segunda-feira, 2 de maio de 2011

Os Íntegros Juízes

José Geraldo de Sousa Junior
Reitor da UnB
O título acima devo-o a Anatole France, prêmio Nobel de literatura de 1921, um dos fundadores da Liga dos Direitos do Homem, notável escritor que tratou frequentemente o tema da justiça e da condição do jurista.
Num texto com o mesmo título ele traduz a impressão retida da observação de um quadro de Mabuse (Jan Gossaert), talvez a mesma que se possa perceber na pintura de van Eyck (o Políptico de Gantes), em que são figurados também os juízes íntegros, tal como são conhecidos.
De sua observação, diz Anatole, pode-se concluir ter o mestre dado aos dois juízes o mesmo ar grave de doçura e de serenidade. Mas, vistos os detalhes que caracterizam um e outro, pode-se ver que eles, no entanto, são diferentes, na índole e na doutrina. Um traz na mão um papel e aponta o texto com o dedo; o outro ergue a mão com mais benevolência do que autoridade, como que a liberar um pensamento prudente e sutil. São íntegros os dois, conclui o escritor, mas é visível que o primeiro se apega à letra, o segundo ao espírito.
Esta tensão, entre a letra e o espírito, já havia aparecido em outro texto de Anatole France (Crainquebille), buscando encontrar um equilíbrio possível entre a ordem e a regularidade e uma expectativa humana e sensível para representar uma justiça justa.
Em outro texto sobre este tema (A Lei é Morta o Juiz é Vivo), alinha parêmias do célebre magistrado Magnaud erigido, na doutrina e na literatura (Victor Hugo, em Os Miseráveis), em expressão de aplicação equitativa do Direito, com a fórmula, ensina Carlos Maximiliano, “decidir como o bom juiz Magnaud”.
Seu ponto de partida é trazer a Justiça para o social, de modo a permitir um processo de aplicação que leve a ultrapassar as condições limitadoras de seu momento de produção: “Enquanto a sociedade for fundada na injustiça, as leis terão por função defender e sustentar a injustiça”.
No texto mencionado, o sentido de sua crítica é, pois, convocar a integridade do juiz para a necessidade de vencer e de ultrapassar pelo inconformismo transformador, a reprodução, nas leis, da iniquidade social, hierarquizante e excludente. Do contrário, nestas condições, diz ele num texto que depois seria recuperado por João Mangabeira (A oração do paraninfo) em mensagem a estudantes de Direito, só restará ao magistrado “a missão augusta de assegurar a cada um o que lhe toca: ao rico a sua riqueza e ao pobre a sua pobreza”.
Por isso o chamamento que faz Anatole France ao juiz vivo para se posicionar ativamente em face da lei morta: “A bem dizer, eu não teria muito receio das más leis, se elas fossem aplicadas por bons juízes. Dizem que a lei é inflexível. Não creio. Não há texto que não se deixe solicitar. A lei é morta. O magistrado é vivo; é uma grande vantagem que leva sobre ela. Infelizmente não faz uso disso com freqüência. Via de regra, faz-se mais morto, mais frio, mais insensível do que o próprio texto que aplica. Não é humano: é implacável. O espírito de casta sufoca nele toda simpatia humana. E vejam que só estou falando dos magistrados honestos”.
Para este chamamento, no entanto, adverte Jean Cruet no livrinho paradigmático publicado em 1908 (A Vida do Direito e a Inutilidade da Lei), é preciso que os magistrados ousem “sair fora dos textos, para compreender o mundo social em toda a sua extensão, em toda a sua complexidade e em todo o seu movimento”. Não se trata de desconsiderar os textos legislativos, mas de compreender que a rigidez das fórmulas em que se expressam, não dispensa uma mediação que recupere “o aspecto verdadeiro das coisas” de modo a desvendar o direito que se revela “na sociedade organizando-se por si própria”.
Daí a necessidade de os juízes se darem conta, como mostra Bistra Apostolova (Perfil e habilidades do jurista: razão e sensibilidade), de que prefigurar o sentido dos conflitos é a tarefa que lhes cabe e que mediá-los requer compreender o significado que eles alcançam em seu próprio tempo. Como disposição e como atitude, sem o desespero aniquilador que Tolstoi impõe ao juiz de sua narrativa (A morte de Ivan Ilich), para abrir-lhe a consciência que desnuda a sua trajetória profissional, social e familiar como “monstruosa mentira camuflando vida e morte”.