quarta-feira, 28 de setembro de 2011

A Universidade de Brasília educadora em Direitos Humanos

Lívia Gimenes Dias da Fonseca

Nos 90 anos de Paulo Freire, a Universidade de Brasília (UnB) dedica a Semana Universitária ao seu pensamento que ainda hoje é referência para as/os que sonham com uma educação a serviço da dignidade humana e do fim de todas as formas de opressão. O professor chileno Abraham Magendzo credita à educação Freiriana a inspiração da Educação em Direitos Humanos (EDH) na América Latina (Lima, 2001).
A EDH surgiu a partir dos movimentos de Educação Popular exercida com base nos princípios pedagógicos freirianos. Paulo Freire tinha em sua prática pedagógica a destituição da realidade injusta por meio de uma educação em que os/as envolvidos/as se descobrissem sujeitos históricos ativos para que os direitos pudessem começar a serem conquistados e não doados (FREIRE, 2001, p. 99).
A Educação em Direitos Humanos é entendida como uma experiência democrática de respeito à autonomia do indivíduo em que o diálogo problematizador é o instrumento de sensibilização em relação às ofensas à dignidade humana sofridas individualmente e/ou por outros/as, ao mesmo tempo, em que os/as participantes se descobrem sujeitos de direitos e se sentem solidários/as para atuar em direção à transformação da sociedade.
Este enfoque pedagógico garante que o direito à educação seja determinante para o cumprimento de outros direitos humanos já que, ao mesmo tempo, se cumpre com o direito à educação em si e se pratica este direito como uma forma de vivência e aprendizagem dos demais direitos humanos.
Neste sentido, a EDH tem sua prática reconhecida na Declaração dos Direitos Humanos, no artigo 26, § 2, onde está previsto que a educação deve atender aos objetivos de desenvolvimento da personalidade humana, de fortalecimento do respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais, deve promover a compreensão, a tolerância e a amizade entre os povos, e a paz. No mesmo sentido, a Constituição Federal brasileira, em seu art. 205, determina que a educação deve estar voltada à formação para a cidadania.
Nessa direção, compreende-se que a efetivação do direito à educação deve ser realizada dentro dos parâmetros dos Direitos Humanos. Dessa forma, está em discussão no Conselho Nacional de Educação (CNE) as Diretrizes Nacionais da Educação em Direitos Humanos. O documento orientador ficará disponível no portal do Ministério da Educação(http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=17036&Itemid=1098) até 10 de outubro de 2011 e já contou com a opinião e avaliação de várias entidades, inclusive da Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior), representada pelo Reitor da UnB, José Geraldo de Sousa Junior, na Audiência Pública ocorrida no auditório do CNE no último dia 22 de setembro.
A partir deste documento, a Educação em Direitos Humanos passará a ser incluída transversamente, e/ou a partir de disciplinas, nos currículos escolares de todos os níveis educacionais, ou seja, na educação básica (nas diferentes etapas e modalidades) e no ensino superior (graduação e pós-graduação).
No documento orientador das Diretrizes, seguindo diversas recomendações, convenções e tratados internacionais, estão previstas que as responsabilidades do Ensino Superior com a EDH estão ligadas aos processos de construção de uma sociedade mais justa, pautada no respeito e promoção dos Direitos Humanos (trecho texto orientador).
Assim, a Universidade de Brasília tem em seu plano original o pioneirismo de se forjar enquanto um espaço de realização de Direitos Humanos. A ideia de “Universidade Necessária” pensada por Darcy Ribeiro preconizava que a essencialidade do Ensino Superior estaria no encontro dos saberes acadêmicos com realidade social de modo a contribuir com a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
Entretanto, o próprio texto orientador das Diretrizes nos lembra que as Instituições de Ensino Superior não estão isentas de vivenciar violações de direitos humanos em seu espaço. Para citar alguns exemplos do que ocorre na UnB: as diversas denúncias de violações que ocorrem por meio do trote; as discriminações presentes por vezes nas relações estudantis e atitudes de funcionários/as, em especial, contra às mulheres e às pessoas LGBT; e do não reconhecimento por uma parcela do corpo docente do/a estudante como sujeito de fala.
Desse modo, a UnB se torna educadora em Direitos Humanos quando se propõe a ser uma Universidade Emancipatória e assume medidas de ampliação de fóruns democráticos de participação; garante ações afirmativas para o ingresso nos cursos; amplia a assistência estudantil e a localização dos campus; e cria ouvidoria e realiza campanhas educativas.
Por fim, o avanço da conquista de uma UnB voltada para o aprendizado e efetivação de Direitos Humanos só se dará quando esta temática estiver transversalizada no ensino, na pesquisa, na extensão, na gestão e no compromisso e preocupação de toda comunidade acadêmica com a conquista de uma sociedade livre de opressões.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Política criminal e penitenciária

Fábio de Sá e Silva



Apesar das mudanças ocorridas no governo e no parlamento, a primeira sessão legislativa deste ano ficarará marcada por intensa atividade em matéria de política criminal e penitenciária. Dois projetos de lei aprovados no Congresso e, recentemente, sancionados pela presidente da República, merecem destaque: um que institui diversas medidas cautelares alternativas à prisão provisória, tais como pagamento de fiança, recolhimento domiciliar no período noturno, proibição de viajar, frequentar alguns lugares e de ter contato com determinadas pessoas e suspensão do exercício de função pública ou de atividade econômica; e outro que cria a possibilidade de remição da pena pelo estudo, ou seja, que autoriza o desconto de horas estudadas do tempo de pena.


Essas inovações retomam o sentido das reformas penais de 1984 e da própria Constituição Federal, distorcido pela legislação de emergência editada a partir da década de 1990. Trata-se, agora, como se tratava já no Código Penal e na Lei de Execução Penal, de estabelecer um pacto pelo qual: i) o Estado não deve oferecer o encarceramento como única resposta à violência e à criminalidade; e ii) nas várias respostas que oferece, mas especialmente no caso do encarceramento, o Estado deve trabalhar para a formação de novos e mais harmônicos vínculos entre os presos e a comunidade, contribuindo, assim, para a diminuição da reincidência e para a construção de uma sociedade mais segura.Mas essas origens não podem ser resgatadas sem a devida crítica.


Um dos grandes equívocos dos reformadores dos anos 1980, típico da inspiração garantista que prevalecia à época, foi acreditar que o problema estaria resolvido com a edição de leis e o estabelecimento de direitos e garantias. O tempo cuidou de mostrar que o sistema jurídico-penal funciona como uma espécie de tubo de pasta de dentes. Pode-se espremer uma das pontas com uma legislação progressista, mas o conteúdo escorre por outro lado, no qual discursos como o da "periculosidade do agente" e o da "ordem pública" são frequentemente mobilizados para reproduzir a exclusão e o retributivismo.Quase três décadas depois, esses equívocos não podem ser mais repetidos.


É imprescindível um esforço para a elaboração de políticas e programas que ofereçam aos operadores do sistema jurídico-penal o respaldo institucional de que necessitam para dar aplicabilidade às inovações legislativas. Sob indução e coordenação do Ministério da Justiça, estados e municípios devem formar sólidas redes de fiscalização, acompanhamento e monitoramento, no caso da lei que institui medidas cautelares alternativas à prisão provisória; bem como garantir a oferta de atividades educativas a condenados e condenadas mediante a extensão da rede pública de ensino a presídios e cadeias públicas, no caso da lei que institui a remição da pena pelo estudo. Pois, como disse Drummond, "(os) homens pedem carne. Fogo. Sapatos/ A lei não basta. Os lírios não nascem/ Da lei".

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Carta às Esquerdas

Boaventura de Sousa Santos
Não ponho em causa que haja um futuro para as esquerdas mas o seu futuro não vai ser uma continuação linear do seu passado. Definir o que têm em comum equivale a responder à pergunta: o que é a esquerda? A esquerda é um conjunto de posições políticas que partilham o ideal de que os humanos têm todos o mesmo valor, e são o valor mais alto. Esse ideal é posto em causa sempre que há relações sociais de poder desigual, isto é, de dominação. Neste caso, alguns indivíduos ou grupos satisfazem algumas das suas necessidades, transformando outros indivíduos ou grupos em meios para os seus fins. O capitalismo não é a única fonte de dominação mas é uma fonte importante.
Os diferentes entendimentos deste ideal levaram a diferentes clivagens. As principais resultaram de respostas opostas às seguintes perguntas. Poderá o capitalismo ser reformado de modo a melhorar a sorte dos dominados, ou tal só é possível para além do capitalismo? A luta social deve ser conduzida por uma classe (a classe operária) ou por diferentes classes ou grupos sociais? Deve ser conduzida dentro das instituições democráticas ou fora delas? O Estado é, ele próprio, uma relação de dominação, ou pode ser mobilizado para combater as relações de dominação? As respostas opostas as estas perguntas estiveram na origem de violentas clivagens. Em nome da esquerda cometeram-se atrocidades contra a esquerda; mas, no seu conjunto, as esquerdas dominaram o século XX (apesar do nazismo, do fascismo e do colonialismo) e o mundo tornou-se mais livre e mais igual graças a elas. Este curto século de todas as esquerdas terminou com a queda do Muro de Berlim. Os últimos trinta anos foram, por um lado, uma gestão de ruínas e de inércias e, por outro, a emergência de novas lutas contra a dominação, com outros actores e linguagens que as esquerdas não puderam entender. Entretanto, livre das esquerdas, o capitalismo voltou a mostrar a sua vocação anti-social. Voltou a ser urgente reconstruir as esquerdas para evitar a barbárie.
Como recomeçar? Pela aceitação das seguintes ideias. Primeiro, o mundo diversificou-se e a diversidade instalou-se no interior de cada país. A compreensão do mundo é muito mais ampla que a compreensão ocidental do mundo; não há internacionalismo sem interculturalismo. Segundo, o capitalismo concebe a democracia como um instrumento de acumulação; se for preciso, redu-la à irrelevância e, se encontrar outro instrumento mais eficiente, dispensa-a (o caso da China). A defesa da democracia de alta intensidade é a grande bandeira das esquerdas. Terceiro, o capitalismo é amoral e não entende o conceito de dignidade humana; a defesa desta é uma luta contra o capitalismo e nunca com o capitalismo (no capitalismo, mesmo as esmolas só existem como relações públicas). Quarto, a experiência do mundo mostra que há imensas realidades não capitalistas, guiadas pela reciprocidade e pelo cooperativismo, à espera de serem valorizadas como o futuro dentro do presente. Quinto, o século passado revelou que a relação dos humanos com a natureza é uma relação de dominação contra a qual há que lutar; o crescimento económico não é infinito. Sexto, a propriedade privada só é um bem social se for uma entre várias formas de propriedade e se todas forem protegidas; há bens comuns da humanidade (como a água e o ar). Sétimo, o curto século das esquerdas foi suficiente para criar um espírito igualitário entre os humanos que sobressai em todos os inquéritos; este é um património das esquerdas que estas têm vindo a dilapidar. Oitavo, o capitalismo precisa de outras formas de dominação para florescer, do racismo ao sexismo e à guerra e todas devem ser combatidas. Nono, o Estado é um animal estranho, meio anjo meio monstro, mas, sem ele, muitos outros monstros andariam à solta, insaciáveis à cata de anjos indefesos. Melhor Estado, sempre; menos Estado, nunca.
Com estas ideias, vão continuar a ser várias as esquerdas, mas já não é provável que se matem umas às outras e é possível que se unam para travar a barbárie que se aproxima.

domingo, 4 de setembro de 2011

Ética e Credibilidade de uma Profissão


DEBATE ABERTO - 01/09/2011

Apenas algumas semanas depois do escândalo provocado pelas revelações de ações criminosas do tablóide “News of the World” na Inglaterra, o tipo de jornalismo reiteradamente praticado pela revista Veja acende uma perigosa luz amarela no campo da comunicação.

Desde o dia 7 de julho pp. a Comissão de Ética (CE) do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal (SJPDF) tem em suas mãos um pedido de abertura de processo por violação do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros contra o jornalista Gustavo Ribeiro da sucursal de Brasília da revista Veja. O pedido foi protocolado por um dos membros da comissão que redigiu o novo Código de Ética em vigor desde 2007 (disponível em http://www.fenaj.org.br/federacao/cometica/codigo_de_etica_dos_jornalistas_brasileiros.pdf) e também um dos fundadores do Movimento Pró-Conselho de Comunicação Social no Distrito Federal (MPC), o jornalista Antonio Carlos Queiroz.

O pedido original tinha por base a matéria intitulada "Madraçal no Planalto" sobre a Universidade de Brasília e seu reitor, publicada na Veja com data de capa de 6 de julho.

Tanto do ponto de vista técnico como ético, a referida matéria é um exemplo acabado de mau jornalismo. Editorializada e adjetivada, a matéria não cumpre as regras elementares básicas do jornalismo e foi desmentida por “fontes” cujos nomes nela aparecem, além de ter recebido repúdio quase unânime da própria comunidade acadêmica da UnB (cf.
http://www.unb.br/noticias/unbagencia/unbagencia.php?id=5317). Mais ainda. Uma das “fontes” e articulador da matéria de Veja, conhecido adversário político do atual reitor, publicou em seu blog o seguinte post:

"Parabéns à revista VEJA por este inestimável serviço ao Brasil, mostrando o que faz o reitor Zé do MST (ligado ao PT) com a educação superior no país. Está agora na hora da oposição (DEM, PSDB e PPS) colocar a boca no trombone! -- PS: Ajudei a VEJA com essa reportagem (tem uma declaração minha na 4. página), eu e mais de 20 professores, lógico que apenas alguns apareceram" [cf. http://www.cienciabrasil.blogspot.com/
post de 3 de julho).

Jornalista não sindicalizado
No dia 9 de agosto pp. a CE respondeu ao jornalista Antonio Carlos Queiroz informado haver decidido pela não abertura do processo tendo em vista que Gustavo Ribeiro “não é filiado ao SJPDF”.

Trata-se de um equívoco da CE de vez que a filiação aos sindicatos da categoria não é requisito para o exercício profissional e o Código de Ética, por óbvio, se aplica a toda a categoria, não somente aos jornalistas sindicalizados. Aliás, está escrito no próprio CE:

Art. 17. Os jornalistas que descumprirem o presente Código de Ética estão sujeitos às penalidades de observação, advertência, suspensão e exclusão do quadro social do sindicato e à publicação da decisão da comissão de ética em veículo de ampla circulação.

Parágrafo único - Os não-filiados aos sindicatos de jornalistas estão sujeitos às penalidades de observação, advertência, impedimento temporário e impedimento definitivo de ingresso no quadro social do sindicato e à publicação da decisão da comissão de ética em veículo de ampla circulação.


O equívoco da CE motivou um recurso impetrado pelo jornalista Antonio Carlos Queiroz no SJPDF solicitando a reconsideração da decisão.

Reincidência
Enquanto se aguardava uma resposta da CE ao recurso, o mesmo jornalista Gustavo Ribeiro, aparece novamente como um dos responsáveis por matéria aparentemente envolvendo práticas ilícitas, publicada na mesma revista Veja com data de 31 de agosto pp. Trata-se, como se sabe, de matéria de capa sob o título “O Poderoso Chefão” sobre o ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, que padece dos mesmos vícios da matéria anterior sobre a UnB. O jornalista está agora sendo formalmente acusado de tentativa de invasão de domicílio e falsidade ideológica pelo Hotel Naoum de Brasília, onde escritório de advocacia associado ao ex-ministro José Dirceu mantém um apartamento alugado.

Naturalmente o novo episódio envolvendo o jornalista Gustavo Ribeiro provocou o encaminhamento de um “agravo” à CE do SJPDF.

O que está em jogo?
Apenas algumas semanas depois do escândalo provocado pelas revelações de ações criminosas do tablóide “News of the World” na Inglaterra, o tipo de jornalismo reiteradamente praticado pela revista Veja acende uma perigosa luz amarela no campo da comunicação.

O Grupo Abril, ao qual pertence a revista Veja, criou recentemente o IAEJ – Instituto de Altos Estudos em Jornalismo que, em parceria com a ESPM, oferece o Curso de Pós-Graduação com Ênfase em Direção Editorial “um programa sem precedentes no Brasil, (que) tem a ambição de contribuir para a melhoria da imprensa no país” (cf.
http://www.espm.br/Candidato/Cursos/SP/Pages/jornalismodirecaoeditorial.aspx ).

Por óbvio, matérias como as referidas acima não são publicadas sem o conhecimento da direção da revista e, portanto, não são de responsabilidade apenas dos jornalistas envolvidos. Trata-se de uma determinada visão de jornalismo e de seu papel que confrontam toda a retórica liberal sobre a liberdade de imprensa na democracia.

Está na hora das organizações sindicais darem o primeiro passo e aplicarem exemplarmente o Código de Ética da profissão se pretendem zelar pela dignidade profissional mínima que sustente a credibilidade dos jornalistas.

E está mais do que na hora dos próprios empresários de mídia e do Estado brasileiro dialogar sobre a inadiável necessidade de uma ampla e democrática regulação do setor. Não dá mais para “fazer de conta” que no Brasil é diferente do resto do mundo e que aqui a mídia será sempre um poder acima de todos os outros.

A ver.

Venício A. de Lima é professor Titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Regulação das Comunicações – História, poder e direitos, Editora Paulus, 2011.