segunda-feira, 24 de novembro de 2014

O dia em que Jorge Amado foi doutor na sala dos capelos

Patrick Mariano* 

1. Dos trotes. Foi Zélia quem atendeu o telefone. Jorge tirava um cochilo deitado sem camisa na área da casa do rio vermelho. O barulho do telefone o despertou aos trancos e barrancos. Olhou de esgueio para dentro da sala, investigando a dificuldade de Zélia em se fazer entendida naquele barulhento instrumento vermelho. - Ora bem, é da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Precisamos falar com o senhor doutor Jorge Quélado. - Jorge Amado? - Sim senhora, Jorge Quélado, excelentíssimo senhor doutor catedrático da Universidade da Bahia. - Mas o Jorge não é doutor da Universidade, mas sim escritor. - Senhora, não sei me faço entender, mas por favor me passe o senhor Jorge Quélado, pois o magnífico reitor deseja falar-lhe. Tentando pegar o fio da miada, Zélia chama o dorminhoco que já estava a brincar com os gatos, depois da sesta interrompida. Jorge, o Heitor ou Reitor de Coimbra quer falar com você. Te chamaram de doutor, professor, catedrático sei lá o que. Desconfio que seja trote do Carybé. Deve ter acordado agora e de ressaca e quis aproveitar a voz para me enganar. Jorge deixou os gatos Ronaldo e Zelinha de lado e foi confiante atender o telefone. Se era o peste do Carybé, ele daria o troco. - Alô, doutor Jorge Quélado? - Seu vagabundo, ficou tomando cachaça ontem e agora quer fazer troça na minha cara paradescontar a de ontem. Diga, Carybé! - Desculpe, senhor doutor, vai falar consigo o magnífico reitor António Calamandra. - E desde quando bêbado tem nome de reitor? Se era trote, Carybé inovou nos recursos, pois tinha a musiquinha que ele só ouvira quando ligava do gabinete do Governador ou do Presidente. Pensou que a trama não só envolvia Carybé como gente graúda da burocracia estatal. - Doutor Jorge Quélado, em nome da Universidade de Coimbra, gostaria de convidá-lo para uma aula magna de início do calendário letivo. Tudo correrá por nossa conta. Peço-lhe que reserve uns dias a mais para conhecer a cidade e Portugal. - Senhor reitor ou seja lá o que for, eu só aceito se puder levar aquele filho da puta cachaceiro do Carybé. O teste saiu pela culatra. - Traga quem o doutor quiser, será um prazer tê-lo por aqui e, da mesma forma, seus amigos. A secretária providenciará tudo. Datas e cronograma da viagem. Jorge resolve dar um último truco no reitor. - Vou levar também o Zé da Biriba que ontem cobrou cachaça a mais do safado do Carybé e o mestre Bimba, único cordão trançado e benzido na África. - Doutor, como lhe disse, traga quem o senhor quiser. A secretária cuidará de tudo. Quando ainda rolava as despedidas formais, surge na sala Carybé. O contraste entre o rosto de Jorge e a bermuda branca lembrava uma guia de Xangô. Ao desligar o telefone, percebeu que o convite era sério e que teria que ir a Portugal. Zélia ainda ponderou se não poderia ser engano, mas Jorge, cheio de si, foi taxativo: é a pronúncia que é diferente, Zélia, eles não conseguem dizer amado. A língua se enrrola toda. Seu puto, você que nos colocou nessa agora terá que viajar conosco para Portugal. O amigo que tremia só de falar em avião, disse um rotundo nem fodendo. A palavra ecoou por toda casa: nem fo-den-do! 2. Pelo ar ou pelo mar? A tarde toda foi pra convencer Carybé da viagem de avião. Jorge adorava ver o amigo bravo. As recusas e os palavrões foram aumentando, aumentando e aumentando. Quem passava pelo portão tinha certeza que iriam sair no tapa. Quando Carybé atingia o ápice da raiva, Jorge se acabava de rir. Zélia já sabia que nessa onda se passaria horas e horas sem desfecho. Resolveu acabar com a briga: - Se Jorge só vai nessa palestra se você e os outros cacheiros aceitarem, vamos todos pelo mar e de navio! Nem Jorge, muito menos Carybé, queriam ir para Portugal, mas a sentença de Zélia os deixou sem chão. Acabou o jogo. Estava decidido. Iriam todos de navio. A surpresa agora se dava no outro lado do atlântico. - Navio? A secretária, encarregada pelo magnífico reitor para trazer a são e salvo o palestrante e sua corte, diante da quebra da lógica, convocou reunião extraordinária do Superior Conselho da Faculdade para tratar do tema. A última vez que o Superior Conselho havia se reunido foi para deliberar sobre a troca dos sinos da Cabra . O dilema era se mandava ao conserto o sino da época do Rei ou se faziam outro mais moderno e que fosse capaz de dar 8 tipos de badaladas diferentes. Isso há dez anos atrás. Um a um foram chegando os digníssimos Conselheiros. A cidade se alterou. Eram 27 ao todo e foram chamados às pressas ao portão de ferro. Na praça da república, aquele cortejo de carros pretos subindo em direção aos arcos despertava a curiosidade dos estudantes, bêbados e até dos cachorros que nada tinham que ver com isso. As capas pretas pareciam átomos a se debater umas com as outras de curiosidade. A imprensa, claro, já estava ao portão de ferro com seus transmissores, luzes e geradores de energia. Quase todos entraram sem falar com a imprensa, menos Rui Costa, candidato da direita à sucessão do reitor. Desceu do carro, sorriso de modelo no rosto e o dom de ser simpático para as câmeras. Nem ouviu a pergunta da repórter e fitando a câmera disse: - Queremos uma Universidade para nossos melhores cérebros. Sou pela cobrança de propinas e redução das vagas. Vou trabalhar para que aqui se formem gênios, obrigado. Na pauta da reunião a viagem a polêmica viagem de Carybé. Quando o reitor deu as boas vindas e explicou o motivo da reunião convocada pela secretária em regime de urgência, um Conselheiro levantou a mão e se opôs a que se deliberasse algo dado que pelo art.14, somente um dos conselheiros tem o poder de convocar a dita da reunião. Levaram 4 horas em debates hermenêuticos até que uma coisa fez todos concordarem: era hora do almoço. A imprensa estava em polvorosa. Em razão da demora na deliberação, imaginando tratar de algo importante, passaram a transmitir direto. A repórter se esforçava para ter notícias. A imagem era a da sala do último andar do pátio. Vez ou outra um vulto passava, mas era só o café sendo servido. Como a transmissão era direta, uma pequena multidão tomava conta do pátio. Vendedores ambulantes foram proibidos de entrar, bem como bandeiras vermelhas. Para distrair, uma entrevista com alguém da multidão. - O que a senhora acha que eles estão decidindo lá em cima? A senhora chinesa, com uma Nikon a tira colo, apontava para a biblioteca joanina, lugar em que fizera as últimas fotos de uma viagem que passou por Paris, Madrid, Lisboa e por algum motivo ainda não sabido do guia que bolou o passeio veio dar em Coimbra a sua excursão. A repórter então, imaginando ter um grande furo nas mãos: - Vão derrubar a biblioteca joanina? E a chinesa sorrindo, só balançava a cabeça. Depois do almoço, alguns conselheiros dormiam na mesa. Eis que o reitor teve a sacada genial. Pegou o papel da convocação e assinou. Com isso, decidiram deliberar. 18 votos favor de pagar a passagem de navio para os brasileiros, 6, contra e, 3, se abstiveram. Quando os conselheiros desceram as escadas uma multidão os aplaudia sem saber direito porque e uma profusão de flashes dava ao ato uma solenidade nunca antes vista. O reitor, objetivo e econômico com as palavras diz: - Os brasileiros chegarão de navio! Parecia um gol. A platéia entorpecida aplaudia e o reitor era abraçado. Os brasileiros chegarão de navio foi a frase mais comentada da semana no tuíter. Do outro lado do Atlântico, Carybé, Zé da Biriba e mestre Bimba jogavam sinuca no boteco sem saber que Coimbra havia parado por conta do medo de avião de um deles. 3. A expectativa. Os jornais descobriram o telefone da casa do Rio Vermelho e ligavam aos montes pedindo fotos da comitiva. Zélia mandou a única de todos eles juntos. Uma do dois de fevereiro, logo depois de uma muqueca caprichada. O dono do jornal ligou imediatamente para o reitor quando viu a capa com a foto. - O senhor está louco? Estás a trazer 4 vagabundos do Brasil. Um sem camisa, outro dormindo com uma calça colada e um terceiro fazendo pose com uma garrafa de pinga. Isso lá é gente que se traga? O reitor acabou com a conversa. Que são fotos, ó pá? Jorge Quélado é um catedrático, elaborou sozinho 5 Códigos no Brasil. - O que o povo vai pensar da instituição? E ainda de navio? Olha, vou publicar críticas à vinda desses brasileiros, ó pá. A ameaça do dono do jornal, da tv e das rádios não surtiu efeito algum. As aulas iriam começar e os brasileiros precisam chegar. 4. A chegada Toda comunidade acadêmica esperava em Lisboa o navio que trazia Jorge Amado para fazer uma palestra a que foi, por engano, convidado. Carybé, no entanto, convenceu a todos descerem no Porto, para conhecer uma cave de vinho e um antigo amigo baiano seu que lá trabalhava. A visita durou dois dias e deixou a comitiva da Universidade desesperada. Para todo navio que chegava com bandeira brasileira se tocava uma música de recepção e se estendia um carpet com o brasão da casa de ensino. Todos desciam e nada do doutor Jorge Amado. Nisso se passaram dois dias até que o reitor decidiu voltar para tentar contato através do Consulado. Foi o amigo de Carybé, Dindinho, quem os levou até Coimbra pelo comboio. Se despediram na estação e a trupe baiana ficou com as malas e ainda com a ressaca dos vinhos. Como não havia ninguém a esperar por eles, resolveram subir o morro e se instalar em uma pousada qualquer. A palestra seria no dia seguinte. Como chegaram a tarde, deu para tirar um bom cochilo. Todos prontos no saguão do hotel e já iam saindo para jantar, quando o funcionário gritou: doutor Jorge? Era o reitor da Universidade que, através de um antigo sistema da PIDE ao qual algumas autoridades ainda tinham acesso, conseguiu localizá-los. - Prezado Doutor Jorge, ora bem, estamos com um jantar oferecido pela prefeitura de Coimbra a vossa comitiva, desculpe avisá-lo assim em cima da hora, mas já há um carro te esperando aí na saída do vosso hotel. Na volta, deixaremos vocês no melhor hotel da cidade. Diante do sequestro relâmpago, não havia outra alternativa se não ir ao jantar. Ao chegarem no salão dos passos perdidos, Jorge ficou um pouco para trás do Reitor e foi barrado na entrada. Talvez pela sua camisa florida e bermudão. Desfeito o mal entendido, todos se deliciaram com um leitão à bairrada. Vinho vai, vinho vem, eis que chega a hora do discurso. A mesa tinha 22 metros de comprimento e lá estavam todos com ternos e gravatas. Alunos de capas pretas já haviam tocado um fado e declamado um texto para o autor de mais de 5 códigos no Brasil. O reitor se levanta e solta a voz. - É uma imensa honra receber o professor doutor Jorge Quélado, digníssimo catedrático da Universidade da Bahia, autor de 5 códigos no Brasil e na América e discípulo de Rui Barbosa. Quando o Reitor terminou de falar e os aplausos cessaram, o único barulho que se ouviu no salão foi a gargalhada de Carybé. Durou quase um minuto. Jorge mais uma vez corou e preferiu simplesmente dizer obrigado e pedir desculpas por terem que se ausentar mais cedo do jantar em razão do cansaço da viagem. Ganhou tempo. De volta ao hotel, Carybé e Bimba que não se aguentavam de alegria ao ver Jorge na enrrascada, sugeriu de irem tomar uma para tirar o peso da situação. Havia acabado de chegar na cidade Glauber Rocha e João Ubaldo Ribeiro que vieram de Cintra para encontrar com a turma. Contando a partir do Café Tropical, foram 4 bares e duas repúblicas pelas quais passaram. Assistiram no nascer do sol do Mondego e foram dormir. A palestra de Jorge seria às dezenove horas. 5. Na sala dos Capelos. É a antiga sala dos reis. Agora era a sala dos baianos. Glauber não parava de falar, apesar dos cutucões de Ubaldo e Zélia. Carybé curtia os retratos dos reis e para passar o tempo rabiscava. Mestre bimba imaginava uma roda de capoeira no pátio lá fora. Era noite de lua cheia. A sala era pequena e estava tomada só por professores. Lá fora, alunos aos montes. Foram instalados telões no pátio da Faculdade. Jorge pegou o microfone, agradeceu o convite do reitor. - Senhor reitor, esse lugar aqui não é meu. Esse salão é para reis e doutores, eu sou apenas um baiano que tem na escrita uma forma de desassossego. Nunca escrevi um código, nunca ditei normas a quem quer que seja. Estou aqui por um grande engano das nossas línguas que são iguais, mas diferentes. Ali na platéia estão comigo Carybé, um dos maiores mestres da pintura e escultura do meus país, embora seja Argentino de nascimento. Ao seu lado o mestre Bimba que representa a beleza e o sofrimento do nosso continente irmão África. Irmão que fizemos através da dor e da escrividão, mas que por sua resistência fincaram em nós brasileiros a magnitude dos seus tambores, da sua dança, da sua culinária e da sua cultura. Sou filho de Xangô o rei da Justiça. Aqui é uma faculdade de direito, mas foi o direito que fundamentou a escrividão, que legitima a fome e a exclusão do outro. Antes de aqui entrar soube que há uma prisão dentro da Faculdade para os alunos. Me desculpe, senhor reitor, mas não se ensina aprisionando. Se queremos que a Justiça ocorra, nem seria preciso o direito. Mas se queremos que a verdadeira justiça ocorra, talvez tenhamos que prescindir do direito, dos códigos e das prisões. Ainda na platéia, o grande escritor João Ubaldo Ribeiro e o maior cineasta de todos os tempos, Glauber Rocha. Ontem, em uma das repúblicas pelas quais passamos, Glauber não entendia porque o uso das capas pretas e porque dessa diferenciação entre letrados e não letrados. Ficou ainda horrorizado com os trotes humilhantes. Se a justiça é a igualdade dos seres humanos, não entendemos porque as humilhações contra quem ainda nem bem chegou ao mundo das letras. Desculpe mais uma vez, senhor reitor, mas não vejo nesta sala alunos e muitas mulheres. Só autoridades homens. O alunos, razão de existir desse prédio todo, estão lá fora. Nisso se ouviu um barulho enorme de palmas dos estudantes lá de fora. Dentro da sala o constrangimento era visível. Um dos direitores deu a ordem para que se derrubasse a anergia do prédio. Foi o aconteceu, de repente escuridão total. Jorge retoma o discurso. Glauber acende o esqueiro perto do corpo de Jorge Amado e agora as palavras e a imagem do baiano era ainda mais forte e impactante. - Obrigado pela luz ter apagado. Não havia nada mais que falar aqui para vossas excelências. Vou ter lá fora com os alunos e alunas. Saíram os baianos e mestre bimba passou a tocar berimbau. O cortejo foi atraindo gente, até os doutores seguiram atrás. Na sacada da faculdade, Jorge continou. Agora, quem vai lhes falar é mestre Bimba, filho da nossa irmã África. Bimba se ergue, corpo escultural e expressão altiva e declama Castro Alves: - São os guerreiros ousados que com os tigres mosqueados combatem na solidão. Homens simples, fortes, bravos hoje míseros escravos sem ar, sem luz, sem razão. Quando Bimba termina o poema, toca o berimbau e canta cantos da sua terra e dos seus orixás. É noite de lua cheia que reflete nas areias do pátio da Faculdade da Direito. Lá embaixo o rio mondego desce manso. - Meu nome é Jorge Amado, nunca fui doutor, assim como Saramago. Vejo em vocês não muito mais que vinte anos. Castro Alves escreveu esse poema com 22. Glauber fez Deus e o Diabo na Terra do Sol com 23. Mas vocês tem a chance de fazer não o direito. Nós não precisamos de leis, de códigos, mas de justiça. Foi o direito que permitiu a escravidão. É ele quem permite os muros de Israel e nos EUA. É o direito que permite Guantánamo e os horrores dos campos de concentração norteamericanos mundo a fora. Peço que os que tiverem de capa preta as estendam no chão, deitem sobre elas e olhem para a lua. Sintam a insignificância de todos nós perante o tempo e o universo. Letrado ou iletrado, estamos todos aqui vivos. Podemos fazer do nosso lugar um lugar mais justo e humano ou podemos deixar tudo como está. A escolha, como se diz por aqui, é vossa! Jorge, Bimba, Glauber e toda a comitiva não conseguiram sair da Faculdade. Foram aplaudidos por minutos e minutos por todos. O reitor, de lágrimas nos olhos se ajoelhou perante Jorge que o virou para os seus alunos. Nunca mais se viu, depois da passagem dos baianos capas pretas a andar pelas ruas de Coimbra. Toda noite de lua cheia os estudantes organizam a Luarada em que todos vão ao pátio cantar e discutir revolução. De Coimbra, a trupe foi para Cintra. Logo depois, Glauber faleceu, mas as imagens que filmou naquele dia histórico guardou num dos baús na casa do rio vermelho. O título da fita de VHS era: Deus Bimba a lua e o Amado na terra do fado. 

* Patrick Mariano é advogado da RENAP (Rede Nacional de Advogados Populares) e está em Coimbra cumprindo programa de Doutoramento. Ele integra o Coletivo Diálogos Lyrianos e é autor do livro "11 Retratos por 20 Contos".

domingo, 23 de novembro de 2014

Conversações de Erasmus: Carta da Noruega: o país das desigualdades reconhecidas

Ana Luiza Almeida e Silva *

Ao pensar na Noruega antes de viver aqui, seria automaticamente conduzida à ideia de isonomia. Pela minha experiência na Suécia, onde todos podem ser tudo, naturalmente seria levada a pensar que, aqui, o princípio da igualdade seria premissa máxima e que ações discriminatórias estariam fora de cogitação, em qualquer hipótese. Como uma maneira dinâmica e intensa de mergulhar em uma cultura, comecei a estudar norueguês, mesmo ciente do desafio de se aprender uma língua escandinava. Aqui, raramente se encontra alguém que não fale inglês e, em geral, eles têm pouquíssima paciência para suportar a gagueira mental de quem se arrisca no idioma – por isso o aprendizado se torna um desafio. Ocorre que, entender o norueguês é entender a diversidade e a não linearidade histórica da Noruega. Muito frequentemente me deparava com a dificuldade de compreender os sotaques de regiões diferentes daquela em que fui introduzida a língua. Apesar da nem tão vasta extensão territorial – quando comparado ao Brasil, por exemplo - a Noruega possui quatro dialetos oficialmente reconhecidos que, para fins didáticos, convergem na língua norueguesa formal, o Bokmål. Ao contrário do processo de uniformização linguística(forçada) promovida no Brasil, a Noruega é resultado de uma unificação de grupos regionais diversos que, devido ao tempo e a globalização, linguisticamente assemelham-se mais e mais a cada dia. Por algumas semanas insisti que a diferença linguística não alcançava níveis de distinção de dialeto, mas sim, apenas a diferenciação de sotaque, como em qualquer país marcado pela extensão territorial ou histórico de disputas políticas. No entanto, a cada dia que ligava a televisão, o rádio ou lia sobre a questão, entendia que reconhecer a diferença linguística consistia também em um ato de afirmação cultural. Em uma comparação simples, imagine ligar a televisão no canal de TV mais popular do Brasil e reconhecer sotaques do Rio Grande do Norte, Acre ou Rio Grande do Sul. Essa e a proposta de comunicação norueguesa, permitir a todos os espaço e reconhecimento cultural que merecem, tentando, ao máximo, evitar a “institucionalização” de um sotaque oficial, como ocorre no Brasil quanto ao sotaque do Rio de Janeiro (aqui falo sem qualquer parcialidade, pois sou carioca) O meu segundo choque com a “desigualdade” norueguesa também se refere a língua, mas se estende apolítica, economia e políticas sociais. Provavelmente você não sabe, mas a Noruega tem duas línguas oficiais: o norueguês e a língua Sami. Sami é um povo indígena internacionalmente conhecido pela sua luta por reconhecimento e, quando comparado com outros povos indígenas ao redor do mundo, pela implementação efetiva do princípio da autodeterminação. Não é preciso ir muito longe na história para reconhecer o passado de subjugação e assimilação forçada sofrida por eles. Logo ali, após a primeira guerra mundial, sob a justificativa de proteção de fronteiras e integridade territorial – especialmente quanto as fronteiras do Norte, sob ameaça Russa - a Noruega promoveu uma severa política de assimilação forçada que incluiu proibição do uso da língua nativa, envio de crianças para internatos para que recebessem educação nos moldes noruegueses e, principalmente, a estigmatização da cultura Sami. Foram necessárias mais que cinco décadas para que o movimento indígena fosse reconhecido e tais políticas fossem definitivamente eliminadas, mas esse tempo também foi suficiente para parcialmente dizimar a cultura Sami. Novas políticas de reparação foram iniciadas, especialmente no âmbito da educação. Um estatuto Sami foi estabelecido, sua condição indígena foi declarada e, finalmente, ao fim dos anos oitenta, um parlamento Sami foi criado. Trata-se de um órgão consultivo, no entanto, a importância política e a repercussão internacional que suas reivindicações têm, hoje em dia, são singulares e por isso suas decisões são levadas em consideração pelo Estado norueguês. Fato interessante é que, dada a dispersão do povo Sami durante os anos de assimilação forçada, muitos deles mudaram nomes, interromperam o uso da língua e abandonaram suas atividades tradicionais (predominantemente caça de renas). As políticas atuais de afirmação do povo Sami incluem cotas em universidades, órgãos públicos e, claro, a participação política, começando pela adoção da língua Sami em documentos oficiais, muito embora a maioria dos indivíduos Sami tenham domínio do Norueguês. Além do parlamento Sami, um canal de TV, uma estação de rádio e uma universidade Sami (com cursos voltados para sua cultura, como artesanato) também reafirmam o reconhecimento do histórico de subjugação e sua desvantagem social. Uma reação quase automática de um brasileiro seria atribuir tais conquistas ao fato de tratar-se de um Estado rico. De fato, a divisão do valor estimado do fundo norueguês de petróleo, hoje, tornaria cada cidadão um milionário , mas problemas comuns a movimentos sociais permeiam realidades distintas, seja na América Latina, na África, ou aqui mesmo na Noruega. Em conversas com alguns dos parlamentares Sami, as reclamações comuns quanto as restrições orçamentárias (hoje a verba destinada as políticas Sami somam aproximadamente 45 milhões de Euros), a especulação do setor extrativista sobre as terras indígenas e a falta de estrutura para a capacitação da população Sami. Quando se fala em capacitação, trata-se se capacitação cidadã, em que nas consultas às populações locais, por exemplo, para a instalação de empresas exploradoras de minério, as escolhas sejam feitas sob consentimento prévio, livre e informado. Todas essas questões nos são muito familiares e, como sabemos, extrapolam a esfera orçamentária, mas permeiam sobretudo um processo de emancipação política e cultural. A experiência na Noruega desponta em mim uma nova percepção sobre noções de igualdade e subjugação. Desperta novos questionamentos sob elementos econômicos, políticos e culturais, seja por um sistema fiscal progressivo que e capaz de deduzir até55% sob altos salários, ou pela noção de que a família monárquica trabalha para os cidadãos (ao questionar o sistema monárquico a cidadãos de outros países, como a Inglaterra, nunca ouvi tal argumento). Ter acompanhado as eleições brasileiras imersa na realidade norueguesa foi um exercício diário de entendimento de contradições em todos os discursos políticos (direita e esquerda, se e que elas realmente existem). Frequentemente ouvem-se estórias de noruegueses que optaram por trabalhar em outros países para fugir desse sistema de taxação “cruel” (alguns brasileiros chamariam de comunista). Trata-se de reconhecer as diferenças e trabalhar para amenizá-las e esse processo nem sempre é prazeroso. Em um discurso inflamado nas redes sociais, logo após a divulgação do resultado da eleição presidencial, li: “Todo mundo quer morar nos Estados Unidos, mas vota como se fosse Cuba”. Eu, que nunca tive a menor pretensão de viver o sonho americano(tampouco o norueguês), apenas concluía que reconhecer as diferenças exige coragem, sobretudo para sair da zona de conforto. Aqui o princípio da isonomia é relativo, a meritocracia não é absoluta, a e as disparidades sociais estão cada vez mais distantes.

*Ana Luiza Almeida participa do Programa de Mestrado Human Rights Policy and Practice, uma ação do consórcio entre universidades da Suécia, Reino Unido, Noruega e Índia. Suas cartas têmsido publicadas neste Blog desde que iniciou o programa (ver Cartas de Gottemburgo).

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Carta a las y los jóvenes de México

Boaventura de Sousa Santos Jóvenes de la ciudad de México se manifiestan en la caseta de cobro de la autopista México-Cuernavaca, en solidaridad con familiares de los normalistas de AyotzinapaFoto Yazmín Ortega Cortés Me dirijo a todos mis amigos y a todas mis amigas de México. Si me permiten, me dirijo en especial a ustedes los jóvenes y las jóvenes de México. Una conmoción atraviesa todo el mundo por el horror de la masacre de los jóvenes de la Escuela Normal de Ayotzinapa, Guerrero, y en particular por el horror de los detalles con que se ha cometido esta acción. Comprendo su gran angustia, rabia y perplejidad: ¿Qué tipo de sociedad es esta que permite que gente aparentemente normal como nosotros cometa crímenes tan detestables? ¿Qué Estado es este que parece infiltrado hasta los huesos por la narcoviolencia? ¿Qué democracia es esta que invita a la resignación ante enemigos que parecen demasiado fuertes para poder ser combatidos, mientras se aprueban leyes que criminalizan la protesta pacífica (como las leyes bala y mordaza)? ¿Qué policía es esta que es cómplice con la desaparición forzada y tortura de ciudadanos inocentes? ¿Qué política educativa es esta que persigue a la educación rural y no permite que estos jóvenes sean héroes por la vida comunitaria que promueven, sino mártires por la muerte horrorosa que sufren? ¿Qué comisiones de derechos humanos son esas que existen en ese país, que están ausentes y omisas ante crímenes de lesa humanidad mientras que los verdaderos activistas de derechos humanos son asesinados? ¿Qué mundo es este que sigue elogiando el Presidente de la Republica por el simple y único "relevante" hecho de haber entregado al imperialismo la última riqueza del país que restaba en manos de los mexicanos? Sé que son demasiadas preguntas, pero lo peor que podría pasar sería que Ustedes se dejasen dominar por la magnitud de ellas y se sintieran impotentes. La contingencia de nuestra vida y de nuestra sociedad está dominada por dos emociones: el miedo y la esperanza. Sepan Ustedes que esta violencia desatada se dirige a su resignación, dominados por el miedo y, sobre todo, por el miedo de la esperanza. Los poderosos criminales saben que sin esperanza no hay resistencia ni cambio social. Sabemos que es difícil escapar al miedo en condiciones tan dramáticas como las que viven. El miedo no se puede eliminar, pero lo importante es no rendirse al miedo, sino tomarlo en serio para poder enfrentarlo y superarlo eficazmente, a eso le llamamos: Esperanza. Ustedes tienen la fuerza para salir de esta pesadilla, resistir a la ilegalidad y violencia institucionalizadas y construir una alternativa de esperanza. Para eso es necesario organización, respaldo popular y una clara visión no solamente política, sino también ética de una sociedad donde sea posible vivir con dignidad y en paz. Hay varias opciones y no me sorprende que Ustedes las contemplen todas. Sé que algunos buscan criar zonas autónomas, libres de opresión y de dominación. Tales zonas liberadas son fundamentales como espacio de educación, para que Ustedes muestren unos a los otros que es posible vivir de manera cooperativa y solidaria para que cada uno y cada una pueda decir: yo soy porque tú eres. Pero más allá de las zonas liberadas es necesario enfrentar el poder político, económico y cultural que oprime y aterroriza. Para eso hay dos opciones básicas y estoy seguro que Ustedes analizan las dos con mucho cuidado: por un lado, la lucha armada, por otro, la lucha pacífica, legal e ilegal. Si me permiten, les digo que la historia muestra que la primera es irrenunciable solamente cuando no hay otra posible alternativa. La razón es simple: la lucha armada difícilmente tiene respaldo popular si obliga a sacrificar la vida para defender la vida. La pregunta es ¿hay espacio de maniobra para una alternativa pacífica? Humildemente pienso que sí porque la democracia mexicana, a pesar de estar muy herida y violada, está en nuestro corazón, como bien demuestran sus luchas contra tantos y sucesivos fraudes electorales. Miren la experiencia del sur de Europa, donde el desespero de los jóvenes está dando lugar a innovaciones políticas interesantes, partidos-movimientos que asumen internamente los procesos de democracia participativa, donde los rostros conocidos son voceros de procesos de deliberación muy creativos en que participan miles de ciudadanos y ciudadanas. Y subrayo, ciudadanos y ciudadanas. Lamentablemente, en muchos países, y México no es excepción, las tradiciones de lucha tienen estilos bastante autoritarios, estilos machistas verticales. Hay que profundizar a ese nivel la democracia participativa, sobre todo cuando sabemos que las mujeres han sido tantas veces blancos privilegiados de los sicarios. ¿Será posible en México un nuevo partido-movimiento organizado por las jóvenes y los jóvenes? Ustedes saben la respuesta. Mejor aún, Ustedes son la respuesta. No va ser fácil porque los señores del poder van intentar criminalizar su lucha pacífica. Hay que asumir el costo de la resistencia pacífica aunque ésta sea declarada ilegal, asumir ese riesgo en nombre de la esperanza. El miedo de la ilegalidad tiene que ser enfrentado con la convicción de la ilegalidad del miedo. Ahí está la esperanza. Un abrazo solidario.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Descolonização da política indigenista: um convite ao diálogo intercultural de fato

Presidente da Funai de junho/2013 até setembro último, Maria Augusta Assirati propõe, em sua primeira manifestação pública após deixar o cargo, reflexão sobre uma política indigenista descolonial

por Maria Augusta Assirati — publicado 12/11/2014 18:10, última modificação 12/11/2014 18:40
http://www.cartacapital.com.br/blogs/blog-do-milanez/descolonizacao-da-politica-indigenista-um-convite-ao-dialogo-intercultural-de-fato-8943.html
Política de mãos dadas
Maria Augusta Assirati deixou o cargo da presidência da Funai em setembro de 2014 para dedicar-se a um doutorado na Universidade de Coimbra. Nessa foto, de Mário Vilela, participou da inauguração de um centro cultural na aldeia Moikarakô, do povo Kayapó, no Pará. © Mário Vilela/FUNAI
Por Maria Augusta Assirati*

Durante os últimos anos tive o privilégio de atuar junto à Fundação Nacional do Índio – Funai, buscando desenvolver uma ação indigenista em defesa dos povos indígenas no Brasil. O significado desse período, para mim, foi muito além de um ponto de passagem numa trajetória profissional. Desde o início de minha relação com povos indígenas, que se aprofundou e estreitou durante o tempo de Fundação, estive disposta a receber, acolher, e experimentar toda sabedoria que os indígenas se dispusessem a compartilhar durante nosso convívio. Isso é; optei sempre por estabelecer um diálogo – de fato – com esses povos. Essa escolha me permitiu transformar a experiência indigenista, e a experiência de Funai, numa verdadeira vivência.
Vivenciar o diálogo de fato (material, e não apenas formal) e o compartilhamento de sentidos com indígenas permitiu-me, ao lado de outras tantas satisfações, um alargamento de minhas possibilidades de interpretar o mundo. Isso demanda um exercício cotidiano de alteridade, e disposição para abandonar a zona de conforto das certezas preestabelecidas como pilares de certa concepção dominante de conhecimento. Apenas a partir dessa disposição e da concretização desse exercício é possível encontrar sentido para a vida em sociedade.
Dialogar de fato é considerar a lógica do outro, suas premissas e valores, seu lugar de fala. É atentar para a relatividade cultural, e vigiar contra o vício (colonial) de aceitar exclusivamente a racionalidade convencional hegemônica.
A modernidade, contudo, parece ter maior habilidade para conduzir ao extremo oposto desse exercício. Embora certos temas estejam no centro dos debates, é perceptível a impossibilidade de diálogo – de fato – sobre esses temas. É como se, ao adentrarmos no universo que compreende determinados assuntos, as pessoas passassem a falar línguas completamente distintas, sem qualquer compreensão mútua.
Certa vez, representando a Funai, estive numa explanação no Congresso Nacional sobre desenvolvimento sustentável no âmbito da política indigenista no Brasil.  Tratei das ações de fomento às atividades produtivas sustentáveis, dos processos voltados à conservação e recuperação ambiental de áreas degradadas, salientei os indígenas como agentes de proteção ambiental, tratei de acesso aos direitos sociais, cidadania, educação e saúde. Exibi números, gráficos, demonstrei êxitos e desafios. Ao final, um senhor que participava do evento desde o início, pediu a palavra e perguntou: “quanto é que ainda falta de terras para demarcar no estado tal?”.
A pergunta não me surpreendeu. Mas agravou minha descrença em relação à possibilidade de manter diálogos reais. Era mais um episódio reiterando as prioridades do modelo político, econômico, social, e cultural, que há muito tempo foi imposto com base em práticas coloniais, ocidentais, e liberais, em suas versões originais ou transmutadas de acordo com a evolução dos contextos sociopolíticos e socioeconômicos. Para além das muitas outras consequências perversas no espectro da dominação, da segregação, e da exclusão, esse modelo foi capaz de introduzir um abismo relacional entre dois universos: um do colonizador, que defende, conserva, e se retroalimenta do próprio modelo; outro do colonizado, que o rejeita e atua para transformá-lo. Esse abismo determina, inclusive, a impossibilidade de estabelecimento de diálogo material entre ambos. Sujeitos pertencentes a universos distintos conversam, mas não dialogam. No campo dos assuntos envolvendo povos indígenas, esse abismo parece ainda mais profundo.
Indigenismo no Brasil
A tarefa do indigenismo no Brasil nunca foi fácil. Em maior ou menor escala, de acordo com os objetivos em jogo e dos métodos de exclusão dos indígenas e suas circunstâncias para atingir esses objetivos, em diferentes momentos históricos, houve sempre certa incompreensão (para dizer o mínimo) envolvendo os motivos que movem pessoas, grupos, ou setores sociais a se dedicarem à defesa dos povos originários. Ao longo das diversas conformações de poder que se seguiram desde o início da colonização da América, esses povos foram considerados sempre “prescindíveis” frente aos imperativos do “progresso”.
À parte do discurso da negação da proteção aos índios por razões de viés fascista, não é incomum que se questione porque é que se dispensa tanta atenção, se mobilizam tantos esforços, ações, e agentes em torno de uma população numericamente inexpressiva frente à população total do país. Há, ainda, quem confronte a defesa de políticas específicas e diversas para proteger indígenas já “integrados” à sociedade dominante (ou “civilizados”, como alguns preferem afirmar). O contraponto a essa argumentação parece, à primeira vista, muito evidente. Mas essa obviedade talvez não consiga fazer-se presente em ambos os universos separados pelo abismo, e por isso, é preciso explicitar.
A resposta relaciona-se, primeiramente, à reafirmação e defesa de um modelo de sociedade: justa, solidária, fraterna, pluriétnica, democrática, e igualitária. De outro lado, mais objetivamente, o contraponto assenta em razões históricas. É fundamental trazer sempre à lembrança os números do processo histórico do extermínio das nações indígenas que se operou desde o início da invasão dos colonizadores. Estima-se que em 1500, a população indígena no território hoje correspondente ao Brasil, era de, pelo menos, 3 milhões de indivíduos. Em 2010, segundo último censo do IBGE, foi possível comprovar que os indígenas atualmente somam pouco mais de 800.000 indivíduos vivendo no país.
A redução demográfica demonstrada pelos números possibilita constatar a dimensão das consequências que o processo de colonização desencadeou. A sociedade ocidental, branca, colonizadora, baseou-se sempre numa arrogante e inquestionável certeza de seu direito de domínio absoluto em relação aos indígenas, alocando-os onde fosse mais conveniente, ou onde pudessem causar menos entraves aos seus interesses econômicos, desconsiderando seus territórios tradicionais, suas organizações sociais, suas línguas, crenças, e tradições; submetendo-os à escravidão, à violência física, cultural e moral; promovendo saques, torturas, estupros, e violações de todas as espécies. Verdadeiros genocídios.
Portanto, o mero dever de reparação da dívida histórica para com esses povos, parece motivo mais que suficiente para uma adequada promoção e proteção de seus direitos. Soma-se a isso a consideração de que a aniquilação (física ou cultural) de um povo indígena corresponde ao desaparecimento de uma sociedade inteira da face da Terra, à erradicação de toda uma cultura, de um conjunto inimaginável de saberes e conhecimentos trazidos de tempos e espaços ancestrais. Permitir o desaparecimento de um povo indígena é determinar a exclusão de uma cosmovisão, em nome de um “processo civilizatório” baseado em paradigmas ocidentais coloniais que, ultimamente, apenas fazem abrir alas à replicação em escala global de hábitos, conformando uma cultura global amorfa, homogênea, e artificial.
Além disso, é essencial não descuidar do fenômeno da sobrevivência da razão central – econômica – da fúria do homem branco contra os indígenas, qual seja, o interesse pela terra, que sempre mereceu lugar de destaque dentre as vigas que sustentam por séculos a ação anti-indígena. Esse fator tem, ultimamente, engendrado a configuração de um cenário mais difícil para a defesa dos indígenas. Dentre outras adversidades, ganha força uma dura e explícita ofensiva de agentes públicos e privados contra esses povos, na forma de oposição ao regime de demarcações de suas terras, de estratégias voltadas à desqualificação da atuação do órgão indigenista do Estado, e de confrontação aos modos de vida dos diversos Povos.
Ofensiva anti-indígena
Essa ofensiva, liderada por setores latifundiários ligados ao agronegócio, desenvolveu tentáculos e ocupou espaços institucionais, moldando formas concretas de expressão e ação política anti-indígena, extrapolando os limites do mero discurso político.
Duas dessas concretudes de ação anti-indígena verificadas nos últimos anos merecem nota. A primeira foi a expressiva adesão ao movimento para aprovação da PEC 215, que a despeito do vício formal de inconstitucionalidade da medida e do despropósito político no mérito de seu teor, chegou muito perto de lograr êxito. Outra materialização dessa ofensiva foi a paralisação dos processos administrativos de demarcação de terras indígenas, que tiveram suas tramitações interrompidas, sob o argumento da prevenção de conflitos fundiários. Isso, evidentemente, acabou por gerar reflexos também na ação do Judiciário em relação a processos envolvendo terras indígenas.
Os desdobramentos objetivos da ofensiva ruralista criaram uma atmosfera tão desfavorável ao avanço da implementação dos direitos dos indígenas
, que trouxeram desafios até então não enfrentados, já que pela primeira vez, desde a redemocratização, setores dos três Poderes do Estado passaram a manifestar-se de forma inequívoca em favor da revisão do arcabouço normativo que estabelece direitos a essas populações.
Conferência Nacional – resistir e descolonizar
A atuação do movimento indígena, das organizações indigenistas, de outros movimentos sociais, e de grupos de defesa, foi fundamental no estabelecimento de uma resistência que impedisse o avanço desse movimento. Por conseguinte, até o presente momento, não se efetuou qualquer alteração normativa de dispositivos que garantem direitos indígenas. No entanto, essa batalha ainda não teve um desfecho. E os espaços que permitam a realização desse debate, devem encarados como arenas de disputa de posições e de ações em busca de uma intervenção política que afaste os riscos de um retrocesso em relação ao que, a partir da Constituição Federal de 1988, se conseguiu conquistar em termos de direitos das populações indígenas.
Nesse sentido, é bom ter em mira a I Conferência Nacional de Política Indigenista, que pode se constituir num ambiente propício para a realização de um diálogo material com os povos indígenas e para a pactuação de compromissos consubstanciados em diretrizes de sua relação com Estado. A Conferência pode traçar rumos de atuação futura à luz de uma perspectiva descolonial, estabelecidos a partir da visão e da voz dos próprios indígenas.
A propósito disso, numa situação em que estava a apresentar numa reunião de governo a proposta da Conferência, e a discorrer sobre sua concepção, eixos de trabalho, objetivos, e finalidades, eu falava da necessidade de tratamento do tema sob a perspectiva de descolonização, quando questionaram “o que queríamos dizer com isso?” Fiquei pensativa por um instante, e tornei a sentir-me ante o abismo. Ensaiei mentalmente mil coisas que podiam ser ditas ante aquela indagação. E, no fim, reconduzi a discussão a um ponto mais operacional, pois entendi que não fazia sentido tentar atravessar o abismo naquele momento.
Definições teóricas de lado, o fato é que é evidente demais para ser negado, o caráter colonial que define as relações em nossa sociedade. Esse caráter que invisibiliza e anula o outro, o diverso. Que silencia a voz do outro, sempre que tenta ultrapassar os limites daquilo que é, hegemônica e unilateralmente, definido como importante, prioritário, ou possível. Na modernidade, seguem em reprodução as formas coloniais de estabelecimento das relações sociais. E seguem se revitalizando as hierarquias sociais fundadas em distinções opressoras, que para muito além da caracterização da sociedade de classes, se moldam nas desigualdades étnico-raciais, por exemplo, alimentando continuamente, por meio de processos culturais-ideológicos, a subordinação entre periferias e centros nas múltiplas dimensões sociais.
É inadmissível que se continue negando a diversidade, ao enxergar, compreender e explicar o mundo. Essa negação é a base do princípio colonial que, por isso mesmo, opera a exclusão e a marginalização de tudo o que é diverso do (e, portanto, estranho ao) universo dominante. Desde o período dos sistemas coloniais, se entendia necessário levar a civilização e a sabedoria para povos selvagens e ignorantes da América, como se ‘a alteridade’ fosse uma página em branco a ser preenchida pelo saber e cultura ocidentais. Os processos de expansão colonial foram operados por homens europeus heterossexuais, e, portanto, conduzidos a partir de seus preconceitos culturais, que contribuíram para a conformação e consolidação de estruturas de desigualdade sexual, de género, de classe e raciais.
A pergunta que se coloca nesse instante é por que razão, passados mais de 500 anos, não se consegue conceber outra forma de olhar para o outro, e consequentemente, de olhar para o mundo? Infelizmente, essa compreensão foi tão pouco confrontada e refutada, que foi capaz de construir sujeitos que assimilassem e reproduzissem o pensamento colonizador, naturalizando, inclusive, essas sobreposições culturais.
Passado o fim das administrações coloniais, nos vemos ainda presos a um modelo sociopolíticos que articula diversas formas de exploração cultural, política, sexual, e econômica de grupos étnicos.
Descolonizar as relações
Qualquer arranjo político, social, ou econômico, portanto, que venha a ser projetado para funcionar no sentido da justiça social, demanda um exercício prévio de descolonização. Descolonização de nossa sociedade, de nossa política, de nossa economia, e principalmente, antes de tudo, de nosso pensamento. É preciso desconstruir essa concepção relacional (epistêmica) onde o válido, o correto, o possível, o bonito, o aceito, e o permitido são estabelecidos a partir de apenas um (excludente-monocultural) ponto de vista. Isso é; sob a óptica do homem, branco, proprietário, heterossexual, escolarizado, etc. Nossa sociedade é plural. Portanto, comporta e deve assegurar que essa pluralidade cultural seja expressa nas múltiplas dimensões da vida em sociedade, tais como a política, a educação, a economia. Possibilitar essa expressão é parte fundamental do processo de descolonização.
Partindo-se de tais premissas, e apostando na viabilidade de rever, no rumo da descolonização, o tema dos povos indígenas no Brasil, é possível refletir sobre desafios da política indigenista. E nesse sentido apontar, procurando contribuir com sua valorização, caminhos de debate sobre a relação desses povos com o Estado e com sociedade.
Esse exercício permite duas abordagens acerca do que é possível avançar. A primeira delas, mais progressista, parece mais profícua no sentido de abrir espaço para a emancipação real dos povos indígenas. Isso, no entanto, demandaria um prévio aprofundamento de debates complexos como a própria relação indígena com os Poderes Legislativo e Judiciário, e de temas como o pluralismo jurídico, e a multiplicidade de economias numa mesma ordem, por exemplo. Para tanto, acho que ainda não estamos preparados nesse momento. Mas há sempre uma abordagem mais conservadora que, se por um lado é mais tímida, por outro, cabe dentro dos limites que a atual conjuntura, política, social e econômica, encerra. É bom que se diga, no entanto, que levar a efeito ações orientadas por essa segunda abordagem já representará um avanço em relação ao que está posto; já que nosso ordenamento jurídico é relativamente avançado no que se refere à relação com povos indígenas, exigindo, ainda, contudo, o esforço de concretização desse modelo por meio de políticas públicas. Por isso, é preciso que nos concentremos em tarefas ainda não cumpridas, mas que, no âmbito da atual conjuntura, são factíveis e possíveis de viabilização pelo Poder Público, sobretudo Federal, para fortalecer a ação indigenista do Estado, olhando, ouvindo, e considerando os indígenas e suas circunstâncias específicas na formulação e implementação de políticas públicas.
Desmistificar o debate – o que realmente está em jogo
A primeira tarefa que se coloca para transformar a política indigenista no Brasil, ainda no âmbito dessa perspectiva conservadora, é desmistificar o debate sobre a terra. Digo desmistificar porque o tema é sempre encoberto por uma série de mitos. O mito de que há ‘muita terra para pouco índio’, o de que terras indígenas são improdutivas, que os processos de demarcação da Funai são viciados, e por aí vai. Grande parte das pessoas que disseminam o terror anti-indígena reproduzindo esses mitos, não tem ideia de como funciona um processo de demarcação, nem do que significa uma ocupação tradicional.
Outra afirmação recorrentemente utilizada para contrariar a continuidade das demarcações é o fato de temos hoje 13% de áreas no território nacional reconhecidas como terras indígenas. Isso é verdade? Apenas em parte. Pois, cerca de 8% do total de áreas regularizadas em favor dos indígenas não está em sua posse plena. Significa que muito mais do que 87% das terras que eramoriginalmente ocupadas por indígenas, permanecem em mãos não indígenas e boa parte desse percentual de terras (por razões de variadas ordens, inclusive jurídicas) jamais tornará a permitir ocupações tradicionais indígenas. Ademais, quase 99% das áreas demarcadas no Brasil concentram-se na Amazônia Legal, levando cerca de 40% da população indígena dos estados do sul, sudeste, e parte do centro-oeste e nordeste a viverem em pouco mais de 1% da superfície demarcada restante. Isso sem focar no fato de que quase a metade das terras no Brasil se concentra nas mãos de 1% da população; sem entrar no mérito do brutal processo de colonização e (des)ordenamento fundiário da Amazônia; sem discutir esbulho, grilagem, falsificação de títulos, invasões ilegais e ilegítimas (que se distinguem de ocupações, retomadas, e empates) de terras.
No do Mato Grosso do Sul, por exemplo, onde a insustentável situação de confinamento territorial indígena impõe, sobretudo ao Povo Guarani Kaiowá, e provoca todos os dias consequências como a desagregação, a doença, a violência, e a morte, as terras indígenas regularizadas ocupam 1,64% da superfície total daquele estado. Ali vivem 149 indígenas por km², contra apenas 6,86 não indígenas por km². Nunca me convenci de que as demarcações de terra naquela área inviabilizam atividades produtivas ou o crescimento econômico da região. No entanto, durante minha gestão, não foi possível avançar em nenhum processo de demarcação terra indígena no Mato Grosso do Sul.
As demarcações das terras indígenas
Enfrentar a desconcentração de terras no Brasil, concretizar a reforma agrária, concluir a demarcação das terras indígenas, operar a regularização fundiária dos demais territórios tradicionais, são ações indissociáveis da promoção de justiça, da desconcentração de renda e riqueza no país. É claro que é possível estabelecer espaços de diálogo sobre a terra e sobre terras indígenas no Brasil. Mas precisamos dialogar de fato, materialmente, sobre o assunto. Isso significa ouvir verdadeiramente os indígenas, os sem terra, agricultores familiares, assentados da Reforma Agrária, os quilombolas, ribeirinhos, seringueiros, e outras comunidades.
Não dá para partir sempre da abordagem da propriedade. Não dá para sentarmos na mesma mesa para ‘disputar’ a terra, caciques indígenas e empresários do agronegócio, grandes produtores de cana, soja, e gado, latifundiários respaldados e subsidiados por um forte aparato dos poderes político e econômico. A evidente assimetria de poder e forças entre os interlocutores de um espaço assim formatado, inviabiliza por completo as chances de realização (e sucesso) de diálogo. Dito em outras palavras, esse tipo de ambiente permite apenas um diálogo colonial opressor, onde quem tem instrumentos de força impõe aos fracos desarmados a sua razão, alcançando quase que invariavelmente posição vitoriosa. Portanto, se o caminho vislumbrado para tratar conflitos fundiários é o diálogo, é fundamental que se institua instâncias descoloniais de debate. Onde se discuta de forma transparente tudo o que é necessário, se busque estabelecer em consenso sobre aspectos que levem à melhor forma de garantia dos direitos envolvidos; mas que se demarque! A demarcação das terras é um dever do Estado e um direito dos povos indígenas.
Descolonizar pela promoção efetiva de direitos
Ultrapassando o aspecto fundiário, tem que se tratar da Educação, que pode ser um real indutor do processo de descolonização. É urgente uma educação descolonial. Atuar para a inclusão da óptica indígena nos processos formais de formação de estudantes indígenas e não indígenas. Como é que podemos ter escolas públicas e privadas de ensino fundamental e médio que ainda abordam a temática indígena sob o manto do estereótipo? Referem-se ao índio (no singular; ignorando a existência de mais de 300 diferentes Povos no país), como um ser distante que vive no meio da selva a cantar e dançar. Numa abordagem quase folclórica sobre as culturas indígenas, que apenas confirma a prevalência dessa epistemologia colonial que negligencia ou desqualifica o conhecimento indígena, desconsiderando-o como elemento cultural e científico de conhecimento.
As Universidades, como regra, ignoram o tema indígena em áreas de formação como o direito, por exemplo, formando operadores de direito que sequer tomaram conhecimento da existência de dispositivos constitucionais que versam sobre a matéria. Um país com a diversidade sociocultural do Brasil precisa de instituições de ensino superior que formem pessoas a partir da visão da diversidade. Instituições que contem com professores, cientistas, pesquisadores, interlocutores indígenas, mesmo em se tratando da educação formal de segmentos não indígenas da população. Isso é retirar os indígenas do lugar de objeto de pesquisa e leva-los ao lugar de produtores de conhecimento.
É inconcebível também, diante dos conhecimentos tradicionais indígenas e potenciais da habilidade indígena para o manejo sustentável dos recursos da biodiversidade, a inexistência de programas robustos de fomento em ciência e tecnologia ao desenvolvimento de atividades tradicionais. Seria muito enriquecedor apostar nos centros de saberes tradicionais, como espaços que permitam aos indígenas o gerir processos valorizados de transmissão e compartilhamento desses conhecimentos, a partir de métodos de aprendizagem transversais às mais diversas áreas científicas de conhecimento. Sobre esse tema, é de se lamentar, por exemplo, que o projeto que dispõe sobre acesso ao patrimônio genético e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade tenha sido enviado ao Congresso Nacional sem que sequer tenha sido promovida a consulta aos povos indígenas.
Todas essas iniciativas, é claro, devem articular-se sem prescindir da discussão sobre o sistema próprio de educação escolar indígena, respeitando o direito ao ensino em língua indígena, a formação e contratação de professores indígenas, e a liberdade de expressão de todas as especificidades culturais de cada povo no âmbito dos processos pedagógicos.
Na Saúde, olhando para as diversas realidades indígenas de norte a sul do país, é preciso provocar as redes do Sistema Único a uma forma criativa de atenção. A saúde, como direito humano fundamental, deve sempre ser objeto de preocupação pública. Precisamos, sim, de Mais Médicos. Mas precisamos também, de mais profissionais dispostos a atuar com base num conhecimento multidisciplinar, a assumir o compromisso indigenista; profissionais vocacionados ao convívio nas aldeias, e abertos ao intercâmbio no que se refere às práticas tradicionais indígenas de cura. É preciso recuperar, nesse sentido, a ‘saúde achada na rua’ comprometida com o bem viver em seu sentido mais amplo. É fundamental a articulação e interlocução constante entre as unidades públicas de saúde e as unidades da Funai, para resgatar o sentido social de uma institucionalidade sanitária baseada em valores e princípios que contribuem com o desenvolvimento em comunidade e em sociedade, como equidade e justiça social. Na construção dessa engenharia inovadora, precisamos que o Sistema Único de Saúde internalize a preocupação com a atenção à saúde indígena, e consolide uma estrutura capaz de responder aos complexos desafios que essa tarefa impõe, no âmbito da atenção básica, mas também da média e alta complexidade, querendo sempre extrapolar os contornos da lógica da medicina ocidental convencional.
Enxergar e enfrentar a violência contra os indígenas
Outro ponto sensível e inadiável no âmbito da transformação da política indigenista pública é o enfrentamento à violência contra os indígenas. A primeira providência para tanto, é reconhecer a existência dessa violência e torna-la visível, ao invés de jogá-la para debaixo do tapete. Isso exige trabalho no sentido de reunir e processar dados, produzir informação sobre essa violência, e com base num diagnostico preciso, reagir com uma política robusta de promoção à segurança dos indígenas. A tarefa de coordenação e articulação desse arranjo é do governo federal, que deve reunir União, estados e municípios, por meio de instituições, não só ligadas à área de segurança pública, mas também de promoção de direitos, de políticas sociais de prevenção à violência.
Gestão descolonial dos territórios
A dedicação e o cuidado com os mecanismos de respeito cultural devem estar presente em todos os eixos de atuação. No investimento em fomento para a construção e recuperação de casas tradicionais, rompendo as barreiras traçadas pelos programas habitacionais convencionais, que não atendem aos indígenas com a especificidade devida; no desenvolvimento de incentivo real às atividades produtivas indígenas, aliando a preocupação na inclusão de seus produtos nas cadeias produtivas, com o respeito às particularidades decorrentes de suas organizações sociais próprias. Nesse sentido, Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial das Terras Indígenas – PNGATI, construída de forma participativa com representantes indígenas – a partir de diálogos materiais – figura como instrumento mobilizador da inversão dos lugares de domínio na gestão das terras indígenas, ao conferir a cada Povo Indígena o protagonismo no planejamento e implantação do projeto de gestão de seu território. Esses planos, previstos na Política, podem ser instrumentos importantes para que as comunidades indígenas planejem e executem a organização de seus territórios, as formas de uso dos recursos naturais, as alternativas para o melhor desenvolvimento de suas atividades produtivas, a partir do paradigma da valorização cultural, da reafirmação de suas organizações próprias, e da conservação ambiental. Contudo, a PNGATI ainda representa um compêndio de diretrizes programáticas para a gestão das terras indígenas, exigindo um compromisso político mais robusto para que cooperações interinstitucionais possam tirá-la do papel e efetivá-la a partir de ações concretas em escala mais geral.
Participação indígena é indispensável
É inerente, ainda, a uma rediscussão da relação entre o Estado e os povos indígenas, a integral participação desses povos e sua consequente gama de especificidades, nos ciclos de formulação, implementação e avaliação de políticas públicas. Criar mecanismos para uma participação social indígena efetiva, respeitando as especificidades de mais de 300 Povos, não é uma missão simples de ser cumprida. Mas talvez possamos começar pelo caminho mais simples, garantindo a esse segmento os espaços participativos convencionais, já institucionalizados no tratamento de grande parte das políticas sociais.
Exemplo de como o Estado brasileiro está ainda em débito para com a participação social indígena, é o fato de que apenas em 2014, foi convocada (esperamos que se concretize) a primeira conferência nacional para tratar da política indigenista, política essa que, no mesmo ano de 2014, ainda não conta com um Conselho instituído. A partir do Governo Lula, houve grande investimento na criação, ampliação, incremento, e consolidação das instâncias de participação social.
Hoje, quase todas as políticas sociais contam com Conselhos participativos, como o Conselho de Políticas para as Mulheres, o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial, o Conselho de Políticas LGBT, o Conselho da Criança e Adolescente, dentre outros. A política indigenista conta somente com uma Comissão Nacional, demonstrando o lugar periférico que lhe é destinado no rol das políticas sociais.
Ainda no que concerne ao tema da participação, nunca é demais frisar a necessidade de se colocar em prática o efetivo cumprimento da Convenção 169 da OIT, vigente no Brasil há mais de 10 anos. A aplicação dessa norma parece demandar a combinação e articulação de diversos arranjos que garantam o respeito à diversidade e as especificidades dos mais de 300 Povos aos quais se destina, dentre os diversos direitos ali previstos, o da consulta livre, prévia, e informada. O direito à consulta tem sido muitas vezes, desconsiderado ou transfigurado. Tida como uma ação acessória, secundária, ou até desnecessária em relação à intervenção que irá afetar o povo ou a terra indígena, a consulta, quando realizada, tem equivalido ao mero cumprimento burocrático de uma obrigação protocolar. Não dá para realizar consulta, entretanto, como a subir um inevitável (e apenas por isso observável) degrau na escada da viabilização de empreendimentos. Durante esses processos (e, também, antes e depois) o que está em questão do outro lado do abismo, são vidas de pessoas que compõem uma comunidade e um povo indígena. Vidas que serão modificadas para sempre em função dessa intervenção externa. Não dá para encarar o cenário de intervenções que afetam os indígenas como se eles fossem um empecilho, uma dificuldade, ou um fator de atraso no cronograma de um empreendimento, quando, na verdade, essa ação externa é que interrompe, modifica, dificulta, ou impede a continuidade de uma série de dinâmicas da vida cotidiana das comunidades indígenas impactadas.
Importa sempre repetir que uma efetiva política indigenista pública demanda a existência de um órgão indigenista plenamente capaz de coordená-la e implementá-la. A Funai tem dado, já há algum tempo, sinais inconfundíveis de que é necessário um real investimento para garantir a estrutura adequada ao cumprimento de sua missão institucional indigenista. Dentre outras coisas, essa estrutura depende de um orçamento e de um quadro de servidores qualitativa e quantitativamente compatível com a possibilidade de prestação de um serviço público satisfatório. É imprescindível que a atuação da Funai seja respeitada, e respaldada com apoio político-institucional. Deve lhe ser permitida a realização de seu trabalho com a finalidade de atenção integral aos indígenas, e não a partir da necessidade de viabilizar junto a esses povos, projetos, objetos e ações integrantes de agendas diversas que competem a outros órgãos públicos. Isso implica em abandonar a concepção da Funai enquanto órgão responsável pela ‘pacificação’, ‘assimilação’ e ‘integração’ dos povos indígenas aos espaços-tempos hegemônicos.
Transcender o campo da “não-relação” com os povos indígenas
O que temos assistido, no entanto, corresponde a uma não-relação de setores centrais do Governo com a pauta indigenista, que tem como causa e efeito, a um só tempo, um não-diálogo com os povos indígenas. As principais questões relacionadas aos seus direitos, os projetos de impacto em suas vidas, as formas de gestão dos territórios que lhes dizem respeito, não são, como regra, objeto de diálogos materiais – de fato. Grandes iniciativas públicas centrais à viabilização do que tem definido um projeto ‘de crescimento para o país’ têm sido planejadas e implementadas com base numa concepção monolítica de desenvolvimento.
Em 2015, contudo, terá início um novo ciclo de governo. O que se espera em relação a esse assunto, é que nos próximos quatro anos soprem ventos de coragem e determinação para que se inicie um processo de descolonização da relação com os povos indígenas no Brasil. Que, a partir de diretrizes que podem ser definidas na I Conferência Nacional de Política Indigenista, possamos levar a efeito uma política pública indigenista capaz de ouvir e fazer ouvir, de olhar e fazer olhar, verdadeiramente, os indígenas, buscando retirá-los dessa invisibilidade exclusiva e opressora e reconhecê-los como sujeitos ativos e imprescindíveis na concretização de soluções voltadas a um projeto de desenvolvimento, econômico, social, e ambiental, efetivamente sustentável.
Tudo o que aqui está dito pode parecer evidente demais para alguns. Mas conforme já disse, essa obviedade precisa ser repetidamente explicitada para que as vozes do nosso mundo se façam ouvir do outro lado do abismo.
*Maria Augusta Assirati foi presidente interina da Fundação Nacional do Índio de junho de 2013 a setembro de 2014. Esteve à frente da Diretoria de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável da Fundação a partir do ano de 2012. Afastou-se do cargo e atualmente cursa o Programa de Doutorado Direito Justiça e Cidadania no Século XXI, no Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

UnB homenageia Victor Nunes Leal no seu centenário*

JOSÉ GERALDO DE SOUSA JUNIOR - Professor e ex-diretor (1999-2003) da Faculdade de Direito, foi reitor da Universidade de Brasília (2008-2012) Em abril, o Supremo Tribunal Federal aprovou a colocação do busto de Victor Nunes Leal na sala própria da mais alta Corte de Justiça de nosso país. Uma justa e corretíssima homenagem a uma das mais proeminentes figuras públicas do Brasil, advogado, jurista, sociólogo, político, escritor, professor, foi ministro naquele tribunal, não obstante a maneira brutal, em tempos de obscurantismo, como foi interrompida a sua judicatura no STF. Nascido em 11 de novembro de 1914, este é, portanto, o ano do seu centenário e, certamente, essa é a razão que motiva a decisão de tão eloquente celebração. De algum modo, reconhecimento e desagravo. Agora é a UnB quem presta tributo a um de seus fundadores. Em sua última reunião, no mês de outubro, o Conselho da Faculdade de Direito da UnB aprovou atribuir ao edifício que a abriga, o nome do notável jurista. O STF soube cumprir com o dever de honrar aquele que foi um de seus mais destacados membros, suficientemente profícuo para inscrever na história substantiva de nosso tribunal constitucional, no curto tempo em que nele teve assento (de 1960 até 16 de janeiro de 1969, quando foi afastado por força do Ato Institucional nº 5 (AI-5), de 13 de dezembro de 1968), um legado no qual se inclui, além de votos magistrais, a criação e o primeiro procedimento de institucionalização das denominadas súmulas da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Agora é a vez da Faculdade de Direito da UnB, que teve Victor Nunes não apenas como um de seus mais brilhantes professores, mas um protagonista que se mostrou imprescindível no convencimento do presidente Juscelino para a criação da própria universidade. Roberto A. Salmeron, em seu livro A universidade interrompida: Brasília 1964-1965 (Editora Universidade de Brasília, Brasília, 1ª edição, 1999; 2ª edição, comemorativa do cinquentenário da universidade, 2012) faz a crônica desse protagonismo. Mas essa participação ganha mais intensidade na própria narrativa de Victor Nunes lançada em seu discurso de retribuição à homenagem que a universidade lhe prestou em 1984, ao lhe conferir o título de Professor Emérito: "Oswaldo Trigueiro, em almoço comigo e Cyro dos Anjos, lembrou um episódio que poderia influir no espírito do presidente, o do epitáfio de Thomas Jefferson, por ele mesmo escrito. No seu breve texto, o grande estadista omitiu ter sido secretário de Estado e presidente de seu país, fazendo constar somente que havia fundado a Universidade de Virgínia, além de ter escrito a declaração da independência dos Estados Unidos e a lei de liberdade religiosa do seu estado. Fui incumbido de levar esse estímulo ao presidente Juscelino. O presidente, ao ouvir o recado de Oswaldo Trigueiro, deu um salto na cadeira. Na realidade, ele ouviu com muito interesse e compostura e comentou: "Será que o Clóvis (referia-se ao Ministro da Educação) pode ter esse projeto concluído antes da mudança da capital?". Estávamos por volta de outubro de 1959. Respondi que, autorizado por Cyro dos Anjos, tudo já tinha sido feito por Darcy Ribeiro, com um grupo muito competente de professores e cientistas. E assim a mensagem que acompanhou o projeto da Universidade de Brasília foi assinada pelo presidente Juscelino na nova capital, no dia da sua inauguração, em 21 de abril de 1960. A outorga do título de Professor Emérito representou, sem dúvida, uma distinção condigna do justo reconhecimento a tão relevante contribuição. Mas cabia, ainda, à Faculdade de Direito da UnB prestar o devido tributo àquele que foi um de seus docentes mais brilhantes, seja como professor das cadeiras de Introdução à Ciência Política e de Direito Constitucional, seja como coordenador do Curso-Tronco de Direito, Economia e Administração, embrião da atual Faculdade de Direito, fazendo dele, portanto, o seu primeiro dirigente. Jurista, professor e escritor, o autor de Coronelismo, enxada e voto pertence àquela estirpe que sabe exercitar a compreensão plena do ato de interpretar a realidade e proferir juízos acerca de nosso agir no mundo, rejeitando a falsa oposição entre o político e o jurídico, ao entendimento de que, para se realizar, "a Justiça não deve encontrar o empecilho da lei". Victor Nunes Leal, com efeito na UnB e no Supremo, levou, em significativa antecipação, o direito a andar pelas ruas porque, "quando anda pelas ruas, colhe melhor a vida nos seus contrastes e se prolonga pela clarividência da observação reduzida a aresto". Quando se registra 50 anos do golpe que vitimou também Victor Nunes, o simbolismo do ato aprovado pela Faculdade de Direito da UnB é marca de memória. Presta-se a ressignificar o legado de tão formidável contribuição à história da UnB, de sua Faculdade de Direito, da cidade que as acolhe e da democracia brasileira. *Artigo publicado em 17/11/2014 no jornal CORREIO BRAZILIENSE,17/11/14, Seção Opinião, pág. 11

sábado, 15 de novembro de 2014

Memória da ditadura ajuda jovens a ter dimensão real do valor da democracia, diz ex-reitor da UnB

Sexta-feira, 14 de novembro de 2014 às 20:36 (Última atualização: 14/11/2014 às 21:19:57) Memória da ditadura ajuda jovens a ter dimensão real do valor da democracia, diz ex-reitor da UnB Ditadura Muitos jovens que foram às ruas protestar por mais democracia e mais direitos em junho passado reclamavam que o Brasil estaria vivendo uma “ditadura”. Será que eles tinham razão? Não é o que pensa o jurista José Geraldo de Souza Júnior, ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB). Para ele, o Brasil vive hoje uma democracia legítima e avançada, aliás, uma das mais avançadas mundo, ressalta. Situação muito diferente da que existia no País até recentemente, 29 anos atrás, quando, de fato, havia uma ditadura. Mas o que é uma ditadura? Do ponto de vista legal, entre muitos outros, é uma anomalia. Representa, antes de tudo, um estado de exceção, onde o poder – que em uma democracia passa por instituições livres e regulares, pelas eleições e pela possibilidade de alternância – tem um processo de governança do Executivo, Legislativo e do Judiciário que não se subordina nem aos princípios da legitimidade da Constituição e nem às leis que dela derivam. “A inibição da palavra é uma característica forte das ditaduras”, enfatizou o ex-reitor da UnB e jurista, José Geraldo sobre o cerceamento à liberdade de informação e expressão na ditadura. Foto: divulgação/Gabinete Digital. “A inibição da palavra é uma característica forte das ditaduras”, enfatizou o ex-reitor da UnB e jurista, José Geraldo sobre o cerceamento à liberdade de informação e de expressão durante a ditadura. Foto: divulgação/Gabinete Digital. Foi o que aconteceu no Brasil há 50 anos, quando um golpe militar suspendeu todas as garantias individuais, suprimiu o direito de realizar qualquer manifestação contra o regime – fosse nas ruas, nas artes, no jornalismo, no cinema ou na música – e institui uma ditadura que se arrogava o direito de entrar nas casas dos cidadãos a qualquer hora do dia ou da noite e prender pessoas sem mandato, sem acusação formal e sem processo, para submetê-las a torturas e outros meios degradantes a fim de obter informações e criar um quadro de terror, de obediência e medo cegos. Em entrevista exclusiva ao Blog do Planalto, o jurista explicou como foi a mais recente intervenção militar na política brasileira, que durou 21 anos. O golpe de 1964 foi fundado na suspensão das eleições livres e legítimas, afirma Geraldo. A partir deste momento, os brasileiros perderam o direito de eleger presidentes, governadores e prefeitos. Esses cargos passaram a ser indicados por uma cúpula de militares. “Um aparato civil-militar deu o golpe, destituiu um presidente legitimamente eleito [que foi substituído por um general indicado por esse grupo] e subordinou a Constituição a uma estrutura esdrúxula de determinação supraconstitucional que passou a ser denominada, na nossa cultura, de ato institucional. Eram atos que conferiam a esses golpistas a competência auto-atribuída de exercer o poder político e subordinar [a eles] as outras instituições da República. Isso implicou em suspender a crítica periódica do poder por meio das eleições, e também atrelou os setores administrativo, legislativo e judiciário aos fundamentos autoritários desse sistema de poder”, afirma o professor de Direito. Atos institucionais substituem a Constituição O Ato Institucional Nº 1 inaugurou a ditadura, subordinando os poderes a um grupo de militares. Outros atos se seguiram a ele, como o AI-5, em 1968, considerado um golpe mais duro dentro do próprio golpe. Esses atos, sem base jurídica, baseados em valores abstratos, extraídos da retórica da civilização, mas que na ação política dos que deram o golpe, impunham uma agenda que abria caminho para um capitalismo hegemônico, vigente naquele momento, critica o professor. Em detrimento do trabalho, com restrição aos movimentos sociais, foi instalado um Sistema de Segurança Nacional, que se forma na base de um ato institucional. “Em nome da segurança nacional, estava liberada a tortura, a censura, o assassinato político”, diz. Na imprensa, havia a submissão prévia de todas as matérias a serem publicas. “Era um sistema de censura institucionalizado e com característica de controle policial, porque havia um organismo [específico] da Polícia Federal para o sistema de entretenimento – censura a teatro, cinema, programas de TV de entretenimento ou culturais. Do ponto de vista da comunicação, foi comum assistirmos ao espetáculo de grandes jornais circularem com espaços em branco ou poesias no lugar do noticiário, ou receitas culinárias ocupando espaço de matérias de opinião. Como forma de resistência, as redações publicavam o estado do clima, porém com uma discrição do tempo que era mais simbólica do que natural. Muitas vezes sob um sol esplendoroso de um verão brasileiro, a informação sobre o tempo era de que o céu estava tenebroso, com muitos trovões e raios – e nós entendíamos que era a exacerbação do princípio da tortura”, conta o ex-reitor da UnB. “A inibição da palavra é uma característica forte das ditaduras”, explica Geraldo. Representatividade Política Uma parte do Legislativo foi mantida funcionando, de forma mutilada, sob controle desse grupo. Todas as legendas partidárias foram suprimidas e criado um bipartidarismo forçado, que aglutinou de forma artificial a antes ampla e variada gama de partidos de oposição no extinto Movimento Democrático Brasileiro (MDB), enquanto os representantes do governo se abrigaram na também extinta Arena. Dessa forma, o Legislativo não correspondia à representatividade popular. No Congresso, foram elaboradas artimanhas para manter o controle e a maioria governamental em todo o processo legislativo, por meio de expurgos e cassações de desafetos, da proibição de tratar de determinadas matérias e pela indicação de membros do parlamento não-eleitos, a quem a linguagem popular cunhou depreciativamente de “parlamentares biônicos”. “Esses biônicos tinham mandato, mas não tinham sido eleitos. E compunham maiorias de conveniência para manter interesses do poder em exercício em uma estrutura de exceção”, lembrou. Judiciário O mesmo ocorreu no Judiciário, submetido a processos idênticos. “Indicações ligadas à fidelidade ideológica e, quando certa independência se desenvolvia, por meio destes mecanismos supraconstitucionais, os atos institucionais, se exercia o controle do Judiciário. Ou se proibia o exercício do poder judicial por uma série de salvaguardas de direitos e das garantias, como a proibição de fornecimento de habeas corpus quando as detenções, prisões e as restrições de direitos eram indicadas como de interesse da ´vontade revolucionária’, com muitas aspas”, lembra José Geraldo. De acordo com ele, o Supremo Tribunal Federal foi objeto de intervenções violentas, com expurgos por meio de aposentadorias compulsórias, com base em atos institucionais, de membros que o compunham e tinham uma visão teórica e política mais aberta em relação ao papel de conhecimento e aplicação do Direito. Um sistema de acumpliciamento em cascata permitiu que as eleições de governadores e prefeitos fossem substituídas por indicações a gosto dos ditadores “num modelo de feitoria” subserviente ao sistema militar, ressalta José Geraldo. Nesse sistema, estavam em pleno vigor os famigerados AI-1 e AI-5. Expurgos Os expurgos ocorreram também na administração pública federal, principalmente em ministérios como o Itamaraty e o da Educação – inclusive nas universidades e, entre elas, na Faculdade de Direito da UnB. “No dia 11 de novembro tivemos o centenário de nascimento de Victor Nunes Leal, um dos fundadores dessa universidade, que foi aposentado compulsoriamente pelo AI-5, porque era um juiz que fazia uma leitura aberta, ampla, autônoma [do Direito], como incumbe constitucionalmente a qualquer magistrado, mas que no contexto do estado de exceção fica absolutamente inibida”, destaca o professor. Centenas de casos semelhantes ocorreram em instituições de ensino de todo o País, que privou toda uma geração de conviver com intelectuais como Oscar Niemeyer, Darcy Ribeiro, Eulália Lobo e Maria Yedda Linhares. Outra centena de alunos foi expulsa das universidades ou presa. Sem esquecer a tortura e o assassinato. Na UnB, por exemplo, era proibido aos alunos formarem grupos de mais de três pessoas e, em muitos momentos, houve invasão de tropas e policiais postados nas portas das salas. A esses policiais, era dado o poder de prender qualquer um, sem mandato e sem processo. Retomada da cidadania “Do ponto de vista constitucional da cidadania, as prerrogativas mantidas eram quase as mesmas de hoje, embora hoje tenhamos uma democracia mais participativa e menos representativa. Mas garantias individuais e sociais são as mesmas. O habeas corpus, o mandado de segurança, a inviolabilidade do domicílio, a liberdade de expressão, de reunião, de opinião. Mas sob a vigência do estado de exceção, atos institucionais, Lei de Imprensa, Código Penal vinculado ao Sistema de Segurança Nacional e a própria Lei de Segurança Nacional, essas garantias eram suspensas se as razões de repressão se dissessem apoiadas no interesse da segurança nacional. Então, na prática, não havia nenhuma garantia dessas. O que havia eram os sequestros ‘legalizados’ de pessoas”, explica José Geraldo. O domicílio, deixava de ter o caráter de inviolabilidade, era totalmente devassável, independentemente de ordem judicial ou de mandado. Assim foi durante todo o regime até que se recuperasse a democracia, com a reconstitucionalização do País e o protagonismo do poder político devolvido ao povo, como seu titular, e exercitado no modo como a Constituição de 1988 estabeleceu. Entre eles, a volta das eleições periódicas e independentes. Estudantes e o exercício da política “A diferença é brutal [entre a ditadura militar e a democracia atual”, diz o professor. “O jovem, ou qualquer pessoa, pode ser cidadão. Pode exercitar livremente, sua cidadania. Muitos não têm ideia do que foi recuperar essa liberdade, porque conhecem esse período mais como história do que pela memória, como eu que vivi esse tempo. Poder se manifestar, ir pra rua, exercitar sua opinião, definir seu voto, atuar em coletivo, fazer política. Naquele tempo, fazer política para o jovem, notadamente para o estudante, era crime contra a segurança nacional.” E o AI-5, ou a Lei de Segurança, se manifestava nos estatutos dos colégios e universidades, como repercussão destas proibições. O Decreto-Lei 477, por exemplo, era o AI-5 dentro das instituições de ensino. Os jovens tiveram que lutar muito para retomar esses direitos e, muitas vezes, pagaram com a própria vida. Para o professor, o trabalho de resgate da verdade e da memória está a cargo de instâncias como as comissões de anistia, comissões de mortos e desaparecidos. Como a Comissão Nacional da Verdade, cujo trabalho é fundamental para que os jovens saibam o real valor da democracia e a ditadura nunca mais aconteça no Brasil. Acesse a primeira matéria da série “Ditadura: contar para não voltar” Comissão da Verdade pode reconhecer número maior de mortos da ditadura, diz professor da UnB Tags:AI1, AI5, Comissão Nacional da Verdade, Contar para não voltar, Darcy Ribeiro, ditadura, Eulália Lobo, expurgados, José Geraldo de Souza Júnior, liberdade de expressão, Maria Yedda Linhares, MDB, Movimento Democrático Brasileiro, Oscar Niemeyer, Supremo Tribunal Federal, tortura

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Boaventura de Sousa Santos: Brasil, a grande divisão

Boaventura de Sousa Santos: Brasil, a grande divisão As eleições do Brasil suscitaram as atenções da comunicação social mundial. Em grande medida, fez uma cobertura hostil da candidata Dilma Rousseff, no que foi zelosamente acompanhada pela “grande mídia” brasileira. O paroxismo do ódio anti-petista levou uma revista de grande circulação, a Veja, a enveredar por uma via provavelmente criminosa. O New York Times em nenhuma ocasião se referiu à candidata do PT sem o epíteto de ex-guerrilheira. Com a mesma inconsistência de sempre, não ocorreria a este periódico, ou a tantos outros que seguem a sua linha, referir-se à ex-comunista Ângela Merkel ou o ex-maoísta Durão Barroso, ou mesmo ao comunista Xi Jinping, Presidente da China. Os interesses que sustentam esta imprensa corporativa esperavam e queriam que saísse derrotada a candidata do PT. O terrorismo econômico das agências de rating, do The Economist e Financial Times, da bolsa de valores procurou condicionar os eleitores brasileiros e assumiu uma virulência surpreendente, tendo em vista a moderação do nacionalismo desenvolvimentista brasileiro e o fato evidente de serem sobretudo fatores mundiais (leia-se, China) os que afetam o ritmo de crescimento de países como o Brasil. Por que tanta e tão desesperada hostilidade? Os fatores externos Há razões externas e internas que só parcialmente se sobrepõem. Daí a necessidade de as analisar em separado. As razões externas são bem mais profundas que o mero apetite do capital internacional pelas grandes privatizações do pré-sal e da Petrobras ou que a violência do resposta do capital financeiro perante qualquer limite à sua voracidade, por mais moderado que seja. O Brasil é hoje o exemplo internacionalmente mais importante e consolidado da possibilidade de regular o capitalismo para garantir um mínimo de justiça social e impedir que a democracia seja totalmente capturada pelos donos do capital, como acontece hoje nos EUA e está acontecer um pouco por todo o lado. E o Brasil não está sozinho. É apenas o país mais importante de um continente onde muitos outros países – Venezuela, Argentina, Chile, Bolívia, Equador, Uruguai – procuram soluções com a mesma orientação política geral, embora divergindo na dose de nacionalismo ou de populismo (tal como Ernesto Laclau, não condeno em bloco nem um nem outro). Para mais, estes países têm procurado construir formas de solidariedade regional que não passa pela bênção norte-americana, ao contrário do que acontecia antes. Qual é o significado global desta rebeldia? Ela configura uma nova guerra fria, uma guerra fria já não entre o capitalismo e o socialismo, mas entre o capitalismo neoliberal global, sem vestígio nacionalista ou popular, e o capitalismo com alguma dimensão nacional e popular, o capitalismo social-democrático ou social-democracia capitalista. Este último capitalismo pode assumir muitas formas e pode vir a estar presente tanto na Rússia como na China, na Índia ou na África do Sul, ou seja, nos chamados BRICS. O fim da guerra fria histórica não foi apenas o fim do socialismo em sua versão histórica; foi também o fim da social-democracia europeia, a única então existente, pois a partir de então o capitalismo sentiu-se desobrigado de sacrificar os seus lucros imediatos para garantir a paz social sempre ameaçada pela existência de uma alternativa potencialmente mais justa. Nesse momento, terminou o capitalismo do breve século XX e procurou-se reconstruir o Eldorado, mais mítico do que real, da acumulação do século XIX. Foi então solenemente declarado o fim da história e a ausência de alternativa ao capitalismo neoliberal. Foi assim que a guerra fria desarmou a social-democracia europeia. Mas, contraditoriamente, tornou possível a emergência da social-democracia latino-americana. Não esqueçamos que a América Latina foi uma das grandes vítimas da guerra fria histórica. Durante este periodo, o capitalismo só fazia concessões socias-democráticas na Europa, pois a tanto obrigava a tragédia de duas grandes guerras. Fora da Europa, as zonas de influência do capitalismo eram tratadas com a máxima violência para liquidar qualquer possibilidade de alternativa. Essa violência envolvia guerra financeira, ajustamento estrutural, desestabilização social e politica, intervenção militar. Em África, todos os países que tentaram uma solução socialista foram postos na ordem, do Gana, à Tanzânia e a Moçambique. Na América Latina, no quintal do Império, Cuba tinha sido uma distração imperdoável. A resposta foi pronta. Como dizia pouco tempo depois da revolução cubana o enviado de Fidel Castro a vários países da América Latina, Regis Debray, os EUA tinham aprendido mais rapidamente a lição de Cuba do que a esquerda latino-americana. Também aqui os mecanismos de intervenção foram vários, uns menos violentos que outros, da Aliança para o Progresso às ditaduras brasileira, chilena e argentina. A ousadia da América Latina dos últimos quinze anos consistiu em construir uma nova guerra fria, aproveitando, tal como a anterior guerra fria, um momento de fraqueza do capitalismo hegemônico. Armadilhado desde os anos noventa do século passado no Oriente Médio para saciar o insaciável complexo industrial militar e a sua avidez de petróleo, o Império deixou que avançassem no seu quintal formas de nacionalismo e de populismo que, ao contrário dos anteriores, já não visavam as exíguas classes médias urbanas, mas a grande massa dos excluídos e marginalizados. Tinham, pois, uma forte vocação de inclusão social. Esta emergência foi também possível graças a uma descoberta copernicana feita por um grande líder mundial chamado Lula da Silva. Essa descoberta, simples como todas as descobertas genuínas, consistiu em ver que o ímpeto democratizante que vinha desde a luta contra a ditadura tinha preparado a sociedade brasileira para uma opção moderada pelos pobres, como ele próprio em suas origens. Tratava-se de uma opção que a Igreja Católica tinha assumido durante um tempo e depois covardemente abandonado. Não se tratava de socialismo, mas tão só de um capitalismo sujeito a algum controle político com o objetivo de realizar políticas de Estado relativamente desvinculadas dos interesses diretos e imediatos da acumulação capitalista. Esta descoberta mudou a natureza da hegemonia no Brasil e tornou-se rapidamente hegemônica no continente. Digo hegemônica porque os próprios adversários tiveram de usar os seus termos para a boicotar e porque a sua vocação inclusiva se expandiu rapidamente para outras áreas, nomeadamente para área de inclusão étnico-racial. A sociedade brasileira tornava-se mais inclusiva no preciso momento em que se reconhecia, não só como sociedade injusta, mas também como sociedade racista, e se dispunha a minimizar tanto a injustiça social como a injustiça histórica, étnico-racial. O fato de esta descoberta não ter ficado confinada ao Brasil e ter se alastrado a outros países, cada um com os seus traços específicos próprios das suas trajetórias históricas, combinado com o fato de em outros continentes, por outras vias, terem surgido formas convergentes de rebeldia ao capitalismo neoliberal supostamente sem alternativa, deu origem à nova guerra fria. Esta sofreria um golpe forte se o país que mais avançou neste domínio decidisse voltar ao redil neoliberal e comportar-se como um bom rebanho, tal como está a acontecer na Europa que resistira ainda durante algum tempo ao destino que a queda do Muro de Berlim lhe tinha ditado. Daí o enorme investimento feito na derrota da Presidente Dilma. Afinal, a descoberta brasileira revelou uma vitalidade que, se calhar, nem os seus protagonistas esperavam. Mas obviamente não se espere que o capitalismo neoliberal global desista. Sente-se suficientemente forte para não ter de conviver com o status quo europeu anterior à queda do Muro. Recorrerá, pois, ao boicote sistemático da alternativa, por mais moderada e incompleta que seja. Talvez não envolva as formas mais violentas que no passado envolveram a intervenções de “mudança de regime” em países grandes da América Latina e hoje se limita a países pequenos como o Haiti (2004), as Honduras (2009), ou o Paraguai (2012). Serão ações de desestabilização social e política, aproveitando o descontentamento popular, financiando ONGs com posições “amigas”, fornecendo consultoria técnica no controle de protestos e desta forma obtendo informações cruciais. Esta intervenção vai ser mais evidente em países como a Venezuela e Argentina dada a urgência em pôr fim ao anti-imperialismo chavista ou peronista. Mas em todos os países com governos de centro-esquerda esperam-se ações de desestabilização interna. Os fatores internos Como referi, a sobreposição entre os fatores externos e internos existe ainda que não seja total. A agressividade da “grande mídia”, o desespero que levou alguns deles a cometer atos provavelmente criminosos assenta no interesse da grande burguesia em recuperar o pleno controle da economia e realizar os lucros extraordinários das privatizações por fazer. Nessa medida, não é mais que o braço brasileiro de uma burguesia transnacional sob a égide do capital financeiro. Não tendo podido derrotar a canadidata do PT, vai continuar a pressionar abertamente (e a ser provavelmente atendido) pela composição de uma equipe econômica instalada no coração do governo que satisfaça os “imperativos dos mercados”. Este braço brasileiro do capital transnacional arrastou consigo setores importantes da classe média tradicional e até da nova classe média que é um produto das políticas de inclusão dos governos do PT. E também estes setores assumiram o discurso da agressividade que transforma o adversário no inimigo. E esse discurso não se explica apenas por razões de classe. Há fatores que são específicos de uma sociedade que foi gerada no colonialismo e na escravatura. São funcionais à dominação capitalista, mas operam por marcadores sociais, formas de subjetividade e de sociabilidade que pouco têm a ver com a ética do capitalista weberiano. Trata-se da linha abissal que divide o pobre do rico e que, por estar longe de ser apenas uma separação econômica, não pode ser superada por medidas econômicas compensatórias. Pode, ao contrário, ser acirrada por elas. Na ótica dos marcadores sociais colonialistas, o pobre é uma forma de sub-humanidade, uma forma degradada de ser que combina cinco formas de degradação: ser ignorante, ser inferior, ser atrasado, ser vernáculo ou folclórico, ser preguiçoso ou improdutivo. O sinal comum a todas elas é o pobre não ter a mesma cor que o rico. Estamos, pois, a falar de colonialismo inscrito nas relações sociais que se desdobra muitas vezes em colonialismo nas relações entre regiões (sul versus norte), a forma mais conhecida de colonialismo interno (do norte da Itália em relação ao sul; do sul do Brasil em relação ao norte). Nos termos deste colonialismo da sociabilidade, as condições naturais de inferioridade podem suscitar o que de mais nobre há nos seres superiores, mas sempre sob a condição de os inferiores em caso algum pretenderem ser iguais aos superiores. Essa subversão seria mais impensável e mais destrutiva que a subversão comunista. Claro que os seres inferiores podem acreditar no princípio da igualdade que ouvem da boca dos superiores (nunca do seu coração) e lutarem pela igualdade. Faz-lhes bem se lutarem sozinhos porque isso os torna mais civilizados, e faz bem à sociedade porque obviamente nunca conseguirão os seus objetivos e acabarão por reconhecer o carácter natural da desigualdade. O fato de o poder político da época Lula ter identificado essa linha abissal e ter tentado superá-la mediante políticas compensatórias e anti-discriminação racial que ajudam os inferiores a abandonarem a sua condição de inferioridade é um insulto à nação bem pensante e um desperdício criminoso de recursos. No caso concreto, teve ainda uma outra consequência, o encarecimento inoportuno do serviço doméstico que, na forma como está organizado no Brasil, é uma herança direta do mundo da Casa Grande e Senzala. É bom ter em conta que o ideário colonialista não é monopólio das classes dominantes e suas aliadas. Habita as mentes dos que mais sofrem as consequências dele. E habita sobretudo as mentes dos que foram ajudados a deixarem o seu estatuto de inferioridade, mas ativa e rapidamente se esquecem da ajuda para pensarem tão bem como pensa a sociedade bem pensante, a sociedade do lado de cá da linha abissal em que acabam de se integrar. Refiro-me a setores da chamada nova classe média. A melhor resposta As razões acima referidas não pretendem explicar as diferenças que se jogaram na disputa eleitoral. Pretendem apenas explicar a agressividade desta. Uma vez ganhas as eleições, o governo tem de se centrar nas diferenças sem se esquecer da agressividade. Não é fácil definir a melhor resposta, mas é fácil prever qual será a pior. A pior resposta será pensar que, como a vitória foi magra, o PT apenas conseguiu adiar por quatro anos a ida para a oposição e que, sendo assim, não merece a pena o esforço de mudar as políticas que se seguiram até agora e até talvez seja bom baixar o nível de confrontação com a direita. Esta será a pior resposta porque, com ela, o PT não só terá adiado por quatro anos a ida para a oposição como levará talvez muitos mais para sair dela. Vejamos, pois, as possíveis linhas de uma resposta que não adie derrotas, mas antes consolide a hegemonia da sociedade mais inclusiva e diversa e obrigue a direita a mudar os temas e os termos da disputa eleitoral em anos futuros e em função dessa nova sociedade. Políticas sociais. A vitória foi conseguida pelos pobres que pela primeira vez sentiram apoio para saltar a linha abissal e pela militância aguerrida dos que se solidarizaram com eles depois de terem visto a linha abissal e não terem gostado do que viram. A primeira linha consiste em não frustrar as expectativas dos que lutaram pela vitória da candidata Dilma Rousseff. Ao contrário do que pensaram alguns analistas petistas em pânico, as manifestações de junho do ano passado não foram um caldo de cultura da direita. Na frente da luta por Dilma, estiveram alguns movimentos que protagonizaram as manifestações. Isto mostra que o descontentamento foi real ainda que, por vezes, a sua intensidade tenha sido manipulada. E também mostra que o benefício da dúvida dado ao governo do PT pelos manifestantes de ontem e apoiantes de hoje não voltará a ser dado. A expectativa é agora mais forte do que nunca. Se não for atendida, sobretudo nas áreas da educação, da saúde da qualidade de vida urbana, do meio ambiente, da economia camponesa e da demarcação de terras indígenas, a frustração será irreversível e mais corrosiva. A reforma politica. A reforma política é objetivo mais reclamado pelas forças progressistas e o mais bloqueado por um Congresso que, graças à patologia da representação gerada pelo atual sistema, não é o espelho da diversidade social, política e cultural do país. Quase 8 milhões de brasileiros e brasileiras exigiram em plebiscito popular a convocação de uma assembleia constituinte exclusiva. Em situações tão distintas quanto o Equador e a Colômbia, foi essa a solução encontrada para desbloquear um impasse institucional semelhante ao que ameaça o Brasil. É muito importante acabar com o financiamento corporativo dos partidos ou aplicar efetivamente o princípio consagrado pela “lei da ficha limpa”. Mas não basta. Todo o sistema de governabilidade tem de ser mudado. Como se pode explicar que dois dos partidos que apoiaram a candidata Dilma Rousseff tenham podido ser os opositores mais acirrados do candidato a governador Tarso Genro cuja proposta de governo representava o que há de mais genuíno no horizonte petista? Sem uma profunda reforma política, não haverá uma reforma tributária e, sem esta, o Brasil continuará a ser um país injusto apesar de todas as políticas de inclusão. A participação popular. Dado o bloqueio institucional que se avizinha, os movimentos sociais terão provavelmente de voltar à rua e fazer pressão política para que o governo Dilma se sinta apoiado nas reformas que pretende realizar. Será este o terceiro turno da Presidente Dilma. Mas para ele ser levado a cabo com êxito, são necessárias duas aprendizagens recíprocas, ambas cruciais. Os movimentos populares têm de aprender a não se deixarem manipular pela “grande mídia”, interessada em radicalizar as suas demandas desde que estas se circunscrevam ao governo e não incluam o sistema econômico e financeiro, este último, um dos mais predadores do mundo em sociedades democráticas. E têm igualmente de aprender a detectar e denunciar agitadores profissionais infiltrados no seu meio, uma realidade com que certamente há que contar dado o contexto internacional que referi acima. Por sua vez, a Presidente Dilma tem de aprender a falar com quem não fala a linguagem tecnocrática. Tem de superar a chocante distância que manteve em relação aos movimentos sociais no seu primeiro mandato. Tem de saber lidar com o fato de que a participação popular vai oscilar entre duas formas, a participação institucional e a participação extra-institucional (nas ruas e praças) e tem de ter a lucidez de saber que a segunda forma será tanto mais forte quanto mais fraca e partidarizada for a primeira. Justiça e terras indígenas e quilombolas. O sistema judicial tem uma missão democrática a cumprir em que não cabe ao governo interferir. Mas o governo pode criar condições que facilitem ou, pelo contrário, obstaculizem essa missão. A Presidente granjeou a credibilidade necessária para assumir a sua cota parte de responsabilidade na luta contra a corrupção. Mas têm também de assumir a defesa da lei quando esta favorece setores historicamente marginalizados e excluídos, como sejam os povos indígenas, afrodescendentes e os camponeses, em geral. Manter o atual Ministro da Justiça será um ato de frontal hostilidade aos povos indígenas cujas terras dependem de assinaturas que o Ministro tem postergado ostensivamente. Uma política da mídia. A direita nunca é grata aos governos que não saem da sua base socio-econômica, por mais favores que lhe façam. Ao contrário de outros governos progressistas do continente, o governo popular brasileiro não quis lutar por uma nova normativa de comunicação social que impedisse a “grande mídia” de ser o grande eleitor da direita. Se o governo esperava que essa atitude benevolente fosse interpretada como um ramo de oliveira estendido a eles para auspiciar uma convivência civilizada, estava redondamente enganado como bem mostrou a campanha eleitoral. O caso do Rio Grande do Sul é talvez um dos mais agudos deste estado de coisas que transforma a mídia corporativa nos grandes eleitores da direita. Há, pois, que avançar com tanta determinação quanto moderação nesse domínio. O apoio aos meios comunitários e alternativos será um bom começo. Boaventura de Sousa Santos é diretor do projeto ALICE, Centro de Estudos Sociais (CES), Universidade de Coimbra.