“Por um lado, [os autores] consideram que o sistema de justiça pode desempenhar papel fundamental, seja para efetivar, seja para ampliar direitos. Por outro lado, denunciam a histórica impermeabilidade da justiça às demandas por direitos que marcam a incompleta transição democrática no país, exemplificadas, por exemplo, nos processos de indicação para Ministros do Supremo Tribunal Federal”, escreve Fabio de Sá e Silva, ao analisar o livro “Para um debate teórico-conceitual e político sobre os Direitos Humanos”, de Antonio Escrivão Filho e José Geraldo de Sousa Júnior (Belo Horizonte: D’Plácido, 2016). Silva ainda ressalta que os autores demonstram que “tal impermeabilidade não afeta apenas a dimensão organizacional, mas também subjetiva da justiça, formada por quadros que desconhecem ou mesmo que são refratários aos direitos humanos”.
Por: Fabio de Sá e Silva
Fabio de Sá e Silva é PhD em direito e políticas públicas (Northeastern University) e técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea e Research Fellow no Centro de Profissões Jurídicas da Harvard Law.
Eis o artigo.
Em texto obrigatório na formação de diversas gerações de acadêmicos em direitos humanos nos anos 1990, o jurista italiano Norberto Bobbio dizia que “o problema mais grave de nosso tempo, com relação aos direitos humanos, não é mais o de fundamentá-los, e sim de protegê-los”. Para Bobbio, por mais que debater os fundamentos dos direitos humanos pudesse ser tarefa intelectualmente rica, essa tarefa estava relativamente resolvida com o advento de sucessivas “declarações de direitos” no plano internacional. Tais “declarações”, dizia Bobbio, permitiam superar controvérsias sobre o caráter “natural” ou “histórico” de certos entendimentos sobre a organização das liberdades individuais e sociais, estabelecendo uma base objetiva e “consensual” a partir da qual se abria um conjunto muito mais instigante de desafios, agora no plano político.
Décadas depois, a situação dos direitos humanos parece requerer reparos àquela conhecida assertiva de Bobbio. Se as sucessivas “declarações de direitos” permaneceram vigentes ou mesmo ampliaram sua abrangência, sua natureza “consensual” não apenas deixou de ser evidente como era para Bobbio, senão que passou até mesmo a ser questionada. O Trumpismo nos EUA, o Brexit no Reino Unido e a ruptura da ordem democrática inaugurada no Brasil com a Constituição federal - CF/1988 são parte de uma investida global contra os “direitos humanos”, agora subitamente reconfigurados, no debate político, como “privilégios” de “minorias”. Assim é que, em quaisquer daqueles contextos, é o desejo de “ter o país de volta” que mobilizou considerável contingente da população.
É esse quadro de instabilidades que torna especialmente merecedor de leitura o recém-publicado “Para um debate teórico-conceitual e político sobre os Direitos Humanos” (Belo Horizonte: D’Plácido, 2016), de Antonio Escrivão Filho e José Geraldo de Sousa Júnior, duas gerações do pensamento jurídico “alternativo, heterodoxo e não conformista” que marca a Faculdade de Direito da Universidade de Brasília - UnB. Ao trabalhar aspectos relevantes quer para a “fundamentação”, quer para a “proteção” dos direitos humanos, o livro se coloca à altura dos desafios do seu tempo e representa um farol para quem, frente à barbárie crescente, pretende continuar investindo na linguagem dos direitos e da democracia.
O livro pode ser dividido em quatro grandes blocos
No primeiro, que engloba os Capítulos 1 e 2, os autores trabalham aspectos conceituais dos direitos humanos (ou seja, dedicam-se a “fundamentá-los”). Fiéis aos pressupostos da Nova Escola Jurídica, fundada por Roberto Lyra Filho na Faculdade de Direito da UnB, os autores conduzem esse esforço a partir de uma visão de “dialética social”, conceituando os direitos humanos como resultado, sempre contingente, das lutas pela maximização das liberdades individuais e sociais.
Tal exercício não é, rigorosamente, original, perpassando muito dos trabalhos elaborados já há quase quatro décadas na esteira dos trabalhos de Lyra Filho. Mas alguns de seus desdobramentos são, de fato, inovadores. Por exemplo, os autores aplicam a “dialética social” não apenas ao plano doméstico, mas também ao plano internacional, no qual muitas das “declarações de direito” aludidas por Bobbio foram gestadas. Ao invés de enxergá-las, assim, como resultado de um “consenso”, eles as enxergam, mais uma vez, como produto de lutas que transcendem espaços nacionais e deságuam em instituições e processos deliberativos globais, notadamente no âmbito da Organização das Nações Unidas. Da mesma forma, os autores utilizam a concepção de direitos humanos que resulta da “dialética social” para revisitar e reformular categorias da “dogmática dos direitos humanos”, como as de “gerações, dimensões ou processos de direitos” e “indivisibilidade, interdependência e integralidade dos direitos humanos”.
O segundo bloco, que pode ser circunscrito aos Capítulos de 3 a 5, consiste na efetiva aplicação da “dialética social” para o exame dos direitos humanos no Brasil e na América Latina. Além de revolver processos históricos que estruturaram padrões de negação de direitos no Brasil, como o colonialismo, a escravidão e a ditadura, os autores examinam como a redemocratização e os processos constituintes foram fonte não apenas de mobilização política e afirmação de novas demandas por liberdade e igualdade (em sentido material, mas também simbólico), mas também de reconfigurações dos Estados nacionais no Brasil e em seus países vizinhos. Tais batalhas sociais, econômicas, políticas e institucionais compõem o quadro complexo no qual se dá a promoção (ou a negação) dos direitos humanos hoje no país, já se afigurando, na percepção arguta dos autores, movimentos refratários mais organizados, como o que se formou contra o Decreto n. 8.243/2015, que instituiu uma “Política” e um “Sistema” Nacionais de Participação Social.
O terceiro bloco, delimitável nos Capítulos 6 e 7, avança sobre uma das arenas que sempre vêm à nossa mente para a mediação daquelas batalhas: o sistema de justiça. Aqui, a leitura dos autores é ambivalente: por um lado, consideram que o sistema de justiça pode desempenhar papel fundamental, seja para efetivar, seja para ampliar direitos. Por outro lado, denunciam a histórica impermeabilidade da justiça às demandas por direitos que marcam a incompleta transição democrática no país, exemplificadas, por exemplo, nos processos de indicação para Ministros do Supremo Tribunal Federal. Tal impermeabilidade não afeta apenas a dimensão organizacional, mas também subjetiva da justiça, formada por quadros que desconhecem ou mesmo que são refratários aos direitos humanos. Essas considerações reintroduzem temas antigos na sociologia do direito e no pensamento jurídico crítico, como o da “reforma do ensino jurídico” e do “recrutamento e formação” de magistrados e outros profissionais do direito.
O Direito Achado na Rua
Por fim, o último bloco, ancorado no Capítulo 8, devolve o conjunto do texto ao seu berço de origem, o movimento O Direito Achado na Rua, formado na Faculdade de Direito da UnB a partir da liderança de Lyra Filho, estruturado a partir da disciplina e do refinamento de Sousa Júnior, e alimentado pelas preocupações e pelo engajamento de gerações de estudantes, como é o caso, ao menos por mais alguns meses, de Escrivão Filho. Se, para Lyra Filho, o direito era o produto das lutas sociais pela ampliação das liberdades individuais e sociais, O Direito Achado na Rua debruçou-se por décadas sobre algumas dessas lutas e seu potencial de contribuição para a renovação da dogmática e das instituições jurídicas. A vinculação entre as reflexões do livro e o referido movimento é importante não apenas por razões de transparência com o leitor, mas também para ilustrar as experiências concretas de ensino, pesquisa e extensão nas quais cada um dos blocos foi, afinal, concebido.
Há, evidentemente, vários aspectos nos quais o livro poderia ser enriquecido ou expandido e eu estou, historicamente, entre os que sempre costumam estimular os integrantes de O Direito Achado na Rua a que adensem o componente de “ciências sociais” que é intrínseco ao movimento (“o verdadeiro jurista há de ser também um cientista social, sob pena de não ser nada, cientificamente; e assim deve procurar a colaboração mais fecunda com o sociólogo”, disse certa vez Lyra Filho). Por exemplo, ao transpor a análise da “dialética social” para a formação de documentos e sistemas internacionais de proteção aos direitos humanos, o livro poderia ter se indagado sobre os limites (inclusive financeiros) colocados para a conformação de uma “sociedade civil internacional”, em geral muito mais profissionalizada e elitizada que os movimentos sociais locais e, por isso mesmo, muitas vezes incapaz, ainda, de ecoar a radicalidade das lutas por direitos que operam no interior dos Estados nacionais.
Da mesma forma, no capítulo em que discute a reforma do ensino jurídico, o livro (o país como um todo, diga-se de passagem) carece de um balanço empírico mais sólido acerca da implementação das Novas Diretrizes Curriculares e do efetivo aproveitamento de inovações como Núcleos de Prática Jurídica, Atividades Complementares etc., para a organização de projetos pedagógicos fundados nos ou orientados aos direitos humanos.
Mas se os autores não respondem a essas questões, nem por isso fecham as portas para que elas sejam entabuladas. E pela capacidade de articular abordagem nova, robusta e, sobretudo, apta a dar conta dos desafios colocados aos direitos humanos na atualidade, o livro traz, inegavelmente, uma grande contribuição para a nossa reflexão e prática rumo à reconstrução da democracia, do Estado de Direito e de uma ordem jurídico-política na qual, talvez, possamos regressar ao que hoje pode ser visto como o lugar confortável de que Bobbio escreveu sobre o mesmo tema na longínqua Turim de 1990.■
Nenhum comentário:
Postar um comentário