segunda-feira, 24 de novembro de 2014

O dia em que Jorge Amado foi doutor na sala dos capelos

Patrick Mariano* 

1. Dos trotes. Foi Zélia quem atendeu o telefone. Jorge tirava um cochilo deitado sem camisa na área da casa do rio vermelho. O barulho do telefone o despertou aos trancos e barrancos. Olhou de esgueio para dentro da sala, investigando a dificuldade de Zélia em se fazer entendida naquele barulhento instrumento vermelho. - Ora bem, é da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Precisamos falar com o senhor doutor Jorge Quélado. - Jorge Amado? - Sim senhora, Jorge Quélado, excelentíssimo senhor doutor catedrático da Universidade da Bahia. - Mas o Jorge não é doutor da Universidade, mas sim escritor. - Senhora, não sei me faço entender, mas por favor me passe o senhor Jorge Quélado, pois o magnífico reitor deseja falar-lhe. Tentando pegar o fio da miada, Zélia chama o dorminhoco que já estava a brincar com os gatos, depois da sesta interrompida. Jorge, o Heitor ou Reitor de Coimbra quer falar com você. Te chamaram de doutor, professor, catedrático sei lá o que. Desconfio que seja trote do Carybé. Deve ter acordado agora e de ressaca e quis aproveitar a voz para me enganar. Jorge deixou os gatos Ronaldo e Zelinha de lado e foi confiante atender o telefone. Se era o peste do Carybé, ele daria o troco. - Alô, doutor Jorge Quélado? - Seu vagabundo, ficou tomando cachaça ontem e agora quer fazer troça na minha cara paradescontar a de ontem. Diga, Carybé! - Desculpe, senhor doutor, vai falar consigo o magnífico reitor António Calamandra. - E desde quando bêbado tem nome de reitor? Se era trote, Carybé inovou nos recursos, pois tinha a musiquinha que ele só ouvira quando ligava do gabinete do Governador ou do Presidente. Pensou que a trama não só envolvia Carybé como gente graúda da burocracia estatal. - Doutor Jorge Quélado, em nome da Universidade de Coimbra, gostaria de convidá-lo para uma aula magna de início do calendário letivo. Tudo correrá por nossa conta. Peço-lhe que reserve uns dias a mais para conhecer a cidade e Portugal. - Senhor reitor ou seja lá o que for, eu só aceito se puder levar aquele filho da puta cachaceiro do Carybé. O teste saiu pela culatra. - Traga quem o doutor quiser, será um prazer tê-lo por aqui e, da mesma forma, seus amigos. A secretária providenciará tudo. Datas e cronograma da viagem. Jorge resolve dar um último truco no reitor. - Vou levar também o Zé da Biriba que ontem cobrou cachaça a mais do safado do Carybé e o mestre Bimba, único cordão trançado e benzido na África. - Doutor, como lhe disse, traga quem o senhor quiser. A secretária cuidará de tudo. Quando ainda rolava as despedidas formais, surge na sala Carybé. O contraste entre o rosto de Jorge e a bermuda branca lembrava uma guia de Xangô. Ao desligar o telefone, percebeu que o convite era sério e que teria que ir a Portugal. Zélia ainda ponderou se não poderia ser engano, mas Jorge, cheio de si, foi taxativo: é a pronúncia que é diferente, Zélia, eles não conseguem dizer amado. A língua se enrrola toda. Seu puto, você que nos colocou nessa agora terá que viajar conosco para Portugal. O amigo que tremia só de falar em avião, disse um rotundo nem fodendo. A palavra ecoou por toda casa: nem fo-den-do! 2. Pelo ar ou pelo mar? A tarde toda foi pra convencer Carybé da viagem de avião. Jorge adorava ver o amigo bravo. As recusas e os palavrões foram aumentando, aumentando e aumentando. Quem passava pelo portão tinha certeza que iriam sair no tapa. Quando Carybé atingia o ápice da raiva, Jorge se acabava de rir. Zélia já sabia que nessa onda se passaria horas e horas sem desfecho. Resolveu acabar com a briga: - Se Jorge só vai nessa palestra se você e os outros cacheiros aceitarem, vamos todos pelo mar e de navio! Nem Jorge, muito menos Carybé, queriam ir para Portugal, mas a sentença de Zélia os deixou sem chão. Acabou o jogo. Estava decidido. Iriam todos de navio. A surpresa agora se dava no outro lado do atlântico. - Navio? A secretária, encarregada pelo magnífico reitor para trazer a são e salvo o palestrante e sua corte, diante da quebra da lógica, convocou reunião extraordinária do Superior Conselho da Faculdade para tratar do tema. A última vez que o Superior Conselho havia se reunido foi para deliberar sobre a troca dos sinos da Cabra . O dilema era se mandava ao conserto o sino da época do Rei ou se faziam outro mais moderno e que fosse capaz de dar 8 tipos de badaladas diferentes. Isso há dez anos atrás. Um a um foram chegando os digníssimos Conselheiros. A cidade se alterou. Eram 27 ao todo e foram chamados às pressas ao portão de ferro. Na praça da república, aquele cortejo de carros pretos subindo em direção aos arcos despertava a curiosidade dos estudantes, bêbados e até dos cachorros que nada tinham que ver com isso. As capas pretas pareciam átomos a se debater umas com as outras de curiosidade. A imprensa, claro, já estava ao portão de ferro com seus transmissores, luzes e geradores de energia. Quase todos entraram sem falar com a imprensa, menos Rui Costa, candidato da direita à sucessão do reitor. Desceu do carro, sorriso de modelo no rosto e o dom de ser simpático para as câmeras. Nem ouviu a pergunta da repórter e fitando a câmera disse: - Queremos uma Universidade para nossos melhores cérebros. Sou pela cobrança de propinas e redução das vagas. Vou trabalhar para que aqui se formem gênios, obrigado. Na pauta da reunião a viagem a polêmica viagem de Carybé. Quando o reitor deu as boas vindas e explicou o motivo da reunião convocada pela secretária em regime de urgência, um Conselheiro levantou a mão e se opôs a que se deliberasse algo dado que pelo art.14, somente um dos conselheiros tem o poder de convocar a dita da reunião. Levaram 4 horas em debates hermenêuticos até que uma coisa fez todos concordarem: era hora do almoço. A imprensa estava em polvorosa. Em razão da demora na deliberação, imaginando tratar de algo importante, passaram a transmitir direto. A repórter se esforçava para ter notícias. A imagem era a da sala do último andar do pátio. Vez ou outra um vulto passava, mas era só o café sendo servido. Como a transmissão era direta, uma pequena multidão tomava conta do pátio. Vendedores ambulantes foram proibidos de entrar, bem como bandeiras vermelhas. Para distrair, uma entrevista com alguém da multidão. - O que a senhora acha que eles estão decidindo lá em cima? A senhora chinesa, com uma Nikon a tira colo, apontava para a biblioteca joanina, lugar em que fizera as últimas fotos de uma viagem que passou por Paris, Madrid, Lisboa e por algum motivo ainda não sabido do guia que bolou o passeio veio dar em Coimbra a sua excursão. A repórter então, imaginando ter um grande furo nas mãos: - Vão derrubar a biblioteca joanina? E a chinesa sorrindo, só balançava a cabeça. Depois do almoço, alguns conselheiros dormiam na mesa. Eis que o reitor teve a sacada genial. Pegou o papel da convocação e assinou. Com isso, decidiram deliberar. 18 votos favor de pagar a passagem de navio para os brasileiros, 6, contra e, 3, se abstiveram. Quando os conselheiros desceram as escadas uma multidão os aplaudia sem saber direito porque e uma profusão de flashes dava ao ato uma solenidade nunca antes vista. O reitor, objetivo e econômico com as palavras diz: - Os brasileiros chegarão de navio! Parecia um gol. A platéia entorpecida aplaudia e o reitor era abraçado. Os brasileiros chegarão de navio foi a frase mais comentada da semana no tuíter. Do outro lado do Atlântico, Carybé, Zé da Biriba e mestre Bimba jogavam sinuca no boteco sem saber que Coimbra havia parado por conta do medo de avião de um deles. 3. A expectativa. Os jornais descobriram o telefone da casa do Rio Vermelho e ligavam aos montes pedindo fotos da comitiva. Zélia mandou a única de todos eles juntos. Uma do dois de fevereiro, logo depois de uma muqueca caprichada. O dono do jornal ligou imediatamente para o reitor quando viu a capa com a foto. - O senhor está louco? Estás a trazer 4 vagabundos do Brasil. Um sem camisa, outro dormindo com uma calça colada e um terceiro fazendo pose com uma garrafa de pinga. Isso lá é gente que se traga? O reitor acabou com a conversa. Que são fotos, ó pá? Jorge Quélado é um catedrático, elaborou sozinho 5 Códigos no Brasil. - O que o povo vai pensar da instituição? E ainda de navio? Olha, vou publicar críticas à vinda desses brasileiros, ó pá. A ameaça do dono do jornal, da tv e das rádios não surtiu efeito algum. As aulas iriam começar e os brasileiros precisam chegar. 4. A chegada Toda comunidade acadêmica esperava em Lisboa o navio que trazia Jorge Amado para fazer uma palestra a que foi, por engano, convidado. Carybé, no entanto, convenceu a todos descerem no Porto, para conhecer uma cave de vinho e um antigo amigo baiano seu que lá trabalhava. A visita durou dois dias e deixou a comitiva da Universidade desesperada. Para todo navio que chegava com bandeira brasileira se tocava uma música de recepção e se estendia um carpet com o brasão da casa de ensino. Todos desciam e nada do doutor Jorge Amado. Nisso se passaram dois dias até que o reitor decidiu voltar para tentar contato através do Consulado. Foi o amigo de Carybé, Dindinho, quem os levou até Coimbra pelo comboio. Se despediram na estação e a trupe baiana ficou com as malas e ainda com a ressaca dos vinhos. Como não havia ninguém a esperar por eles, resolveram subir o morro e se instalar em uma pousada qualquer. A palestra seria no dia seguinte. Como chegaram a tarde, deu para tirar um bom cochilo. Todos prontos no saguão do hotel e já iam saindo para jantar, quando o funcionário gritou: doutor Jorge? Era o reitor da Universidade que, através de um antigo sistema da PIDE ao qual algumas autoridades ainda tinham acesso, conseguiu localizá-los. - Prezado Doutor Jorge, ora bem, estamos com um jantar oferecido pela prefeitura de Coimbra a vossa comitiva, desculpe avisá-lo assim em cima da hora, mas já há um carro te esperando aí na saída do vosso hotel. Na volta, deixaremos vocês no melhor hotel da cidade. Diante do sequestro relâmpago, não havia outra alternativa se não ir ao jantar. Ao chegarem no salão dos passos perdidos, Jorge ficou um pouco para trás do Reitor e foi barrado na entrada. Talvez pela sua camisa florida e bermudão. Desfeito o mal entendido, todos se deliciaram com um leitão à bairrada. Vinho vai, vinho vem, eis que chega a hora do discurso. A mesa tinha 22 metros de comprimento e lá estavam todos com ternos e gravatas. Alunos de capas pretas já haviam tocado um fado e declamado um texto para o autor de mais de 5 códigos no Brasil. O reitor se levanta e solta a voz. - É uma imensa honra receber o professor doutor Jorge Quélado, digníssimo catedrático da Universidade da Bahia, autor de 5 códigos no Brasil e na América e discípulo de Rui Barbosa. Quando o Reitor terminou de falar e os aplausos cessaram, o único barulho que se ouviu no salão foi a gargalhada de Carybé. Durou quase um minuto. Jorge mais uma vez corou e preferiu simplesmente dizer obrigado e pedir desculpas por terem que se ausentar mais cedo do jantar em razão do cansaço da viagem. Ganhou tempo. De volta ao hotel, Carybé e Bimba que não se aguentavam de alegria ao ver Jorge na enrrascada, sugeriu de irem tomar uma para tirar o peso da situação. Havia acabado de chegar na cidade Glauber Rocha e João Ubaldo Ribeiro que vieram de Cintra para encontrar com a turma. Contando a partir do Café Tropical, foram 4 bares e duas repúblicas pelas quais passaram. Assistiram no nascer do sol do Mondego e foram dormir. A palestra de Jorge seria às dezenove horas. 5. Na sala dos Capelos. É a antiga sala dos reis. Agora era a sala dos baianos. Glauber não parava de falar, apesar dos cutucões de Ubaldo e Zélia. Carybé curtia os retratos dos reis e para passar o tempo rabiscava. Mestre bimba imaginava uma roda de capoeira no pátio lá fora. Era noite de lua cheia. A sala era pequena e estava tomada só por professores. Lá fora, alunos aos montes. Foram instalados telões no pátio da Faculdade. Jorge pegou o microfone, agradeceu o convite do reitor. - Senhor reitor, esse lugar aqui não é meu. Esse salão é para reis e doutores, eu sou apenas um baiano que tem na escrita uma forma de desassossego. Nunca escrevi um código, nunca ditei normas a quem quer que seja. Estou aqui por um grande engano das nossas línguas que são iguais, mas diferentes. Ali na platéia estão comigo Carybé, um dos maiores mestres da pintura e escultura do meus país, embora seja Argentino de nascimento. Ao seu lado o mestre Bimba que representa a beleza e o sofrimento do nosso continente irmão África. Irmão que fizemos através da dor e da escrividão, mas que por sua resistência fincaram em nós brasileiros a magnitude dos seus tambores, da sua dança, da sua culinária e da sua cultura. Sou filho de Xangô o rei da Justiça. Aqui é uma faculdade de direito, mas foi o direito que fundamentou a escrividão, que legitima a fome e a exclusão do outro. Antes de aqui entrar soube que há uma prisão dentro da Faculdade para os alunos. Me desculpe, senhor reitor, mas não se ensina aprisionando. Se queremos que a Justiça ocorra, nem seria preciso o direito. Mas se queremos que a verdadeira justiça ocorra, talvez tenhamos que prescindir do direito, dos códigos e das prisões. Ainda na platéia, o grande escritor João Ubaldo Ribeiro e o maior cineasta de todos os tempos, Glauber Rocha. Ontem, em uma das repúblicas pelas quais passamos, Glauber não entendia porque o uso das capas pretas e porque dessa diferenciação entre letrados e não letrados. Ficou ainda horrorizado com os trotes humilhantes. Se a justiça é a igualdade dos seres humanos, não entendemos porque as humilhações contra quem ainda nem bem chegou ao mundo das letras. Desculpe mais uma vez, senhor reitor, mas não vejo nesta sala alunos e muitas mulheres. Só autoridades homens. O alunos, razão de existir desse prédio todo, estão lá fora. Nisso se ouviu um barulho enorme de palmas dos estudantes lá de fora. Dentro da sala o constrangimento era visível. Um dos direitores deu a ordem para que se derrubasse a anergia do prédio. Foi o aconteceu, de repente escuridão total. Jorge retoma o discurso. Glauber acende o esqueiro perto do corpo de Jorge Amado e agora as palavras e a imagem do baiano era ainda mais forte e impactante. - Obrigado pela luz ter apagado. Não havia nada mais que falar aqui para vossas excelências. Vou ter lá fora com os alunos e alunas. Saíram os baianos e mestre bimba passou a tocar berimbau. O cortejo foi atraindo gente, até os doutores seguiram atrás. Na sacada da faculdade, Jorge continou. Agora, quem vai lhes falar é mestre Bimba, filho da nossa irmã África. Bimba se ergue, corpo escultural e expressão altiva e declama Castro Alves: - São os guerreiros ousados que com os tigres mosqueados combatem na solidão. Homens simples, fortes, bravos hoje míseros escravos sem ar, sem luz, sem razão. Quando Bimba termina o poema, toca o berimbau e canta cantos da sua terra e dos seus orixás. É noite de lua cheia que reflete nas areias do pátio da Faculdade da Direito. Lá embaixo o rio mondego desce manso. - Meu nome é Jorge Amado, nunca fui doutor, assim como Saramago. Vejo em vocês não muito mais que vinte anos. Castro Alves escreveu esse poema com 22. Glauber fez Deus e o Diabo na Terra do Sol com 23. Mas vocês tem a chance de fazer não o direito. Nós não precisamos de leis, de códigos, mas de justiça. Foi o direito que permitiu a escravidão. É ele quem permite os muros de Israel e nos EUA. É o direito que permite Guantánamo e os horrores dos campos de concentração norteamericanos mundo a fora. Peço que os que tiverem de capa preta as estendam no chão, deitem sobre elas e olhem para a lua. Sintam a insignificância de todos nós perante o tempo e o universo. Letrado ou iletrado, estamos todos aqui vivos. Podemos fazer do nosso lugar um lugar mais justo e humano ou podemos deixar tudo como está. A escolha, como se diz por aqui, é vossa! Jorge, Bimba, Glauber e toda a comitiva não conseguiram sair da Faculdade. Foram aplaudidos por minutos e minutos por todos. O reitor, de lágrimas nos olhos se ajoelhou perante Jorge que o virou para os seus alunos. Nunca mais se viu, depois da passagem dos baianos capas pretas a andar pelas ruas de Coimbra. Toda noite de lua cheia os estudantes organizam a Luarada em que todos vão ao pátio cantar e discutir revolução. De Coimbra, a trupe foi para Cintra. Logo depois, Glauber faleceu, mas as imagens que filmou naquele dia histórico guardou num dos baús na casa do rio vermelho. O título da fita de VHS era: Deus Bimba a lua e o Amado na terra do fado. 

* Patrick Mariano é advogado da RENAP (Rede Nacional de Advogados Populares) e está em Coimbra cumprindo programa de Doutoramento. Ele integra o Coletivo Diálogos Lyrianos e é autor do livro "11 Retratos por 20 Contos".

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