Fábio de Sá e Silva (*)
Desde que teve início o julgamento da Ação Penal 470, o chamado processo
do “mensalão”, bate-bocas em plenário e duras críticas aos pares por
meio de veículos da grande imprensa já haviam cuidado de sepultar a
liturgia que deve caracterizar os trabalhos dos Ministros do STF,
enquanto integrantes do órgão de cúpula do poder judiciário.
Frente
ao sucesso das “vaquinhas” voltadas à arrecadação de verbas para o
pagamento das multas penais fixadas naquele processo, notadamente a do
ex-parlamentar e ex-presidente do PT, José Genoíno, o Ministro Gilmar
Mendes parece não ter resistido em oferecer mais uma contribuição para
essa crescente desfiguração.
“Está tudo muito esquisito,” disse
Gilmar em referência à arrecadação. “E se for um fenômeno de lavagem? O
Ministério Público precisa olhar isso”.
A frase de Mendes
incendiou a blogosfera e ensejou rápida resposta do Senador Eduardo
Suplicy. Em carta enviada ao Ministro, Suplicy não apenas declarou ter
sido um dos doadores ao lado de outras figuras públicas, como o
ex-Ministro do STF Nelson Jobim, como também defendeu os procedimentos
para a coleta das doações, registrando que os “documentos que comprovam
tudo quanto por ora se afirma estão à disposição da Justiça, e,
comprovarão, de forma inequívoca, a precocidade e inconveniência de
declarações dadas no calor dos debates”.
Gilmar perdeu nova chance de guardar o silêncio litúrgico próprio do cargo e enviou resposta a Suplicy.
Desta
vez, além de reiterar o entendimento de que, mesmo do alto do plenário
da Suprema Corte, lhe é legítimo “perquirir a respeito das movimentações
financeiras dos condenados... em proveito da transparência e da
dignidade da lei penal e do Poder Judiciário,” o Ministro ainda desafiou
o Senador a “liderar o ressarcimento ao erário público das vultosas
cifras desviadas”.
A tese de que as “vaquinhas” para o pagamento
das multas penais poderiam ocultar qualquer prática de lavagem de
dinheiro não resiste a qualquer escrutínio básico da razão. Afinal, se
há valores desviados ou sonegados que transitam por mãos próximas às dos
condenados, o que os envolvidos nisso ganhariam em canalizar o dinheiro
para os cofres públicos – destino último, pois, das multas penais?
De
um ponto de vista prático, a lavagem de dinheiro só faz sentido se der
aparência de legalidade a valores dos quais se possa usufruir de maneira
direta e imediata. O pagamento da multa não “libertaria” os réus; ao
passo que seria muito mais racional deixar o dinheiro rendendo em algum
lugar ou abastecendo algum outro negócio, para usufruir dele depois, em
liberdade. Dispor do dinheiro de modo definitivo e sem obter nada
objetivo em troca pode merecer outras suspeitas, como a de altruísmo ou
loucura, mas jamais o de lavagem.
Mas Gilmar não parou aí nas suas considerações críticas.
Na
resposta a Suplicy, o Ministro argumenta que a alegada falta de
transparência apenas torna “mais questionável procedimento que, mediando
o pagamento de multa punitiva fixada em sentença de processo criminal,
em última análise sabota e ridiculariza o cumprimento da pena – que a
Constituição estabelece como individual e intransferível – pelo próprio
apenado, fazendo aumentar a sensação de impunidade que tanto prejudica a
paz social no País”.
Tais preocupações não apenas animam
debates epistolares, mas já encontram eco no Parlamento. Na Câmara, o
Deputado João Campos (PSDB-GO) – autor de proposições com forte conteúdo
moralista e polêmico, como a da “cura gay” e a da criminalização da
prostituição – correu a dar entrada no PL 7123/2014.
Segundo o
texto desse PL, “é vedada, no pagamento da multa aplicada ao condenado, a
utilização de recursos, bens ou direitos provenientes de terceiros,
pessoas físicas ou jurídicas, personalizadas ou não, entidades
sindicais, associações, partidos políticos ou fundações, públicas ou
privadas, sejam eles advindos de doação ou qualquer outra forma de ato
ou negócio jurídico”.
“O inciso XLV do artigo 5º da Constituição
Federal institui o princípio da intranscendência da pena ao dispor que
‘nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de
reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da
lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do
valor do patrimônio transferido’,” afirma o parlamentar na
justificativa para essa nova proposição.
Esse antecedente, no entanto, está longe de levar ao consequente almejado por ele e por Mendes.
O
princípio da intranscendência da pena surgiu como forma de proteger
terceiros que nada têm a ver com o crime de que o réu é acusado. É bom
lembrar que ele remete a um tempo no qual as penas não recaíam apenas
sobre os réus condenados, mas também aos seus familiares, amigos e
descendentes de muitas gerações.
Trata-se, assim, de uma forma
de proteger terceiros alheios à prática do crime contra o exercício – a
esta altura já considerado ilegítimo – do poder do Estado. Jamais uma
forma de blindar os condenados por crimes de qualquer forma de apoio
desses terceiros no cumprimento das penas que lhe foram impostas.
Quem
pretende defender “a dignidade da lei penal e do Poder Judiciário”
deveria se preocupar essencialmente sobre se as penas de multa cominadas
na ação do “mensalão” estão ou não sendo cumpridas, pois a “sensação de
impunidade” de que fala Mendes vem da tendência contrária: são os
inúmeros réus do país, no cível e no criminal, que transferem e ocultam
patrimônio a fim de que jamais possam ser responsabilizados.
“Perquirir”
inquisitorialmente de onde os réus obtêm dinheiro para cumprir uma
obrigação penal – e, pior que isso, tentar proibir que estes procurem
levantar dinheiro para fazê-lo por meio de doações ou mesmo de
empréstimos (“qualquer outra forma de ato ou negócio jurídico”), como
quer Campos – é colocar “a lei penal e o Poder Judiciário” em segundo
plano, em nome de outros interesses, como o da estigmatização permanente dos condenados. Esse, sim, o verdadeiro fantasma que as reformas penais do século XVIII, em vão, tentaram enfrentar.
Afinal,
enquanto for possível dizer que esses réus “devem” à sociedade, será
sempre mais fácil justificar o porquê de alguns deles cumprirem pena em
regime mais gravoso do que o que foram condenados – sem ter acesso, por
exemplo, ao trabalho externo –, ou o porquê de outros condenados no
mesmo processo ainda estarem soltos, ou ainda o porquê de processos
idênticos ao do “mensalão” estarem sendo desmembrados, ao contrário do
que ocorreu nesta ação.
O que faz “vaquinhas” de apoio aos
petistas “profanas” aos olhos de gente como Mendes, em suma, é o fato de
que, assim como a sua correspondente da música de Caetano, elas e seus
colaboradores ousaram “por os cornos pra fora e acima da manada,”
rompendo com a expectativa de exclusão permanente dos réus da vida
pública e política que muitos depositavam sobre aquele processo. Sobrou,
como na música, uma boa dose de leite derramado na cara dos caretas. É
leite bom, porque consistente com princípios fundamentais ao progresso
histórico das punições. Ainda que alguns sejam ou tenham se tornado
caretas demais para conseguir compreendê-lo.
***
Em tempo:
Em
nome de amizade antiga com Miruna Genoíno, que conheceu durante sua
graduação na USP, o autor deste artigo emprestou à família desta algumas
horas de sua força de trabalho para ajudar a gerir a caixa de e-mail
pela qual os doadores enviavam comprovantes, além de dados como RG e
CPF.
Além de apagar os quatro ou cinco e-mails ofensivos
recebidos, a tarefa que lhe foi incumbida consistia em montar uma
planilha com os nomes, valores e dados pessoais dos doadores para
instruir as devidas prestações de contas. Era ainda o começo da
“vaquinha”, mas apenas naquele dia o saldo apurado foi de quase R$ 30
mil. A média das doações foi de R$ 294, e os doadores envolviam desde
militantes humildes, que enviavam comprovantes de R$ 1,00 por “Lan
Houses”, até políticos de partidos da oposição.
Com base,
portanto, nesse conhecimento de primeira mão, somo-me ao Senador
Suplicy, atestando a higidez da campanha e o caráter absolutamente
sincero e solidário das doações ao ex-parlamentar e ex-presidente do PT.
***
(*)
PhD em Direito, Política e Sociedade pela Northeastern University
(EUA). As opiniões expressas neste artigo são de caráter estritamente
pessoal. Participa dos "Diálogos Lyrianos". Este texto foi originalmente publicado no Blogue da Carta Maior, na Seção Princípios Fundamentais, da qual o autor é o editor.
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