Texto publicado originalmente no Blog Carta Maior (Seção Princípios Fundamentais)
Fabio de Sá e Silva (*)
A trágica morte do cinegrafista
Santiago Andrade, vítima de rojão disparado em protesto no Rio de
Janeiro, gerou súbita movimentação no Congresso Nacional. O Senador
Romero Jucá (PMDB-RR) aproveitou a comoção para tentar impulsionar, na
agenda de votações, o projeto de sua autoria que tipifica o crime de
terrorismo.
O
projeto define terrorismo como “provocar ou infundir terror ou pânico
generalizado mediante ofensa ou tentativa de ofensa à vida, à
integridade física ou à saúde ou à privação da liberdade de pessoa”. As
penas previstas vão de 15 a 30 anos, ampliadas se houver mortos em
consequência do crime ou se o crime for praticado por explosivo, fogo ou
arma química.
Apesar
de ensejar pedidos de cautela do Ministro da Justiça, José Eduardo
Cardozo, o gesto atraiu apoio e simpatia de parlamentares de diversos
partidos da base, inclusive no PT.
“Mediante o acontecido com o cinegrafista, que foi covardemente assassinado, acredito que o Senado tem que responder, não só para esse fato, mas para alguns que já aconteceram e outros que vão acontecer se nada for feito,” disse o Senador Paulo Paim (PT-RS). A aprovação dessa lei dará um “sinal concreto” à sociedade de que crimes como a morte de Santiago serão punidos “com mais de 30 anos de cadeia,” corroborou o Senador Jorge Viana (PT-AC).
“Mediante o acontecido com o cinegrafista, que foi covardemente assassinado, acredito que o Senado tem que responder, não só para esse fato, mas para alguns que já aconteceram e outros que vão acontecer se nada for feito,” disse o Senador Paulo Paim (PT-RS). A aprovação dessa lei dará um “sinal concreto” à sociedade de que crimes como a morte de Santiago serão punidos “com mais de 30 anos de cadeia,” corroborou o Senador Jorge Viana (PT-AC).
A
esta altura de nossa mais recente, mas ao mesmo tempo mais longeva
experiência democrática, o script dessas movimentações já é bastante
conhecido na sociedade brasileira.
Eventos
críticos, ainda mais quando envolvem vítimas fatais, se apresentam como
oportunidades únicas para ganhos políticos que podem ser preciosos em
um ano eleitoral. Basta trabalhar (e, em especial, ser visto
trabalhando) pela aprovação de lei que cria um novo crime ou prevê penas
mais duras para crimes já existentes: a “resposta” de que falavaPaim, o
“sinal concreto” à sociedade de que falava Viana.
“O
Brasil assinou várias convenções e tratados internacionais, nos quais
assumiu o compromisso de combater o terrorismo. Por isso é preciso
defini-lo”, é o que diz Jucá.
É
verdade. Mas tais convenções e tratados têm como objetivo criar
condições para combater redes internacionais ou transnacionais de
terrorismo, jamais gerir conflitos locais, como os que tiveram início no
Brasil a partir dos protestos de junho e que tiveram na morte de
Santiago o que parece ser o seu ponto mais crítico. E é improvável,
ademais, que o conceito de “terrorismo” ajude a gerir bem esses
conflitos. Até porque, em geral, eles passam longe de práticas
“terroristas”.
Viana
enxerga na morte de Santiago um episódio que se encaixaria bem na
definição proposta por Jucá. “Foi usado um explosivo. Não é um rojão de
festa junina. Foi usada uma bomba,” argumenta o parlamentar.
Mas
alto lá. O que o projeto de Jucá define como terrorismo é a conduta de
“provocar ou difundir terror ou pânico generalizado”. Há que haver,
portanto, uma intenção clara de “aterrorizar”.
Quem
quer que assista os vídeos que registram o disparo do rojão contra
Santiago concordará que, naquele caso, não era disso que se tratava. O
disparo do rojão (ato irresponsável e digno de censura moral, política e
jurídica, é bom que se registre) se deu muito mais como desdobramento
de um conflito físico entre manifestantes e forças de ordem do que como
ação voltada consciente e/ou objetivamente a “causar terror ou pânico”.
O
que a tipificação do terrorismo tem feito em toda a parte, por sua vez,
é criar uma segunda classe de indivíduos – que, a esta altura já nem
merecem mais o título de cidadãos –, aos quais, posteriormente, outras
leis e políticas públicas conferem tratamento diferenciado, despido dos
direitos e garantias mais fundamentais a qualquer experiência de
democracia constitucional.
É
o que se vê nos Estados Unidos, onde a “guerra contra o terror”
impulsionada pelo 11 de setembro passou a justificar medidas e políticas
antes inconcebíveis, como prisões por tempo indefinido em Guantánamo ou
a invasão da privacidade de outros chefes de Estado sobre os quais não
há qualquer razão objetiva para classificar de terroristas ou aliados do
terrorismo.
Têm
razão, portanto, os que veem com preocupação a tentativa explícita de
se vender a tipificação do terrorismo como “resposta” ao trágico
incidente envolvendo o cinegrafista Santiago. Pois, além de inadequado
para gerir o problema específico que motiva a sua criação, o tipo penal
proposto por Jucá tende a ser funcional para segregações e perseguições
que nem a imaginação consegue limitar, como a história recente da “maior
democracia do mundo” bem está a demonstrar.
Enquanto
isso, apesar de suas imperfeições, as instituições vigentes vão
buscando dar conta do problema. Dois suspeitos de terem disparado o
rojão estão presos, um deles acusado de crimes que podem somar 35 anos
de prisão. São 5 a mais que a pena máxima do crime de terrorismo
pretendida por Jucá. As versões que aparecem para o crime e para as
condições de participação desses suspeitos, defendidos, aliás, por um
advogado bastante controvertido, têm sido rápida e livremente
escrutinadas pela imprensa e por autores da blogosfera.
Será mesmo que, como diz Viana, é preciso algum sinal concreto adicional?
O quadro que vivemos requer outro tipo de postura, especialmente das lideranças políticas do campo progressista.
O PSOL andou bem ao se desvincular expressamente dos manifestantes que aderem às táticas Black Block,
sinalizando para o compromisso com as instituições democráticas que
deve ser pressuposto de qualquer partido político sério. Grupos e
organizações autônomos, em especial de jovens, devem seguir o exemplo,
ainda que para isso tenham que abrir mão de slogans que indiquem
disposição para posturas autoritárias, como foi o caso do “não vai ter
Copa”.
O
governo federal não deve tergiversar quanto aos pedidos de cautela
formulados por Cardozo mas, principalmente, deve coordenar esforços para
garantir o direito ao protesto pacífico, com o repúdio e a
responsabilização de ações violentas por parte das polícias. E eventuais
excessos devem ser punidos, mas com o respeito às garantias do devido
processo legal.
O
compromisso com a democracia convida-nos a reiterar, e não a subverter
os princípios sobre os quais se assenta o nosso projeto sempre inacabado
de constituir uma sociedade “livre, justa e solidária”. Frente a esse
desafio, o afã e o destempero podem representar o que Kafka, em seus
Vinte e Oito Aforismos, denominou como o único pecado capital: “a
impaciência. Devido à impaciência, fomos expulsos do Paraíso; devido à
impaciência, não podemos voltar”.
(*) PhD em Direito, Política e Sociedade pela Northeastern University (EUA) e Professor substituto de Teoria Geral do Direito da Universidade de Brasília. As opiniões expressas neste artigo são de caráter estritamente pessoal.
Nenhum comentário:
Postar um comentário