Hernández, La democracia ateniense: de sus Orígenes a nuestros dias; Verónica Benavides Gonzales, La crítica de la democracia liberal desde la teoria feminista: El aporte de Catharine Mackinnon; Maurício Chapsal Escudero, Punto de partida para entender El pensamiento político de Marsílio de Padua; Paúl Jhon Hinojosa Carrillo, Memoria: La democracia em ell Perú; Ana Paula de Ávila Gomide, A fragilidade do indivíduo na sociedade administrada: os estudos empíricos de Adorno sobre o potencial autoritário; Alain de Benoist, La crise actuelle de la démocratie; Cássio Corrêa Benjamin, Democracia e imanência; Joelma Lúcia Vieira Pires, As políticas de avaliação da educação escolar: consequências para a constituição da sociedade democrática; Carlos Sávio Gomes Teixeira, A democracia experimentalista de Unger; Maria Eugenia Bunchaft, Obergefell v. Hodges: uma reflexão à luz do debate entre constitucionalismo democrático e minimalismo judicial; António Bento, Democracia e goberno (Rousseau, Foucault, Agamben, Zarka e Schmitt em perspectiva); Argemiro Cardoso Moreira Martins e Larissa Caetano Mizutani, A noção de paradigma jurídico e o paradigma do Estado Democrático de Direito; Luís Filipe Trois Bueno e Silva, Políticas públicas e comunidades tradicionais indígenas a partir dos aportes de “capability approach” e da teoria de reconhecimento; Delamar José Volpato, A fundamentação discursiva do estado de Direito como imperativo categórico e como imperativo hipotético; André Barata, Modernidade, fundamentalismo e democracia: uma aproximação crítica; Andityas Soares de Moura Costa Matos, As jornadas de junho de 2013 no Brasil entre o marxismo e o pós-modernismo: rumo a uma democracia crítico-radical; Alexandre Franco de Sá, Do Leviatã ao Cérbero: legitimidade, legalidade e excepção na crise do Estado democrático; Bruno Peixe Dias, A excepção e a regra: da excepção como desvio à democracia como excepção; Marcelo Neves, Do transconstitucionalismo à transdemocracia.
     A rica coletânea, constituída por autores e autoras de diferentes percursos e de aspirações muitas vezes distintas, tem, contudo, um nexo, um fio condutor coerente cerzido com boa medida, tal como o Organizador expõe em sua Apresentação que serve de chave de leitura para o conjunto das singularidades discursivas. O que há, diz o apresentador-organizador de “comum a todos os trabalhos deste livro é a ciência de que todos os esforços em curso são sempre inconclusos embora necessários, pois a reflexão sobre a democracia é tarefa sisífia, sempre carente de rearmações, reelaborações, posto que a sua realização está diretamente conectada com as novas aspirações dos sujeitos históricos emergentes”.
     Convidado a participar da obra, contribui com um texto afinado com seu projeto, mas que se originou de provocação anterior que me havia sido feita em outro programa editorial. Denominei meu artigo de Estado Democrático da Direita*
     Nele, parto de uma observação do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos se presta bem para abrir este texto (1993: 73). Na sua posição de enfrentamento ao modelo capitalista de constituição da sociedade, ele afirma que não combate o capitalismo porque ele é democrático.  Para ele o capitalismo até logra cumprir as promessas democráticas que faz. Instituir, por exemplo, um estado de direito, com arcabouço legislativo, incluindo a sua principal expressão, qual seja, a de institucionalizar uma Constituição e nela, estabelecer o sistema de separação de poderes e a proteção aos direitos humanos (conforme a designação contida na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, “não será constituição a que não assegure a separação dos poderes e a proteção aos direitos do homem”).
     Para Boaventura, entretanto, o capitalismo, não pode ser plenamente democrático, porque a sua promessa carrega um vazio de possibilidade, conseqüente ao seu princípio ativo, a acumulação egoísta tendente a uma distribuição excludente e a sua representação ideológica, expressa no formalismo jurídico, que tudo promete formalmente, mas que pouco concretiza no plano material.
     Para lembrar Ferdinand de Lassale (o antigo correligionário de Marx, depois bandeado para a articulação organizada por Bismark, para constituir o estado burguês alemão) e seu conceito de Constituição, se essa não realiza a expressão material dos “fatores de poder” que são a sua essência material, ela será não mais que uma forma jurídica e, em última análise, uma “mera folha de papel” (2001: passim).
     Basta lembrar, no Brasil, o alcance desse sentido retórico da institucionalização pelo jurídico, pondo em relevo o fato de que todas as experiências autoritárias de nossa formação social, tomaram forma jurídica. Todo o regime de 1964, com a ditadura que se instalou no País, se representou com forma jurídica, inclusive constitucional, mantendo a Constituição de 1946, promulgando a sua própria de 1967 e afeiçoando-a ao seu recrudescimento autoritário com a emenda plena de 1969 (que muitos denominam de Constituição), todas circunscritas a um sistema normativo sobre determinante, denominado Ato Institucional (como expressão “constituinte” do poder “revolucionário”, com todas as aspas possíveis).
     Anote-se o quanto, nessa medida, o “sistema” incorporou a expressão  formal do Direito, com a linguagem atualizada das garantias fundamentais, indicando em seu texto a vigência do habeas corpus e da salvaguarda de exame judicial dos atos administrativos, enquanto no cotidiano de governança, se censurava, se torturava e se praticavam assassinatos políticos, sob a reserva de resguardo à “segurança nacional”, a partir de ações interditadas ao alcance de habeas corpus ou à apreciação de sua própria legalidade pelo Poder Judiciário (ESCRIVÃO FILHO e SOUSA JUNIOR: 2016: passim).
     É nesse passo que o Estado de Direito Democrático se converte em Estado Democrático de Direita. Esse passo se dá na medida em que a convergência entre os interesses de poder e de acumulação capitalista, já não assimila sequer o discurso democrático, mesmo retórico, como por exemplo, o que se prestou a legitimar a sua emergência hegemônica para se afirmar como expressão dominante (a burguesia patrimonialista  francesa afirmando os direitos do homem para arrebatar à aristocracia seus bens dominiais e seu poder político). Ou, no golpe de  Luiz Bonaparte (ironicamente chamado por Marx de o 18 Brumário de Luiz Bonaparte), escancarando situações em que a sua própria legalidade se torna um estorvo: “A legalidade nos sufoca”, proclamava Odilon Barrot, o chefe de governo contra a legalidade “dele”, para por em prática a política reacionária de restrição às liberdades de imprensa e de reunião e de dissolução dos “clubes” e outras formas de organização da oposição política à nova ordem instalada com o golpe (MARX, 1974: passim), configurando sempre A História de um Crime, como o classificou Victor Hugo.
     Ou ainda, o que assistimos agora em nosso próprio País, com a Constituição arguida contra a própria Constituição, para dela extrair-se, com o uso meramente formal de um enunciado, vale dizer, a previsão de aplicação de procedimento de afastamento do Presidente ou da Presidenta da República, uma retórica mobilizadora de engajamentos (sociais, políticos, jurídicos), delirantes de seu necessário fundamento material, a precisa tipificação de conduta que assim possa ser configurada como crime que justifique o afastamento (impeachment). Por isso, a configuração desse processo como um golpe, sem armas, sem quartelada, mas uma ruptura com a base de legitimidade do sistema constitucional-jurídico, um atentado à democracia, uma forma de traduzir, sem nenhuma sutileza, o Estado Democrático da Direita, que se vale da lei para esvaziá-la de suas melhores promessas.
     Aqui entra em causa um outro modo, esse mais sutil, de identificar o Estado Democrático da Direita. Refiro-me a sua disponibilidade para usurpar, apropriar-se e investir-se das representações e das narrativas simbólicas das conquistas históricas e jurídicas conferidas nas lutas travadas pelos sujeitos individuais e coletivos por reconhecimento da dignidade humana, da cidadania e dos direitos.
     Valho-me de um registro de experiência pessoal para ilustrar esse deslocamento sutil. Em 1987, durante o processo constituinte que desaguou na Constituição de 1988, a chamada “Constituição Cidadã” por contraposição à Constituição do pós-colonialismo de 1824, censitária, patrimonialista, patriarcalista, racista, por isso mesmo apelidada de “Constituição da Mandioca”. Naquela ocasião, representando a Comissão Brasileira de Justiça e Paz (CNBB), pude prestar depoimento na Sub-Comissão de Cidadania e Direitos, na modelagem participativa que o Regimento da Assembléia havia instalado para dialogar e receber indicações para o processo. Falei sobre os novos direitos, sobre as experiências instituintes de participação já catalogáveis nos processos sociais emancipatórios de poder local (experiências de gestão compartilhada e participativa de várias prefeituras brasileiras), podendo constatar o espanto e a surpresa da maioria dos parlamentares integrantes da Comissão, muitos se deparando com aqueles conceitos e registros, pela primeira vez, aturdidos com a contraposição, entre os enunciados do modelo de representação com os quais estavam acostumados e com o sentido diferido de um sistema retórico de nominação de direitos, formalmente inscritos nas constituições, todavia, nunca realizados porque diferidos à concretização futura, “na forma da lei” ou “como a lei venha  a estabelecer”, não mais que promessa porém, promessa vazia. Todavia, ao final do processo, já se encontravam esses constituintes investidos da nova linguagem democrática, de cidadania e de direitos, de tal modo que a Constituição afinal promulgada o foi sob a caracterização inédita de inaugurar no constitucionalismo latino-americano o modelo de democracia direta e participativa, com instrumentos para a iniciativa, a gestão e o controle social por meio dos novos sujeitos constitucionais (SOUSA JUNIOR, 1982: 28-34).
     É certo que o embate constituinte, instaurado numa conjuntura de transição política entre a ditadura instalada em 1964 e o movimento para resgatar a gestão civil orientada para um processo de restabelecimento da democracia, se expressou como uma mediação possível, precedida da luta pela anistia e preparatória da reivindicação da memória e da verdade, enquanto medidas éticas para realizar o que se denomina Justiça de Transição (que admite, sim, reconciliação, mas implica necessariamente processar os perpetradores dos crimes, revelar a verdade sobre esses crimes, conceder reparações às vitimas e reformar, redemocratizando, as instituições responsáveis pelos abusos) (SOUSA JUNIOR et al (org)2015: passim).
     Nessas condições, acabou por incorporar no projeto de sociedade que se reconstituía, o horizonte democrático materialmente desenhado pelos movimentos sociais, com um balizamento ideológico orientado pelas classes subalternas – trabalhadores do campo e das cidades – reivindicado protagonismo ativo para o exercício do poder político e também distributivo, um projeto, em suma, contra os interesses da direita brasileira elitista, oligárquica e hierárquica, privatisticamente possessiva (SOUSA JUNIOR coord.. 2015: passim).
     Enquadrada sob a direção de um programa de governo de base popular, democrática e inclusiva (Lula/Dilma, sustentada pelos dois principais partidos de esquerda), a direita brasileira foi aos poucos engendrando uma estratégia de desconstitucionalização, valendo-se do disfarce do discurso democrático-liberal e de reconfiguração do desenho do direito formal, legal-positivo, política e epistemologicamente caro ao seu posicionamento docemente assimilável pela racionalidade jurídico-burocrática do status quo inscrito na classe que ainda detêm os meios de produção e opera sua regulação.
     Essa disputa, travada em cada frente de antagonismo que os dois projetos de sociedade e de país provocam, revela, a cada embate, o modelo de Estado Democrático da Direita. Antes de tudo, livrar-se da legalidade que a sufoca, com táticas que vão desde a elaboração de um discurso hermenêutico de retirada de direitos (a Constituição incorporou direitos demais, como se os direitos fossem quantidades e não relações, contínuas e ilimitadas), até a institucionalização do Golpe, com aparência de institucionalidade (legislativo), como procedimentalidade formal (judiciário) e com suporte ideológico (mídia oligárquica).
     Tudo já configurável quase que num “manual de uso”, com metodologia e passo a passo totalmente previsíveis. Primeiro passo, investir-se da linguagem democrática e dos direitos, para confundir a interlocução. Para lembrar a advertência crítica de Merleau-Ponty, valer-se de expressões iguais (liberdade, justiça, direito), para ocultar a realidade a que elas remetem e os projetos que mobilizam os diferentes engajamentos. Depois, operar os sucessivos esvaziamentos: esvaziamento do conteúdo ideológico dos projetos em disputa (poder político e distribuição da riqueza socialmente produzida) e em seguida, esvaziamento do alcance democrático dos projetos em disputa: despolitização e burocratização da participação.
     O convite para redigir este artigo partia de uma afirmação. Preferi figurá-lo com uma interrogação. Um Estado Democrático da Direita é, como situei aqui, parafraseando Boaventura de Sousa Santos em relação ao capitalismo, a “utopia” (o fim da História) da direita, uma contradição em termos. Para a direita, a cidadania é consumo, a participação é tutelada e a democracia deve voltar ao leito moderno da representação e da circulação das elites.
Referências
*A matéria de que trata este texto foi originalmente publicada na Revista Esquerda Petista n. 5, maio de 2016 (Editora Página 13, São Paulo (Publicação da Articulação de Esquerda – Tendência do PT; editor Walter Pomar), págs. 56-58). Naquela versão originária o titulo foi grafado com uma interrogação, sinal para uma dúvida que se colocava então, quando as articulações que resultaram no processo de afastamento da Presidente da República não revelavam cabalmente a conspiração articulada como golpe institucional para destituir uma Presidenta eleita e substituir, sem o crivo de eleições gerais o seu programa de governo. Nesse período, ou seja, apos a edição do artigo, enquanto os fatos que caracterizaram o que já se pode com serenidade chamar-se de golpe institucional foram se desdobrando, foram inúmeras as ocasiões – atos públicos, manifestos, audiências públicas, abaixo-assinados, petições, mesas-redondas, debates, seminários, reuniões, em espaços políticos institucionais, populares, acadêmicos, judiciais, sindicais, nos quais a convicção sobre a existência de um golpe em curso foi se firmando. Entre eles, por instigação de estudantes de pós-graduação, a instalação na Faculdade de Direito da UnB, se um Seminário “Como Fazer Tese em Tempo de Golpe”. A preocupação dos estudantes disse respeito sim ao imperativo da política, mas igualmente, à preocupação com a determinação de seus objetos de estudos, quando entrevistas, atores sociais, realidades institucionais passaram a mover-se pelas incertezas da conjuntura de transição, abrindo uma atmosfera de insegurança, de subterfúgios, de hesitações discursivas e até de incerteza sobre a existência ou não de órgãos eventualmente em vias de extinção, refuncionalização ou deslocamento de instancia. Estamos neste momento preparando um e-book com o material de três sessões do seminário (ao instalá-lo apenas uma sessão havia sido programada), mas com expectativa semelhante a que dramaticamente vivenciou Gustav Radbruch, ante o impacto do nazismo sobre a sua obra Filosofia do Direito recém concluída forte no positivismo que a fundamentava, para a qual se viu obrigado a elaborar uma circular de reposicionamento, com os denominados “Cinco minutos de Filosofia do direito” (RADBRUCH, 1974: 415-418).
ESCRIVÃO FILHO, Antonio e SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016.
LASSALE, Ferdinand de. A Essência da Constituição. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2001.
LEONEL JÚNIOR, Gladstone e SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. La Lucha por la Constituyente y Reforma del Sistema Político en Brasil: Caminos hacia un “Constitucionalismo desde La Calle”. In La Migraña, Bolívia: Vicepresidencia del Estado Plurinacional de Bolívia, 2016.
MARX, Karl. O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974
RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Coimbra: Armênio Amado Editor, Sucessor, 5º edição revista e acrescida dos últimos pensamentos do autor, 1974.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crise do Paradigma. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Introdução Crítica ao Direito, Série O Direito Achado na Rua, vol. I. Brasília: UnB/CEAD, 1993.
SOUSA JUNIOR, José Geraldo de.  A Nova Constituição e os Direitos do Cidadão. Revista de Cultura Vozes, Ano 82 – Volume LXXXII – Julho/Dezembro 1988, n. 2.
SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (coord). O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2015.
SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (org)Introdução Critica à Justiça de Transição na America Latina, Série O Direito Achado na Rua, vol. VII. Brasília: MJ/Comissão de Anistia/UnB/CEAD, 2015.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Mulheres, movimentos sociais e direito: feminismo popular e "O Direito Achado na Rua"



Hoje, aos 18 de maio de 2020, a pesquisadora Ísis Táboas defendeu sua tese de doutorado em direito, intitulada "Mulheres, movimentos sociais e direito: feminismo popular e "O Direito Achado na Rua", no Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.

Título da tese "Mulheres, Movimentos Sociais e Direito: feminismo popular e O Direito Achado na Rua na luta camponesa"
Orientador: Dr. José Geraldo de Sousa Júnior
Doutoranda: Ísis Dantas Menezes Zornoff Táboas

Banca
Membro externo: Dr. Lee Pegler, International Institute of Social Studies- University Erasmus of Rotterdam.
Membro externo: DraMichelly Ferreira Monteiro Elias, Departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília.
Membro interno: Dr. Alexandre Bernardino Costa, Faculdade de Direito  da Universidade de Brasília.
Suplente: Dra. Talita Tatiana Dias Rampin, Faculdade de Direito  da Universidade de Brasília.

Confira a íntegra da defesa em nosso canal: https://www.youtube.com/watch?v=i-0G5UscLf8

quarta-feira, 13 de maio de 2020

Retratofalado

Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito



Retratofalado. Ensaios em Estado de Imagem. Textos Danielle Martins, Gabriela Jardon, Mariana Carvalho. Fotografias Wanessa Montoril. Brasília: Edição das Autoras/Athalai Gráfica e Editora, 2019, 103 p.

       Rebuscando a memória, posso dizer que minha mais sensível reminiscência em relação ao tema da fotografia e da narrativa, vem do impacto de Blow-Up, o filme de Michelangelo Antonioni vencedor do Grand Prix do Festival de Cinema de Cannes de 1966, por sua vez baseado no conto Las Babas del Diablo, de  Julio Cortázar. A fotografia é o elemento narrativo num enredo no qual o suspense está contido no espaço entre o real e a sua captura imagética que faz esvanecer entre o olhar físico e o olhar da câmera, toda a certeza do acontecimento ou que transforma em real, como na cena do jogo de tênis imaginário, o som da bola tocando o chão.
       Mas, meu mergulho pessoal na descoberta da fotografia como liame narrativo se deu em três momentos autorais. O primeiro quando da edição do volume 3, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito Agrário, quando se tratou de definir a natureza e a forma da ilustração. Todos os volumes da Série, hoje caminhando para o 10º, têm um relevo artístico, ilustrações (cartoons, caricaturas, Gou-Gon, Fernando Lopes), pinturas (pacientes de programas terapêuticos em hospitais-dia para acompanhamento de transtornos mentais), desenhos gráficos e fotografias. O volume 3 teve fotos do grande artista Sebastião Salgado cedidas para a edição por mediação do MST – Movimentos dos Trabalhadores Sem-Terra.
       O segundo momento se deu durante o FLAAC 2012 (Festival Latino-Americano e Africano de Arte e Cultura) realizado por ocasião do cinquentenário da UnB (http://estadodedireito.com.br/registro-arquitetonico-da-universidade-de-brasilia-unb/). Numa das atividades do sofisticado programa, com a exposição e o lançamento de catálogo da obra do artista o fotógrafo argentino Daniel Mordzinski, participei de mesa-redonda sobre a relação entre fotografia e literatura, com o professor Antônio Miranda da UnBo escritor colombiano Santiago Gamboa e com a escritora cubana Wendy Guerra, ela própria retratada na obra, logo da abertura da exposição 200 x 200 Duzentos Anos das Independências em Duzentos Retratos de Escritores, uma ambicioso atlas humano da literatura ibero-americana (Revista FLAAC2012. Brasília: FLAAC2012/Decanato de Extensão da UnB, 2012; Catálogo da Exposição. Brasília: FLAAC2012/Decanato de Extensão/Casa de Cultura da América Latina/Universidade de Brasília, 2012).
       O terceiro momento é conferido aqui neste espaço da Coluna Lido para Você, ao trazer para indicações obras que, de modo simbólico ou que tomem como pretexto, aludem à fotografia como um ponto de partida para o seu fio narrativo. Assim, por exemplo: http://estadodedireito.com.br/foto-de-uma-conversa/, título de um livro de Cristovam Buarque que contem entrevista com o grande economista Celso Furtado, o título referindo-se a foto dessa entrevista na casa do grande brasileiro em Paris, foto, aliás, que eu bati, presente no encontro e http://estadodedireito.com.br/25767-2/ – RETRATOS ESCRITOS. Homenagem a ANTÓNIO AVELÃS NUNES.
       Contudo, o que tenho a dizer é que, para além da impressão ingênua, devo o meu aprendizado para orientar o olhar esclarecido como narrativa fotográfica, a dois grades artistas desse métier, ambos tradutores do significado social de BrasíliaLuis Humberto e José Roberto Bassul.
       De Luis Humberto, retenho a lição do duplo olhar intimista, para o dentro e para o fora (HUMBERO, Luis. Do Lado de Fora da Minha Janela. Do Lado de Dentro da Minha Porta. Brasília: tempo d’imagem, 2010). De meu dileto amigo José Roberto Bassul, o arquiteto convertido em fotógrafo, a exibição de uma Brasília recriada por sua lente: nas paisagens modernista, concretista formando linhas de sombra, para a inscrição de poéticas mínima,inspiradas em desmemórias olímpicas,  e afinal, exibindo uma paisagem que traduz a concepção de que a cidade é um vão.
       Agora me deparo com esse instigante Retratofalado. Ensaios em Estado de Imagem. Leio na apresentação de seu projeto editorial que ele foi concebido como uma proposta visual-literária que pretende reunir o que, então, na realidade, produz-se em par: ver e narrar, narrar ver num amálgama a partir das imagens da fotógrafa Wanessa Montoril, pré-condição para as autoras Danielle Martins, Gabriela Jardon e  Mariana Carvalho, se lançarem em histórias que, rompendo com a simples descrição das fotografias, deem corpo ao olhar lírico e à voz poética muito pessoal de cada uma.
       No livro, diz o cronista Daniel Cariello que o prefacia, “não sabemos se os escritos preenchem os espaços em branco sugeridos pelas fotografias ou se são as imagens que ilustram os textos”. E eu até diria mais, retomando minha reminiscência original em Blow-Up, fazer esvanecer toda a certeza sobre acontecimentos que se  transformam em real, quando o real talvez se manifeste como imaginário. Assim enfabula um narrador-personagem no texto Buenos Aires, assinado por GJ: “(Ou pensei que entendi. Ou fingi que entendi. Ou queria tanto que tivesse entendido que de fato entendi.)”.
       Já adiantei, inclusive aqui neste espaço da Coluna Lido para Você, ter presente que no plano epistemológico, a propósito, tem sido estimulante a vertente que trabalha a interlocução interdisciplinar e complexa para acentuar o diálogo entre saberes, demonstrando que o conhecimento não se realiza por uma única racionalidade, mas, ao contrário, pela integração entre diferentes modos de conhecer que nos habilitem a discernir o sentido e significado da existência e a elaborar sínteses interpretativas que além de nos permitir compreender o mundo, contribuam para transformá-lo, conforme, entre todos, sustenta Boaventura de Sousa Santos. Trata-se, como acentua Roberto Lyra Filho (A Concepção do Mundo na Obra de Castro Alves, Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1972; Filosofia Geral e Filosofia Jurídica, em Perspectiva Dialética, in Palácio, Carlos, S.J., coord. Cristianismo e História, São Paulo: Edições Loyola, 1982), de operar padrões de esclarecimento, recusando o monólogo da razão causal explicativa, para abrir-se a outras possibilidades de conhecimento: o fazer, da atitude técnica; o explicar e compreender, da atitude científica; o fundamentar, da atitude filosófica; o intuir e mostrar, da atitude artística; o divertir-se, da atitude lúdica; o revelar, da atitude mística.
       Tem razão Eduardo Lourenço, não só em sustentar a unidade da poesia fernandiana (Fernando Pessoa), mas em suscitar a totalidade que abarca os seus aparentes fragmentos heterônimos, para indicar que nesse processo o problema central continua a ser o do conhecimento. Para Lourenço (Tempo e Melancolia em Fernando Pessoa, publicado na edição brasileira do livro O Mito da Saudade, Editora Companhia das Letras), os avatares de Pessoa “representam uma tentativa desesperada de se instalar na realidade” (para mais ver http://estadodedireito.com.br/coluna-lido-para-voce-direito-no-cinema-brasileiro/).
       Das autoras conheço bem Mariana Carvalho e Gabriela Jardon. Não foi surpresa para mim, compartilhando com ambas espaços acadêmicos e profissionais, ver o revelar-se dessa disposição para o exercício de modos de conhecer que dialoguem, no caso delas, direito e literatura, como mediação inteligível e sensível para instalar-se na realidade.
       Com Mariana dividi, juntamente com outros parceiros e parceiras do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, na UnB, a mobilização editorial e co-autoral que resultou na edição dos 4º e 6º volumes da Série O Direito Achado na Rua, respectivamente Introdução Crítica ao Direito à Saúde e Introducción Crítica al Derecho a la Salud (Brasília: Editora UnB, 2008 e 2012). Já ali pressentia nos temas e estilo, a dimensão dupla da pensadora hábil no discurso científico e da escritora, sensível e exímia no trato da crônica e do ensaio. Não a via há tempos e é com alegria que a reencontro nesses ensaios em estado de imagem.
       Com Gabriela Jardon – GJ, não há surpresa. Eu já suspeitava que por trás ou por dentro da Juíza togada, ardia a quentura de um vulcão prestes lançar larvas incandescentes. Antes de acolhê-la como colega pesquisadora nos grupos de pesquisa da UnB (Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania), já tinha divisado as frestas de uma vivacidade literária, na leitura de sua Coluna Enquanto Isso na Sala de Justiça, publicada no Jornal Metrópoles. Ali, na crônica Reflexões sobre uma inspeção judicial: “A lei é morta, o juiz é vivo”, ela se indaga: “A cruzada judicial contra a corrupção vem sendo feita por um juiz vivo? Será que as ruas, o povo, o passado, a história vêm sendo devidamente inspecionados tanto por este juiz quanto pelos que o criticam? A decisão do HC foi uma vitória de juízes vivos sobre uma lei morta? Ou ali, ao contrário, na intenção de se vivificar uma lei, a realidade foi apagada, ninguém se lembrando de “inspecionar” o que de fato ocorreu travestido de processo?”
       Então ela se apresenta como uma juíza viva e ativa, sensível, juízes que se deem conta conta, como mostra Bistra Apostolova (Perfil e habilidades do jurista: razão e sensibilidade, Notícia do Direito Brasileiro, nº 5, Faculdade de Direito da UnB, Brasília), de que prefigurar o sentido dos conflitos é a tarefa que lhes cabe e que mediá-los requer compreender o significado que eles alcançam em seu próprio tempo. Como disposição e como atitude, sem o desespero aniquilador que Tolstoi impõe ao juiz de sua narrativa (A morte de Ivan Ilich), para abrir-lhe a consciência que desnuda a sua trajetória profissional, social e familiar como “monstruosa mentira camuflando vida e morte”.
       No plano das habilidades, que é o que remete mais imediatamente à constituição de perfis profissionais, a alusão a uma justiça poética quer mais designar a categoria subjetividade, como própria ao afazer do jurista para interpretar criativamente e com imaginação as relações do homem com o mundo e com o outro. É com este sentido que Martha Nussbaun fala em poesia e imaginação (Justicia Poética. La Imaginación Literaria y La Vida Publica, Editorial Andrés Bello, Barcelona/Buenos Aires/México D.F./Santiago do Chile), ou seja, para caracterizá-las como “ingrediente indispensável ao pensamento público, com condição de criar hábitos mentais que contribuam para a efetivação da igualdade social”.
       Não se trata, nessa referência a uma justiça poética, o que poderia parecer à primeira vista, a uma busca de relação entre a justiça e a literatura, para por em relevo a inclinação de magistrados para o uso da linguagem artística. Não que isso deixe de ocorrer ou que se rejeite o pendor estético quando se trata de desenvolver o discurso jurídico.
       Aplicadas aos juízes, essas categorias traduzem as expectativas de mediação humanística entre visão de mundo e consciência social, de modo a traduzir aquela exigência funcional já destacada por Bistra Apostolova (Perfil e Habilidades do Jurista: razão e sensibilidade): como “a habilidade de ver o outro como diferente e saber colocar-se no lugar dele, e desse modo, desenvolver a capacidade de imaginar e de compreender, essencial na formação do bacharel”.
       O juiz, dizia meu querido avô também juiz Floriano Cavalcanti de Albuquerque, assume sim uma missão e nela incorpora a dimensão orgânica que institucionaliza a sua judicatura. Ele o faz, hoje é sabido e aceito, no plano coletivo quando se associa para ampliar a sua participação política. Atualmente, os juízes assumem essa expressão politizada de seu agir coletivo, mas nem sempre foi assim e há registros dramáticos para confinar em sofrimento percursos impulsionados por compromissos de classe. Também nesse terreno Floriano Cavalcanti abriu sendas pioneiras. Tome-se, por ilustração, o discurso pronunciado em 1954, na sede do Tribunal de Justiça, na solenidade de fundação da Associação dos Magistrados Brasileiros no Rio Grande do Norte, da qual foi o primeiro presidente (O Juiz e a importância de sua missão). Depois de estabelecer a relação entre o agir insular , fragmentário e aritmético do juiz que caracteriza a soma quantitativa de seu esforço para determinar o quadro de suas  necessidades e de mostrar  a exigência de cooperação assim articular o prestígio qualitativo do agir enquanto classe, ele elabora um dos mais bem definidos esboços do que pode ser definido como perfil de um magistrado: “Judex, é como os latinos intitulavam a autoridade encarregada de aplicar as Leis. Dizer o Direito, é a sua significação etimológica – Jus discere. Equivale a prestar Justiça, desde que esta é a sua finalidade. O Juiz não é o ‘ente inanimado’, a que aludia Montesquieu, e sim, o ‘oráculo vivo’, como lhe chamava Blakstone. É figura dinâmica e não estática. A sua cultura tem que ser universal, para que dele não se chasqueie, como Lutero, ‘Pobre coisa o juiz que só é jurista!’, ou se reduza a nada, como D’Holbach, ‘Quem só o direito estuda, não sabe direito’. Vê-se que de nós, cuja ‘honrosa e difícil condição é poder tudo para a justiça e nada poder para nós mesmos’, na bela frase de D’Aguesseau, muito se exige e pouco se nos dá. Conhecimentos gerais e especializados, a par de qualidade excepcionais de inteligência, de caráter e moralidade – são os requisitos e predicados ordinários do Juiz. É que somos, na expressão de Carlos Maximiliano, ‘um sociólogo em ação, um moralista em exercício’”.
       Anatole France, ainda acrescentava a essas qualidades próprias do bom juiz, certamente inspirando-se no Presidente Magnaud, a combinação entre o espírito filosófico e a simples bondade (A Lei é morta o juiz é vivo, op. cit.).  Algo que permita o salto humanizador que o exalte para além daquele lugar automático que já no século XIV mereceu a reprimenda de Bartolo de Sassoferrato (“I meri leggisti sono puri asini”). Um lugar veementemente recusado por Floriano Cavalcanti (O Juiz e a importância de sua missão): “Assim apercebido, estará a altura do seu nobre ofício, capaz de exercer a função de criador do Direito e humanizador da Lei, dando movimento aos textos imotos dos Códigos, adaptando os velhos preceitos às novas condições sociais. Nesse trabalho reajustativo torna-se ele o artífice da formação e do aprimoramento da norma jurídica, plasticizando-a ou suprindo as suas deficiências e omissões, ou fazendo sentir ao legislativo a necessidade de sua revisão ou reforma. Dessa maneira, o Juiz faz com que o Direito, estratificado na Lei, não se fossilize, e evolva como um organismo vivo. E os julgados proferidos em Tribunal (Jurisprudência), além de fontes documentárias da evolução jurídica, são preciosos repositórios para o estudo da Sociedade, pelos flagrantes das épocas em que foram pronunciados”.
       Juízes da estirpe da querida amiga, a Juíza Gláucia Falsarella Pereira Foley do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, que recebeu em 2009 o título de Cidadã Honorária de Brasília, concedido pela Câmara Legislativa do Distrito Federal. Fui o orador para o elogio da homenageada, por seus méritos acadêmicos, com mestrado em Direito obtido na Universidade de Brasília – UnB, com a dissertação “Justiça Comunitária: por uma justiça da emancipação”, tema que a projetou como pioneira na criação de um espaço inédito para abrir acesso à Justiça, a partir da institucionalização do premiado projeto Justiça Comunitária. Juíza sensível no sentido a que alude Martha Nussbaun, mas que sabe expressar-se simultaneamente como a grande artista que é, sambista de raiz, vocação reconhecida desde seu primeiro trabalho gravado e performatizado Meu Canto. Agora em dezembro de 2019, Gláucia Foley marcou participação eloquente no Seminário Direito Como Liberdade: 30 Anos de O Direito Achado na Rua, na mesa Educação para a Paz e Práticas Emancipatórias de Mediação de Conflitos – 30 Anos do Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos e com o texto que vai integrar o 10º volume da Série O Direito Achado na Rua: Justiça Comunitária. Justiça e democracia muito além dos tribunais. Gláucia, no fecho de sua mesa e no encerramento do evento, apresentou-se artisticamente, com poções preciosas de seu rico repertório, de seus cantos.
       Volto a Gabriela e suas crônicas, dando vida a leis inanimadas: “Pela primeira vez na vida, fiz uma inspeção judicial. Inspeção judicial é um meio de prova previsto no Código de Processo Civil e praticamente morto. Este nosso novo mundo de números, estatísticas, massificação de processos, pressas e agonias não deixou mais espaço para que um juiz, na dúvida sobre alguma coisa, pegue seu bocadinho de tempo, desloque-se, vá até o local do problema, veja com seus próprios olhos, roce sua pele e sinta o cheiro das controvérsias, não se contentando só com as suas tão desconfiáveis narrativas. Pois outro dia fui. Dois prédios geminados de quitinetes nas setecentos da Asa Norte. Os moradores, com os anos, foram invadindo aqui, deixando o vizinho entrar ali, mudando as paredes internas, de modo que existe lá hoje o estranhíssimo fenômeno arquitetônico de haver quitinetes localizadas metade em um prédio e metade em outro. Um dos edifícios foi a leilão e arrematado. O arrematante quer que os moradores saiam do imóvel adquirido por ele. Devemos precisar então, exatamente, onde cada quitinete se localiza. Nomeei um perito engenheiro civil e ele orçou alto a perícia. As quitinetes são simplórias, as pessoas envolvidas não têm o dinheiro e estávamos nesse impasse. Sabe de uma coisa? Vou lá com minha trena – eu sempre gostei de uma reforma. Em 15 minutos, tive todas as respostas que precisava e voltei para a vara com uma noção do que estava em jogo poucas vezes alcançada por mim em outro processo”.
       É esta juíza sensível que chega à pós-graduação em direitos humanos na UnB, para abrir os debates sobre a escuta profunda tão necessária nos espaços de mediação institucional: “Não há dúvida de que o Judiciário tradicional, calcado quase que apenas na operação pretensamente matemática da subsunção do fato à norma estatal, dá conta, se é mesmo que dá, de uma parcela ínfima do que pode se entender por direito e distribuição de justiça. É urgente que se alarguem as possibilidades, que se trabalhe com outras racionalidades e caminhos de formação de decisão. Não se está falando, necessariamente, de direito alternativo ou de ativismo judicial. Sem descartá-los, a apologia a estas inclinações também seria encerrar o fenômeno do direito e da justiça em quadrantes menores do que sua real natureza. O Judiciário precisa se fazer permeável aos fenômenos sociais de uma maneira ampla, aguçando sua escuta e levando em consideração em seus processos decisórios argumentos que não sejam estritamente os do direito positivado”. (Gabriela JardomUm “tribunal achado na rua”: seria possível? Seria útil? Ou não passa de uma quimera?. Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal, v. 1 n. 2 (2019): Ordenamentos jurídicos, monismos e pluralismos: O Direito Achado na Rua e as possibilidades de práticas jurídicas emancipadoras).
       Chego ao fim, saboreando um duplo regalo. Por dentro uma leitura evocativa, familiar, conduzida pelos tipos gráficos que me recordaram a minha velha Smith Corona depois substituída pela Olivetti Lettera 22 de meus primeiros escritos (aqui com a fonte Zai-Olivetti Regular. Por fora, a plasticidade do encontro entre capa e contra-capa (ou quarta capa), na combinação co-autoral, assim apresentada: “Marcha com passos certos, porém exaustos, o caminho inevitável entre as duas casas. Resignada, risca no chão o mesmo trajeto toda manhã de domingo. Vai buscá-lo, como faz há tanto. Bate na porta e a mulher abre sem que se olhem, apontando de costas a cadeira para que se sente. Espera por ele de pé na cozinha, onde, ainda àquela hora, chegam do quarto os calores desgrudados dos dois. Ele aparece, sujo e torto, e a segue de volta para casa, sem hesitar. Passa então o café e arruma os lençóis. Ele se deita esgotado. Não trocam palavra, mesmo quando, já passadas horas, ela vai ao encontro daquele corpo gasto, na cama que é deles, embalada pelo cheiro melado e persistente de uma outra mulher, conseguindo por um segundo, e só assim, amar aquele homem”.
       Um primor. Lembrou-me Ítalo Calvino, em Amores Difíceis. Uma percepção convincente destacada por Bruna Fontes Ferraz (Sapore, Sapere: por uma poética dos cinco sentidos em Italo Calvino / Tese de Doutorado, USP, 2018).  Em Calvino, a tese constata, “a partir de indagações sobre a possível atrofia dos sentidos e o declínio da experiência no homem moderno, problematiza-se se a linguagem tornaria o homem insensível aos estímulos externos, ou se ela permitiria que as experiências sensíveis se tornassem acessíveis a ele”. Nesse livro de Calvino, o conto “A Aventura de um Esposo e de uma Esposa”, descreve como “naquele nicho de tepidez que ainda conservava a forma do corpo dela, e afundava o rosto em seu travesseiro, em seu perfume”, o personagem adormecia.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55