sábado, 28 de novembro de 2015

Cartas de Bolonha: meu luto é de fundo de quintal




Por Patricia Vilanova Becker*

A capa da edição digital do jornal Corriere della Sera traz a foto de sutiãs formando as cores da bandeira francesa em uma janela parisiense. A imagem me imobiliza. Me pergunto o que queria expressar o editor (um homem? Um grupo de homens?) quando escolheu a foto para estampar a notícia central. As mulheres, representadas de maneira estereotipada pelo simbolo da femme fatale, estariam engajadas na luta de Hollande quando afirma que “a França fara de tudo contra o terrorismo, sem piedade, para proteger os nossos filhos”? Ontem, os jornais italianos noticiavam que Paris amanheceu com as cores da bandeira francesa em suas janelas, e que o presidente François Hollande afirmou que “os autores das tragédias de Paris mataram em nome de uma causa louca e de um Deus traído.

Na noite de 13 de novembro, não demorou muito para que a noticia chegasse ao Whatsapp dos amigos que estavam comigo. E logo, ao Facebook. A rapidez com que a notícia chegou nas minhas redes brasileiras foi igual a que chegou nas minhas redes italianas. E a sensação era de que os atentados haviam ocorrido no quintal de todos nós. No quintal do "nosso" mundo pretensamente ocidental. Minhas redes, compostas por ativistas brasileiras, latinas e um punhado de europeias, foi inundada por um debate cada vez mais intenso e presente: quais são as mortes que merecem ser choradas? Entre análises dicotômicas, humanismos, (pós)colonialismos, eurocentrismos e relativismos vários, minha suspeita era apenas uma: o Sul do mundo quer reivindicar o seu próprio luto. As subalternas querem chorar pela morte dos seus irmãos e irmãs subalternizadas. Queremos chorar nossa própria dor. 

Deste lado de cá, os jornais noticiam que Hollande encontrou o presidente Vladimir Putin em Moscou para definir as ações coordenadas entre Rússia e França. "Estamos prontos para este trabalho conjunto, o consideramos absolutamente necessário, e nesse sentido nossas posições coincidem”, afirma Putin. A Alemanha comunicou que mandará o seu caça “Tornado” e um navio de guerra. No Reino Unido, o premier David Cameron propôs ao parlamento o envio de misseis britânicos, já enviados ao Iraque, também para a Síria: “Seria equivocado para a Gra-Bretanha confiar sua própria segurança a outros países. Devemos combater estes terroristas agora”, noticiam os jornais. E na Itália, a mídia fala da posição frágil de Renzi, que não estaria oferecendo uma ajuda significativa à Paris. Mas não esqueçamos dos Estados Unidos de Obama, que desde o início não deixou duvidas de qual política imperaria: “França e EUA estão unidos, em total solidariedade para levar a justiça a esses terroristas”. 

Na Itália, em uma Bologna progressista e estudantil, dias antes do atentado em Paris, a extrema direita do partido Lega Nord com Matteo Salvini e Berlusconi invadiu a Piazza Maggiore, que foi bravamente defendida pela esquerda antagonista, que por sua vez foi covardemente reprimida pela policia fascista. Uma corrente humana de jovens, estudantes, imigrantes, trabalhadoras reivindicavam que Bologna era “rossa” - vermelha nos muros e no espirito. Como resposta, gritos de ódio racista insultavam imigrantes, acompanhados de saudações do tempo de Mussolini. Os jornais italianos falam em “crise global”, como manda a cartilha eurocêntrica. Ao que tudo indica, os muros da Europa já não conseguem mais manter do lado de fora as vidas precarizadas pelas guerras que sustenta e pela desigualdade que gera. Ísis, muçulmanos, terrorismo, refugiados, segurança, imigrantes, religião, ódio. Palavras que estampam as capas dos jornais lado a lado sugerindo um mesmo universo semântico e contribuindo para a ignorância generalizada.

Voltamos às redes sociais e às mortes que merecem ser choradas: demonstrar solidariedade colocando um filtro da bandeira francesa na foto de perfil? Colocar um filtro representando a dor de Mariana? Comentaristas falaram em hierarquização das dores, em indiferença diante das mortes de Paris. De alguma forma, compartilhar notícias sobre pessoas mortas em países subalternos como Síria e Palestina parecia um manifesto de indiferença às mortes de Paris ou uma tentativa de ofender a dor francesa. O luto francês, por alguns dias, tornou-se o luto dos lutos. Chorar qualquer outra morte parecia uma afronta à dor francesa – a dor legitima. Judith Butler, filosofa estadunidense, lembra na obra Precarious Life que as vidas precárias são choradas por outras vidas precárias. Nossos mortos são chorados no fundo de nossos quintais subalternos, baixinho, para que nosso pranto não incomode o sono dos vizinhos do Norte. Entretanto, somos convocadas continuamente para fazer figuração no funeral dos patrões: precisam do nosso pranto para nos convencer de que sua dor é universal. E nossas lágrimas são utilizadas para justificar políticas transnacionais de medo e violência. Por ora, escolho chorar Mariana, Síria, Palestina, e todas as outras que são milhares. 


*Patrícia Vilanova Becker integra o Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua; mestranda em Direito pela UnB, participa atualmente do Programa Erasmus Mundus Master´s Degree in Women's and Gender Studies na Universidade de Bolonha e Universidade de Oviedo.

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

A Universidade não Precisa de Ministério: Entrevista (íntegra) concedida pelo Professor José Geraldo de Sousa Junior ao Jornal do Professor, n. 27, da ADUFG

1 - Na história da formação das universidades no Ocidente, e considerando o Manifesto de Córdoba, como o senhor avalia a autonomia das universidades federais em relação à legislação brasileira hoje? A Universidade, mais precisamente, a universidade ocidental já é quase milenar. Essa longevidade dá a medida de seu caminho em percurso para se fazer singular e reconhecível como instituição cuja trajetória a distinga de qualquer outra, inclusive o Estado que, historicamente, se institucionaliza muito tempo depois e, na sua feição atual, é uma experiência do Século XIX, quando se formam os estados nacionais alemão e italiano. Esse percurso, com as etapas que o demarcam e que Helgio Trindade descreve tão bem, conforme o artigo (“Por um novo projeto universitário: da ‘universidade em ruínas’ à ‘universidade emancipatória’”) que inclui em livro que organizei (“Da universidade necessária à universidade emancipatória”, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2012), implica compreender as transições institucionais pelas quais passou, desde os tempos medievais, chegando à modernidade, nos formatos estatais do modelo francês de escolas de profissão e prussiano , no modelo humboltniano de sistema de pesquisa, até chegar ao formato latino-americano, na linha do manifesto de Córdoba, como experiência participativa e de inclusão, uma universidade necessária, comprometida com as expectativas de sociedades em profunda transformação, perseguindo projetos libertários que orientam seu percurso para utopias de emancipação social, política e de criação de conhecimentos. A autonomia em sentido próprio é uma memória da historicidade institucional. No tocante às universidades, é a memória de sua origem institucional histórica, anterior à formação do Estado, este entendido enquanto a articulação moderna de conhecimento (técnico/científico/burocrático, em termos weberianos), de poder (a política retirada da sociedade e restringida ao aparato (legislativo/judiciário/administrativo) e o direito (antes plural e distribuído no social agora exclusivamente legal), em face da pretensão monopolizadora daí decorrente. Assim, as universidades que surgiram com capacidade de auto-governo e auto-normatização surgiram portanto, propriamente autônomas (etimologicamente, auto – a si próprias; aptas a se outorgarem o nomos – isto é, o direito). O eco dessa experiência se contêm na definição constitucional corrente, segundo a qual, como no caso brasileiro, “as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial” (CF, art. 207). Na prática política, entretanto, esses valores acabam se confrontando com a disposição de poder que se nucleou, por exemplo, no estado, e acabam definhando, à falta de compartilhamento de modos de compreensão que amparem o seu sentido e alcance. Ainda mais quando a universidade perde o simbolismo de seu lugar excelente e único – o de ser o lugar exclusivo no qual os conhecimentos se percebem livres para o diálogo pleno descolonizado e confiante – e fica nivelada num imaginário burocrático que torna homogêneas todas as instituições vistas na modelagem de meras repartições administrativas, como como acontece no imaginário das chamadas “culturas” legislativas, regulamentadoras, judicantes e correicionais. Como já disse em outra ocasião (Entrevista para a Revista Adverso, da ADUFRGS; também no Jornal do Professor Adufg – “Autonomia universitária, historicidade, princípios e tensões”, ano III, n. 25, setembro de 2015, pág. 2), o caminho para a construção da autonomia é longo e tortuoso porque a emancipação não é um dom é uma tarefa, não obedece a voluntarismos carismático-autoritários e só faz sentido se pautar-se em plataformas coletivas correspondentes a projetos de sociedade, já que socialmente e epistemologicamente ninguém se emancipa sozinho. 2 - Quais os principais efeitos da Ditadura Militar no Brasil (1964-1985) para a universidade pública brasileira? A meu ver foi interromper um projeto republicano, laico, de qualidade, fundado na autonomia institucional e com valorização social e profissional do educador. A configuração da denominada universidade necessária, proposta por Darcy Ribeiro, no estuário do manifesto de Córdoba e tão bem acolhido pelo Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932), cujos princípios Anísio Teixeira trouxe para fundamentar as propostas de criação da Universidade do Distrito Federal e, com Darcy para a UnB. Ali os valores da educação como função essencialmente pública, apoiada na autonomia da função educacional, no caso das universidades, no dizer do Manifesto, “inteiramente gratuita (para) atender, de fato, não somente a formação profissional e técnica, no seu máximo desenvolvimento, como à formação de pesquisadores, em todos os ramos de conhecimentos humanos (...) organizada de maneira que possa desempenhar a tríplice função que lhe cabe...”.Vale dizer, exercer lealdade ao conhecimento civilizatoriamente criado, mas contribuir para a solução dos problemas do país e do povo. Esse projeto de nação, com o valor que nele salvaguarda a ação estratégica da universidade foi inteiramente interrompido pelo autoritarismo, com o encurtamento do espaço autônomo de criação e de responsabilidade social da universidade. Veja-se, a propósito, o livro de Roberto Salmeron (“A Universidade Interrompida: Brasília 1964-1965”) da Editora UnB. Em Prefácio que fiz para a re-edição desse livro, em simbolismo comemorativo do jubileu da UnB, fiz questão de mostrar a inserção da avaliação dessa interrupção como uma marca de memória que coloca a violência sofrida pela universidade, como uma exigência da justiça de transição, de modo a identificar a agressão institucional como um item da reparação à memória e à verdade feridas, com a recuperação do sentido democrático de um projeto tão cruentamente interrompido e que precisa ser resignificado. 3 - Como as universidades federais perdem autonomia na relação com Estados, governos e parlamentos? Tratei disso no artigo recente que o Jornal do Professor publicou. Na prática política, a autonomia, como uma construção institucional e um valor, se confronta com a disposição de poder que se nucleou, por exemplo, no estado, e acaba definhando, à falta de compartilhamento de modos de compreensão que amparem o seu sentido e alcance. Ainda mais quando a universidade perde o simbolismo de seu lugar excelente e único – o de ser o lugar exclusivo no qual os conhecimentos se percebem livres para o diálogo pleno descolonizado e confiante – e fica nivelada num imaginário burocrático que torna homogêneas todas as instituições vistas na modelagem de meras repartições administrativas, como como acontece no imaginário das chamadas “culturas” legislativas, regulamentadoras, judicantes e correicionais. É aí que algumas “singularidades” emergem, como novidades que ganham reconhecimentos ampliados: agências reguladoras, bancos centrais, estruturas de intervenção em mercados. Junto com o reconhecimento dessas “singularidades”, vêm as regras de autonomia: consultoria jurídica própria e não da AGU para o Banco Central, liberação do requisito licitatório para a Petrobrás por reconhecimento do espaço especial do mercado e da bolsa internacionais, estatuto de autonomia para as agências (reguladoras) etc. Por que não estabelecer um estatuto próprio (lei orgânica) para as universidades, considerando a sua história e a complexidade que elas movem em todas as dimensões do processo de produção do conhecimento, da política, da economia, das relações internacionais, da governança...? 4 - Que universidade brasileira teria melhores condições de negociação política com o Estado? Que universidade o professor elegeria como um bom modelo de autonomia no Brasil? Em várias Constituições esse modelo já foi estabelecido, como por exemplo, na Finlândia, onde até a legislação de ensino, produzida legislativamente, só entra em vigor, na universidade nacional, quando e se aprovada pelo seu Conselho dirigente. Mas no Brasil mesmo há modelos aperfeiçoáveis como o das universidades paulistas, sustentáveis na forma de destinação tributária para seu financiamento e com a configuração de um ato complexo (manifestação da universidade para a composição de listas submetidas à escolha do governador). A experiência da UnB também é exemplar, embora logo frustrada, primeiro pela ditadura e em seguida pela gula burocrática. Não custa lembrar que a lei de criação da UnB (lei 3998/1961), ainda em vigor apesar de ab-rogada em parte por uma hermenêutica de contenção, trouxe de forma expressa vários artigos definidores de uma autonomia, com fundos e patrimônio para a sua sustentação, diretrizes de auto-governo estatutário e a preciosidade que se lê no seu artigo 14: “Na organização de seu regime didático, inclusive de currículo de seus cursos, a Universidade de Brasília não estará adstrita às exigências da legislação geral do ensino superior...”. 5 - Paridade nas eleições para reitor e na formação de conselhos superiores é uma questão fundamental para a autonomia universitária? Com certeza. E essa é uma discussão que vem se acumulando no debate de aprofundamento da dimensão política da organização universitária. Muitas instituições já vem inserindo essa possibilidade no procedimento criativo de organização gestora das instituições e, na prática a paridade já se funcionaliza. É certo que há tensões e recalcitrâncias no interior das próprias instituições, especialmente nas IES, muito mais ligadas a posicionamentos corporativos que a princípios. Lembremos que as maiores e mais importantes universidades medievais, Bolonha, Pádua, Oxford, tenham como reitores,,,os estudantes, que a geriam recrutando os professores, Galileu, Falópio, sem contudo se intrometerem na sua autonomia programática. Como lembra meu antigo orientador o Professor Roberto Lyra Filho, que me legou a responsabilidade de construir o projeto O Direito Achado na Rua, salvaguardar a autonomia incluindo nesse conceito a gestão participativa, é um requisito para o alargamento das condições democráticas de descolonização do saber. Conforme ele registrava em seu último escrito (1986), a um mês de morrer, é irremediavelmente necessário: “Democratizar, inclusive, a universidade, para a co-gestão de professores, estudantes e funcionários, desmascarando o sofisma da reação, que recusa o chamado ‘assembleismo’, a fim de manter a ditadura dos autoproclamados ‘competentes’: é claro que não se pode resolver um problema científico pelo voto, mas pose-se determinar pelo voto paritário a direção dos programas, a distribuição das verbas, a administração e, em geral, o destino da instituição”. Esses pontos, aliás, ele já havia antecipado em célebre conferência proferida em 1985 – A Constituinte e a Reforma Universitária – com sugestões a um texto para a Constituição, somente aprovada dois anos após a sua morte. Por esta razão há projetos no parlamento atribuindo às universidades, no plano estatutário,definir, de forma autônoma, as formas de gestão e as escolhas de seus dirigentes. E não se diga que a lei é um obstáculo porque, hermeneuticamente, ela é apenas um ponto de partida. Propus essa questão, em termos constitucionais, ao grande Mestre Gomes Canotilho, nestes termos e a sua resposta é a que melhor se presta a entender as possibilidades hermenêuticas para essa possibilidade expandida. Eis como ele resolve o problema posto, segundo a pergunta precisa que lhe fiz: “A multiplicidade de sujeitos que se movem no debate constitucional contemporâneo tende a abrir expectativas de diálogo político estruturado na linguagem do Direito. Para usar uma expressão sua, quais as principais ‘posições interpretativas da Constituição’ que emergem desse processo?” Em sua resposta, que poderia bem servir a uma disposição intelectual, satisfeita na indolência, até que seja sacudida e se mostre disposta a ir para o meio da rua, mostra Canotilho um caminho possível: “Boa pergunta! Em trabalhos anteriores demos conta de que a ‘luta constituinte’ era (e é) uma luta por posições constituintes e de que a lógica do ‘pluralismo de intérpretes’ não raro escondia que essa luta continuava depois de aprovada a constituição. A interpretação seria afinal um ‘esquema de revelações’ de precompreensões políticas. Continuamos a considerar que a metódica jurídica reflecte todas as dimensões de criação e aplicação das normas jurídicas e a prova disso é a de que as diferenças entre legislação (legislatio), jurisprudência (jurisdictio), e doutrina (jurídica e política) surgem cada vez mais imbricadas e flexíveis. De qualquer forma, o elemento central da nossa posição reconduz-se ainda à ideia de conformação constitucional dos problemas segundo o princípio democrático e não de acordo com princípios a priori ou transcendentais. Se vemos bem as coisas, as dificuldades da metódica jurídica residem mais na sua rotina e falta de comunicação com outros horizontes de reflexão como a sociologia e a filosofia do que nos seus pontos de partida quanto à investigação e extrínsecação do sentido das normas para efeito de sua aplicação prática” (C & D, 2008: 13). É assim que deve ser entendida a disputa em curso posta hoje no espaço da Unila: muito recentemente, o Ministério Público Federal promoveu ação civil pública contra a UNILA – Universidade Federal da Integração Latino-Americana e contra a União, a primeira para anular dispositivo de Estatuto e Regimento que prevêem regra de paridade para a composição do Conselho Universitário e comissões, ao invés de adotar a proporcionalidade docente indicada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação; à União, para suspender o procedimento de credenciamento da própria Universidade, enquanto não satisfeita a exigência de adequação legal de setenta por cento de assentos ocupados por docentes. De notar que o ajuizamento da ação decorre de moção de professores da UNILA, arrolados em listas com o objetivo de denúncia contra a disposição estatutária aprovada pela própria Instituição. Vê-se, pois, que esse tema não é apenas retórico, mas se reveste de dramaticidade histórica e política que disputa princípios e provoca tensões. 6 - A emancipação universitária se calca melhor no ensino, na pesquisa ou na extensão? Como o senhor avalia a necessidade desse tripé para a autonomia universitária? Creio já ter respondido essa questão, ao menos nas entrelinhas de considerações feitas antes. 7 - As universidades federais cresceram muito nos últimos oito anos com o Reuni e passaram a gastar muito mais. Quais os limites do debate da autonomia universitária dentro da questão orçamentária? Já me referi a esse limite no artigo que publiquei no Jornal do Professor. Volto a dizer, quando a universidade perde o simbolismo de seu lugar excelente e único – o de ser o lugar exclusivo no qual os conhecimentos se percebem livres para o diálogo pleno descolonizado e confiante – e fica nivelada num imaginário burocrático que torna homogêneas todas as instituições vistas na modelagem de meras repartições administrativas, como como acontece no imaginário das chamadas “culturas” legislativas, regulamentadoras, judicantes e correicionais. Todo o debate funcional fica restrito às posturas burocráticas, especialmente no terreno orçamentário. Entretanto, mesmo nesse âmbito restrito é possível ampliar possibilidades. Ao tempo em que exerci o reitorado fui, no seio da Andifes, presidente da Comissão de Autonomia da entidade. Nessa ocasião, sendo a autonomia o eixo político necessário ao implemento da execução da política de expansão e de reestruturação (Reini) foi necessário construir com o Estado (Governo, Legislativo, Judiciário) pautas confiáveis para a implementação dessa política estratégica. Foi assim que pusemos em relevo, no MEC, no MCT, no Tribunal de Contas, a agenda melhor gestão do sistema administrativo e orçamentário, por exemplo, com a nova reguylamentação das fundações, mais apropriáveis à direção dos Conselhos das universidades para se constituírem como escritórios de gestão de seus projetos, sem os riscos de ações impróprias às finalidades do sistema público; da mesma maneira, todo um conjunto de procedimentos administrativos e orçamentários foram implementados para fazer fluir com continuidade a gestão financeira das instituições, para preservar seus créditos e evitar a interrupção de projetos. Foram inúmeras as gestões nesses órgãos para compor uma agenda que foi, exatamente, denominada agenda da autonomia. 8 - Como as leis de ações afirmativas impactam a autonomia universitária? De vários modos e de forma emancipatória principalmente. Lembre-se que foi a partir das ações autônomas das universidades que a política de cotas foi implementada, provocando reações governamentais-legislativas para expandi-las. Aliás, foi a partir do julgamento da ADPF que examinou no Supremo Tribunal Federal, por interpelação do Partido Democratas, a política da UnB, que essa política se universalizou, antes considerando o STF que a iniativa universitária realizava a Constituição seja porque cumpria a sua promessa de equidade, seja porque materializava o princípio da autonomia própria a essas instituições. E, foi também com base nesses fundamentos que o Superior Tribunal de Justiça legitimou a política de instituição de turmas especiais, como a de Direito, para assentados da reforma agrária (Pronera), a partir do modelo da UFGO, abrindo ensejo para que outras IFES adotassem o modelo. E foi com a argumentação dentre outros interlocutores, também os Reitores que o TCU recuou de sua posição de glosar os convênios com o INCRA, para o financiamento desses programas. 9 - Como imaginar uma universidade autônoma na perspectiva da sociedade? Para além da construção simbólica de seu valor civilizatório, estratégico para o desenvolvimento do país e a formulação de projetos de sociedade e de nação, creio que é necessário imaginar novas institucionalidades. Penso numa Lei Orgânica das Universidades que atualize o modelo mais avançado de autonomia para a sua gestão, assim como penso que as universidades não precisam de um ministério que as supervisionizem, se se pudesse instituir um Conselho Nacional das Universidades Brasileiras capaz, de com base na Lei Orgânica que viesse a se estabelecer, permitir a autogestão política, administrativa, financeira e acadêmicas dessas instituições. 10 - Professores reclamam que a lei de licitações é ultrapassada, e terminam aumentando custos de obras e comprometendo orçamento de universidades. Como o senhor avalia o modelo de fundações? Eles têm razão. Minhas duas respostas anteriores contribuiriam, se levadas em conta as indicações, para superar esses limites. 11 - Há mesmo uma expectativa privatizante no futuro da universidade pública brasileira? Como o professor avalia a cobrança em cursos de pós-graduação lato sensu? Na minha visão as universidades cumprem função constitucional que estabelece ser a educação um bem social, de natureza pública. O serviço que a universidade oferece deve ter essa mesma natureza. O cidadão não pode ser onerado ao requisitá-lo e obtê-lo nas formas ainda seletivas com que são oferecidas. Isso não impede que possa haver, como permite a CF, oferta privada desses serviços, respeitados os seus fundamentos sociais. Mas nas universidades públicas, custeadas com recursos originados do custeio tributário, não. O que também não quer dizer que demandas não universais, mas apenas corporativas e no interesse igualmente corporativo, não possam ser financiadas por corporações, desde que atendidos os fins públicos das instituições que os produzam. Neste aspecto exclusivo, corporativo, não transferido ao indivíduo-profisional, penso ser possível o financiamento privado, garantida a distribuição pública (repúdio à privatização por dentro, por meio de grupos) dos recursos desse modo obtidos. 12- No evento “universidade do futuro”, realizado na UFRGS, tu afirmou que a autonomia nas universidades pode ser construída, mas não pode ser absoluta. Quais são os limites da construção dessa autonomia? Os limites são os que acabei de indicar, no plano institucional, principalmente, a concomitância, às vezes concorrente, às vezes, cooperativa entre a universidade e o Estado; no plano teórico, os impasses entre a expectativa de lealdade presumida e a condição intrinsecamente crítica da interpretação que a universidade desenvolve acerca de todos os processos que se articulam em seus espaços de pesquisa, de ensino e de interação com os outros corpos sociais. Essa construção é tensa e precisa ser “negociada” contínua e legitimamente, sem arrogância, sem prepotência, sem corporativismo, de modo solidário e nos moldes democráticos. O limite é o horizonte de compreensão e de capacidade política para pactuar e afirmar a importância, a singularidade, a relevância da instituição universitária, algo que sempre se realizou na prova da experiência histórica. 13- Há um grande debate sobre o formato de eleição dos reitores das universidades federais. O que você pensa a respeito? O grande debate se trava entre essas duas polarizações: a busca de autonomia e de aut-governo que é a seiva de que se nutre o desenvolvimento da própria concepção de universidade e a pretensão de potência da centralidade estatal que não abre mão de controles, mesmo quando se vivencia a experiência inédita em curso no nosso país, de radicalizar o experimento democrático da participação e do protagonismo político do social emancipado. O que penso, é que devemos insistir nesse desiderato. A democracia é um caminho sem fim e sem pré-condições e o desenvolvimento institucional é um experimento necessário que deve ser perseguido. O modo participativo, em diálogo com a cidadania para além do corporativismo, deve ser a meta de busca autônoma (conforme lei orgânica e previsão de estatutos) de definição de métodos de escolha de dirigentes e de modos deliberativos. Quanto mais restrito o modelo e mais fechado em gabinetes ou em grupos restritos de decisão, mais empobrecedor é o desenvolvimento da institucionalidade universitária. 14- Quais medidas um governo realmente comprometido com a autonomia universitária deveria tomar? Penso que deve construir com o sistema universitário a sua caracterização, modelo e forma de gestão sustentável e pactuar uma lei orgânica e um estatuto básico que permita a realização desse princípio. 15- Mais autonomia significa mais qualidade às universidades públicas? Com certeza. Uma universidade autônoma é mais experimental. Penso na minha universidade e a partir dela, penso no potencial realizador que a autonomia pode trazer para essa instituição enquanto modelo presente na utopia civilizatória. A partir da UnB, penso com Darcy Ribeiro que desenhou seu modelo autônomo, a universidade, segundo ele, vocacionada para realizar aquelas lealdades que seu projeto originário propunha: ser leal aos padrões civilizatórios do conhecimento internacionalmente realizável, mas ser, igualmente, leal para com a sociedade e o País no sentido de imprimir a esse conhecimento o dever e o compromisso de buscar solucionar os problemas do País e da sociedade. Conforme registrei no livro que acima mencionei, “isso é uma reserva utópica, esta capacidade de agir que é própria de espíritos pioneiros, para lidar com as dificuldades, com os obstáculos, que foram tremendos, porque foram estruturais, foram próprios de um País emergente, de uma cidade em construção e de numa sociedade que nunca lidou bem com o fator emancipatório do conhecimento”. 16- Quais são os principais pontos em que a falta de autonomia atrapalha a gestão de uma universidade? (podes citar exemplos ocorridos durante sua gestão frente à UNB) Durante o meu reitorado, como membro da Andifes, a associação dos dirigentes dos reitores das instituições federais de ensino superior, tive o ensejo, com a confiança de meus colegas e de minhas colegas reitores e reitoras, de presidir a Comissão de Autonomia da Andifes. Ali pudemos construir uma agenda de conjuntura, que apontado para a dimensão orgânica da autonomia, procurasse identificar os obstáculos e restrições ao agir administrativo num cotidiano pasteurizado e nivelado como se todas as “repartições públicas” fossem equivalentes. Chegamos a elaborar, com a participação dos Ministérios da Educação e de Ciência e Tecnologia e do Tribunal de Contas, um conjunto regulamentar de procedimentos orçamentários e de gestão administrativa, financeira e de fundações (recuperadas para exercício sob diretriz dos colegiados das universidades). Foi operante mas não suficiente e deixou um balizamento para uma agenda mais estrutural que deve ser objeto de uma deliberação pactuada legislativamente na forma de uma lei orgânica. Na minha experiência localizada, isto é, na própria UnB, os problemas enfrentados foram esses problemas comuns. Porém um me inquietou mais, em aspecto que considero importante. A submissão, no plano da pesquisa acadêmica, a um modelo produtivista de adequação globalizada a um padrão de conhecimento que desconhece a singularidade autônoma do saber, espontaneamente construído por indicadores e metas que a própria universidade possa elaborar. Também registrei isso no livrinho mencionado e ali deixei a minha posição: “Acho que é frustrante pensar que o desejo de inventar e de criar pode ser reprimido porque o pesquisador tem de preencher os dados estatísticos de um currículo padrão (Lattes) ou publicar numa revista que pontua por determinados padrões. Não que isso seja negligenciável, mas não pode se conter num mecanismo de adequação conformada. É preciso que a Universidade continue autonomamente identificando que temas ela vai colocar como horizonte de seu talento criador”. Repito aqui o que disse então e penso como acho pensaria por exemplo Darcy Ribeiro, o quanto gostaria de ver estimulados no agir universitário, temas que estejam mais no horizonte insubordinado de criação de novas agendas, agendas que são importantes para o nosso País e para o desenvolvimento das condições de formação de uma nação emancipada. Abraço, Autonomia universitária, historicidade, princípios e tensões José Geraldo de Sousa Junior Professor e Ex-Reitor da UnB (2008-2012) Em maio deste ano participei em Porto Alegre, em evento promovido pelo Instituto Latino-Americano e pela ADufrgs/Sindical, de um ciclo de debates, denominado A Universidade do Futuro. A propósito dessa participação, a revista da Associação publicou uma entrevista contento um conjunto de pontos de vista dos quais reúno alguns apontamentos para este texto. Ali, a abordagem era mais reflexiva, seguindo uma diretriz abstrata sobre um tema recorrente. Ocorre que, muito recentemente, o Ministério Público Federal promoveu ação civil pública contra a UNILA – Universidade Federal da Integração Latino-Americana e contra a União, a primeira para anular dispositivo de Estatuto e Regimento que prevêem regra de paridade para a composição do Conselho Universitário e comissões, ao invés de adotar a proporcionalidade docente indicada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação; à União, para suspender o procedimento de credenciamento da própria Universidade, enquanto não satisfeita a exigência de adequação legal de setenta por cento de assentos ocupados por docentes. De notar que o ajuizamento da ação decorre de moção de professores da UNILA, arrolados em listas com o objetivo de denúncia contra a disposição estatutária aprovada pela própria Instituição. Vê-se, pois, que esse tema não é apenas retórico, mas se reveste de dramaticidade histórica e política que disputa princípios e provoca tensões. A Universidade, mais precisamente, a universidade ocidental já é quase milenar. Essa longevidade já dá a medida de seu caminho em percurso para se fazer singular e reconhecível como instituição cuja trajetória a distinga de qualquer outra, inclusive do Estado que, historicamente, se institucionaliza muito tempo depois e, na sua feição atual, é uma experiência do século XIX, quando foram formados os Estados nacionais alemão e italiano. Esse percurso, com as etapas que o demarcam e que Helgio Trindade descreve tão bem, conforme o artigo (“Por um novo projeto universitário: da ‘universidade em ruínas’ à ‘universidade emancipatória’”) que inclui em livro que organizei (“Da universidade necessária à universidade emancipatória”, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2012), implica compreender as transições institucionais pelas quais passou, desde os tempos medievais, passando pela modernidade, nos formatos estatais do modelo francês de escolas de profissão e prussiano , no modelo humboltiano de sistema de pesquisa, até chegar ao formato latino-americano, na linha do manifesto de Córdoba, como experiência participativa e de inclusão, uma universidade necessária, comprometida com as expectativas de sociedades em profunda transformação, perseguindo projetos libertários que orientam seu percurso para utopias de emancipação social, política e de criação de conhecimentos. Esse caminho é longo e tortuoso porque a emancipação não é um dom, é uma tarefa, não obedece a voluntarismos carismático-autoritários e só faz sentido se estiver pautado em plataformas coletivas correspondentes a projetos de sociedade, já que socialmente e epistemologicamente ninguém se emancipa sozinho. A autonomia em sentido próprio é uma memória da historicidade institucional. No tocante às universidades, é a memória de sua origem institucional histórica, anterior à formação do Estado, este entendido enquanto a articulação moderna de conhecimento (técnico/científico/burocrático, em termos weberianos), de poder (a política retirada da sociedade e restringida ao aparato (legislativo/judiciário/administrativo) e o direito (antes plural e distribuído no social, agora exclusivamente legal), em face da pretensão monopolizadora daí decorrente. Assim, as universidades que surgiram com capacidade de auto-governo e auto-normatização surgiram portanto, propriamente autônomas (etimologicamente, auto – a si próprias; aptas a se outorgarem o nomos – isto é, o direito). O eco dessa experiência se contêm na definição constitucional corrente, segundo a qual, como no caso brasileiro, “as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial” (CF, art. 207). Na prática política, entretanto, esses valores acabam se confrontando com a disposição de poder que se nucleou, por exemplo, no Estado, e acabam definhando, à falta de compartilhamento de modos de compreensão que amparem o seu sentido e alcance. Ainda mais quando a universidade perde o simbolismo de seu lugar excelente e único – o de ser o lugar exclusivo no qual os conhecimentos se percebem livres para o diálogo pleno descolonizado e confiante – e fica nivelada num imaginário burocrático que torna homogêneas todas as instituições vistas na modelagem de meras repartições administrativas, como acontece no imaginário das chamadas “culturas” legislativas, regulamentadoras, judicantes e correicionais. Os limites se encontram, portanto, no plano institucional, principalmente, a concomitância, às vezes concorrente, às vezes, cooperativa entre a universidade e o Estado; no plano teórico, os impasses entre a expectativa de lealdade presumida e a condição intrinsecamente crítica da interpretação que a universidade desenvolve acerca de todos os processos que se articulam em seus espaços de pesquisa, de ensino e de interação com os outros corpos sociais. Essa construção é tensa e precisa ser “negociada” contínua e legitimamente, sem arrogância, sem prepotência, sem corporativismo, de modo solidário e nos moldes democráticos. O limite é o horizonte de compreensão e de capacidade política para pactuar e afirmar a importância, a singularidade, a relevância da instituição universitária, algo que sempre se realizou na prova da experiência histórica. Existem modelos de autonomia universitária no mundo que podem servir de parâmetro para as universidades e mesmo entre as universidades brasileiras, que permitem leituras avançadas para aferir o sentido atualizado da autonomia. Em várias Constituições esse modelo já foi estabelecido, como por exemplo, na Finlândia, onde até a legislação de ensino, produzida legislativamente, só entra em vigor, na universidade nacional, quando e se aprovada pelo seu Conselho dirigente. Mas no Brasil mesmo há modelos aperfeiçoáveis como o das universidades paulistas, sustentáveis na forma de destinação tributária para seu financiamento e com a configuração de um ato complexo (manifestação da universidade para a composição de listas submetidas à escolha do governador). A experiência da UnB também é exemplar, embora logo frustrada, primeiro pela ditadura e em seguida pela gula burocrática. Não custa lembrar que a lei de criação da UnB (lei 3998/1961), ainda em vigor apesar de ab-rogada em parte por uma hermenêutica de contenção, trouxe de forma expressa vários artigos definidores de uma autonomia, com fundos e patrimônio para a sua sustentação, diretrizes de auto-governo estatutário e a preciosidade que se lê no seu artigo 14: “Na organização de seu regime didático, inclusive de currículo de seus cursos, a Universidade de Brasília não estará adstrita às exigências da legislação geral do ensino superior...”. É certo que a autonomia das universidades pode ser construída, mas não pode ser absoluta. Há limites, mas esses não podem ser estabelecidos por meio de leituras pobres que se descolem do sentido de fututo inscrito, por exemplo, na Constituição, ou sacrificados num exegetismo jurídico que perca o alcance atualizável do sentido da lei. Algo que transparece, exatamente onde menos se espera essa linha de consideração, referindo-me a última Bula do Papa Francisco (Misericordiae Vultus), e que os juristas e os burocratas da gestão bem podiam levar em conta, quando recomenda para a boa realização da Justiça, não “cair no legalismo, mistificando o sentido original e obscurecendo o valor profundo que a justiça possui” (nº 20). Afinal, as universidades têm singularidades próprias ao tipo de institucionalidades que realizam e não podem ser reduzidas na sua funcionalidade racional a um lugar comum de mera repartição governamental-administrativa.

domingo, 15 de novembro de 2015

Direito e Sociedade: mais uma reflexão*
 João Paulo Aguiar Moreira**

1. Introdução
       Este ensaio tem por objeto lançar luzes sobre algumas categorias relevantes do Direito e, nesse bojo, apontar as eventuais contribuições que esses esclarecimentos podem oferecem para renovar a relação entre Direito e Sociedade. Alertamos o leitor, de antemão, que a presente empreitada tem um ponto de partida preciso: a constatação de que o Direito, enquanto experiência normativa – no sentido mais amplo possível da palavra –, está inserido no campo das “ciências sociais aplicadas”, a qual, por sua vez, se insere no macrocampo das humanidades. Daí se depreende que o Direito nada mais é do que um pequeno ponto na imensidão do mar das dinâmicas sociais, razão pela qual o jurista que se dedica tão somente à exegese dos intermináveis códigos falha na missão de captar as implicações sociais de sua própria atividade, implicações estas que podem conduzir à própria reformulação dos conceitos de Direito e juridicidade . Em outras palavras, é preciso que o jurista se situe na sociedade de forma consciente. Não fazê-lo significa elitizar a prática jurídica, incorrendo no objeto da crítica feita por Karl Loewenstein por ocasião de sua Teoría de la constituición a respeito do que ele chamou de “erosão da consciência constitucional” :
“O direito constitucional se converteu para o leigo em uma ciência oculta; seu conhecimento está reservado a uma minoria de juristas profissionais na prática e na burocracia governamental. E não pode ser de outra maneira. As constituições são cada vez mais complicadas. As decisões políticas confirmadoras são domínio dos políticos; para sua execução são chamados tão somente os técnicos constitucionalistas e especialistas. A massa da população perdeu seu interesse na constituição, e esta, portanto, seu valor efetivo para o povo. Este é um dado indiscutível e alarmante. Os documentos constitucionais, bem pensados e articulados, foram considerados na época de sua primeira aparição como a chave mágica para a ordenação feliz da uma sociedade estatal. Hoje, manipulada pelos políticos profissionais, a constituição cessou de ser uma realidade viva para a massa dos destinatários do poder.”

2. Estado Democrático de Direito: paradoxo aparente
    
     Umas das formas de propiciar uma reaproximação entre Direito e Sociedade pode ser encontrada na adequada compreensão daquilo que chamamos de Estado Democrático de Direito. Este diz respeito a uma articulação interna entre Direito e Política, isto é, entre Constituição e Democracia. Por certo, umas das mais notórias análises sobre o tema pode ser encontrada na obra de Jurgen Habermas. Em “Era das Transições” , o autor procura demonstrar como o paradoxo suscitado pelo conceito é, tão somente, aparente; e como, na verdade, a compatibilização entre soberania popular e império das leis é não só possível, mas necessária na fundamentação do Estado Moderno.
     Sua análise parte da apresentação da relação entre o princípio democrático – que, sob uma ótica clássica, pode ser definido como a expressão da vontade ilimitada dos cidadãos reunidos – e o Estado de Direito que, por sua vez, parece estabelecer limites à autodeterminação soberana do povo, posto que a “supremacia das leis” exige que a formação democrática da vontade não se coloque contra os direitos humanos agora positivados na forma de direitos fundamentais. O império das leis se antepõe ao império do povo, suscitando a seguinte indagação: os direitos subjetivos de liberdade dos cidadãos ou os direitos de participação política dos cidadãos democráticos?
      A resposta de Habermas objetiva tratar os dois princípios como “co-origiários”. Aproximando essa relação àquela entre autonomia privada e pública, objetiva-se demonstrar que ambas são complementares, uma vez que assim como o uso adequado de uma autonomia pública, garantida por direitos políticos efetivos, só pode ser firmada por intermédio de uma independência na vida privada – direitos subjetivos em direção a direitos de participação política –, as cidadãos tomados como agentes na sociedade só podem usufruir de sua devida autonomia privada se fizerem uso de sua autonomia política – direitos de participação política em direção a direitos subjetivos. Nesse sentido, a amarra unificadora – entre os founding fathers e as gerações posteriores – que legitima os processos vigentes “consiste na prática comum a que recorremos, quando empreendemos esforços para atingir uma compreensão racional do texto da constituição” (HABERMAS, 2003, p. 167). De fato, no intuito de conferir legitimidade às leis que emanam de um conjunto institucional, é preciso que tal instituição tenha sido elaborada legalmente, de forma que os ordenamentos referentes a eleições, representações, associações, propriedade e etc. devem ter sido fruto de um processo comunicativo democrático, livre de distorções tanto no campo formal legislativo, quanto na sociedade participante como um todo. Logo, qualquer ato constituinte deve abrir “a possibilidade de um processo ulterior de tentativas que a si mesmo se corrige e que permite explorar cada vez melhor as fontes do sistema de direitos” (HABERMAS, 2003, p. 167).
     Sob esta ótica, Habermas pretende comprovar que a própria noção de direito fundamental nos remete a um processo de autolegislação – e portanto, uma espécie de autotutela permanente. Apoiando-se nas teorias contratualistas, o autor assevera que as pessoas, ao se reunirem com o objetivo de firmar um contrato social, percebem que devem, antes de darem origem a qualquer forma de ordenamento prático, definir o sentido desta prática, ou seja, a prática constitutiva limita-se, em um primeiro momento, a refletir sobre o sentido específico do projeto e, a partir daí, explicitá-lo. A conclusão que se toma é a de que nesse cenário hipotético de gênese conceitual dos direitos fundamentais, revelam-se, do próprio processo constitutivo, algumas exigências que, inevitavelmente, são colocadas como autolegislação democrática que se estrutura pelo dito “caminho do direito”. O princípio democrático somente pode ser concretizado em sintonia com a ideia de Estado de Direito, pois ambos encontram-se numa relação de implicação material: a relação entre autonomia do cidadão do Estado e a autonomia do cidadão da Sociedade é a de que uma não pode ser realizada sem a outra.

3. Direito e limites da racionalidade

     A relação entre Direito e Sociedade diz respeito, em certa medida, a um confronto entre saber técnico autorizado e vida prática. O processo de formação e aplicação de leis que tem por objetivo reger uma infinidade de condutas sociais multifacetadas por intermédio da edição de enunciados normativos unilaterais. Nessa esteira, somos remetidos aos limites da racionalidade humana.
      Interessante análise a respeito das implicações do juízo unilateral de edição de leis pode ser observada no artigo “Racionalização do Ordenamento Jurídico e Democracia” , de autoria de Menelick de Carvalho Netto. Neste, o procura-se tecer considerações acerta dos desafios que se colocam no caminho para a efetivação de direitos na realidade das dinâmicas sociais.
      Partindo do aparente conflito entre democracia e constitucionalismo já explorado, suscitado pela ideia de que quanto mais democrático for um regime político, menores serão os limites constitucionais impostos à vontade popular imperante – e vice-versa –, Carvalho Netto ressalta que ambos os princípios se complementam; supõem-se mutuamente. Isso de torna claro por meio da constatação de que “a democracia só é democrática se for constitucional” (CARVALHO NETTO, 2003, p. 83), posto que a vontade ilimitada da maioria que não encontra barreira no princípio contramajoritário nada mais é do que ditadura, do mesmo modo que “o constitucionalismo só é constitucional se for democrático” (CARVALHO NETTO, 2003, p.83), uma vez que a apropriação do texto constitucional para moldar o povo como se objeto fosse configura autoritarismo.
      Nesse sentido, defende-se que o constitucionalismo detém um caráter democrático intrínseco que desautoriza qualquer tentativa de se incluir nele experiências autoritárias ao longo da história. Nesses malfadados momentos, outorga-se um documento autodenominado “Constituição” que, ao invés de representar um núcleo garantidor de liberdades contra o autoritarismo dos governantes e a supremacia da maioria, funciona como um instrumento de opressão que privatiza o poder político. Fica claro que:

“somente um ordenamento jurídico principiológico, constituído por normas gerais e abstratas que passaram pelo crivo democrático da aceitabilidade de todos os afetados, ou seja, por um processo legislativo democrático, é capaz de transformar a legalidade em produtora de legitimidade” (CARVALHO NETTO, 2003, p.86).

      Nesse ponto, voltamos nossa atenção para a questão da pós-modernidade e para a superação do mito da razão moderna que seria capaz de revelar verdades universais. Assumindo a tese de que as leis científicas – assim como aquelas que emanam de um ordenamento jurídico – são, por definição, temporárias e invariavelmente refutáveis, Carvalho Netto defende que essa mesma incerteza se reflete no campo do direito, o qual passa a se voltar para o futuro na certeza de que será descumprido – sanção. O Direito, sob a ótica do Estado Democrático, surge como um espaço vazio; não esgotável. A própria Constituição se apresenta como essa moldura de um processo contínuo de aquisição, modificação e transformação de direitos fundamentais que nunca pode se fechar, ao risco de eliminar o próprio constitucionalismo da Constituição.
     Atestando o caráter móvel e aberto que o Direito carrega, o trabalho hermenêutico de aplicação do texto jurídico nas situações práticas – individuais e concretas – assume extrema importância. Sob este espírito, devemos abandonar a ótica clássica de aplicação mecânica da lei, que via no silogismo simples – o juiz como “boca da lei” – a chave para a concretização da experiência normativa. Abandonando o ideal de primazia da racionalidade humana, devemos elaborar princípios mais operacionais, sem nunca se esquecer de assumir a elasticidade da aplicação de normas gerais e abstratas diante da complexidade da vida.
     Dessa evidência advém a precariedade das decisões judiciais no bojo de uma sociedade republicada constitucional que já de deparou com o “fato do pluralismo”.
     Ousamos acrescentar, ainda, que a prevalência do Poder Judiciário no paradigma do Estado Democrático de Direito se dá, entre outros fatores, em função da constatação da provisoriedade da racionalidade humana – aqui entendida como esse duplo empreendimento de (I) procurar solucionar os conflitos que se põem e (II) manter visível a noção de que qualquer solução, por mais debatida que seja, é constitutivamente precária e estupidamente insuficiente.

4. Conclusões parciais e possíveis direcionamentos

    Uma valorosa tentativa de dar forma aos apontamentos supracitados pode ser observada na Escola do “Direito Achado na Rua”. Cuida-se de movimento nascente das discussões de um grupo de intelectuais reunidos no movimento Nova Escola Jurídica Brasileira, que encontra em Roberto Lyra Filho seu principal expoente. Tratando-se, inclusive, de proeminente linha de pesquisa do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), o Direito Achado na Rua é, acima de tudo, um projeto transformador. Debruça-se sobre a tarefa de reconciliar prática e teoria para fundar novas possibilidades de pensar o Direito para além dos reducionismos irrefletidos desse ramo do conhecimento ainda contaminado com traços do positivismo de outrora.
      Por se situar no interstício entre Direito e Sociedade, o Direito Achado na Rua se constitui em iniciativa em permanente atualização, na medida em que a dinâmica social não descansa em apresentar novas e resignificadas demandas. Sob este prisma, a principal contribuição que o movimento oferece diz respeito a toda uma renovação da atividade jurídica tomada epistemologicamente, a qual, por intermédio de uma mudança de perspectiva a respeito de seus próprios conceitos, procura operar uma transição entre uma concepção autopoiética de Direito, estanque e independente, para uma visão do fenômeno jurídico-normativo multidimensional, capaz de dar cabo dos outputs sociais.
     Iniciativas dessa natureza são absolutamente necessárias no bojo da superação do projeto positivista para o Direito.
     No mais, damos cabo do presente ensaio imbuídos da pretensão de dar início a um debate permanente em torno da relação entre Direito e Sociedade. Nas palavras de Roberto Lyra Filho , a filosofia jurídica precisa transformar o dogma em problema “mas, para isso, tem de abandonar as distinções metodológicas, segundo as quais fica de pé a artificial separação dos saberes sobre o Direito” (LYRA FILHO, 1980, p. 42).

* Artigo publicado na Revista Jurídica, Seccional da OAB do Distrito Federal, ano 2, n. 6, novembro de 2015, págs.54-57. Sobre essa publicação o autor me enviou a seguinte mensagem:

Professor José Geraldo,
Fui seu aluno de graduação na disciplina "Sociologia Jurídica" no semestre passado. Na ocasião, o senhor estipulou como uma das atividades da disciplina a produção de artigo científico sobre um dos livros que estudamos ao longo o semestre. Este artigo deveria estar de acordo com os parâmetros da chamada de artigos científicos da revista da OAB/DF, de forma que pudéssemos fazer a submissão de nossos trabalhos para publicação.
Pois bem! Meu artigo foi selecionado e publicado na edição de novembro do periódico. Fui o único graduando selecionado!
Assim, venho por meio dessa mensagem parabenizar a iniciativa de "forçar" os alunos à investirem em produção de trabalhos dessa natureza. Além disso, gostaria de agradecer o senhor pela oportunidade: se trata de minha primeira publicação! Estou muito satisfeito!
No mais, registro meus votos de estima e admiração por sua pessoa. Obrigado!
Atenciosamente,
João Paulo A. Moreira.
** O autor é graduando em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília - UnB

domingo, 8 de novembro de 2015

20 anos da RENAP: quem constrói a manhã desejada


Ludmila Cerqueira Correia*

Coimbra, 03 de novembro de 2015.


Conheci a RENAP ainda estudante de Direito na Bahia, quando participava do Projeto de Assessoria Jurídica Popular na Universidade Católica do Salvador. Esse projeto congregava estudantes e professores de Direito e de Serviço Social, que prestavam assessoria jurídica popular a uma associação de moradores de uma ocupação urbana em Salvador que lutava pelo direito de morar. Aqui é preciso registrar a importância da série O Direito Achado na Rua e da Revista de Direito Alternativo, leituras imprescindíveis nos nossos grupos de estudos à época. Nas atividades de formação que participávamos e, mais adiante, nos encontros regionais e nacionais da Rede Nacional de Assessorias Jurídicas Universitárias (RENAJU), sempre ouvíamos falar dessa “tal de RENAP”.
Assim também foi quando comecei a participar de atividades e cursos promovidos pela Associação de Advogadas/os de Trabalhadoras/es Rurais no Estado da Bahia (AATR-BA), que já integrava a RENAP. Aqui faço menção a dois associados da AATR (abrangendo os demais), pela sua grande contribuição, garra e compromisso na advocacia popular e nas lutas do povo: Marília Lomanto e Cloves Araújo, com os quais tive o prazer de trabalhar na Universidade Estadual de Feira de Santana.
O encontro com a RENAP aconteceu mesmo nos encontros da Confederação do Equador. Ali pude conhecer e reconhecer companheiros e companheiras da advocacia popular no nordeste, que atuavam em diversas áreas. Além disso, foram encontros em que havia a participação de estudantes, entendendo que ali também era espaço de formação e de troca de experiências. Em seguida, pude participar, finalmente, dos encontros nacionais da RENAP. Encontros de gerações diversas, de novos temas que também fazem parte da assessoria jurídica popular, de mais e mais advogadas populares na Rede, de mais estudantes (com destaque para a turma Elizabeth Teixeira, da UEFS), de confraternização e festa, de partilha e solidariedade, de angústias e sonhos, de pandeiro e violão... E tudo isso com a mística que aprendemos e congregamos com os movimentos sociais.     
Certa vez, ouvi uma colega advogada popular falar numa tal “professorização da RENAP”. Aquilo ficou martelando na minha cabeça, mas a ideia aqui não é problematizar o significado e a extensão dessa expressão. O fato é que muitas e muitos de nós, cada vez mais, estamos ocupando o espaço das universidades, sobretudo nos cursos de Direito, e contribuindo para a formação de mais estudantes que têm se engajado na extensão jurídica popular, com destaque para as AJUPs; influenciando novos conteúdos e formas para os projetos político-pedagógicos dos cursos de Direito; fazendo a diferença com propostas mais ousadas para os Núcleos de Prática Jurídica; criando novas linhas de pesquisa, com destaque para a pesquisa engajada, nos Programas de Pós-Graduação em Direito e em Direitos Humanos; mobilizando, organizando e formando mais turmas especiais de Direito para beneficiários da Reforma Agrária, através do PRONERA; enfim, ampliando as trincheiras das lutas com mais advogadas e advogados populares.
Muitas e muitos de nós que integramos a Rede podemos testemunhar o quanto as atividades de extensão jurídica popular universitária nos formaram e nos influenciaram para as nossas escolhas pela advocacia popular junto aos movimentos sociais, aos grupos subalternizados e às organizações de direitos humanos. Assim, na comemoração dos seus 20 anos de existência, também é papel da RENAP refletir e debater sobre a relação entre a educação jurídica e as práticas da advocacia popular hoje.

E é por isso que eu canto com Gonzaguinha...

“Eu acredito é na rapaziada
Que segue em frente e segura o rojão
Eu ponho fé é na fé da moçada
Que não foge da fera e enfrenta o leão
Eu vou à luta com essa juventude
Que não corre da raia a troco de nada
Eu vou no bloco dessa mocidade
Que não tá na saudade e constrói
            A manhã desejada...” 


* Ludmila Cerqueira Correia é advogada popular, extensionista e pesquisadora. Doutoranda em Direito, Estado e Constituição no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília, integrante do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, bolsista CAPES em estágio doutoral no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Professora do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba e Coordenadora do Grupo de Pesquisa e Extensão Loucura e Cidadania (Centro de Referência em Direitos Humanos da UFPB). Associada da AATR-BA e integrante da RENAP e do IPDMS.

terça-feira, 27 de outubro de 2015

As pontes do arquipélago

Por Gustavo Barbosa*

Não há ensino sem pesquisa nem pesquisa sem ensino, disse Paulo Freire. Se o ato de ensinar corresponde ao processo mútuo de desvelamento do mundo entre educadores e educadoras e alunos e alunas, que ensinam ao passo que aprendem ao mesmo tempo que aprendem ao ensinar, o processo deixa de ter um mero caráter instrumental para, também, compartilhar da própria natureza-fim da prática da educação progressista e transformadora.   
Não por menos, Paulo Freire também afirma que ninguém educa ninguém, mas nos educamos uns aos outros mediatizados pelo mundo. Foi esta filosofia, azeitada por um admirável espírito de integração, que pude presenciar durante os dias em que tive contato com pesquisadores e pesquisadoras da linha de pesquisa “O Direito Achado na Rua” durante o IX Congresso da Rede Latino-Americana de Antropologia Jurídica (RELAJU) no início de outubro em Pirenópolis, Goiás.
Minha experiência numa pós-graduação se soma aos relatos de muitos amigos e amigas que integram programas de mestrado e doutorado nas mais diversas universidades do Brasil e do mundo. A concepção atomizada da pesquisa, onde impera absoluta a lógica do "cada um na sua", aparenta ser uma das mais comuns características que permeiam os programas de pós-graduação de hoje em dia. Um arquipélago formado por ilhas sem qualquer comunicação, reconhecendo-se tão somente enquanto nacos de terra à deriva ao invés de partes de um conjunto maior parece ser a metáfora que melhor contempla esse quadro, onde o contato se restringe a dúvidas acerca de prazos para a entrega de artigos e divisões das responsabilidades em seminários.
Tamanho foi o alento que tive ao presenciar uma dinâmica que vai totalmente de encontro a essa noção individualista de pesquisa, onde objetos de estudos se entrelaçam a experiências que se compartilham não apenas no sentido de conferir densidade acadêmica aos trabalhos, mas também de promover uma integração de vida, de propósitos comuns, de uma visão emancipatória e contra-hegemônica em um meio marcado por academicismos estéreis e visões estritamente abstratas e conservadoras do mundo. Aqui, senti outra máxima de Paulo Freire tomar forma: a do apelo emancipatório como produto tanto da ação como da reflexão, motores de uma integração que, pelo que pude presenciar, não se limita aos muros da faculdade.
Um arquipélago cujas ilhas se comunicam intensamente por pontes – utilizando-se da célebre metáfora de outro renomado educador, Rubem Alves - e por meio das quais transmitem-se não apenas conhecimentos, experiências e descobertas, mas a argamassa sob a qual se constroem relações que convergem numa visão de mundo que compreende que o caminho é longo, árduo e com o agravante de que, muito provavelmente, não se vislumbre em vida sequer o esboço das utopias comuns, mas que traz a certeza que a caminhada, definitivamente, será feita de mãos dadas.

*Gustavo Henrique Freire Barbosa é membro da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/RN, membro da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP), integrante do Instituto de Pesquisa e Estudos em Justiça e Cidadania (IPEJUC), participa do Programa Motyrum de Educação Popular em Direitos Humanos do curso de Direito da UFRN e é mestrando em Constituição e Garantia de Direitos pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Uma escola cheia de vida

Fábio de Sá e Silva* 
No título do último livro organizado por José Geraldo de Sousa Junior, encontra-se enunciada a promessa de obra voltada a examinar a “concepção” e a “prática” de O Direito Achado na Rua, escola de pensamento jurídico que há mais de três décadas ele fundou na Faculdade de Direito da UnB, na esteirado pensamento e da crítica do falecido professor Roberto Lyra Filho. Ao abrir o livro, porém, leitores e leitoras se depararão com um pouco mais que a sugestão da capa. Isto porque, além de um registro sistemático dos fundamentos (“concepção”) e das iniciativas (“prática”) em torno dos quais a referida escola se constituiu, o livro também realiza a importante tarefa de confrontar as críticas que a ela foram opostas e mapear os desafios e possibilidades com os quais ela hoje se defronta. Embora as críticas baseadas em má-compreensão (ou mesmo em má-fé) em relação a O Direito Achado na Rua sejam as que atraem maior visibilidade nas redes sociais ou mesmo em ambientes ditos acadêmicos, outras tantas, como reconhecem os autores, são produto do saudável confronto de posições a partir do qual o conhecimento científico é capaz de avançar. Ao examiná-las em profundidade, portanto, o livro confere densidade e atualidade a argumentos que desde sempre animam os que integrantes da escola à qual se refere. Para os propósitos de uma resenha, talvez não seja impreciso dizer que todas estas críticas remetem a um mesmo elemento conceitual, o qual subjaz a O Direito Achado na Rua desde suas formulações iniciais por Roberto Lyra Filho: trata-se do pluralismo em sentido político e jurídico – ou seja, a compreensão de que diferentes expectativas normativas e, no limite, diferentes ordens jurídicas coexistem na sociedade, para além daquelas (estatais) que, em determinada configuração espaço-temporal, se afirmam como hegemônicas. Os críticos alertam para os riscos de tal pluralismo, eis que nem sempre essas outras ordens político-jurídicas são regidas pelos mesmos compromissos democráticos que inspiram os estados modernos e que ganham especial representação na forma constitucional. Mas contra esta legítima preocupação, os autores e as autoras esclarecem que O Direito Achado na Rua jamais manifestou preferência por ordens não estatais. Ao contrário, O Direito Achado na Rua cuida apenas de reconhecer essas ordens como dados sociológicos, vislumbrando, na tensão que elas estabelecem com as ordens estatais, desafio permanente às categorias e práticas enunciativas do que seja o direito posto. Eis porque, em termos teóricos, O Direito Achado na Rua é plenamente compatível com diversas abordagens contemporâneas em direito e nas demais ciências sociais, tais como o novo constitucionalismo, a teoria dos sistemas, o procedimentalismo deliberativo, ou o pluralismo jurídico, no estrito sentido que lhe atribuem a sociologia e a antropologia do direito. O que, todavia, não permite que O Direito Achado na Rua se dilua nas trivialidades das grandes teorias, ao mesmo tempo em que se lhe transforma em poderoso instrumento de política jurídica, é o compromisso genético que esta escola possui para com aqueles que lutam pela maximização das liberdades individuais e sociais. Tarefa esta que, em um país ainda marcado por imensas desigualdades, como o Brasil, situa-a no campo dos que aspiram por mudanças estruturais em nossa sociedade. Isto é nítido na história conceitual de O Direito Achado na Rua – onde se destacam, por exemplo, categorias como “práticas instituintes de direito” e “sujeito coletivo de direito” –, mas principalmente nas “exigências críticas” que ele impõe à prática universitária, voltadas, na pesquisa, no ensino, e na extensão, a aprender com os oprimidos. Mas mesmo quando opera nesta tradicional zona de conforto de O Direito Achado na Rua, o livro apresenta reflexividade e inovação. Isto porque, se nos anos 1980 e 1990 a tônica de O Direito Achado na Rua recaía sobre a ação dos chamados “novos movimentos sociais”, a “concepção” e a “prática” desta escola nos anos 2010 se mostra sensível a novas formas de ação social (agency), tendo em vista novas demandas, como a democratização da mídia; novos meios de organização, como as redes sociais; e novas estratégias, que contemplam, por exemplo, a participação em espaços deliberativos no interior do Estado. Este quadro requererá novas abordagens, novos instrumentos, e novos contextos institucionais por parte dos candidatos a sujeitos cognoscentes, prefigurando uma nova agenda epistemológica, metodológica, e política para O Direito Achado na Rua. Ainda é cedo para prever como essas proposições, especialmente nesta dimensão mais inovadora, repercutirão na renovação do direito brasileiro. É certo, porém, que representam expressão única de vitalidade de uma escola de pensamento jurídico no país, como resultado da pertinência de suas premissas, da competência de suas lideranças, e da energia das suas novas gerações de quadros – para os quais este novo livro será, sem sombra de dúvida, um recurso inestimável.
 *FABIO DE SÁ E SILVA, Research Fellow no Centro de Profissões Jurídicas da Harvard Law School SERVIÇO Roda de conversa sobre o livro O direito achado na rua: concepção e prática Coordenador: José Geraldo de Sousa Junior Editora: Rio de Janeiro/Lumen Juris, 2015. 268 páginas Dia: 23, no Balaio Café R$ 64,00 (preço de lançamento)

domingo, 18 de outubro de 2015

20 Anos de Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares!

“É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania
De ter fé na vida!”[1]

Érika Lula de Medeiros, advogada popular, potiguar, mestranda em direitos humanos e cidadania na UnB.
Brasília/outubro de 2015

            20 anos de Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares! Falar de RENAP é falar de luta, de resistência, de encontros e de encontrar-se, de escolher como e com quem caminhar. É falar de reconhecer: direitos, sujeitos, companheiras e companheiros, injustiças, possibilidades, brilhos nos olhos e compromisso. É compreender o sistema de justiça como campo de batalha a ser disputado todos os dias. É nos compreendermos como sujeitos coletivos de advocacia popular, por entendermos que sozinhas andamos bem, mas com as outras andamos melhor. É saber-nos acessório das lutas, cujos protagonistas são as lutadoras e lutadores do campo, dos quilombos, das ocupações urbanas e rurais, das comunidades indígenas.
            Nosso instrumento é o direito, mas nosso horizonte é bem mais amplo, é a justiça. Não deve ser à toa que a justiça é substantivo assim, no feminino. E aí que falar de Renap, para mim, é falar também do encontro com as advogadas populares que resistem e lutam Brasil afora.
            Como em qualquer esfera da vida, na advocacia popular o patriarcado também tenta impor sua violência. Se a atuação da advocacia popular já é difícil por sua dimensão política de estar ao lado dos movimentos sociais e lutas populares, ser advogada popular é enfrentar desafios ainda maiores. Acompanhar um/a militante em processo de criminalização à delegacia, lidar com a polícia em mediações de ocupações, fazer uma sustentação oral em processos de conflitos estruturais de nossas desigualdades, é ter como interlocutores não “apenas” as classes dominantes , mas também o patriarcado nos encarando com seu machismo. É sentir no trato, nos olhares, nas ironias, e às vezes até na pele, essa opressão estruturante.
            Mas quero aproveitar esse momento histórico de 20 anos da Rede para falar para além da opressão machista: quero celebrar a resistência das advogadas populares, resgatando dois momentos recentes já históricos. O primeiro no meu primeiro encontro da Renap, quando ainda estudante de graduação, tive a oportunidade de presenciar, na plenária final do Encontro nacional de Fortaleza, em 2011, um grupo de mulheres advogadas, se reivindicando como coletivo Marietta Baderna de advocacia popular, dando voz aos desafios de ser mulher advogada popular, de ser mulher na advocacia militante. Ali, advogadas populares das cinco regiões do país deram eco aos anseios de igualdade de gênero nos nossos espaços. Não cabe menos do que isso na nossa Rede que luta por emancipação todos os dias.
            O segundo no Encontro nacional de Natal, em 2014, quando conquistamos, pela primeira vez na história da Rede, uma mesa, com a plenária cheia, para debatermos gênero na nossa atuação. Foram ricas discussões que nos provocaram a enxergar como essa dimensão é transversal a nossos desafios: das formas de tortura, passando por questões de criminalização e da nossa relação com o sistema de justiça, as questões de gênero perpassam a totalidade de nossos temas. Importante não perdemos de vista a perspectiva histórica da construção desse momento, que passou por diversas articulações com outras redes como CLADEM e Católicas pelo direito de decidir, que se somaram com oficinas debatendo gênero em outros Encontros, e com os movimentos com quem atuamos.
            Aliás, como sempre, aprendemos com os movimentos: o VI Congresso Nacional do MST, ocorrido em fevereiro de 2014, em Brasília, teve como um dos momentos históricos a conquista de uma das mesas do Congresso, num estádio com quase 20 mil trabalhadores e trabalhadoras rurais de todo o Brasil, debatendo a dimensão da luta pela reforma agrária popular articulada com a luta das mulheres. Só depois tivemos a nossa primeira mesa com essa mesma preocupação de dar visibilidade a questões de gênero.
            Poderia mencionar outros tantos momentos marcantes, como a fala da companheira Inez Pinheiro, egressa da primeira turma de direito para assentadas e assentados da reforma agrária do Pronera, a Turma Evandro Lins e Silva, no Encontro nacional em Viamão, no Rio Grande do Sul, em 2013. Inesquecível a lembrança da emoção e força de Inez compartilhando suas vivências como advogada popular mulher, negra e do povo, e os desafios dessas dimensões à sua atuação na advocacia. Ou lembrar dos aprendizados com Marília Lomanto, da Bahia, com as Marianas Criolas, do Rio, com Lenir, de Rondônia, com as Natálias, minhas conterrâneas potiguares, com Dani Félix, de Santa Catarina, com as Margaridas de Minas Gerais, com as Lucianas, Ramos e Pivato, hoje no Cerrado, e com tantas outras companheiras espalhadas por todo o país.
            A palavra convence, mas o exemplo arrasta. Que sigamos sendo inspiradas, fortalecidas e arrastadas pela resistência das advogadas populares nas trincheiras da luta por justiça em todo o Brasil. Viva a Renap! Viva as advogadas populares! Sigamos avançando na construção de outro mundo sem opressões de classe, de raça, de gênero ou de qualquer tipo!


[1]“Maria,Maria”, composição de Milton Nascimento.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Cartas de Bologna: solidariedade à fabulosa Atlantide!


Por Patricia Vilanova Becker*
Segunda-feira, 05 de outubro. O espaço era pequeno para abrigar corpos e indignações. Pessoas de diferentes idades e identidades se amontoavam na assembleia formada no Centro delle Donne em Via del Piombo para discutir o anunciado despejo de Atlantide que, segundo uma das pessoas presentes, serviu de abrigo “todas as vezes que encontramos umas nas outras as respostas que esse sistema não nos deu”. Ocupada em 1997 e situada em uma das construções da Porta Santo Stefano de Bologna, Atlantide nos últimos 15 anos tem sido a sede de coletivos feministas, queer e punk. Nos últimos três anos, sofre ataques constantes do Comune de Bologna, que interrompeu o curso das negociações que buscavam encontrar um lugar mais amplo para que Atlantide desenvolvesse suas atividades de consultoria queer-transfeminista em saúde e direitos sexuais, bem como o arquivo histórico e o laboratório de pesquisa.
A frieza de Bologna não tinha espaço naquela noite. Corpos sentados em cadeiras, pessoas se esgueiravam do lado de fora das janelas, outras pelas escadas. Tod*s buscavam ouvir o que integrantes de Atlantide tinham a dizer. Microfone em mãos, discurso afiado, olhar desafiador e pronto para luta: “quando os homens azuis chegarem, encontrarão um lugar cheio de coisas e pessoas livres”. Eu sorria. Por dentro, talvez também por fora. Finalmente, pensei, a Atlantide perdida de Bologna havia sido encontrada. Após as falas de integrantes do coletivo Smaschieramenti, que promove a autogestão do espaço junto a outros coletivos, seguiram-se falas de diversas pessoas. Vozes tremiam de indignação diante do iminente despejo anunciado para a semana que iniciava. Atlantide é um “espaço de sociabilidade não mercantil”, afirmavam algumas vozes. E alguém complementou: “Atlantide é o lugar onde experimentamos a potência revolucionária da sociabilidade queer”.
O PD, partido que se autodenomina como centro-esquerda, havia se tornado um governo de direita. Mas Atlantide não se renderia: “Faremos com que seja visível aquilo que estão fazendo. Quem toca Atlantide, deve sujar as mãos!”. As pessoas presentes sabiam que Atlantide era um espaço pequeno demais para gerar um interesse material do Comune. A questão, enfatizavam, era sobretudo simbólica. Despejar Atlantide faz parte de “um plano de normalização do espaço público”. Mas “transbordaremos em todas as partes!”. Atlantide será espalhada por toda a cidade, diziam. Ao final da assembleia, o plano consistia em uma série de atividades para resistir ao despejo, que começavam desde o intitulado “café da manhã fabuloso” que começaria no dia seguinte às 7h da manhã, e se estendiam ao longo da semana. Naquela noite chuvosa, voltei para casa energizada pelo espírito de amor e resistência.
Não tive forças para o “café fabuloso”, mas na quarta-feira à noite tive meu primeiro encontro com o espaço que abrigava Atlantide. O chamado “cassero” de Porta Santo Stefano, construída no século XIII, é uma edificação que protegia uma das portas da Bologna murada. O espaço histórico ganhou um enorme laço cor de rosa que envolvia toda a construção do lado de fora. Por dentro, cartazes, grafites, camisinhas coloridas, balões e outras decorações “fabulosas” explicavam por que em Atlantide “as coisas e as pessoas eram livres”. Uma mesinha no centro compartilhava água e alguns aperitivos. Ao redor, um círculo de pessoas aguardavam, assim como eu, para desbravar Atlantide. Ao final, integrantes do coletivo apresentaram uma parte dos trabalhos do arquivo histórico queer-transfeminista, tomando o cuidado de destacar que não se tratava de um processo de “museificaçao”, mas de uma história viva e em permanente transformação. As pessoas presentes foram convidadas para assistir ao show punk que ocorreria na noite seguinte. Se eu soubesse que aquela seria minha ultima oportunidade de entrar no espaço que abrigou Atlantide até então, se soubesse que os homens azuis chegariam em dezenas para tocar o corpo de Atlantide, seguramente teria ido ao show. Mas não fui.
Sexta-feira pela manhã, 09 de outubro, ao passar de ônibus em frente à Atlantide, lá estava ela nas mãos violentas do Estado. Amontados, sorrindo, com camburões e viaturas, a política violenta, feita dentro dos gabinetes, assumia sua forma mais genuína através da polícia. Na porta de Atlantide, imediatamente após o despejo, foi construído um muro para impedir qualquer futura ocupação. Um muro cinza feito para apagar as fabulosas cores de Atlantide. No sábado seguinte, um grande “corteo” humano inundou Bologna que seguia alagada pela chuva. Um protesto feito com guarda-chuvas coloridos, capas cor de rosa, corpos, faixas, vozes, sonhos. Novamente, centenas de pessoas de diversas identidades se somavam em uma marcha através da cidade. A polícia bloqueou a passagem para algumas saídas, encurralando-nos. Nada diferente da modalidade brasileira. Corajosamente em frente à polícia, manifestantes isolaram a entrada com uma longa faixa cor de rosa e escreveram no muro cinza “ATLANTIDE OVUNQUE”, que significa “Atlantide em todos os lugares”. As coisas e o corpos livres encontrados dentro de Atlantide continuam a se espalhar por Bologna e pelo mundo, de onde chegam mensagens de solidariedade. Atlantide continua transbordando.
*Patrícia Vilanova Becker, integra o Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua; mestranda em Direito pela UnB, participa atualmente do Programa Erasmus Mundus Master´s Degree in Women's and Gender Studies na Universidade de Bolonha e Universidade de Oviedo.

**Fotos pela autora no 'corteo per Atlantide' em 09 de outubro de 2015 - Bologna.

Para conhecer mais sobre Atlantide: http://atlantideresiste.noblogs.org