O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta
quinta-feira, 19 de novembro de 2015
A Universidade não Precisa de Ministério: Entrevista (íntegra) concedida pelo Professor José Geraldo de Sousa Junior ao Jornal do Professor, n. 27, da ADUFG
1 - Na história da formação das universidades no Ocidente, e considerando o Manifesto de Córdoba, como o senhor avalia a autonomia das universidades federais em relação à legislação brasileira hoje?
A Universidade, mais precisamente, a universidade ocidental já é quase milenar. Essa longevidade dá a medida de seu caminho em percurso para se fazer singular e reconhecível como instituição cuja trajetória a distinga de qualquer outra, inclusive o Estado que, historicamente, se institucionaliza muito tempo depois e, na sua feição atual, é uma experiência do Século XIX, quando se formam os estados nacionais alemão e italiano.
Esse percurso, com as etapas que o demarcam e que Helgio Trindade descreve tão bem, conforme o artigo (“Por um novo projeto universitário: da ‘universidade em ruínas’ à ‘universidade emancipatória’”) que inclui em livro que organizei (“Da universidade necessária à universidade emancipatória”, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2012), implica compreender as transições institucionais pelas quais passou, desde os tempos medievais, chegando à modernidade, nos formatos estatais do modelo francês de escolas de profissão e prussiano , no modelo humboltniano de sistema de pesquisa, até chegar ao formato latino-americano, na linha do manifesto de Córdoba, como experiência participativa e de inclusão, uma universidade necessária, comprometida com as expectativas de sociedades em profunda transformação, perseguindo projetos libertários que orientam seu percurso para utopias de emancipação social, política e de criação de conhecimentos.
A autonomia em sentido próprio é uma memória da historicidade institucional. No tocante às universidades, é a memória de sua origem institucional histórica, anterior à formação do Estado, este entendido enquanto a articulação moderna de conhecimento (técnico/científico/burocrático, em termos weberianos), de poder (a política retirada da sociedade e restringida ao aparato (legislativo/judiciário/administrativo) e o direito (antes plural e distribuído no social agora exclusivamente legal), em face da pretensão monopolizadora daí decorrente. Assim, as universidades que surgiram com capacidade de auto-governo e auto-normatização surgiram portanto, propriamente autônomas (etimologicamente, auto – a si próprias; aptas a se outorgarem o nomos – isto é, o direito). O eco dessa experiência se contêm na definição constitucional corrente, segundo a qual, como no caso brasileiro, “as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial” (CF, art. 207).
Na prática política, entretanto, esses valores acabam se confrontando com a disposição de poder que se nucleou, por exemplo, no estado, e acabam definhando, à falta de compartilhamento de modos de compreensão que amparem o seu sentido e alcance. Ainda mais quando a universidade perde o simbolismo de seu lugar excelente e único – o de ser o lugar exclusivo no qual os conhecimentos se percebem livres para o diálogo pleno descolonizado e confiante – e fica nivelada num imaginário burocrático que torna homogêneas todas as instituições vistas na modelagem de meras repartições administrativas, como como acontece no imaginário das chamadas “culturas” legislativas, regulamentadoras, judicantes e correicionais.
Como já disse em outra ocasião (Entrevista para a Revista Adverso, da ADUFRGS; também no Jornal do Professor Adufg – “Autonomia universitária, historicidade, princípios e tensões”, ano III, n. 25, setembro de 2015, pág. 2), o caminho para a construção da autonomia é longo e tortuoso porque a emancipação não é um dom é uma tarefa, não obedece a voluntarismos carismático-autoritários e só faz sentido se pautar-se em plataformas coletivas correspondentes a projetos de sociedade, já que socialmente e epistemologicamente ninguém se emancipa sozinho.
2 - Quais os principais efeitos da Ditadura Militar no Brasil (1964-1985) para a universidade pública brasileira?
A meu ver foi interromper um projeto republicano, laico, de qualidade, fundado na autonomia institucional e com valorização social e profissional do educador. A configuração da denominada universidade necessária, proposta por Darcy Ribeiro, no estuário do manifesto de Córdoba e tão bem acolhido pelo Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932), cujos princípios Anísio Teixeira trouxe para fundamentar as propostas de criação da Universidade do Distrito Federal e, com Darcy para a UnB. Ali os valores da educação como função essencialmente pública, apoiada na autonomia da função educacional, no caso das universidades, no dizer do Manifesto, “inteiramente gratuita (para) atender, de fato, não somente a formação profissional e técnica, no seu máximo desenvolvimento, como à formação de pesquisadores, em todos os ramos de conhecimentos humanos (...) organizada de maneira que possa desempenhar a tríplice função que lhe cabe...”.Vale dizer, exercer lealdade ao conhecimento civilizatoriamente criado, mas contribuir para a solução dos problemas do país e do povo. Esse projeto de nação, com o valor que nele salvaguarda a ação estratégica da universidade foi inteiramente interrompido pelo autoritarismo, com o encurtamento do espaço autônomo de criação e de responsabilidade social da universidade. Veja-se, a propósito, o livro de Roberto Salmeron (“A Universidade Interrompida: Brasília 1964-1965”) da Editora UnB. Em Prefácio que fiz para a re-edição desse livro, em simbolismo comemorativo do jubileu da UnB, fiz questão de mostrar a inserção da avaliação dessa interrupção como uma marca de memória que coloca a violência sofrida pela universidade, como uma exigência da justiça de transição, de modo a identificar a agressão institucional como um item da reparação à memória e à verdade feridas, com a recuperação do sentido democrático de um projeto tão cruentamente interrompido e que precisa ser resignificado.
3 - Como as universidades federais perdem autonomia na relação com Estados, governos e parlamentos?
Tratei disso no artigo recente que o Jornal do Professor publicou. Na prática política, a autonomia, como uma construção institucional e um valor, se confronta com a disposição de poder que se nucleou, por exemplo, no estado, e acaba definhando, à falta de compartilhamento de modos de compreensão que amparem o seu sentido e alcance. Ainda mais quando a universidade perde o simbolismo de seu lugar excelente e único – o de ser o lugar exclusivo no qual os conhecimentos se percebem livres para o diálogo pleno descolonizado e confiante – e fica nivelada num imaginário burocrático que torna homogêneas todas as instituições vistas na modelagem de meras repartições administrativas, como como acontece no imaginário das chamadas “culturas” legislativas, regulamentadoras, judicantes e correicionais.
É aí que algumas “singularidades” emergem, como novidades que ganham reconhecimentos ampliados: agências reguladoras, bancos centrais, estruturas de intervenção em mercados. Junto com o reconhecimento dessas “singularidades”, vêm as regras de autonomia: consultoria jurídica própria e não da AGU para o Banco Central, liberação do requisito licitatório para a Petrobrás por reconhecimento do espaço especial do mercado e da bolsa internacionais, estatuto de autonomia para as agências (reguladoras) etc.
Por que não estabelecer um estatuto próprio (lei orgânica) para as universidades, considerando a sua história e a complexidade que elas movem em todas as dimensões do processo de produção do conhecimento, da política, da economia, das relações internacionais, da governança...?
4 - Que universidade brasileira teria melhores condições de negociação política com o Estado? Que universidade o professor elegeria como um bom modelo de autonomia no Brasil?
Em várias Constituições esse modelo já foi estabelecido, como por exemplo, na Finlândia, onde até a legislação de ensino, produzida legislativamente, só entra em vigor, na universidade nacional, quando e se aprovada pelo seu Conselho dirigente. Mas no Brasil mesmo há modelos aperfeiçoáveis como o das universidades paulistas, sustentáveis na forma de destinação tributária para seu financiamento e com a configuração de um ato complexo (manifestação da universidade para a composição de listas submetidas à escolha do governador). A experiência da UnB também é exemplar, embora logo frustrada, primeiro pela ditadura e em seguida pela gula burocrática. Não custa lembrar que a lei de criação da UnB (lei 3998/1961), ainda em vigor apesar de ab-rogada em parte por uma hermenêutica de contenção, trouxe de forma expressa vários artigos definidores de uma autonomia, com fundos e patrimônio para a sua sustentação, diretrizes de auto-governo estatutário e a preciosidade que se lê no seu artigo 14: “Na organização de seu regime didático, inclusive de currículo de seus cursos, a Universidade de Brasília não estará adstrita às exigências da legislação geral do ensino superior...”.
5 - Paridade nas eleições para reitor e na formação de conselhos superiores é uma questão fundamental para a autonomia universitária?
Com certeza. E essa é uma discussão que vem se acumulando no debate de aprofundamento da dimensão política da organização universitária. Muitas instituições já vem inserindo essa possibilidade no procedimento criativo de organização gestora das instituições e, na prática a paridade já se funcionaliza. É certo que há tensões e recalcitrâncias no interior das próprias instituições, especialmente nas IES, muito mais ligadas a posicionamentos corporativos que a princípios. Lembremos que as maiores e mais importantes universidades medievais, Bolonha, Pádua, Oxford, tenham como reitores,,,os estudantes, que a geriam recrutando os professores, Galileu, Falópio, sem contudo se intrometerem na sua autonomia programática. Como lembra meu antigo orientador o Professor Roberto Lyra Filho, que me legou a responsabilidade de construir o projeto O Direito Achado na Rua, salvaguardar a autonomia incluindo nesse conceito a gestão participativa, é um requisito para o alargamento das condições democráticas de descolonização do saber. Conforme ele registrava em seu último escrito (1986), a um mês de morrer, é irremediavelmente necessário: “Democratizar, inclusive, a universidade, para a co-gestão de professores, estudantes e funcionários, desmascarando o sofisma da reação, que recusa o chamado ‘assembleismo’, a fim de manter a ditadura dos autoproclamados ‘competentes’: é claro que não se pode resolver um problema científico pelo voto, mas pose-se determinar pelo voto paritário a direção dos programas, a distribuição das verbas, a administração e, em geral, o destino da instituição”. Esses pontos, aliás, ele já havia antecipado em célebre conferência proferida em 1985 – A Constituinte e a Reforma Universitária – com sugestões a um texto para a Constituição, somente aprovada dois anos após a sua morte.
Por esta razão há projetos no parlamento atribuindo às universidades, no plano estatutário,definir, de forma autônoma, as formas de gestão e as escolhas de seus dirigentes. E não se diga que a lei é um obstáculo porque, hermeneuticamente, ela é apenas um ponto de partida. Propus essa questão, em termos constitucionais, ao grande Mestre Gomes Canotilho, nestes termos e a sua resposta é a que melhor se presta a entender as possibilidades hermenêuticas para essa possibilidade expandida. Eis como ele resolve o problema posto, segundo a pergunta precisa que lhe fiz: “A multiplicidade de sujeitos que se movem no debate constitucional contemporâneo tende a abrir expectativas de diálogo político estruturado na linguagem do Direito. Para usar uma expressão sua, quais as principais ‘posições interpretativas da Constituição’ que emergem desse processo?”
Em sua resposta, que poderia bem servir a uma disposição intelectual, satisfeita na indolência, até que seja sacudida e se mostre disposta a ir para o meio da rua, mostra Canotilho um caminho possível: “Boa pergunta! Em trabalhos anteriores demos conta de que a ‘luta constituinte’ era (e é) uma luta por posições constituintes e de que a lógica do ‘pluralismo de intérpretes’ não raro escondia que essa luta continuava depois de aprovada a constituição. A interpretação seria afinal um ‘esquema de revelações’ de precompreensões políticas. Continuamos a considerar que a metódica jurídica reflecte todas as dimensões de criação e aplicação das normas jurídicas e a prova disso é a de que as diferenças entre legislação (legislatio), jurisprudência (jurisdictio), e doutrina (jurídica e política) surgem cada vez mais imbricadas e flexíveis. De qualquer forma, o elemento central da nossa posição reconduz-se ainda à ideia de conformação constitucional dos problemas segundo o princípio democrático e não de acordo com princípios a priori ou transcendentais. Se vemos bem as coisas, as dificuldades da metódica jurídica residem mais na sua rotina e falta de comunicação com outros horizontes de reflexão como a sociologia e a filosofia do que nos seus pontos de partida quanto à investigação e extrínsecação do sentido das normas para efeito de sua aplicação prática” (C & D, 2008: 13).
É assim que deve ser entendida a disputa em curso posta hoje no espaço da Unila: muito recentemente, o Ministério Público Federal promoveu ação civil pública contra a UNILA – Universidade Federal da Integração Latino-Americana e contra a União, a primeira para anular dispositivo de Estatuto e Regimento que prevêem regra de paridade para a composição do Conselho Universitário e comissões, ao invés de adotar a proporcionalidade docente indicada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação; à União, para suspender o procedimento de credenciamento da própria Universidade, enquanto não satisfeita a exigência de adequação legal de setenta por cento de assentos ocupados por docentes.
De notar que o ajuizamento da ação decorre de moção de professores da UNILA, arrolados em listas com o objetivo de denúncia contra a disposição estatutária aprovada pela própria Instituição. Vê-se, pois, que esse tema não é apenas retórico, mas se reveste de dramaticidade histórica e política que disputa princípios e provoca tensões.
6 - A emancipação universitária se calca melhor no ensino, na pesquisa ou na extensão? Como o senhor avalia a necessidade desse tripé para a autonomia universitária?
Creio já ter respondido essa questão, ao menos nas entrelinhas de considerações feitas antes.
7 - As universidades federais cresceram muito nos últimos oito anos com o Reuni e passaram a gastar muito mais. Quais os limites do debate da autonomia universitária dentro da questão orçamentária?
Já me referi a esse limite no artigo que publiquei no Jornal do Professor. Volto a dizer, quando a universidade perde o simbolismo de seu lugar excelente e único – o de ser o lugar exclusivo no qual os conhecimentos se percebem livres para o diálogo pleno descolonizado e confiante – e fica nivelada num imaginário burocrático que torna homogêneas todas as instituições vistas na modelagem de meras repartições administrativas, como como acontece no imaginário das chamadas “culturas” legislativas, regulamentadoras, judicantes e correicionais. Todo o debate funcional fica restrito às posturas burocráticas, especialmente no terreno orçamentário. Entretanto, mesmo nesse âmbito restrito é possível ampliar possibilidades. Ao tempo em que exerci o reitorado fui, no seio da Andifes, presidente da Comissão de Autonomia da entidade. Nessa ocasião, sendo a autonomia o eixo político necessário ao implemento da execução da política de expansão e de reestruturação (Reini) foi necessário construir com o Estado (Governo, Legislativo, Judiciário) pautas confiáveis para a implementação dessa política estratégica. Foi assim que pusemos em relevo, no MEC, no MCT, no Tribunal de Contas, a agenda melhor gestão do sistema administrativo e orçamentário, por exemplo, com a nova reguylamentação das fundações, mais apropriáveis à direção dos Conselhos das universidades para se constituírem como escritórios de gestão de seus projetos, sem os riscos de ações impróprias às finalidades do sistema público; da mesma maneira, todo um conjunto de procedimentos administrativos e orçamentários foram implementados para fazer fluir com continuidade a gestão financeira das instituições, para preservar seus créditos e evitar a interrupção de projetos. Foram inúmeras as gestões nesses órgãos para compor uma agenda que foi, exatamente, denominada agenda da autonomia.
8 - Como as leis de ações afirmativas impactam a autonomia universitária?
De vários modos e de forma emancipatória principalmente. Lembre-se que foi a partir das ações autônomas das universidades que a política de cotas foi implementada, provocando reações governamentais-legislativas para expandi-las. Aliás, foi a partir do julgamento da ADPF que examinou no Supremo Tribunal Federal, por interpelação do Partido Democratas, a política da UnB, que essa política se universalizou, antes considerando o STF que a iniativa universitária realizava a Constituição seja porque cumpria a sua promessa de equidade, seja porque materializava o princípio da autonomia própria a essas instituições. E, foi também com base nesses fundamentos que o Superior Tribunal de Justiça legitimou a política de instituição de turmas especiais, como a de Direito, para assentados da reforma agrária (Pronera), a partir do modelo da UFGO, abrindo ensejo para que outras IFES adotassem o modelo. E foi com a argumentação dentre outros interlocutores, também os Reitores que o TCU recuou de sua posição de glosar os convênios com o INCRA, para o financiamento desses programas.
9 - Como imaginar uma universidade autônoma na perspectiva da sociedade?
Para além da construção simbólica de seu valor civilizatório, estratégico para o desenvolvimento do país e a formulação de projetos de sociedade e de nação, creio que é necessário imaginar novas institucionalidades. Penso numa Lei Orgânica das Universidades que atualize o modelo mais avançado de autonomia para a sua gestão, assim como penso que as universidades não precisam de um ministério que as supervisionizem, se se pudesse instituir um Conselho Nacional das Universidades Brasileiras capaz, de com base na Lei Orgânica que viesse a se estabelecer, permitir a autogestão política, administrativa, financeira e acadêmicas dessas instituições.
10 - Professores reclamam que a lei de licitações é ultrapassada, e terminam aumentando custos de obras e comprometendo orçamento de universidades. Como o senhor avalia o modelo de fundações?
Eles têm razão. Minhas duas respostas anteriores contribuiriam, se levadas em conta as indicações, para superar esses limites.
11 - Há mesmo uma expectativa privatizante no futuro da universidade pública brasileira? Como o professor avalia a cobrança em cursos de pós-graduação lato sensu?
Na minha visão as universidades cumprem função constitucional que estabelece ser a educação um bem social, de natureza pública. O serviço que a universidade oferece deve ter essa mesma natureza. O cidadão não pode ser onerado ao requisitá-lo e obtê-lo nas formas ainda seletivas com que são oferecidas. Isso não impede que possa haver, como permite a CF, oferta privada desses serviços, respeitados os seus fundamentos sociais. Mas nas universidades públicas, custeadas com recursos originados do custeio tributário, não. O que também não quer dizer que demandas não universais, mas apenas corporativas e no interesse igualmente corporativo, não possam ser financiadas por corporações, desde que atendidos os fins públicos das instituições que os produzam. Neste aspecto exclusivo, corporativo, não transferido ao indivíduo-profisional, penso ser possível o financiamento privado, garantida a distribuição pública (repúdio à privatização por dentro, por meio de grupos) dos recursos desse modo obtidos.
12- No evento “universidade do futuro”, realizado na UFRGS, tu afirmou que a autonomia nas universidades pode ser construída, mas não pode ser absoluta. Quais são os limites da construção dessa autonomia?
Os limites são os que acabei de indicar, no plano institucional, principalmente, a concomitância, às vezes concorrente, às vezes, cooperativa entre a universidade e o Estado; no plano teórico, os impasses entre a expectativa de lealdade presumida e a condição intrinsecamente crítica da interpretação que a universidade desenvolve acerca de todos os processos que se articulam em seus espaços de pesquisa, de ensino e de interação com os outros corpos sociais. Essa construção é tensa e precisa ser “negociada” contínua e legitimamente, sem arrogância, sem prepotência, sem corporativismo, de modo solidário e nos moldes democráticos. O limite é o horizonte de compreensão e de capacidade política para pactuar e afirmar a importância, a singularidade, a relevância da instituição universitária, algo que sempre se realizou na prova da experiência histórica.
13- Há um grande debate sobre o formato de eleição dos reitores das universidades federais. O que você pensa a respeito?
O grande debate se trava entre essas duas polarizações: a busca de autonomia e de aut-governo que é a seiva de que se nutre o desenvolvimento da própria concepção de universidade e a pretensão de potência da centralidade estatal que não abre mão de controles, mesmo quando se vivencia a experiência inédita em curso no nosso país, de radicalizar o experimento democrático da participação e do protagonismo político do social emancipado. O que penso, é que devemos insistir nesse desiderato. A democracia é um caminho sem fim e sem pré-condições e o desenvolvimento institucional é um experimento necessário que deve ser perseguido. O modo participativo, em diálogo com a cidadania para além do corporativismo, deve ser a meta de busca autônoma (conforme lei orgânica e previsão de estatutos) de definição de métodos de escolha de dirigentes e de modos deliberativos. Quanto mais restrito o modelo e mais fechado em gabinetes ou em grupos restritos de decisão, mais empobrecedor é o desenvolvimento da institucionalidade universitária.
14- Quais medidas um governo realmente comprometido com a autonomia universitária deveria tomar?
Penso que deve construir com o sistema universitário a sua caracterização, modelo e forma de gestão sustentável e pactuar uma lei orgânica e um estatuto básico que permita a realização desse princípio.
15- Mais autonomia significa mais qualidade às universidades públicas?
Com certeza. Uma universidade autônoma é mais experimental. Penso na minha universidade e a partir dela, penso no potencial realizador que a autonomia pode trazer para essa instituição enquanto modelo presente na utopia civilizatória. A partir da UnB, penso com Darcy Ribeiro que desenhou seu modelo autônomo, a universidade, segundo ele, vocacionada para realizar aquelas lealdades que seu projeto originário propunha: ser leal aos padrões civilizatórios do conhecimento internacionalmente realizável, mas ser, igualmente, leal para com a sociedade e o País no sentido de imprimir a esse conhecimento o dever e o compromisso de buscar solucionar os problemas do País e da sociedade. Conforme registrei no livro que acima mencionei, “isso é uma reserva utópica, esta capacidade de agir que é própria de espíritos pioneiros, para lidar com as dificuldades, com os obstáculos, que foram tremendos, porque foram estruturais, foram próprios de um País emergente, de uma cidade em construção e de numa sociedade que nunca lidou bem com o fator emancipatório do conhecimento”.
16- Quais são os principais pontos em que a falta de autonomia atrapalha a gestão de uma universidade? (podes citar exemplos ocorridos durante sua gestão frente à UNB)
Durante o meu reitorado, como membro da Andifes, a associação dos dirigentes dos reitores das instituições federais de ensino superior, tive o ensejo, com a confiança de meus colegas e de minhas colegas reitores e reitoras, de presidir a Comissão de Autonomia da Andifes. Ali pudemos construir uma agenda de conjuntura, que apontado para a dimensão orgânica da autonomia, procurasse identificar os obstáculos e restrições ao agir administrativo num cotidiano pasteurizado e nivelado como se todas as “repartições públicas” fossem equivalentes. Chegamos a elaborar, com a participação dos Ministérios da Educação e de Ciência e Tecnologia e do Tribunal de Contas, um conjunto regulamentar de procedimentos orçamentários e de gestão administrativa, financeira e de fundações (recuperadas para exercício sob diretriz dos colegiados das universidades). Foi operante mas não suficiente e deixou um balizamento para uma agenda mais estrutural que deve ser objeto de uma deliberação pactuada legislativamente na forma de uma lei orgânica.
Na minha experiência localizada, isto é, na própria UnB, os problemas enfrentados foram esses problemas comuns. Porém um me inquietou mais, em aspecto que considero importante. A submissão, no plano da pesquisa acadêmica, a um modelo produtivista de adequação globalizada a um padrão de conhecimento que desconhece a singularidade autônoma do saber, espontaneamente construído por indicadores e metas que a própria universidade possa elaborar. Também registrei isso no livrinho mencionado e ali deixei a minha posição: “Acho que é frustrante pensar que o desejo de inventar e de criar pode ser reprimido porque o pesquisador tem de preencher os dados estatísticos de um currículo padrão (Lattes) ou publicar numa revista que pontua por determinados padrões. Não que isso seja negligenciável, mas não pode se conter num mecanismo de adequação conformada. É preciso que a Universidade continue autonomamente identificando que temas ela vai colocar como horizonte de seu talento criador”. Repito aqui o que disse então e penso como acho pensaria por exemplo Darcy Ribeiro, o quanto gostaria de ver estimulados no agir universitário, temas que estejam mais no horizonte insubordinado de criação de novas agendas, agendas que são importantes para o nosso País e para o desenvolvimento das condições de formação de uma nação emancipada.
Abraço,
Autonomia universitária, historicidade, princípios e tensões
José Geraldo de Sousa Junior
Professor e Ex-Reitor da UnB (2008-2012)
Em maio deste ano participei em Porto Alegre, em evento promovido pelo Instituto Latino-Americano e pela ADufrgs/Sindical, de um ciclo de debates, denominado A Universidade do Futuro. A propósito dessa participação, a revista da Associação publicou uma entrevista contento um conjunto de pontos de vista dos quais reúno alguns apontamentos para este texto.
Ali, a abordagem era mais reflexiva, seguindo uma diretriz abstrata sobre um tema recorrente. Ocorre que, muito recentemente, o Ministério Público Federal promoveu ação civil pública contra a UNILA – Universidade Federal da Integração Latino-Americana e contra a União, a primeira para anular dispositivo de Estatuto e Regimento que prevêem regra de paridade para a composição do Conselho Universitário e comissões, ao invés de adotar a proporcionalidade docente indicada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação; à União, para suspender o procedimento de credenciamento da própria Universidade, enquanto não satisfeita a exigência de adequação legal de setenta por cento de assentos ocupados por docentes.
De notar que o ajuizamento da ação decorre de moção de professores da UNILA, arrolados em listas com o objetivo de denúncia contra a disposição estatutária aprovada pela própria Instituição. Vê-se, pois, que esse tema não é apenas retórico, mas se reveste de dramaticidade histórica e política que disputa princípios e provoca tensões.
A Universidade, mais precisamente, a universidade ocidental já é quase milenar. Essa longevidade já dá a medida de seu caminho em percurso para se fazer singular e reconhecível como instituição cuja trajetória a distinga de qualquer outra, inclusive do Estado que, historicamente, se institucionaliza muito tempo depois e, na sua feição atual, é uma experiência do século XIX, quando foram formados os Estados nacionais alemão e italiano.
Esse percurso, com as etapas que o demarcam e que Helgio Trindade descreve tão bem, conforme o artigo (“Por um novo projeto universitário: da ‘universidade em ruínas’ à ‘universidade emancipatória’”) que inclui em livro que organizei (“Da universidade necessária à universidade emancipatória”, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2012), implica compreender as transições institucionais pelas quais passou, desde os tempos medievais, passando pela modernidade, nos formatos estatais do modelo francês de escolas de profissão e prussiano , no modelo humboltiano de sistema de pesquisa, até chegar ao formato latino-americano, na linha do manifesto de Córdoba, como experiência participativa e de inclusão, uma universidade necessária, comprometida com as expectativas de sociedades em profunda transformação, perseguindo projetos libertários que orientam seu percurso para utopias de emancipação social, política e de criação de conhecimentos.
Esse caminho é longo e tortuoso porque a emancipação não é um dom, é uma tarefa, não obedece a voluntarismos carismático-autoritários e só faz sentido se estiver pautado em plataformas coletivas correspondentes a projetos de sociedade, já que socialmente e epistemologicamente ninguém se emancipa sozinho.
A autonomia em sentido próprio é uma memória da historicidade institucional. No tocante às universidades, é a memória de sua origem institucional histórica, anterior à formação do Estado, este entendido enquanto a articulação moderna de conhecimento (técnico/científico/burocrático, em termos weberianos), de poder (a política retirada da sociedade e restringida ao aparato (legislativo/judiciário/administrativo) e o direito (antes plural e distribuído no social, agora exclusivamente legal), em face da pretensão monopolizadora daí decorrente. Assim, as universidades que surgiram com capacidade de auto-governo e auto-normatização surgiram portanto, propriamente autônomas (etimologicamente, auto – a si próprias; aptas a se outorgarem o nomos – isto é, o direito). O eco dessa experiência se contêm na definição constitucional corrente, segundo a qual, como no caso brasileiro, “as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial” (CF, art. 207).
Na prática política, entretanto, esses valores acabam se confrontando com a disposição de poder que se nucleou, por exemplo, no Estado, e acabam definhando, à falta de compartilhamento de modos de compreensão que amparem o seu sentido e alcance. Ainda mais quando a universidade perde o simbolismo de seu lugar excelente e único – o de ser o lugar exclusivo no qual os conhecimentos se percebem livres para o diálogo pleno descolonizado e confiante – e fica nivelada num imaginário burocrático que torna homogêneas todas as instituições vistas na modelagem de meras repartições administrativas, como acontece no imaginário das chamadas “culturas” legislativas, regulamentadoras, judicantes e correicionais.
Os limites se encontram, portanto, no plano institucional, principalmente, a concomitância, às vezes concorrente, às vezes, cooperativa entre a universidade e o Estado; no plano teórico, os impasses entre a expectativa de lealdade presumida e a condição intrinsecamente crítica da interpretação que a universidade desenvolve acerca de todos os processos que se articulam em seus espaços de pesquisa, de ensino e de interação com os outros corpos sociais. Essa construção é tensa e precisa ser “negociada” contínua e legitimamente, sem arrogância, sem prepotência, sem corporativismo, de modo solidário e nos moldes democráticos. O limite é o horizonte de compreensão e de capacidade política para pactuar e afirmar a importância, a singularidade, a relevância da instituição universitária, algo que sempre se realizou na prova da experiência histórica.
Existem modelos de autonomia universitária no mundo que podem servir de parâmetro para as universidades e mesmo entre as universidades brasileiras, que permitem leituras avançadas para aferir o sentido atualizado da autonomia. Em várias Constituições esse modelo já foi estabelecido, como por exemplo, na Finlândia, onde até a legislação de ensino, produzida legislativamente, só entra em vigor, na universidade nacional, quando e se aprovada pelo seu Conselho dirigente. Mas no Brasil mesmo há modelos aperfeiçoáveis como o das universidades paulistas, sustentáveis na forma de destinação tributária para seu financiamento e com a configuração de um ato complexo (manifestação da universidade para a composição de listas submetidas à escolha do governador). A experiência da UnB também é exemplar, embora logo frustrada, primeiro pela ditadura e em seguida pela gula burocrática. Não custa lembrar que a lei de criação da UnB (lei 3998/1961), ainda em vigor apesar de ab-rogada em parte por uma hermenêutica de contenção, trouxe de forma expressa vários artigos definidores de uma autonomia, com fundos e patrimônio para a sua sustentação, diretrizes de auto-governo estatutário e a preciosidade que se lê no seu artigo 14: “Na organização de seu regime didático, inclusive de currículo de seus cursos, a Universidade de Brasília não estará adstrita às exigências da legislação geral do ensino superior...”.
É certo que a autonomia das universidades pode ser construída, mas não pode ser absoluta. Há limites, mas esses não podem ser estabelecidos por meio de leituras pobres que se descolem do sentido de fututo inscrito, por exemplo, na Constituição, ou sacrificados num exegetismo jurídico que perca o alcance atualizável do sentido da lei. Algo que transparece, exatamente onde menos se espera essa linha de consideração, referindo-me a última Bula do Papa Francisco (Misericordiae Vultus), e que os juristas e os burocratas da gestão bem podiam levar em conta, quando recomenda para a boa realização da Justiça, não “cair no legalismo, mistificando o sentido original e obscurecendo o valor profundo que a justiça possui” (nº 20). Afinal, as universidades têm singularidades próprias ao tipo de institucionalidades que realizam e não podem ser reduzidas na sua funcionalidade racional a um lugar comum de mera repartição governamental-administrativa.
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