quinta-feira, 22 de novembro de 2018

No Divã com a política brasileira: uma retrospectiva de 2018

Gladstone Leonel Jr. analisa o ano que passou e se pergunta como é possível que brasileiros apoiem a ditadura

Brasil de Fato | São Paulo (SP)
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"Aquela dúvida que sempre tive em relação às pessoas que apoiariam uma Ditadura Civil-Militar começou a ser respondida" / Wikipedia
Uma retrospectiva de 2018 no divã, jamais poderia se limitar à 2018, até porque é um ano que remete aos anos e experiências passadas.
Quando era adolescente, entender a história era algo que fazia todo o sentido para que eu compreendesse o mundo. Ao me deparar com situações históricas catastróficas, buscava captar suas razões. Foi essa curiosidade que me motivou a entender a ditadura civil-militar iniciada em 1964. Aquilo me causava tantas indagações que, na juventude, busquei em vários momentos compreender melhor esse período. O que levava agentes do Estado brasileiro a torturar, matar estuprar e prender pessoas que pensavam e agiam, com toda razão, de forma diferente do que aquele governo ilegítimo e autoritário propunha?  
Os estudos e as vivências me permitiram entender que isso também acontecera em outros países, com formas semelhantes, e repressão similar, tal qual na ditadura brasileira. Já trabalhando como advogado descobri, sem querer, que as primeiras pessoas assassinadas pela ditadura em Minas Gerais eram meus familiares. Os seus respectivos nomes estavam no livro organizado pela Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos políticos da época da ditadura, com apoio da Comissão de Anistia, a qual tive a oportunidade de trabalhar anos mais tarde. Os assassinatos de pai e filho aconteceram mesmo sem eles terem atuado politicamente: pagaram com a vida pela atuação de um dos filhos na esfera sindical. A ditadura não diferenciou quem era quem, simplesmente matou quem pensava diferente, ou quem eles imaginavam que pensava diferente.    
Aquele episódio gerava algumas reflexões na minha cabeça. Sempre pensava, quem seria capaz de apoiar uma ditadura militar? Será que meus avôs, os amigos de família, primos mais velhos ou tias, teriam tido a coragem de dar suporte a um regime tão violento e vergonhoso à história nacional? Ao longo das conversas, dos afetos e das vivências isso desaparecia das reflexões, pois parecia algo absurdo, inclusive para eles um apoio desses, tanto que, até pouco tempo ninguém teria coragem de defender abertamente aquele período.  
Depois do Golpe de 2016, a falta de apreço à democracia por parte de algumas pessoas causava uma estranheza, mas ainda relevava por achar que aquilo partia de um ranço antipetista e poderia gerar uma reação nesse sentido.
Eis que chega 2018. Quando esse ranço se transformou em apoio a uma candidatura do deputado Bolsonaro, aquele cujo projeto político é pautado pela violência, em que as grandes referências remetem aos tempos do regime militar e a um de seus algozes torturadores, Carlos Brilhante Ustra, percebi que alguma coisa muito errada acontecia. Aquela dúvida que sempre tive em relação às pessoas que apoiariam uma Ditadura Civil-Militar começava a ser desvelada e de uma forma extremamente melancólica.
Talvez o grande aprendizado desse curto período em que foram desenvolvidas políticas relacionadas à Justiça de Transição seja a importância em se afirmar a Memória, a Verdade e a Justiça. Essa tríade é implacável e, vagará por aí enquanto essas contas não forem prestadas. É pauta que não cabe mais nos porões.
De uma eleição que deixou de lado a legitimidade genuína do debate das ideias na democracia para transformar uma enxurrada de notícias falsas do mundo virtual em votos populares, traz todo um potencial de mudanças e frustrações com as redes sociais, e por isso permitirá também uma coisa: Dessa vez, ninguém será esquecido! Tenha apoiado ou não tudo o que representa essa mudança.
Ninguém será esquecido quando sobrevierem agressões provocadas pelo estímulo à violência, inclusive, armada.
Ninguém será esquecido por quaisquer assassinatos ou prisões pelo fato de alguém pensar diferente.
Ninguém será esquecido com o aumento da pobreza pela falta de investimentos públicos de um governo privatizante em uma realidade de desigualdade social absoluta.
Ninguém será esquecido quando se der o encarecimento de produtos do cotidiano como gás, alimentos, combustíveis ou não for oferecido mais tratamento médico público mínimo.  
Aquela dúvida da adolescência, não voltará a ocorrer. Pois, enquanto estivermos vivos, permanecerão as lembranças daqueles inocentes, úteis ou não, que apoiaram uma eventual barbárie e todas as suas conseqüências, mesmo que estejam inebriados por uma epifania delirante repetidora de mantras, que evocam um pretenso “comunismo”, “gramscismo” (sic), “ideologia de gênero”, que não encontram relação com o mundo real. O grau de delírio faz com que a ciência e suas proposições basilares sejam ameaçadas por um exército de zumbis, cujo máximo de profundidade passa por um meme de whastapp, sem confirmação de veracidade, ou alguma passagem bíblica sem qualquer nexo com a realidade do século XXI. Todos aqueles que botaram suas frustrações pessoais, ao invés de procurarem um psicólogo, ou seus privilégios, ao invés de trabalharem como qualquer um do povo, e elegeram um projeto político autoritário e protofascista carregarão esse legado pelas próximas gerações. Mas, um homem do povo, Cartola, alertou sabiamente que, o mundo é um moinho (…) vai reduzir as ilusões a pó.
O pessimismo remetido nesse samba, não deve se furtar de enxergar a existência de um amanhã. A esperança está em como o povo reagirá ao amanhã. Esse amanhã chegará e permitirá mais uma vez a brava gente brasileira levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima, sobretudo, daqueles que ainda não se deram conta que também prestarão contas à história.  
Portanto, entender o recuo tático e ter cautela são questões importantes para os nossos próximos dias, meses, anos. Embora seja fundamental não deixar o medo imobilizar. Não duvidemos do prenúncio de Chico Science:
O medo dá origem ao mal

O homem coletivo sente a necessidade de lutar

São demônios os que destroem o poder bravio da humanidade

Viva Zapata!

Viva Sandino!

Viva Zumbi

Antônio conselheiro!

Todos os panteras negras”.
Que a sorte, e a consciência da cada um, estejam lançadas! Que venha 2019, o ano de mais um recomeço e de novas angustias para o divã!
* Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional e da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutor em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Consultor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento no Brasil (PNUD/ONU) atuando na Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2015). Membro da Secretaria Nacional do IPDMS (2018-2020) e da RENAP.
Edição: Brasil de Fato

domingo, 11 de novembro de 2018

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS | SOCIÓLOGO

“Vivemos um ciclo reacionário diferente, que tenta acabar com a distinção entre ditadura e democracia”

O sociólogo português afirma que as classes populares foram abandonadas pelas elites políticas e eclesiásticas. "Lula cometeu muitos erros. Usou o antigo sistema político para governar com a direita"

Boaventura de Sousa Santos, no Centro de Estudos Sociológicos da Universidade de Coimbra.
Boaventura de Sousa Santos, no Centro de Estudos Sociológicos da Universidade de Coimbra. JOÃO HENRIQUES
É há décadas o oráculo de cabeceira da esquerda ibérica e latino-americana, geralmente indo além dos partidos socialistas. Hugo Chávez (Venezuela), Lula(Brasil), Gustavo Petro (Colômbia), Pablo Iglesias (Espanha), Francisco Louçã (Portugal), o escutaram e escutam para criar alternativas que vão além das siglas. O sociólogo Boaventura de Sousa Santos (Coimbra, 1940) divide seu tempo entre a universidade portuguesa, onde elogia uma solução de Governo socialista sem precedentes, e a Universidade de Wisconsin, onde se empanturra de análises da CIA. Com mais de 40 ensaios no currículo, esta semana apresenta na Espanha, Esquerdas do Mundo, Uni-vos. Embora acredite nas conspirações globais, Sousa Santos também acredita na capacidade das forças locais para criar alternativas que escapem ao determinismo dos poderes fáticos, e até acredita que a democracia liberal só pode ser defendida pela esquerda. Apesar de nem sempre acertar, Salve Santos!
Pergunta. Depois de 14 anos de Governos de esquerda parece que os brasileiros ficaram escaldados...
Resposta. Lula foi um grande presidente, mas cometeu muitos erros. Ele usou o antigo sistema político para governar com a direita. Não houve reforma fiscal nem do sistema nem dos meios de comunicação no momento em que seu partido, o PT, tinha uma grande legitimidade para fazer isso. Governar com o antigo sistema antigo foi governar com o compadrio, com a corrupção endêmica dos partidos, não só do PT.
P. As Bolsas acolheram com grande otimismo a derrota do PT e a vitória de Bolsonaro.
R. Sim, agora, depois das eleições, em vez da reação das pessoas, a primeira notícia da mídia é a reação dos mercados. A Bolsa é controlada por cinco grandes instituições financeiras, que movimentam 50 trilhões dos 90 trilhões do PIB mundial e têm, portanto, um poder enorme de chantagem sobre os sistemas políticos nacionais. A derrota da esquerda no Brasil não é alheia ao imperialismo americano.
P. Esse termo não soa como algo antigo?
R. Já sei que deixou de ser usado na mídia, mas acho que o imperialismo americano existe, embora andassem distraídos na primeira década do século.
P. Muito usado por Chávez, Evo Morales, Lula ...
R. Foi uma década em que os Estados Unidos estavam concentrados no Iraque, e isso permitiu às forças progressistas da Argentina, Venezuela, Brasil, Bolívia, Equador, Chile chegarem ao poder. A partir de 2009, os americanos começam a perceber que estão perdendo a América Latina, que têm agora um novo parceiro, a China. Sua primeira reação é o golpe hondurenho de 2009. Uma década depois os hondurenhos emigram em caravana para os Estados Unidos.
P. O imperialismo americano não se contenta apenas com Honduras, é isso?
R. Os EUA precisam que todos os países aliados parem a China, mas de maneiras diferentes. Precisam da Europa, mas não da União Europeia (UE). A abordagem de Trump para a Europa é com o Tratado de Comércio Transatlântico, que quer acabar com isso porque não quer uma UE unida. É mais fácil para ele controlar o continente minando a UE, separando-a país por país. Conseguiu isso com o Reino Unido e vai tentar com outros. Um por um, dominará todo o continente melhor.
P. No entanto, os grandes investimentos da China são na África e América do Sul.
R. Leio atentamente todos os documentos da CIA para ver o futuro com seus olhos. A grande ameaça para manter sua hegemonia mundial é a China. Em 2030 será a primeira economia. Vivemos um intervalo entre duas globalizações. Tivemos várias desde 1870, cada uma dominada por uma inovação tecnológica, do motor a vapor à Internet. As últimas sempre foram dominadas pelos Estados Unidos, mas vamos entrar em uma nova onda de inovação, estrelada pela inteligência artificial, a robótica e a automação, e nestas áreas – ao contrário das anteriores– a China está bem posicionada. Quem dominar a nova onda será o país hegemônico.
P. A hora do imperialismo chinês?
“A Bolsa é controlada por cinco grandes instituições financeiras, que têm um enorme poder de chantagem”
R. A China se juntou à Rússia, Índia, Brasil e África do Sul, os BRICS. Esse projeto, ao contrário do que poderíamos imaginar, era um aviso temível para os Estados Unidos. Tinha que ser neutralizado a qualquer preço porque colocaria em questão o mais sagrado do império americano, o dólar. Em 1971, deixou de estar respaldado pelo padrão-ouro, mas os EUA entraram em acordo com a família real saudita para que o dólar fosse a única moeda de pagamento das transações petrolíferas.
P. E assim continua meio século depois.
R. Sim, ao custo de reprimir qualquer movimento para acabar com o dólar como a única referência mundial. Sempre que há um ataque a essa moeda a reação dos Estados Unidos é brutal. É verdade que o ex-presidente do FMI Dominique Strauss-Kahn esteve em uma confusão com uma camareira, mas, coincidentemente, um mês antes ele havia proposto a criação de uma cesta de moedas como referência para o comércio mundial, e não apenas o dólar. [Sadam] Hussein queria que o comércio de hidrocarbonetos fosse em euros e Gaddafi propôs uma moeda africana semelhante ao euro. Todos tiveram destinos fatais.
P. E aquele BRICS perdeu seu peão brasileiro.
R. Antes a Índia de Mohdi se entregara incondicionalmente, mas o Brasil é a sétima economia mundial e aproveitaram que tivesse uma democracia ainda frágil para acabar com esse laboratório. O BRICS ficou neutralizado.
P. As democracias trocaram Obama por Trump, Lula por Bolsonaro, Rienzi por Salvini…
R. Vivemos um ciclo reacionário, típico entre os intervalos das globalizações. É uma época em que a agressividade e a rivalidade entre os países aumentam –na Europa, deu origem a duas guerras. Sua face visível é Steve Bannon, ex-assessor de Trump. Não é coincidência que a sua organização, The Movement, tenha se instalado em Bruxelas. O seu objetivo é conseguir uma maioria de eurocéticos nas eleições europeias de maio e, assim, destruir democraticamente a UE.
P. Teme que ele consiga?
R. Vejo isso com muita preocupação. Esta onda reacionária é diferente das outras, tenta acabar com a distinção entre ditadura e democracia. A democracia liberal não sabe defender-se dos antidemocratas, de antissistemas como Trump ou Bolsonaro, que se aproveitam do sistema. A opinião pública é destruída com notícias falsas que transformam o adversário em inimigo; com o adversário se discute, o inimigo se destrói.
P. Mas como esse ciclo reacionário se formou?
R. Claro que não é uma crise repentina, tem suas causas. Se deixamos de ocupar um espaço, outros não o farão. Se os partidos clássicos se dedicam aos processos eleitorais e a suas alianças, e não trabalham com as classes populares, outros o farão. E não apenas os partidos. A Igreja Católica tinha uma forte base na América Latina com a teologia da libertação. João Paulo II a liquidou e esse vazio está sendo ocupado pela chamada teologia da prosperidade das igrejas evangélicas de influência norte-americana. Os ricos recebem a bênção de Deus, os pobres não são abençoados, são demonizados, culpados por sua pobreza. Houve um abandono das classes populares pelas elites, sejam elas políticas ou eclesiásticas.
P. O senhor tem uma solução?
R. Sim, Esquerda do Mundo, Uni-vos, o título do meu novo ensaio. A esquerda tem que acabar com seus dogmatismos e isolacionismo e estar ciente de que neste ciclo reacionário as forças esquerdistas são as que melhor podem defender a democracia liberal, porque a direita se entregou totalmente (a esquerda, parcialmente) aos poderes financeiros.
“João Paulo II liquidou a teologia da libertação católica e esse espaço é ocupado pela igreja evangélica”
P. Neste período reacionário, uma das exceções tem sido a solução portuguesa, um governo socialista com o apoio parlamentar de partidos à sua esquerda, incluindo antieuropeus, do Bloco e o Partido Comunista.
R. É a grande inovação política dos últimos anos. O partido socialista de Costa decide articular-se com partidos à esquerda em vez de fazer isso com a direita, como sempre. Com uma clarividência extraordinária, com o Bloco e o PC, chegaram à conclusão de que há muitas coisas que os separam, mas há outras que os unem, suficientes para governar. Estar unidos para acabar com a austeridade, já é muito. Se o PC é contra o euro e o PS a favor, isso não conta. Essa foi a grande sabedoria dos partidos.
P. Portugal rompeu com muitas profecias catastróficas.
R. Portugal demonstrou que o neoliberalismo era uma mentira. Com soluções contrárias a essa ideologia, o Governo deu um respiro às classes populares. A economia cresce, o investimento chega, o desemprego cai. Se isso tivesse acontecido em outro país, seria notícia mundial.
P. O modelo é exportável?
R. As soluções não podem ser copiadas, mas pode-se aprender com elas. Tenho alguma esperança de que sejam aceitas na Espanha com os jovens Sánchez e Iglesias. Esta semana vou lá para conversar com todos os partidos da esquerda. Na Espanha, o grande ator diferencial é a questão das nacionalidades e, especificamente, a Catalunha, o que impede qualquer acordo e, em minha opinião, assim vai continuar por algum tempo. Quando se joga o tudo ou nada, o acordo é impossível.
P. Na Espanha, mais do que em esquerda e direita, fala-se em castas e movimentos transversais.
R. Sei disso e fico indignado. A distinção entre esquerda e direita nunca foi tão importante. A esquerda muitas vezes apaixona, mas deixa passar oportunidades de ser outra alternativa de vida. A esquerda não pode ter vergonha de defender o Estado, obviamente democrático e não corrupto. Quem mais vai precisar de saúde pública, de mais educação, não serão as classes médias altas, mas sim aquelas que ganham o salário mínimo. É preciso ter a coragem de aumentar os impostos dos mais ricos. Prejudica o investimento, dizia-se em Portugal. Não foi assim, pelo contrário, aumentou. Há muitas mentiras econômicas. Os maiores mentirosos deste século ganharam os prêmios Nobel de Economia.
P. A solução portuguesa pode mudar a tendência da União Europeia nas eleições de maio?
R. Portugal é um país muito pequeno para mudar a UE, mas se tivéssemos uma solução de esquerda moderada na Espanha, mais a Grécia e a Itália, derrotaríamos a extrema direita, e a UE seria salva. Se não a mudamos por dentro, haverá brexititaliabrexit e austriaexit –sem contar a Hungria e a Polônia, que são europeus só para receber dinheiro comunitário– e em vez de ter uma solução de esquerda para reinventar a UE, será uma de direita para destruir a Europa. Esse é o dilema que enfrentamos.