sábado, 30 de março de 2013

Lei Áurea 2013

Dois anos atrás o ex-ministro Delfim Netto quase foi mandado ao pelourinho para levar chibatadas, embora as tenha recebido verbalmente, por conta de um destempero também verbal que cometeu.
Destempero em que tinha muita razão, entende-se agora...
Durante uma entrevista na qual discorria sobre os avanços da economia brasileira e sobre a mudança do perfil do trabalhador e a reformatação do mercado de trabalho, ele disse algo mais ou menos assim: a empregada doméstica tal como nós conhecemos é um "animal em extinção"; quem teve, teve, quem não teve não terá mais.
Foi o que bastou para choverem protestos de sindicatos, ONGs, associações de empregados e para "especialistas" em geral caírem de pau no economista. Como assim comparar o nobre trabalhador do lar com um reles animal?
Ele chegou a ser notificado judicialmente a acabou desculpando-se publicamente.
Não deveria, pois estava basicamente certo.
Claro que referir-se a um trabalhador como animal, na expressão que foi usada, não é algo de bom tom, mas também nada que se deva levar ao pé da letra --mesmo porque somos todos animais, alguns até razoavelmente racionais...
O que importava ali, dentro da análise que estava sendo feita, era o contexto, e o contexto estava absolutamente correto: a empregada doméstica tipo casa-grande-e-senzala, aquela pessoa "quase da família" disponível 24 horas por dia, aquela mocinha do interior que a gente ajuda e que nos faz de um tudo, já era, acabou, foi-se, viu, madame?
As muitas e absurdas reações ao Projeto de Emenda Constitucional que amplia e garante os direitos dos trabalhadores domésticos dentro apenas daquilo que é justo e básico mostra bem que a expressão infeliz do ministro refletia o que pensam muitas "patroas" que não se conformam em perder a mamata colonial de que desfrutam em pleno século 21. Quem vai pegar o cocô do cachorrinho agora?!
Como diria a Barbara Gancia, dou um picolé de limão a quem não conheça ao menos uma família abastada que não disponha de uma escravinha do lar, uma mucama de mesa e banho, um ser qualquer cuja existência justifica-se, a estes patrões senhores de engenho, apenas por sua capacidade de servir. Servir bem, a qualquer hora e sem dar um pio.
Acabou a mamata, portanto.
E que fique claro que, para as pessoas de bem que sempre fizeram questão de tratar digna e corretamente suas assistentes, a PEC das empregadas vai significar apenas e tão somente algo em torno de 11% a mais de despesa. Ou seja, nada que não possa ser contornado com planejamento ou boa vontade.
Vai dar trabalho? Vai. Vai ter gente demitida? Vai, mas o mercado se reorganiza rapidamente. Vai ser uma tragédia? Não!
Ah, sim, vai haver bastante desconforto para quem gosta do chazinho na cama pela manhã bem cedo e quer sempre a mesma temperatura da água do escalda pé no fim da noite. Há de se pagar por isso viu?
No mais, bem-vindas ao século 21 trabalhadoras do lar!
Luiz Caversan Luiz Caversan é jornalista e consultor na área de comunicação corporativa. Foi repórter especial, diretor da sucursal do Rio da Folha, editor dos cadernos "Cotidiano", "Ilustrada" e "Dinheiro", entre outras funções. Escreve aos sábados no site da Folha.

sábado, 16 de março de 2013

Voto do Conselheiro José Carlos Moreira da Silva Filho Deferindo a Concessão de Anistia Post Mortem a Alexandre Vannucchi Leme na Sessão Especial da Comissão de Anistia, na USP, em 15/03/2013

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA
COMISSÃO DE ANISTIA
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Requerimento de Anistia: 2013.01.71959
Requerente: MARIA CRISTINA VANNUCCHI LEME
Anistiando Político Post Morten: ALEXANDRE VANNUCCHI LEME
Relator: CONSELHEIRO JOSÉ CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO
ANISTIA POST MORTEM. MILITANTE DA ALN.
ESTUDANTE DE GEOLOGIA DA USP. ASSASSINADO
EM MARÇO DE 1973. DECLARACAO DE ANISTIADO
POLÍTICO.
I. Militante da ALN no movimento estudantil;
II. Preso no dia 16 de Março de 1973 e morto sob tortura no
dia 17 de Março de 1973;
III. Foi assassinado e a versão do fato dada pelos policiais não
condiz com a verdade;
IV. Enterrado em cova rasa como indigente no cemitério de
Perus, tendo seus restos mortais sido entregues à família
apenas em 1983;
V. Perseguição política comprovada;
VI. Deferimento do pedido.
1. Maria Cristina Vannucchi Leme, devidamente
qualificada, formula requerimento a esta Comissão, protocolado em 25.02.2013,
pleiteando a declaração de anistiado político post mortem de Alexandre Vannucchi
Leme nos termos da Lei n° 10.559/2002, e abrindo mão do direito à reparação
econômica.
2. Inicia afirmando que o anistiando foi morto no dia
17/03/1973 quando se encontrava sob a custódia do Estado brasileiro, preso por
agentes do DOI-CODI/SP, por motivação política, dentro da Cidade Universitária
de São Paulo/SP. Esclarece que o relato oficial das circunstâncias da sua morte está
devidamente registrado no Livro Direito à Memória e à Verdade da Comissão
Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos - CEMDP da Secretaria Especial
de Direitos Humanos da Presidência da República, e o transcreve na íntegra.
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Também transcreve texto escrito pelo Professor Aziz Ab'Saber para marcar no ano
de 1998 os 25 anos da morte de Alexandre Vannucchi Leme.
3. Por fim, fundamenta o seu pedido de declaração da
condição de anistiado político do anistiando, sem qualquer reparação pecuniária, no
Art. 1º, I e no Art. 2º, VII da Lei nº 10.559/2002.
4. Finaliza com as seguintes palavras:
Passadas quase quatro décadas desde o martírio de Alexandre, a
anistia aqui requerida é um gesto em busca de preservação, não só
de sua memória, mas também de todos os que ousaram se rebelar
contra a ditadura militar.
Requer, por fim, diante da violência praticada por seus agentes que
o Estado democrático brasileiro reconheça e peça publicamente
perdão, de sorte a possibilitar à sociedade conhecer seu passado e
dimensionar a falta que pessoas como Alexandre Vannucchi Leme
fazem ao país.
5. Além dos documentos pessoais, a requerente junta
extensa documentação sobre o anistiando, entre as quais:
• Cópias da requisição do exame e do exame de corpo de
delito (fls.17 a 20);
• Cópia da íntegra da Nota dos Estudantes, assinada em
1973 pelo Centro Acadêmico XI de Agosto (fls.21);
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• Cópia do Comunicado do Conselho de Presbíteros da
Diocese de Sorocaba em repúdio à morte do anistiando,
datado de 27/03/1973 (fls.22);
• Cópia da íntegra da Carta ao Papa, escrita pela mãe do
Anistiando, Sra. Egle Vannucchi em 1973, logo após a morte
do seu filho (fls.23);
• Cópia da íntegra do relatório do caso de Alexandre
Vannucchi Leme na CEMDP, assinado por Suzana Keniger
Lisboa (fls. 24 a 29);
• Cópia da íntegra do artigo "Memória: 35 anos da morte
do líder estudantil Alexandre Vannucchi Leme", escrito por
Fernanda Ikedo (fls.31 a 41);
6. Em resposta aos ofícios enviados pela Presidência desta
Comissão de Anistia, o Arquivo Nacional enviou a seguinte documentação,
também juntada aos autos:
• Certidão do Arquivo Nacional em nome do anistiando
(fls. 63 a 75);
• Cópias da íntegra dos Dossiês em nome do anistiando
que constam no Arquivo Nacional (fls.78-395).
7. É o relatório. Passo agora ao voto.
8. Alexandre Vannucchi Leme é, sem nenhuma dúvida, um
grande símbolo de resistência e luta contra a ditadura civil-militar que se abateu
sobre o Brasil a partir de 1964. A sua história, apresentada com riqueza de detalhes
através da farta documentação juntada aos autos, é emblemática, pois traz exemplos
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gritantes, até hoje presentes, de como o aparato civil e governamental, tanto de
prática como de apoio à perseguição política, repressão e crimes contra a
humanidade se estabeleceu em nosso país. A seguir, e com base nos documentos
juntados aos autos, procurarei narrar esta admirável e trágica história.
9. Alexandre Vannucchi Leme, também carinhosamente
chamado pelos seus amigos e colegas de "Minhoca", dada a sua baixa estatura e
compleição física franzina, era estudante do quarto ano do curso de Geologia na
Universidade de São Paulo, quando foi preso pelos agentes do DOI-CODI/SP.
Nascido em Sorocaba/SP no ano de 1950 no seio de uma tradicional família
católica, desde cedo Alexandre demonstrou grande capacidade intelectual aliada à
sua fé e ao empenho e esperança em prol de uma sociedade mais justa e menos
desigual. Como relata sua mãe, a Sra. Egle Vannucchi, aos sete anos havia lido toda
a coleção de Monteiro Lobato e demonstrava interesse por tudo (fls.33). Na família
também não faltavam exemplos e inclinações voltados aos ideais de uma sociedade
mais justa. Seu tio, Aldo Vannucchi, ex-padre e depois professor na Faculdade de
Filosofia de Sorocaba, e que vivia próximo e sensível às demandas operárias
chegou a ser preso e monitorado pelo regime. Seu primo, Paulo de Tarso
Vannucchi, aderiu à resistência contra ditadura e ficou preso por anos. Décadas
depois, Paulo de Tarso Vannucchi viria a ser Ministro dos Direitos Humanos do
governo Lula e um dos principais agentes públicos e protagonistas do
aprofundamento e implementação de mecanismos transicionais no Brasil, como a
criação de uma Comissão da Verdade, por exemplo, que hoje se encontra em
funcionamento.
10. Tendo passado em primeiro lugar no vestibular de
Geologia da USP, Alexandre mudou-se para a cidade de São Paulo. Como membro
da comunidade acadêmica da USP, Alexandre destacou-se intensamente no
movimento estudantil. Fazia, juntamente com seus colegas, e em especial Alberto
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Alonso Lázaro, o Babão, e Adriano Diogo, o Mug, conhecidos como os três A's da
Geologia, um trabalho cultural e político de conscientização da comunidade
acadêmica e da periferia da cidade. Eram vinculados à Ação Libertadora Nacional-
ALN, organização de resistência à ditadura que surgiu em 1967 de uma dissidência
do Partidão liderada por Carlos Mariguella. Faziam debates, panfletos, teatro.
Adriano e Alonso também viriam a ser barbaramente torturados pelos agentes da
repressão, conseguindo, contudo, sobreviverem às sevícias sofridas. Hoje, Adriano
Diogo é Deputado Estadual pelo Partido dos Trabalhadores e coordena a
Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva, instalada na Assembleia Legislativa
do Estado de São Paulo.
11. Foi em meio às suas atividades políticas entre os
estudantes que Alexandre conheceu Lisete, sua primeira e última namorada, que
também participava das reuniões políticas e representava os alunos na congregação
da História. Para dar uma boa ideia das atividades estudantis empreendidas por
Alexandre em meio aos tempos mais brutais da ditadura, transcrevo aqui texto
redigido pela Professora Nair Heloisa Bicalho de Sousa, que foi membro do
Diretório Central dos Estudantes da USP, que hoje leva o nome de Alexandre
Vannucchi Leme, de 1969 a 1973 e hoje é cientista social e professora da
Universidade de Brasília, em homenagem aos 40 anos da morte de Alexandre
Vannucchi. O texto foi publicado recentemente no Blog do Direito Achado na
Rua1 e se intitula "Alexandre Vannucchi Leme, um companheiro alegre e
destemido":
Fins de 1969. Um grupo corajoso de estudantes da USP se reúne e decide
retomar o movimento estudantil na universidade. Alexandre estava entre
eles, sempre animado e disposto a tarefas difíceis. Tempo duro: estudantes
com medo da repressão, salas de aula infiltradas com agentes da ditadura,
professores cuidadosos com as explicações teóricas e um campus novo no
Butantã, sem árvores, distribuído ao longo de um enorme espaço físico
1 Disponível em: http://odireitoachadonarua.blogspot.com.br/2013/03/alexandre-vannucchi-leme-umcompanheiro.
html
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descampado que dificultava o circuito estudantil, oposto ao da velha rua
Maria Antônia, no centro da cidade, mobilizada pelas denúncias nas
paredes e ações coletivas de protesto.
A proposta de recriação do movimento estudantil na USP precisava ser
criativa e com chance de sucesso. Alexandre animava nossas discussões e
ao final decidimos utilizar a arte como instrumento da política: construir o
Diretório Central dos Estudantes e encaminhar uma recepção dos calouros,
denominada “Bichusp”, com apresentação de peças de teatro na FAU/USP.
Em condição de semi-clandestinidade, reunimos os estudantes interessados
e fomos organizando os grupos de teatro de calouros em diferentes
unidades acadêmicas da USP, onde encontramos receptividade à proposta.
Fizemos uma apresentação no auditório da FAU/USP, a qual reuniu pela
primeira vez depois de 1968 centenas de estudantes na platéia. Alexandre
vibrou com o sucesso da iniciativa e passamos para o segundo passo:
construir os Centros Acadêmicos.
Os/as estudantes que participaram do teatro foram os/as candidatos/as às
eleições e se tornaram membros da primeira gestão estudantil. Inteligentes
e dispostos a iniciar um ciclo novo de informações e debates sobre a
situação econômica, social e política do país, assim como a respeito dos
problemas da USP, os representantes desses centros acadêmicos passaram
a agir sob a coordenação do DCE, definindo táticas e estratégias conjuntas.
Alexandre estava sempre presente nessas reuniões, com seu entusiasmo e
propostas, responsabilizando-se por tarefas políticas de risco.
Além do trabalho com o movimento estudantil, o DCE também cuidava de
fazer propaganda política em bairros da periferia da cidade, com
distribuição de panfletos em prédios, de modo a alertar a população sobre
o governo autoritário do país, com suas práticas de tortura,
desaparecimentos, seqüestros e mortes. Alexandre também estava presente
nessas ações políticas, doando seu tempo e entusiasmo à causa de um novo
país democrático, justo e igualitário.
Foram dias de muito risco e sofrimento: as prisões de colegas ou
conhecidos obrigava a uma rápida desocupação do local de moradia e a
redobrar os cuidados com a segurança pessoal e do grupo. Apesar do zelo
com a segurança, Alexandre se tornou vítima da repressão que não poupou
tortura para alcançar seus fins, provocando sua morte . Dedicado, corajoso
e alegre, ele se tornou uma lembrança carinhosa e amiga que me
acompanhou durante esses últimos quarenta anos.
Alexandre vive no coração dos colegas de seu tempo e faço votos que
permaneça vivo nos corações dos jovens estudantes que desfrutam de um
tempo em que é possível fazer política como festa, fruto do tempo em que
nós fizemos política como guerra, oferecendo nossas vidas para reconstruir
um novo país.
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12. Alexandre tinha contatos estreitos com conhecidos
dirigentes da ALN, como Ronaldo Queiroz, também assassinado pela ditadura e
Carlos Eugênio Coelho da Paz, constituindo importante vínculo com o mundo
exterior dos militantes clandestinos que operavam a luta armada. Importante
registrar que a ALN era uma organização que possuía entre os seus quadros
militantes oriundos dos mais diversos estratos sociais, como lavradores, militares de
baixa patente, trabalhadores manuais urbanos, autônomos, funcionários públicos,
técnicos, artistas, professores, oficias militares, profissionais liberais, religiosos e
estudantes, o que desmente a falsa notícia de lugar comum de que a resistência à
ditadura era coisa de um punhado de estudantes e intelectuais vinculados às classes
médias brasileiras. De todo modo, tanto a ALN como outras organizações de
resistência à ditadura, sejam armadas ou não, foram vítimas da política sistemática
de eliminação do pensamento de esquerda e dos seus representantes e ativistas,
conduzida pelo aparato repressivo do governo ditatorial e pelos setores da
sociedade civil que o apoiavam e sustentavam.
13. Em texto escrito por Aziz Ab'Saber (fls.7 a 9), por
ocasião dos 25 anos da morte de Alexandre Vannucchi Leme, também é possível
identificar o compromisso do anistiando com um país mais justo e menos desigual
na sua atividade de estudante e futuro geólogo. Tornou-se pioneiro na crítica e
denúncia aos projetos faraônicos empreendidos pela ditadura, em especial à
construção da rodovia Transamazônica:
E, Alexandre, antecedendo-se ao seu tempo cultural, iniciou-se autodidaticamente
nas difíceis tarefas de previsão de impactos. O governo não
sabia, nem queria saber, nada sobre a cadeia das consequencias negativas
de seus custosos projetos. Uma trágica deficiência do pensar, cujas
sequelas restaram até nossos dias, pelos cínicos sucessores dos ditadores.
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(...) Entre as principais reflexões críticas de Alexandre, dirigidas a projetos
duvidosos de governantes mal preparados, estavam suas considerações
sobre a construção da Transamazônica. O tempo mostrou que suas críticas
ao projeto da rodovia que pretendia cruzar selvas e grandes rios, de leste
para oeste, através de milhares de quilômetros de extensão, era um projeto
feito na prancheta, na base de documentos fragmentários ou mapas de
escala inadequada. Era a oportunidade desejada pelas empreiteiras e pelos
especuladores para iniciar uma larga frente de devastação das florestas,
sob o pretexto de assentar colonos provenientes de distantes áreas do país.
Um rasgão leste-oeste ampliável, introduzido no coração das selvas
amazônicas. Sob a idéia vaga de trazer bravos representantes dos sertões
secos, ofertando-lhes glebas florestadas a serem devastadas. Em solos mais
problemáticos, e pouco produtivos do que alguns solos do próprio
Nordeste. No império das águas, longe dos mercados consumidores. Sem
apoio de um sistema de transportes organizado e factível, tem uma área
ainda destituída do mundo urbano e muito logo jogada à própria sorte por
incompetência e insensibilidade do Estado. Sob a atuação ameaçadora e o
apetite incontrolável de especuladores fundiários, colonizadores empíricos,
madeireiros autoritários, e agropecuaristas absenteístas.
Alexandre, você tinha razão. É pena que você não possa saber que seus
companheiros e admiradores culturais, homens feitos, ainda choram por ti.
Que falta você faz!
14. Conforme relatado no livro "Cale-se", de Caio Túlio
Costa, Alexandre chegou a escrever uma peça de teatro crítica sobre a construção
da rodovia2.
15. No dia 15 de março de 1973, há exatos 40 anos,
Alexandre Vannucchi Leme assistia à última aula da sua vida. No dia seguinte, por
volta das 11h da manhã, foi preso por agentes do DOI-Codi do II Exército, São
2 COSTA, Caio Túlio. Cale-se. São Paulo: A Girafa, 2003, p.63.
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Paulo, sem que ninguém houvesse testemunhado a sua prisão. Como registram
Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio no livro "Dos filhos deste solo", durante todo
o dia, imediatamente após a sua prisão, é torturado pela Equipe C, integrada pelos
delegados dr. Jorge, dr. Tomé, pelo escrivão Gaeta, pelo tenente PM Mário, pelo
investigador Oberdam e pelo carcereiro Marechal. As torturas avançam noite
adentro e seus gritos de dor são ouvidos pelos 20 presos políticos que se
encontravam nas setes celas do DOI-Codi. Nos intervalos da tortura é levado para
a cela forte, conhecida como x-zero, uma sala fria e totalmente escura.
Dezessete de março, sábado: Alexandre é visto quando vai sendo conduzido
para a sala de torturas, ainda caminhando com os próprios pés. Agora, seu
suplício está a cargo da Equipe A, dos delegados dr. José e dr. Tomé e
outros. Ao meio-dia, os presos políticos vêem que ele é trazido de volta para
a solitária, já carregado. Entre 16h e 17h, o carcereiro Peninha vai buscálo
para nova sessão de tortura e o encontra morto. Começa um corre-corre
nervoso. Os presos políticos recebem ordem de ficar no fundo das celas
para nada verem. Os torturadores Caio, Alemão, Silva, Rubens, dr. Jacó,
dr. José vão todos ao x-zero ver o jovem morto. Alexandre é retirado da
cela, que em seguida é lavada. Todas as outras são revistadas à procura de
objetos cortantes. O carcereiro diz que Alexandre tentou o suicídio e fora
levado ao hospital3.
16. Segundo o relatório da Comissão Especial de Mortos e
Desaparecidos Políticos, juntado às fls.24 a 29, o corpo de Alexandre é arrastado
pelas pernas, deixando um rastro de sangue que vertia abundantemente do seu
abdômen. Hoje sabe-se deste fato graças aos depoimentos prestados já em julho de
1973, junto à Auditoria Militar pelos seguintes presos políticos: Luis Vergatti, César
Roman dos Anjos Carneiro, Leopoldina Brás Duarte, Carlos Vitor Alves
Delamônica, Walkíria Queiroz Costa, Roberto Ribeiro Martins, José Augusto
Pereira, Luís Basílio Rossi e Neide Richopo. Tais pessoas em seu depoimento
também desmentiram com veemência a versão da morte de Alexandre inicialmente
imaginada pelos seus algozes e a eles transmitida logo após o assassinato, a de que
3 MIRANDA, Nilmário; TIBÚRCIO, Carlos. Dos filhos deste solo - mortos e desaparecidos políticos
durante a ditadura militar: a responsabilidade do Estado. 2.ed. São Paulo: Perseu Abramo, 2008.
p.158-159.
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Alexandre havia se matado com uma lâmina de barbear (fls.25). Era comandante
do DOI-Codi o então major Carlos Alberto Brilhante Ustra, hoje declarado
torturador pelo judiciário paulista, em importante sentença do juiz Gustavo Santini
Teodoro em ação movida pela família Teles. Decisão confirmada pelo Tribunal de
Justiça de São Paulo.
17. No dia 22 de março, após receber um telefonema
anônimo que informava ter sido preso o seu filho, o Sr. José Leme vai de ônibus às
pressas de Sorocaba até São Paulo e quando pergunta pelo paradeiro do seu filho
no DOPS recebe a resposta de que nada constava, que não havia nenhuma
informação sobre ele ter sido preso ali. Cansado e preocupado, o Sr. José Leme
retorna à Sorocaba, com a intenção de continuar a busca no dia seguinte. No dia 23
de março, a Sra. Egle Vannucchi lê no jornal O Estado de São Paulo que seu filho foi
preso no dia 16 e havia sido atropelado ao tentar a fuga. Com a notícia, a Sra. Egle
ao menos se tranquiliza quanto ao paradeiro do filho e prepara uma muda de
roupas e produtos de higiene para que o seu marido levasse à São Paulo. Ainda na
rodoviária de Sorocaba, o Sr. José Leme se depara estarrecido com a manchete
estampada no Jornal Folha de São Paulo: "Terrorista morre atropelado no Brás"4.
Cópia desta notícia está anexada aos autos às fls. 216. Nela o jornal divulga a falsa
versão de que Alexandre, ao levar os policiais para um ponto que tinha com
alguém, tentou a fuga e acabou atropelado por um caminhão. A notícia não poupa
detalhes sobre crimes qualificados de terroristas que teriam sido praticados por
Alexandre. Observa Caio Túlio Costa em seu livro que praticamente a mesma
notícia foi publicada em diversos jornais do Rio e de São Paulo. Além da Folha de
São Paulo: O Globo, Diário da Noite, Diário Popular e Folha da Tarde5. A íntegra
4 COSTA, Caio Túlio. Cale-se. São Paulo: A Girafa, 2003, p.57; MIRANDA, Nilmário; TIBÚRCIO,
Carlos. Dos filhos deste solo - mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar: a
responsabilidade do Estado. 2.ed. São Paulo: Perseu Abramo, 2008. p.158-159.
5 COSTA, Caio Túlio. Cale-se. São Paulo: A Girafa, 2003, p.59.
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dessas noticias também pode ser conferida no Dossiê de Mortos e Desaparecidos
Políticos, disponível para consulta na internet6.
18. Após ler a terrível notícia, o pai do anistiando vai direto
ao Instituto Médico Legal de São Paulo para reconhecer o cadáver do filho, levá-lo
e dar-lhe um enterro digno em sua cidade natal. Lá chegando, recebe outra notícia
insuportável, a de que o seu filho já havia sido enterrado como indigente no
cemitério de Perus e que o Atestado de Óbito só poderia ser obtido no DOPS.
Conforme registra o Dossiê escrito por Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio, o Sr.
José Leme dirigiu-se imediatamente ao DOPS, ali chegando por volta das 16h.
Teve de esperar até às 20:30h para que fosse atendido pelo delegado de triste
memória Sérgio Paranhos Fleury, que ao ser interpelado pelo Sr. José Leme disse
que Alexandre foi atropelado por um caminhão e, quando perguntado porque havia
sido enterrado às pressas como indigente, dá a resposta de que ele estava sem
documentos. Também se nega a entregar o Atestado de Óbito dizendo que ele seria
remetido posteriormente à Sorocaba. Em seguida, o delegado Edsel Magnotti,
provavelmente sem ter combinado com Fleury qual história seria contada,
apresenta ao pai do anistiando a versão do suicídio com uma lâmina de barbear.
19. Como se já não bastasse o fato de os delegados se
desmentirem, é possível confirmar que na requisição de exame de corpo de delito
feita pelo DOPS no dia 17 de março de 1973, em que pese a alegação de o
anistiando não portar documentos, já constava o seu nome completo, a sua filiação
e a sua naturalidade (fls.17). No laudo de exame de corpo de delito, assinado pelos
já tristemente conhecidos legistas Isaac Abramovictc e Orlando Brandão também
consta o nome completo de Alexandre. O laudo omite os ferimentos causados pela
tortura e testemunhado pelos outros presos políticos que estavam presos em celas
próximas às de Alexandre, concentrando-se na existência de lesões crâneo-
6 Disponível em: http://www.desaparecidospoliticos.org.br/pessoa.php?id=46&m=3
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encefálicas que o teriam levado à morte (fls.19 e 20), o que ajudaria a reforçar a
versão oficial, mas por outro lado o laudo não afirma que as lesões teriam sido
causados pelo suposto atropelamento, limitando-se a utilizar a expressão "segundo
consta" ao se referir ao acidente.
20. Portanto, apesar de as autoridades, tanto do DOPS
quanto do IML saberem exatamente qual era a identidade do anistiando, ele foi
enterrado sem caixão em uma cova rasa do cemitério de Perus, forrada com cal
para acelerar o processo de decomposição e encobrir as marcas da tortura,
conforme está consignado no livro Direito à Verdade e à Memória7. Somente dez
anos depois a família teria acesso aos restos mortais de Alexandre e poderia realizar
o seu enterro na cidade de Sorocaba.
21. Como se verá na sequencia deste voto, a repercussão e a
reação à morte de Alexandre foi ampla, forte e intensa, o que levou, inclusive, um
juiz do STM, em sede de uma Apelação, a pedir em 1978 a investigação e a
apuração das denúncias sobre o assassinato de Alexandre. Segundo consta no
relatório da CEMDP o Ministro Rodrigo Octávio na Apelação 40.912 ao STM, foi
voto vencido ao pedir a apuração das denúncias, mas não sem antes registrar em
seu voto o contraste entre a coerência dos depoimentos dos companheiros de
cárcere de Alexandre com a absoluta incongruência dos depoimentos prestados
pelas poucas testemunhas que foram arregimentadas pela polícia, o do motorista do
caminhão, João Coscov, e o do balconista Alcino Nogueira de Souza (ambos os
depoimentos encontram-se nos autos às fls..218 a 220). Vale transcrever a
observação do magistrado:
Sobre esse depoimento, dois fatos chamam a atenção, o primeiro a afirmativa
do motorista, de que a vítima estava sendo perseguida por uma "turba" aos
7 BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Comissão Especial sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos. Direito à verdade e à memória. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos
Humanos, 2007. p.338.
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gritos de "pega ladrão", incidente este ocorrido na Avenida Celso Garcia,
uma das mais movimentadas artérias da capital paulista, e (...) para minha
surpresa, somente uma pessoa, de nome Alcino Nogueira de Souza,
balconista, (...) descreveu os fatos, mas em visível desacordo com o do
motorista em questão, pois essa testemunha diz que a vítima tomava uma
cerveja, encostado no balcão e, em determinado momento, começou a correr
em direção ao outro lado da rua, quando se projetou sobre o caminhão...
A dúvida persiste, pois talvez este seja o acidente mais assistido e menos
testemunhado da história (fls.27).
22. Louvável a posição isolada deste magistrado,
especialmente quando se constata o lamentável papel ao qual grande parte dos
atores do palco judicial brasileiro se prestaram durante a ditadura civil-militar. No
Brasil, constituiu-se um amplo esforço de legalização e judicialização da
perseguição política, dando-se um verniz jurídico e legal a ações e políticas
completamente autoritárias, truculentas e antidemocráticas. É a legalidade
autoritária. Muitos juízes civis e membros do Ministério Público participaram dos
juízos militares, verdadeiros juízos de exceção, com magistrados que faziam vistas
grossas diante das torturas praticadas, minando as garantias e a defesa dos que se
encontravam sob a guarda e à mercê da mão pesada do Estado. Após a recuperação
do Estado de Direito com a Constituição de 1988, nenhum desses profissionais
sofreu qualquer tipo de contestação quanto aos "serviços" prestados ou restrição
em suas aposentadorias ou em sua continuidade no serviço público, sendo ainda
possível encontrar nos dias de hoje muitos desses profissionais em ação e até
mesmo fazendo declarações apologéticas da ditadura, classificando-a como algo
que foi um "mal necessário".
23. Nos documentos públicos da época que qualificavam
Alexandre Vannucchi Leme não é raro encontrar o rótulo de "terrorista" vinculado
ao seu nome. Tal é o caso da resposta oferecida pelo então Secretário de Segurança
general Sérvulo Mota Lima ao reitor da USP, Miguel Reale, que, pressionado pelos
estudantes da USP e pelos Centros Acadêmicos e DCE, havia encaminhado ao
Secretário um ofício pedindo explicações sobre a morte do estudante (fls. 242 a
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244). Em sua resposta o general repete a versão oficial, além de lançar falsas
acusações contra o anistiando. Afirma que Alexandre delatou companheiros e
participou de atividades terroristas como assaltos e o assassinato do comerciante
Manoel Henrique de Oliveira. Desmentindo as afirmações do Secretário de
Segurança estão declarações de companheiros de cela de que, na volta de uma das
sessões de tortura para a sua cela, ele gritou: "Meu nome é Alexandre Vannucchi
Leme. Sou estudante de Geologia. Me acusam de ser da ALN. Eu só disse o meu
nome" (fls.152). O próprio delegado Sérgio Fleury, como forma de tentar explicar
porque o cadáver de Alexandre havia sido sepultado como indigente, havia dito ao
pai de Alexandre que este não havia dito o seu endereço quando "interrogado".
Além disso, na época em que ocorreram os tais atos terroristas dos quais era
acusado, janeiro e fevereiro de 1973, Alexandre estava em sua casa em Sorocaba
convalescendo de uma operação de apendicite, segundo confirmaram seus
familiares e o médico que o tratou. É como disseram os estudantes do Centro
Acadêmico XI de Agosto em sua nota à época: "a não ser que Alexandre tivesse o
'dom parapsicológico' de estar em dois lugares ao mesmo tempo, seria impossível
ter participado"(fls.21).
24. Neste voto quero contribuir de modo bem incisivo para repudiar o
rótulo de terrorista atribuído à Alexandre Vannucchi Leme e a todos os bravos
brasileiros que tiveram a coragem de resistir à Ditadura que se instalou no país a
partir de 1964. Em primeiro lugar, é preciso dizer que quando um Estado é tomado
de assalto de maneira ilegítima e inconstitucional e passa a empreender políticas
sistemáticas de perseguição e violação de direitos básicos dos seus próprios
cidadãos ele coloca em prática o terrorismo de Estado. A prática do terrorismo de
Estado por regimes ditatoriais e/ou totalitários tem mostrado que o recorte
repressivo vai se alargando com o tempo, atingindo um espectro cada vez mais
amplo da população, com uma evidente militarização das relações sociais, segundo
a qual todos são suspeitos até prova em contrário.
MJ- Comissão de Anistia Processo nº 2013.01.71959
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25. Somando-se a esse ambiente está a desinformação gerada pela censura
dos meios de comunicação e pela própria propaganda do governo, sempre
associada com a manipulação das notícias, seja pela força ou pela obsequiosa
colaboração dos principais órgãos de imprensa, e com o ocultamento das violações
de direitos humanos por ele promovidas. Também é notável a capacidade, como se
viu no caso da ditadura civil-militar brasileira, de manipulação dos órgãos
legislativos e judiciários, com o fim de legalizar e judicializar a repressão, como bem
está registrado e documentado na pesquisa feita pelo cientista político
estadunidense Anthony Pereira8 em seu livro "Ditadura e Repressão", sempre
fazendo vistas grossas quanto às inconstitucionalidades, às ofensas a direitos
fundamentais e às denúncias realizadas pelos presos e perseguidos políticos.
26. Além de trabalhar para a invisibilização dos seus crimes, e, em
especial, do terror por eles desencadeado, o Estado ditatorial projeta o qualificativo
de terrorista aos grupos e pessoas que são alvo da sua perseguição. Contudo,
quando um governo viola as regras fundamentais do Estado que administra, ou
ainda, quando chega ao poder em flagrante desrespeito a essas mesmas regras,
como é o caso do golpe de Estado, a oposição a este governo é legítima, mesmo
que pelas armas. As ações de resistência à tirania não devem ser denominadas nem
mesmo de crimes políticos. Esclarece Heleno Fragoso que o crime político é aquele
cometido contra a segurança do Estado, mas que só pode ser concebido a partir do
pressuposto de um Estado legítimo e democrático9. Quando se compara, porém, a
usurpação ilegítima do poder político em uma dada sociedade com a ação de
resistência a esta usurpação, fica claro que nem mesmo de criminosa seria adequado
classificar a ação de resistência, quanto mais de terrorista. Tais atos seriam
criminosos aos olhos de quem os classifica como tal e a quem interessa tal
8 PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão – o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no
Chile e na Argentina. Tradução de Patricia de Queiroz Carvalho Zimbres. São Paulo: Paz e Terra,
2010.
9 FRAGOSO, Heleno. Terrorismo e criminalidade política. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p.30-37.
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qualificação. Como o governo constituído é ilegítimo, já que depôs um Presidente
eleito pelo voto popular e ignorou a Constituição de 1946, construída a partir de
uma Assembleia Nacional Constituinte também escolhida pelo voto popular, é, da
mesma forma, ilegítima a legislação de exceção que criminalizou as condutas de
resistência.
27. Alexandre Vannucchi Leme e tantos outros jovens brasileiros que
viveram sob a ditadura civil-militar deram as suas vidas e colocaram em risco o que
havia de mais sagrado e importante, sua família, seus amigos, sua vida, em prol de
uma sociedade livre da ditadura e que caminhasse para relações mais justas e
igualitárias.
28. Por essas razões é imperioso que cessem os ecos da inadequada
utilização da palavra "terrorista" para qualificar os que tiveram a coragem de resistir
à tirania. É fundamental que seja dito com todas as palavras que o Estado brasileiro
é quem praticava o terror por meio dos agentes públicos e dos colaboradores civis
que estavam a serviço da ditadura. É preciso, entre outras providências, que seja
retificado o Atestado de Óbito de Alexandre Vannucchi Leme, assinalando que ele
foi morto sob tortura praticada por agentes públicos que tinham o dever de zelar
pela sua integridade física, assim como o tem com relação a qualquer pessoa que
esteja sob sua custódia. É preciso que seja seguido, neste e em tantos outros casos,
o exemplo da família de João Batista Franco Drumond, dirigente do PCdoB
assassinado em 1976 no mesmo lugar em que o foi Alexandre. Em ação conduzida
pelo advogado Egmar José de Oliveira, também Conselheiro da Comissão de
Anistia, foi prolatada em 16 de Abril de 2012 sentença assinada pelo juiz Guilherme
Madeira Dezem, da 2a. Vara de Registros Públicos de São Paulo, que determina a
retificação do atestado de óbito de Drumond, para que conste que ele morreu nas
dependências do DOI-Codi em São Paulo com traumatismo craniano-encefálico
devido a torturas físicas. Do mesmo modo, é preciso seguir o exemplo da
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retificação do Atestado de Óbito de Vladimir Herzog, realizada pelo juiz Márcio
Martins Bonilha Filho, da 2a. Vara de Registros Públicos de São Paulo, a partir de
provocação feita pela Comissão Nacional da Verdade, e que hoje, no bojo da
homenagem a Alexandre Vannucchi Leme, é entregue em marcante solenidade à
Clarice Herzog e seu filho, Ivo Herzog e neto, Lucas Herzog, encerrando de vez a
mentira sobre a sua morte. Por fim, é preciso mirar igualmente o exemplo de
Eduarda Crispim Leite, filha de Eduardo Leite, o Bacuri, assassinado pela ditadura,
e Denize Crispim. No ano de 2009, Eduarda teve, em decisão da Comissão de
Anistia, declarado o seu direito de inscrever o nome do pai em sua Certidão de
Nascimento. De posse da Portaria assinada pelo Ministro da Justiça, homologando
a decisão tomada pela Comissão de Anistia, Eduarda obteve em Cartório a
retificação de sua Certidão de Nascimento.
29. A indignação diante da morte de Alexandre e do desleixo das
autoridades em mal conseguirem encobrir a sua própria sujeira levou a uma forte
reação em cadeia que desaguou no bravo e destemido movimento pela Anistia e no
começo do fim dos governos dos generais. De especial relevo foi o forte
envolvimento de setores da Igreja na oposição à ditadura, iniciando com o claro e
o público posicionamento de dom José Melhado Campos, bispo de Sorocaba, bem
como do Conselho Diocesano de Presbíteros, de repúdio à morte de Alexandre e
às explicações insatisfatórias fornecidas pelas autoridades (fls.22). Em seguida,
houve a missa em memória do anistiando realizada na Catedral da Sé no dia 30 de
março de 1973, conduzida pelo Cardeal Arcebispo de São Paulo Dom Paulo
Evaristo Arns. Foi um grande acontecimento, reunindo cerca de três mil pessoas, e
que marcou a reorganização do movimento estudantil. Seria a precursora de outros
atos claros de repúdio da população e de enfrentamento da ditadura, como a missa
rezada, também por D. Paulo Evaristo Arns, após o assassinato de Vladimir
Herzog em 1975.
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29. Depreende-se dos documentos das forças repressivas da época,
juntados aos autos, que tais atos organizados e executados pelos estudantes e pela
Igreja foram objeto de intenso monitoramento e preocupação (fls.115 a 149; 209 a
214; 231 a 233; 310; 362-363). Em um dos informes, relata-se a ação orquestrada da
polícia para dispersar a multidão após a missa de 1973 na Sé e a impedir a
concentração dos estudantes no Largo de São Francisco (fls. 314-315). Da mesma
forma, em 1978, quando crescia de modo irrefreável o movimento pela Anistia,
foram produzidos extensos relatórios dando conta de todos os detalhes da "Semana
Sorocaba pela Anistia", promovida pelo Comitê Brasileiro pela Anistia, e na qual foi
inaugurada a praça Alexandre Vannucchi Leme na cidade, por indicação do
Vereador do MDB João dos Santos Pereira (fls.162 a 196). Nesta praça o
corinthiano Alexandre organizava inumeráveis partidas de futebol com seus
amigos. Pena ele não ter podido viver para ver o seu time do coração, liderado por
Sócrates, Casagrande e Wladimir, instaurar uma democracia dentro do time e a
exigir em frases gravadas nas camisas dos seus uniformes a democracia no país e o
fim da ditadura.
30. Dez anos após a sua trágica morte, finalmente a família de Alexandre
conseguiu trasladar os seus restos mortais, o que foi feito em conjunto com o
traslado dos restos mortais de Frei Tito de Alencar, morto na França em
decorrência das irreversíveis sequelas deixadas pelas torturas que sofreu nas mãos
do delegado Sérgio Fleury. Foi rezada, no dia 25/03/1983 uma missa em memória
de ambos que lotou a Catedral da Sé mais uma vez, conduzida por Dom Paulo
Evaristo Arns, como dão conta cópias de recortes de jornal da época organizados
pelos órgãos de repressão, que também monitoraram minuciosamente mais este
evento (fls. 386-395). Em sua lápide, no cemitério da Saudade em Sorocaba está o
epitáfio: "Aqui vigia Alexandre Vannucchi Leme 5/10/1950 assassinado pelo
regime militar em 17/03/1973, à espera do tempo da justiça".
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31. Por todo o exposto, está mais do que comprovada a
perseguição política sofrida por Alexandre Vannucchi Leme, o que lhe garante o
direito à declaração de anistiado político brasileiro, ainda que após a sua morte. Em
sua petição a requerente pede que o Estado brasileiro, representado neste ato pela
Comissão de Anistia peça publicamente perdão. Aqui, para que fique bem claro o
sentido da missão constitucional atribuída a esta Comissão, se faz necessária uma
importante reflexão sobre o sentido da anistia no processo transicional brasileiro.
32. A anistia está tradicionalmente associada à ideia de
perdão e de esquecimento, demarcando juridicamente a esfera penal na qual o
Estado perdoa aqueles que outrora eram por ele considerados criminosos e propõe
o esquecimento dos seus atos. Este é, por exemplo, o claro sentido da Lei 6.683 de
1979, afinal não se pode esquecer que o mesmo Estado que sancionou esta Lei, por
mais que ela tenha sido o marco inicial no processo de redemocratização e fruto
também de intensa mobilização popular pelo abrandamento do regime, pela
libertação dos presos políticos e pelo retorno dos exilados, era o Estado ainda
ditatorial e usurpador do legítimo poder popular. Tanto a Lei de Anistia de 1979
quanto a Emenda Constitucional n. 26 de 1985 possuíam a clássica conotação de
perdão de crimes pelo Estado e de esquecimento, tendo sido ambas geradas na
ordem jurídica instituída pelo regime ditatorial, somente rompida com a
promulgação da Constituição de 1988 e com o restabelecimento do Estado de
Direito no país. Importa registrar que ambas já traziam também, ainda que de
modo mais restrito, determinações de restabelecimento das situações profissionais e
pecuniárias daqueles que foram afastados dos seus vínculos laborais, o que as
aproximam também da ideia de reparação.
33. Será, porém, somente a partir da Constituição de 1988,
em seu Art.8. do ADCT, e, após, a partir da Lei 10.559/2002 que regulamenta a
disposição constitucional, que o sentido da palavra "Anistia" sofrerá uma
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modificação de 180 graus na ordem jurídica brasileira. Em primeiro lugar, a anistia
constitucional se volta explicitamente e exclusivamente para os que "foram
atingidos em decorrência de perseguição exclusivamente política". Em segundo
lugar, desaparece a clássica questão penal e destaca-se o sentido da reparação, um
dos pilares indispensáveis, juntamente com o Direito à Memória e à Verdade, a
Justiça e a Reformas das Instituições, do conceito de Justiça de Transição. Ora,
quando se busca anistiar um crime, procura-se, em última análise, restituir o status
quo anterior, como se o crime nunca tivesse ocorrido, daí a noção do
esquecimento. A Anistia demarcada na Constituição de 1988 contudo, ao procurar
restituir o status quo anterior o faz mirando o Estado democrático usurpado pelas
mais de duas décadas de ditadura militar, logo não poderá recomendar o
apagamento de crimes dos que foram perseguidos políticos, pois aos seus olhos tais
pessoas não cometeram crimes, pelo contrário, foram vítimas de crimes quando
exerciam seu direito de resistência, crimes praticados pelos agentes do Estado
ditatorial, que devem ser lembrados e conhecidos, e não apagados, pois só assim o
Estado poderá reparar os danos que causou e se prevenir para no futuro não
incorrer neles novamente. Por isto, o esquecimento dá lugar à memória. Por isto o
perdão do Estado dá lugar ao reconhecimento do Estado como criminoso e ao
simbólico pedido de desculpas.
34. A experiência vivida na transição sul-africana também
assinalou de maneira paradigmática a vinculação da ideia de anistia com a memória,
quando exigiu, como condição para anistiar os crimes praticados pelos agentes do
apartheid, o reconhecimento desses agentes quanto aos atos que haviam praticado.
Na África do Sul a possibilidade da anistia aos crimes cometidos pelo próprio
Estado repressor vinculava-se ao ato individualizado de cada agente que neles
tomou parte. No caso brasileiro, como já se assinalou, foi excluída do texto
constitucional a projeção da Anistia ali prevista para os agentes públicos que
praticaram crimes ao executarem a perseguição política movida pelo regime. Quem
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assume esses crimes ao reconhecer as perseguições sofridas e praticadas, bem como
o dever de reparar as suas vítimas, é o próprio Estado em sua dimensão
institucional mais ampla, não é o agente que os praticou.
35. Particularmente, e seguindo as lições de Jacques Derrida,
penso que a palavra perdão deve ficar restrita à esfera indevassável da intimidade da
vítima. A sua institucionalização afasta a relação que é essencial para defini-lo em
sua pureza, aquela que se dá entre o algoz e a vítima. Esse plano é alheio ao direito
e à política, é indevassável aos seus mecanismos e instituições. É o face a face do
perdão, que permanece sempre um mistério para a compreensão10 e uma
exclusividade da vítima em sua solidão absoluta, onde talvez durma um excesso
sem sentido e sem condições. Essa dimensão permanece alheia à esfera pública.
Daí porque a Comissão de Anistia prefere utilizar o pedido de desculpas, como um
ato simbólico de contrição, como um sinal inquestionável do reconhecimento do
seu erro pelo próprio Estado, como a demarcação de uma reparação política
daquele cidadão que antes execrado e chamado de "terrorista" e "subversivo", hoje
tem simbolicamente sua dignidade política restabelecida. A reparação que a
Comissão de Anistia tem a incumbência de fazer, representando o Estado brasileiro
não é apenas econômica, é também moral. Desde a atuação da Comissão de
Mortos e Desaparecidos Políticos da Comissão de Direitos Humanos da Câmara
dos Deputados, conduzida de maneira pioneira e corajosa por Nilmário Miranda,
hoje Deputado Federal e Conselheiro da Comissão de Anistia, da atuação das
diversas Comissões de Reparação estaduais, da Comissão Especial de Mortos e
Desaparecidos Políticos da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência
10 Derrida comenta o depoimento, prestado diante da Comissão de Verdade e Reconciliação da África
do Sul, de uma mulher cujo marido havia sido assassinado em meio à política delinqüente do
apartheid. Alguém lhe pergunta se ela está disposta a perdoar os assassinos do seu marido, e ela
responde: “Nenhum governo pode perdoar. [Silêncio.] Nenhuma comissão pode perdoar [Silêncio]
Somente eu posso perdoar. [Silêncio.] E não estou disposta a perdoar”. Diante desse fato, comenta
Derrida que a “ordem do perdão transcende todo direito e todo poder político, toda comissão e todo
governo. Ela não se deixa traduzir, transportar, transpor na língua do direito e do poder. É da
competência da pura singularidade da vítima, unicamente de sua solidão infinita” (DERRIDA,
Jacques. O perdão, a verdade, a reconciliação: qual gênero? In: NASCIMENTO, Evandro [Org.].
Jacques Derrida: pensar a desconstrução. São Paulo: Estação Liberdade, 2005. p.75).
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da República e a partir da atuação da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça,
o eixo da reparação vem conduzindo o processo transicional brasileiro no plano
institucional, produzindo verdade, memória e reparação, agora reforçado e
complementado pela constituição e funcionamento da Comissão Nacional da
Verdade.
36. Ao buscar a reparação, tem-se permitido o protagonismo
do olhar das vítimas, sem o qual a sociedade não pode conhecer o passado de
violência e terror e também não pode evitar que ele continue se repetindo. Trata-se
da fraqueza messiânica do anjo de Walter Benjamin, que resiste ao avanço do
progresso indiferente às ruínas e às mortes que vai causando, mas que sempre traz a
possibilidade política da ruptura com a mórbida continuidade11. Trata-se da
memória como arma para recuperar o passado e tratar das feridas ainda abertas,
acalentando o desejo de justiça aos que tombaram pelo caminho, alterando e
constituindo nossos projetos de futuro para uma sociedade justa, pacífica e
democrática. A abertura de espaços públicos de escuta das vítimas e dos resistentes
sobreviventes vem sendo operada pela Comissão de Anistia há mais de dez anos
pelo eixo da reparação e, e em especial por meio de projetos educativos como o das
Caravanas da Anistia. Os autos dos processos da Comissão de Anistia contém o
olhar privilegiado dos que lutaram contra a opressão e dela foram vítimas. Penso
que estes são os verdadeiros arquivos da ditadura.
37. O pedido de desculpas não é um apelo ao esquecimento,
mas sim o reconhecimento dos danos causados pelo Estado através dos seus
crimes, danos que não poderão ser plenamente recompostos jamais. Desde 2007,
como um legado deixado pelas políticas de memória do Governo Lula, a Comissão
de Anistia vem formalizando esse pedido de desculpas oficial. Contudo, todas as
11 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e
política – ensaios sobre literatura e história da cultura – Obras escolhidas I. 7.ed. Tradução de Sérgio
Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. [Obras Escolhidas; v.1].
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nossas homenagens e gestos simbólicos de arrependimento institucional não trarão
Alexandre Vannucchi Leme de volta à vida, nem apagarão o rastro de dor e
amargura dos seus familiares e amigos, que sofreram e sofrem intensamente com a
sua morte e com as circunstâncias nas quais ela se deu. Mas este ato de hoje, esta
bela homenagem e este reconhecimento institucional sinalizam sim para uma
cultura de maior respeito aos direitos humanos, de não esquecimento não apenas
das violências praticadas para que elas não se repitam, mas de não esquecimento do
exemplo de coragem e dignidade de Alexandre. É como está escrito na placa de
bronze fixada no bloco de mármore localizado no centro da Praça Alexandre
Vannucchi Leme em Sorocaba-SP:
Hei de fazer que a voz torne a fluir
Entre os ossos...
E farei que a fala
Torne a encarnar-se
Depois que se perca esse tempo
E um novo tempo amanheça
38. Ante o exposto e com base no art. 1º, inciso I e no Art.
2º, VII da Lei 10.559/02, opino pelo DEFERIMENTO do pedido, para que seja
concedida a Declaração de Anistiado Político Post Mortem a Alexandre Vannucchi
Leme, oferecendo em nome do Estado brasileiro o pedido oficial de desculpas à
memória do anistiado e à sua família pelos danos a eles causados.
38. É o voto.
São Paulo, 15 de março de 2013
CONSELHEIRO JOSÉ CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO
Relator

quarta-feira, 13 de março de 2013

Alexandre Vannucchi Leme: um companheiro alegre e destemido




Nair Heloisa Bicalho de Sousa
Membro do DCE da USP 1969-1973. Professora da Universidade de Brasília.

Fins de 1969. Um grupo corajoso de estudantes da USP se reúne e decide retomar o movimento estudantil na universidade. Alexandre estava entre eles, sempre animado e disposto a tarefas difíceis. Tempo duro: estudantes com medo da repressão, salas de aula infiltradas com agentes da ditadura, professores cuidadosos com as explicações teóricas e um campus novo no Butantã, sem árvores, distribuído ao longo de um enorme espaço físico descampado que dificultava o circuito estudantil, oposto ao da velha rua Maria Antônia, no centro da cidade, mobilizada pelas denúncias nas paredes e ações coletivas de protesto.
A proposta de recriação do movimento estudantil na USP precisava ser criativa e com chance de sucesso. Alexandre animava nossas discussões e ao final decidimos utilizar a arte como instrumento da política: construir o Diretório Central dos Estudantes e encaminhar uma recepção dos calouros, denominada “Bichusp”, com apresentação de peças de teatro na FAU/USP.
Em condição de semi-clandestinidade, reunimos os estudantes interessados e fomos organizando os grupos de teatro de calouros em diferentes unidades acadêmicas da USP, onde encontramos receptividade à proposta. Fizemos uma apresentação no auditório da FAU/USP, a qual reuniu pela primeira vez depois de 1968 centenas de estudantes na platéia. Alexandre vibrou com o sucesso da iniciativa e passamos para o segundo passo: construir os Centros Acadêmicos.
Os/as estudantes que participaram do teatro foram os/as candidatos/as às eleições e se tornaram membros da primeira gestão estudantil. Inteligentes e dispostos a iniciar um ciclo novo de informações e debates sobre a situação econômica, social e política do país, assim como a respeito dos problemas da USP, os representantes desses centros acadêmicos passaram a agir sob a coordenação do DCE, definindo táticas e estratégias conjuntas. Alexandre estava sempre presente nessas reuniões, com seu entusiasmo e propostas, responsabilizando-se por tarefas políticas de risco.
Além do trabalho com o movimento estudantil, o DCE também cuidava de fazer propaganda política em bairros da periferia da cidade, com distribuição de panfletos em prédios, de modo a alertar a população sobre o governo autoritário do país, com suas práticas de tortura, desaparecimentos, seqüestros e mortes. Alexandre também estava presente nessas ações políticas, doando seu tempo e entusiasmo à causa de um novo país democrático, justo e igualitário.
Foram dias de  muito risco e sofrimento: as prisões de colegas ou conhecidos obrigava a uma rápida desocupação do local de moradia e a redobrar  os cuidados com a segurança pessoal e do grupo. Apesar do zelo com a segurança, Alexandre se tornou vítima da repressão que não poupou tortura para alcançar seus fins, provocando sua morte . Dedicado, corajoso e alegre, ele se tornou uma lembrança carinhosa e amiga que me acompanhou durante  esses últimos quarenta anos .
Alexandre vive no coração dos colegas de seu tempo e faço votos que permaneça vivo   nos corações dos jovens estudantes que desfrutam de um tempo em que é possível fazer política como festa, fruto do tempo em que nós fizemos política como guerra, oferecendo nossas vidas para reconstruir um novo país.     

terça-feira, 12 de março de 2013

Chávez: o legado e os desafios


                                                           Boaventura de Sousa Santos
                                                           Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
                                                          
Morreu o líder político democrático mais carismático das últimas décadas. Quando acontece em democracia, o carisma cria uma relação política entre governantes e governados particularmente mobilizadora, porque junta à legitimidade democrática uma identidade de pertença e uma partilha de objetivos que está muito para além da representação política. As classes populares, habituadas a serem golpeadas por um poder distante e opressor vivem momentos em que a distância entre representantes e representados quase se desvanece. Os opositores falarão de populismo e de autoritarismo, mas raramente convencem os eleitores. É que, em democracia, o carisma permite níveis de educação cívica democrática dificilmente atingíveis noutras condições. A difícil química entre carisma e democracia aprofunda ambos, sobretudo quando se traduz em medidas de redistribuição social da riqueza. O problema do carisma é que termina com o líder. Para continuar sem ele, a democracia precisa de ser reforçada por dois ingredientes cuja química é igualmente difícil, sobretudo num imediato período pós-carismático: a institucionalidade e a participação popular.
Ao gritar nas ruas de Caracas "Todos somos Chávez!", o povo está consciente de que Chávez houve um só e que a revolução bolivariana vai ter inimigos internos e externos suficientemente fortes para pôr em causa a intensa vivência democrática que ele lhes proporcionou durante anos. Chávez aproveitou o boom dos recursos naturais (sobretudo petróleo) para realizar um programa sem precedentes de políticas sociais, sobretudo nas áreas da educação, saúde, habitação e infraestruturas que melhoraram substancialmente a vida da esmagadora maioria da população. Foi o artífice incansável da integração do subcontinente latino-americano. A sua solidariedade com Cuba é bem conhecida, mas foi igualmente decisiva com a Argentina, durante a crise da dívida soberana em 2001-2002, e com os pequenos países das Caraíbas. Nos períodos mais decisivos da sua governação (incluindo a sua resistência ao golpe de Estado de que foi vítima em 2002), Chávez confrontou-se com o mais agressivo unilateralismo dos EUA (George W. Bush), que teve o seu ponto mais destrutivo na invasão do Iraque. Chávez estava convencido que a América Latina seria o próximo alvo e única maneira de travar os EUA consistia alimentar o multilateralismo. Daí, a sua aproximação à Rússia, China e Irão. Sabia que os EUA (com o apoio da União Europeia) continuariam a "libertar" todos os países que pudessem contestar Israel ou ser uma ameaça para o acesso ao petróleo. Daí, a "libertação" da Líbia, seguida da Síria e, em futuro próximo, do Irão.
Chávez não conseguiu construir o socialismo do século XXI. Conforta-me saber que em várias ocasiões Chávez tenha referido com aprovação a minha definição de socialismo: "Socialismo é a democracia sem fim." Causou a ira das multinacionais europeias e norte-americanas que se vingaram com uma campanha impressionante de demonização de Chávez que se foi tornando em senso comum ocidental sobre Chávez (exemplo deplorável são as reportagens de Márcia Rodrigues correspondente da RTP em Nova Iorque: além de ser tendenciosa e ignorante, põe em risco os interesses dos empresários portugueses na Venezuela). Desarticulou o capitalismo que existia, mas não o substituiu. Daí, as crises de abastecimento e de investimento, a inflação e a crescente dependência dos rendimentos do petróleo.
Os desafios são enormes. Chávez assentou o seu poder na adesão democrática das classes populares e na união política entre o poder civil e as forças armadas. Chávez conseguiu uma união de sentido progressista que deu estabilidade ao regime. Mas para isso teve de dar poder económico aos militare, o que, para além de poder ser uma fonte de corrupção, poderá amanhã virar-se contra a revolução bolivariana, ou, o que dá no mesmo, subverter o seu espírito transformador e democrático. Mesmo quando sufragado democraticamente, um regime político à medida de um líder carismático tende a ser problemático para os seus sucessores. Se a vertigem autoritária se instaurar, será o fim da revolução bolivariana. O PSUV (Partido Socialista Unificado da Venezuela) é um agregado de várias tendências e a convivência entre elas tem sido difícil. Desaparecida a figura agregadora de Chávez, é preciso encontrar modos de expressar a diversidade interna. Se a corrupção não for controlada e se as diferenças forem reprimidas por declarações de que todos são chavistas e de que cada um é mais chavista do que o outro, estará aberto o caminho para os adversários da revolução.
O grande desafio das forças progressistas é saber distinguir entre o estilo polemizante de Chávez, certamente controverso, e o sentido político substantivo da sua governação, inequivocamente a favor dos pobres e de uma integração solidária do subcontinente. Chávez contribuiu decisivamente para consolidar a democracia no imaginário social. Consolidou-a onde ela é mais difícil de ser traída, no coração das classes populares. E onde também a traição é mais perigosa. Alguém imagina as classes populares da Europa verterem pela morte de um líder político democrático as lágrimas amargas com que os venezuelanos inundam as televisões do mundo?

 

sexta-feira, 8 de março de 2013

Mulheres são homenageadas em sessão especial da Caravana da Anistia

Por Carolina Valladares


A anistiada Maria Auxiliadora recebe os cumprimentos do conselheiro da Comissão de Anistia,
Dep. Nilmário Miranda, do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo e da ministra da Secretaria
de Políticas para as Mulheres, Eleonora Menicucci.
Mais sete mulheres, que sofreram perseguição durante a ditadura, foram anistiadas na 67ª edição da Caravana da Anistia no Ministério da Justiça, No Dia Internacional da Mulher, 8 de março,  em um ato inédito também foram entregues pedidos de anistia política das camponesas de Minas Gerais Cipriana da Cruz Rodrigues, Maria Aparecida Rodrigues e Miranda e Júlio Rodrigues de Miranda (pos mortem).
Na solenidade de abertura, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo lembrou que em sua trajetória política, sempre foi comandado por mulheres, desde quando foi assistente de uma professora na Faculdade de Direito da PUC-SP até hoje, como ministro da primeira presidenta mulher, Dilma Roussef.
O discurso da ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Eleonora Menicucci, lembrou a luta feminina contra a ditadura. “Foi uma ousadia deixar os sonhos da juventude, pendurar em algum lugar e entrar na clandestinidade”. Eleonora que participou desse período também foi presa e sofreu com os atos de exceção cometidos pelo Estado.
Em um ato simbólico também foram homenageadas as anistiadas Yara Falcon, Jessie Jane, Lilia Godim, Maria Auxiliadora Arantes e Darcy Andozia.
O presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, e a anistiada Jesse Jany
Jesse Jane que foi presa durante 9 anos e teve uma filha na prisão que lhe foi retirada com três meses de vida. Jesse lembrou do período no DOI-CODI no Rio de Janeiro:
“Ser mulher naquele espaço não era muito comum e o machismo era um instrumento de destruição das mulheres”.

A anistiada Darcy Andozia, recebe a homenagem do ministro da Justiça,
José Eduardo Cardozo
A mãe de Carlos Alexandre, Darcy Andozia também foi homenageada. Darcy trabalhava para o movimento dos padres dominicanos utilizando o método Paulo Freire de alfabetização. Ela foi presa em São Paulo em 1974 e seu filho sofreu tortura com um ano e oito meses de idade e cometeu suicídio nesse mês de fevereiro. “Eu queria lembrar que como mãe valeu a pena ter tido meu filho e eu faria tudo de novo. Eu cheguei aqui com uma história de luto e morte e saio com uma história de renascimento”. Darcy e Alexandre foram anistiados há cerca de quatro anos.
Na solenidade de abertura participaram a vice-procuradora geral da república Deborah Duprat, o secretário Nacional de Justiça, Paulo Abrão e o deputado Nilmario Miranda.
Conheça os processos julgados:
Roseli Fátima Senise Lacreta – Estudante da USP e teve de se mudar pro Rio de Janeiro onde foi estudar cinema no MAM. Ficou presa no RJ
em 1971 por 40 dias e estava grávida,
aos 25 anos. Foi presa e demitida.
“Essa memória dá novos significados.
Eu engravidei e perdi meu filho com cinco meses na barriga e levei sete anos para engravidar novamente. Foi aí que eu passei a pesquisar o comportamento humano, o que leva os seres humanos a serem tão destrutivos? Fomos absolutamente desrespeitados e traumatizados”.
Maria Oneide Costa Lima – Agente pastoral na paróquia de São Geraldo do Araguaia-PA. Em 1981, foi perseguida e mantida em cárcere privado por ocasião da prisão dos padres Francisco Guriou e Aristides Câmio.
Depoimento de seu filho Raimundo Ferreira Junior à Comissão: “Minha mãe era do Movimento Educacional de Base e onde a gente morava sofríamos constante ameaças de fazendereiros. Três vezes eu vi meu pai fugir com medo de baterem nele. Eu imagino o que minha mãe sentia quando viu um panfleto com fotos da nossa família na escola. Nós éramos acusados de ser bandidos. Até hoje minha mãe me liga querendo saber onde eu estou, porque trabalho em sindicato na área rural”.
Maria Déia Vieira – Toda sua família (irmãos presos e torturados) sofreu perseguição decorrente do regime de exceção. Foi obrigada a fugir de Goiânia e ir viver em São Saulo.
“Esse ano completa 45 anos de perseguição, minha adolescência foi roubada e sem querer eu passei isso para os meus filhos”.
Monica Tolipan
Monitora de escola infantil, estudante de psicologia da Pontífica Universidade Católica do Rio de Janeiro. Participava de movimentos estudantis.
Presidente do Diretório Central dos Estudantes, ela foi presa por 3 vezes. Monica exilou-se na Argentina. Retornou ao Brasil e foi absolvida no inquérito policial militar. Conseguiu terminar sua graduação na PUC/RJ só em 1982.
“Quando eu voltei ao Rio de Janeiro eu não era mais a mesma. A ditadura nos calou ainda mais”.

Maria de Lourdes Toledo Nanci
 – Ela e o marido José Nanci sofreram nas décadas de 60 e 70 perseguição devido à militância. Foi detida no DEOPS.
Thereza Sales Escame – Professora da Pastoral em São Félix. Foi presa por perseguição. Teve suas atividades e as da pastoral monitoradas.
Lélea Amaral – Professora e militante estudantil de esquerda que sofreu prisão, quando grávida em 1970, inquérito e processo judicial.