segunda-feira, 18 de abril de 2011

Inconformismo e Criatividade


Boaventura de Sousa Santos


É hoje consensual que o capitalismo necessita de adversários credíveis que actuem como correctivos da sua tendência para a irracionalidade e para a auto-destruição, a qual lhe advém da pulsão para funcionalizar ou destruir tudo o que pode interpor-se no seu inexorável caminho para a acumulação infinita de riqueza, por mais anti-sociais e injustas que sejam as consequências. Durante o século XX esse correctivo foi a ameaça do comunismo e foi a partir dela que, na Europa, se construiu a social-democracia (o modelo social europeu e o direito laboral). Extinta essa ameaça, não foi até hoje possível construir outro adversário credível a nível global. Nos últimos trinta anos, o FMI, o Banco Mundial, as agências de rating e a desregulação dos mercados financeiros têm sido as manifestações mais agressivas da pulsão irracional do capitalismo. Têm surgido adversários credíveis a nível nacional (muitos países da América Latina) e, sempre que isso ocorre, o capitalismo recua, retoma alguma racionalidade e reorienta a sua pulsão irracional para outros espaços. Na Europa, a social-democracia começou a ruir no dia em que caiu o Muro de Berlim. Como não foi até agora possível reinventá-la, o FMI intervém hoje na Europa como em casa própria.

Poderá surgir em Portugal algum adversário credível capaz de impedir que o país seja levado à bancarrota pela irracionalidade das agências de rating apostadas em produzir a realidade que serve os interesses dos especuladores financeiros que as controlam com o objectivo de pilhar a nossa riqueza e devastar as bases da coesão social? É possível imaginar duas vias por onde pode surgir um tal adversário. A primeira é a via institucional: líderes democraticamente eleitos reúnem o consenso das classes populares (contra os media conservadores e os economistas encartados) para praticar um acto de desobediência civil contra os credores e o FMI, aguentam a turbulência criada e relançam a economia do país com maior inclusão social. Foi isto que fez Nestor Kirchner, Presidente da Argentina, em 2003. Recusou-se a aceitar as condições de austeridade impostas pelo FMI, dispôs-se a pagar aos credores apenas um terço da dívida nominal, obteve um financiamento de três biliões de dólares da Venezuela e lançou o país num processo de crescimento anual de 8% até 2008. Foi considerado um pária pelo FMI e seus agentes. Quando morreu, em 2010, o mesmo FMI, com inaudita hipocrisia, elogiou-o pela coragem com que assumira os interesses do país e relançara a economia. Em Portugal, um país integrado na UE e com líderes treinados na ortodoxia neoliberal, não é crível que o adversário credível possa surgir por via institucional. O correctivo terá de ser europeu e Portugal perdeu a esperança de esperar por ele no momento em que o PSD, de maneira irresponsável, pôs os interesses partidários acima dos interesses do país.

A segunda via é extra-institucional e consiste na rebelião dos cidadãos inconformados com o sequestro da democracia por parte dos mercados financeiros e com a queda na miséria de quem já é pobre e na pobreza de quem era remediado. A rebelião ocorre na rua mas visa pressionar as instituições a devolver a democracia aos cidadãos. É isto que está a ocorrer na Islândia. Inconformados com a transformação da dívida de bancos privados em dívida soberana (o que aconteceu entre nós com o escandaloso resgate do BPN), os islandeses mobilizaram-se nas ruas, exigiram uma nova Constituição para defender o país contra aventureiros financeiros e convocaram um referendo em que 93% se manifestaram contra o pagamento da dívida. O parlamento procurou retomar a iniciativa política, adoçando as condições de pagamento mas os cidadãos resolveram voltar a organizar novo referendo, o qual terá lugar a 9 de Abril. Para forçar os islandeses a pagar o que não devem as agências de rating estão a usar contra eles as mesmas técnicas de terror que usam contra os portugueses. No nosso caso é um terror preventivo dado que os portugueses ainda não se revoltaram. Alguma vez.

sábado, 2 de abril de 2011

JUSTIÇA POÉTICA
José Geraldo de Sousa Junior
Reitor da UnB
O título acima não apela, o que poderia parecer à primeira vista, a uma busca de relação entre a justiça e a literatura, para por em relevo a inclinação de magistrados para o uso da linguagem artística. Não que isso deixe de ocorrer ou que se rejeite o pendor estético quando se trata de desenvolver o discurso jurídico.
No plano epistemológico, a propósito, tem sido estimulante a vertente que trabalha a interlocução interdisciplinar e complexa para acentuar o diálogo entre saberes, demonstrando que o conhecimento não se realiza por uma única racionalidade, mas, ao contrário, pela integração entre diferentes modos de conhecer que nos habilitem a discernir o sentido e significado da existência e a elaborar sínteses interpretativas que além de nos permitir compreender o mundo, contribuam para transformá-lo. Trata-se, como acentua Roberto Lyra Filho, de operar padrões de esclarecimento, recusando o monólogo da razão causal explicativa, para abrir-se a outras possibilidades de conhecimento: o fazer, da atitude técnica; o explicar e compreender, da atitude científica; o fundamentar, da atitude filosófica; o intuir e mostrar, da atitude artística; o divertir-se, da atitude lúdica; o revelar, da atitude mística.
Tem razão Eduardo Lourenço, não só em sustentar a unidade da poesia fernandiana, mas em suscitar a totalidade que abarca os seus aparentes fragmentos heterônimos, para indicar que nesse processo o problema central continua a ser o do conhecimento. Para Lourenço (Tempo e Melancolia em Fernando Pessoa, publicado na edição brasileira do livro O Mito da Saudade, Editora Companhia das Letras), os avatares de Pessoa “representam uma tentativa desesperada de se instalar na realidade”.
Marx não havia ainda com O Capital analisado a estrutura econômica para, num certo modo de produção explicar a formação da mais-valia, e bem antes o Padre Vieira, artísticamente, a exibiu tal como está no Sermão XIV do Rosário: “Eles mandam e vós servis; eles dormem, e vós velais; eles descansam, e vós trabalhais; eles gozam o fruto do vosso trabalho, e o que vós colheis deles é um trabalho sobre outro. Não há trabalhos mais doces que o de vossas oficinas; mas toda essa doçura para quem é? Sois como as abelhas, de quem disse o poeta: ‘sic vos non vobis melificatis apes’ (assim como vós, mas não para vós, fabricais o mel abelhas)”.
No plano das habilidades, que é o que remete mais imediatamente à constituição de perfis profissionais, a alusão a uma justiça poética quer mais designar a categoria subjetividade, como própria ao afazer do jurista para interpretar criativamente e com imaginação as relações do homem com o mundo e com o outro. É com este sentido que Martha Nussbaun fala em poesia e imaginação (Justicia Poética. La Imaginación Literaria y La Vida Publica, Editorial Andrés Bello, Barcelona/Buenos Aires/México D.F./Santiago do Chile), ou seja, para caracterizá-las como “ingrediente indispensável ao pensamento público, com condição de criar hábitos mentais que contribuam para a efetivação da igualdade social”.
Aplicadas aos juízes, essas categorias traduzem as expectativas de mediação humanística entre visão de mundo e consciência social, de modo a traduzir aquela exigência funcional destacada por Bistra Apostolova (Perfil e Habilidades do Jurista: razão e sensibilidade, Notícia do Direito Brasileiro, nº 5, Faculdade de Direito da UnB, Brasília): “a habilidade de ver o outro como diferente e saber colocar-se no lugar dele, e desse modo, desenvolver a capacidade de imaginar e de compreender, essencial na formação do bacharel”.
Estas questões são levantadas no momento em que se apresenta à sociedade o Ministro Luiz Fux, mais novo integrante da Corte Suprema do país, descrevendo o seu próprio perfil e traçando o que deve ser o modelo de juiz (Nós, os juízes, Folha de São Paulo, Seção Tendências/Debates, 3/3/11, pág. 3): “cumpre ao juiz combater o farisaísmo, desmascarar a impostura, proteger os que padecem e reclamar a herança dos deserdados pela pátria, sem esquecer de que, diante da injustiça da lei, hão de prevalecer a beleza, a caridade e a poesia humanas”.
Esperava-se, diante da promessa contida nessas palavras, que o novo ministro viesse se juntar àquela estirpe de juízes que, no Supremo Tribunal Federal - Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva - souberam exercitar a compreensão plena do ato de julgar, rejeitando a falsa oposição entre o político e o jurídico, ao entendimento de que, para se realizar, “a justiça não deve encontrar o empecilho da lei”. Provedores de uma justiça poética é esta estirpe de juízes que, lembra Josaphat Marinho em discurso de homenagem a Víctor Nunes Leal na UnB, citando Aliomar Baleeiro, leva a jurisprudência do Supremo a andar pelas ruas porque, “quando anda pelas ruas, colhe melhor a vida nos seus contrastes e se prolonga pela clarividência da observação reduzida a aresto”. Sua primeira decisão, entretanto, desconforme ao sentido de realização de valores propugnados pelo sujeito constitucional – o próprio povo -, aponta para um adiamento desta expectativa.