quinta-feira, 24 de novembro de 2011

O que está em jogo

Boaventura de Sousa Santos

O verniz estalou. O aprofundamento da crise europeia tornou possível uma nova radicalidade e uma nova transparência. Até há pouco, eram consideradas radicais as posições daqueles que se opunham à intervenção e às receitas da troika por razões de soberania, de democracia e por suspeitarem que a crise era o pretexto para a direita aplicar em Portugal a “política de choque” das privatizações, incluindo as da saúde e da educação. Propunham a desobediência ao memorando em face do desastre grego ou pediam uma auditoria da dívida para retirar dela parcelas de endividamento ilegítimas ou mesmo ilegais. Eram consideradas radicais porque punham em causa a sobrevivência do euro, porque desacreditavam ainda mais o nosso país no contexto europeu e internacional, porque, se fossem aplicadas, produziriam um desastre social, precisamente o que se pretendia evitar com o memorando.

O aprofundamento da crise está a dar azo a uma nova radicalidade que, paradoxalmente, e ao contrário da radicalidade anterior, parte da estrita obediência à lógica que preside à troika e ao memorando. Comentadores
do Financial Times e políticos dos países do Norte da Europa defendem o fim do euro, porque afinal o “euro é o problema”, propõem um euro para os países mais desenvolvidos e um outro para os menos desenvolvidos, defendem que a saída do euro por parte da Grécia (ou de outros países, subentende-se) pode não ser uma má ideia desde que controlada, e defendem, finalmente, a permanência do euro na condição de os países endividados se renderem totalmente ao controle financeiro da Alemanha
(federalização sem democracia). Ou seja, a radicalidade tem hoje duas faces e isto talvez nos permita uma nova transparência quanto ao que está em jogo ou nos convém.

A transparência do que se omite é tão importante quanto a do que se diz. Em ambos os casos ocorre porque os interesses subjacentes estão... à superfície. A transparência do que se omite. Primeiro, não é possível voltar à “normalidade” no atual quadro institucional europeu. Neste quadro, a União Europeia caminha inevitavelmente para a desagregação. Depois da Itália, seguir-se-ão a Espanha e a França. Segundo, as políticas de austeridade, para além de injustas socialmente, são não só ineficazes como contraproducentes. Ninguém pode pagar as suas dívidas produzindo menos e, por isso, estas medidas terão de ser seguidas por outras ainda mais gravosas, até que o povo (não tenhamos medo da palavra), o povo fustigado, sofrido, desesperado diga: “Basta!” Terceiro, os mercados financeiros, dominados como estão pela especulação, nunca recompensarão os portugueses pelos sacrifícios feitos, já que não reconhecer a suficiência destes é o que alimenta o lucro do investimento especulativo. Sem domar as dinâmicas especulativas e esperando que o mundo faça o que pode e deve começar a ser feito a nível apenas europeu, o desastre social ocorre tanto pela via da obediência como pela via da desobediência aos mercados.

A transparência do que nos convém. Falo dos portugueses, mas o meu “nós” envolve os 99% dos cidadãos e todos os imigrantes do Sul da Europa e envolve todos os europeus para quem uma Europa de nacionalismos é uma Europa em guerra e para quem a democracia é um bem tão exigente que só faz sentido se, ele próprio, for distribuído democraticamente. Qualquer solução que vise minimizar o desastre que se aproxima deve ser uma solução europeia, ou seja, uma solução que deve ser articulada com, pelo menos, alguns países do euro.

São duas as soluções possíveis. A primeira, que é o cenário A, consiste em fazer pressão, articuladamente com os outros países “em dificuldade”, no sentido de se alterar a curto prazo quadro institucional da UE de modo a que se torne possível mutualizar a dívida, federalizando a democracia. Isto implica, entre outras coisas, dar poderes ao Parlamento Europeu, fazer a Comissão responder perante ele e eleger diretamente a presidência. Implica também uma política industrial europeia e a busca de equilíbrios comerciais no interior da Europa. Por exemplo, a Alemanha, que tanto exporta para a Europa, deverá importar mais da Europa, abandonando o mercantilismo da sua procura incessante de excedentes? Para tal ser possível é preciso uma política aduaneira e de preferências comerciais intraeuropeias, assim como uma refundação da Organização Mundial do Comércio, aliás já hoje um cadáver adiado, no sentido de começar a construir o modelo de cooperação internacional do futuro: acordos globais e regionais que, cada vez mais e sempre na medida do possível, façam
com que os lugares de consumo coincidam com os lugares de produção.

Implica também uma regulação financeira prudente a nível europeu que passa por um mandato pósneoliberal para o Banco Central Europeu (mais poderes de intervenção com base em mais controlo democrático nas
estrutura e no funcionamento). Esta solução contrapõe-se frontalmente à solução autoritária proposta pela Alemanha, que consiste em submeter todos os países à tutela alemã, como contrapartida dos eurobonds ou de outro mecanismo de europeização da dívida. Esta rendição ao imperialismo alemão significaria que, na Europa, só tem direito à democracia quem tem dinheiro.

O cenário A é exigente e exigiria que, desde já, e apesar dos limites do atual mandato, o BCE assumisse um papel muito mais ativo para assegurar o tempo de transição. A prudência recomenda, no entanto, que a hipótese de tal cenário falhar seja prevista e considerada seriamente.

Devíamos por isso, desde já, começar a preparar o cenário B, uma saída deste euro, a sós ou juntamente com outros países, com o argumento, que os fatos comprovam, de que, com ele, as desigualdades entre países não cessarão de aumentar. A auditoria da dívida será um sinal da seriedade dos nossos propósitos. Os custos sociais da solução B não são mais altos quanto os custos do falhanço da solução A e permitem, pelo menos, ver uma luz ao fim do túnel.

Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).

sábado, 12 de novembro de 2011

A luta indígena contra a especulação imobiliária no DF

 por Betinho Góes/Humberto Góes
Uma obrigação militante me mobiliza a produzir um relato minucioso sobre uma grave violação de direitos humanos que tenho acompanhado em Brasília, juntamente com outros companheiros e companheiras da Advocacia Popular radicados no DF. É a situação hoje vivenciada pela Comunidade Indígena Fulni-Ô/Tapuya, que, contrariamente aos interesses de empreiteiras financiadoras dos governos de Roriz, de Arruda, que contribuíram para o mensalão do DEM, luta para permanecer em suas terras tradicionalmente ocupadas em Brasília.
Como a situação de conflito, a destruição da terra e as prisões de estudantes e apoiadores da causa indígena no DF não param de acontecer, o trabalho não cessa. Todos os dias, estamos tentando obter decisões judiciais, promovendo novas ações, bem como ocupar espaços na Câmara e no Senado Federais e em outros lugares que possam fazer surtir efeito a luta do povo Fulni-Ô/Tapuya na DF.
Se não fossem os estudantes da UnB, que promovem ações diretas, param máquinas, se colocam diante da polícia, dos seguranças das empresas, os índios já teriam perdido essa luta. Pois, como todos sabem, o Judiciário demora o tempo suficiente pra que as empresas consumem a sua destruição e nada mais se possa fazer. Nesse momento, o "princípio da precaução", que deve inspirar as questões ambientais e indígenas, não vem sendo considerado, como não considerada a presença indígena durante todo o processo de licenciamento ambiental.
Apesar de os documentos informarem que existiam índios na área e que esta representava uma ocupação tradicional, os órgãos, entidades ambientais e a FUNAI foram omissos quanto à observação do componente indígena no licenciamento ambiental e em alguns casos até admitem a retirada da comunidade de suas terras (o que é vedado pela Constituição Federal de 1988). No caso da TERRACAP, empresa pública do DF que faz as licitações de terras, houve uma demonstração de interesse pela retirada dos índios desde o primeiro momento. Em ofício para a FUNAI, o presidente do órgão em 1999, mesmo sabendo que terra ocupada por índios pertence à União, chega a dizer que está tomando todas as providências para "desobstruir a área", o que significa retirar os índios e entregá-las às grandes construtoras, aqueles que financiam as campanhas e determinam os interesses que serão movimentados no Distrito Federal.
Por hora, envio links para que a luta Fulni-Ô/Tapuya, tribo já excluída de seu local de origem, o município de Águas Belas, Pernambuco, há anos atrás, não termine da forma como começou, com a expulsão dos índios de suas terras tradicionalmente ocupadas.