segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Entrevista com Fabio de Sá e Silva (Ipea), Publicada em Série Pensando o Direito, volume especial, n. 50, MJ, Brasília, 2013




PD: Como você avalia a importância de iniciativas como o Projeto Pensando o Direito?

FS: Junto às atividades do Ipea e do Departamento de Pesquisa Judiciária do Conselho Nacional de Justiça, o Pensando o Direito se tornou uma das principais referências e um dos principais catalisadores da pesquisa em direito no país, com caráter empírico e aplicado.

Creio que isso dá uma boa medida da importância do Projeto e sinaliza para a formação de um novo terreno, repleto de desafios, mas também de potencialidades.

PD: Como você vê o papel que pesquisas jurídicas de cunho empírico podem desempenhar no processo de formulação de políticas públicas?

FS: Prefiro responder em termos mais amplos, falando sobre a relação entre ciência e política. É um pressuposto das sociedades modernas que a produção de conhecimento mais rigoroso sobre a realidade pode nos ajudar a transformá-la, de preferência para melhor.

Mas, a partir dos anos 1970, esse pressuposto passou a receber críticas importantes. A primeira foi no sentido de que a atividade científica padece de limitações e constitui, quando muito, uma forma aproximada de conhecer a realidade. Por isso, especialmente quando vivemos a constituição ou a dissolução de paradigmas no conhecimento, é perfeitamente possível que tenhamos duas ou mais narrativas igualmente “científicas” concorrendo para descrever ou explicar um elemento da realidade. A segunda foi no sentido de que políticas públicas não podem ser vistas como respostas “racionais” e lineares para problemas, senão como uma arena de disputa permanente.

Uma vez que minha trajetória nas Ciências Sociais foi profundamente marcada pelo contato com essas críticas, entendo que pesquisas empíricas em Direito cumprem uma função modesta, porém de suma importância na formulação de políticas públicas: elas jogam luz sobre os debates, apontam o caráter ideológico de determinadas propostas e exigem maior qualificação dos argumentos. Isso é especialmente importante diante da tradição bacharelesca na produção de conhecimento jurídico no Brasil, que deu aos juristas uma notável oportunidade de exercício de poder, sob o manto da detenção de um conhecimento especializado, como foi destacado por muitos autores como Luis Alberto Warat, José Eduardo Faria, Roberto Lyra Filho e José Geraldo de Sousa Júnior.

PD: Conte como se deu o acordo entre o Ministério da Justiça e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) para viabilizar a continuidade do Projeto Pensando o Direito.

FS: De alguns anos para cá, depois de um processo de planejamento estratégico, o Ipea estabeleceu, entre outros, dois objetivos: retomar a conexão com atores sociais e, em especial, governamentais envolvidos no processo de planejamento e formulação de políticas públicas; e ampliar o seu leque de atuação em direção a áreas que não eram tradicionalmente trabalhadas no Instituto. Isso envolveu, inclusive, a realização de um concurso com perfil mais plural e aberto, por meio do qual foi possível recrutar quadros com formação em áreas como Sociologia, Ciência Política e Direito.

Também foi importante, nesse processo, o fato de Ipea ter aperfeiçoado instrumentos para a mobilização e a articulação do conhecimento técnico-científico em seus projetos. Hoje o Ipea dispõe de linhas de financiamento para redes de pesquisa e eventos técnico-científicos, com os quais amplia sua capacidade de produção e troca de conhecimento.

A partir daí, o órgão intensificou sua interação com o Ministério da Justiça. A parceria com a SAL em torno do Projeto Pensando o Direito foi facilitada pela convergência quanto ao objeto (pesquisa empírica em Direito, com o envolvimento de atores externos) e a finalidade (subsidiar políticas públicas e reformas legislativas).

O resultado foi a celebração de um arranjo até agora proveitoso para o Ministério da Justiça e para o Ipea. O Ministério delimita áreas de política nas quais verifica necessidade de se conhecer melhor a realidade e se pensar em formas de intervenção. O Ipea dá apoio técnico, ajudando a traduzir essa demanda para um projeto de pesquisa aplicada, que também executa e monitora, em estreita parceria com a SAL. Ganha, ainda, a comunidade que trabalha com pesquisa empírica em Direito, que tem a oportunidade de se envolver nos projetos e colaborar com o Governo.

PD: Você já esteve mais de uma vez no encontro internacional da Law and Society Association, que é o principal fórum de pesquisa empírica em Direito, e tem doutorado pela Northeastern University. Quais as principais diferenças que você nota entre aquele ambiente e a Academia Jurídica brasileira?

FS: Costumo dizer que não tivemos, por aqui, um movimento de realismo jurídico, que, nos Estados Unidos, levou à valorização de dados concretos da realidade para informar a tomada de decisões no mundo do Direito. Mas preciso fazer a ressalva de que, com essa consideração, não entendo que o Direito deva se curvar aos fatos. O Direito moderno é, em princípio, um campo específico, que opera com um código (normativo) específico e é mediado por atores sociais autorizados. É inocente e talvez seja mesmo equivocado pensar que esse campo possa ou deva ser subvertido por imperativos de ordem econômica ou social, os “fatos” da pesquisa empírica. Mesmo assim, é possível enriquecer o repertório e as práticas do campo a partir de um olhar externo sobre o que ele produz, o que, em todo caso, é diferente do que os seus atores dizem que ele produz.

De todo modo, não entendo que a pesquisa empírica em Direito deva ser objeto apenas da Academia jurídica. Ao contrário, o que minha experiência no exterior diz é, exatamente, que a pesquisa empírica em Direito será tão mais rica e proveitosa quanto mais seja feita conjuntamente entre profissionais do Direito e das várias Ciências sociais, especialmente Ciência Política, Sociologia e Antropologia. Essas outras Ciências Sociais têm ajudado os juristas a reconstruírem o seu objeto de análise (a antiga questão do que é Direito), mobilizar métodos de pesquisa com maior consciência sobre suas potencialidades e limites, e, finalmente, teorizar, em termos mais amplos, sobre os resultados encontrados.

PD: Fale um pouco sobre o processo de criação e consolidação da Rede de Pesquisa Empírica em Direito (REED), e seus encontros anuais em Ribeirão Preto.

FS: A REED surgiu de vários impulsos. Um deles era o sentimento de orfandade de alguns acadêmicos brasileiros que trabalhavam com pesquisa empírica em Direito e não encontravam interlocutores, especialmente no âmbito de faculdades de Direito. O segundo foi o interesse institucional de órgãos como o Ipea, que frequentemente buscam recrutar colaboradores para atuar em seus projetos e, a partir de um determinado momento, já não conseguiam mais identificar bons candidatos em suas chamadas públicas.

Um terceiro talvez tenha sido o contato de pesquisadores brasileiros com experiências internacionais, tais como a reunião da Law and Society. Esse tipo de experiência dá a sensação de que é possível desenvolver uma carreira profissional de pesquisa empírica em Direito; de que esse é um empreendimento que, não obstante eventual sensação de solidão, mobiliza um contingente grande de pessoas, programas e instituições.

A REED buscou criar ou melhorar as condições para o trabalho dessas pessoas, programas e instituições no Brasil. Para tanto, os principais instrumentos escolhidos foram a realização de encontros anuais, a manutenção de um site, a organização de uma revista científica, o contato com atores internacionais e a formação de quadros.

A Faculdade de Direito da USP de Ribeirão Preto, desde o princípio, se ofereceu para sediar os encontros, mas o restante da operação da REED é descentralizado – e, inclusive, houve encontros regionais no último ano. O site www.reedpesquisa.org está ativo e, dados os recursos de que a REED dispõe, eu diria que é um espaço agradável e informativo. A revista científica nasce com a aspiração de ser referência nacional e internacional, e o primeiro número deve ser lançado no final de 2013 ou início de 2014.

A internacionalização também caminha bem – além de ter celebrado convênio para o envio de fellows para o programa de Jurisprudence and Social Policy da Universidade da Califórnia em Berkeley, referência na pesquisa empírica em direito dos EUA, criado, aliás, pelo falecido professor Philip Selznick, o último encontro nacional, em setembro de 2013, teve a presença de Marc Galanter, da Universidade de Wisconsin, e Álvaro Pires, da Universidade de Ottawa.

O desafio da REED permanece sendo o da capacitação. Quanto a isso, há uma intenção de se fazer uma série de cursos e workshops em métodos e temas substantivos de pesquisa empírica em Direito, em 2014. Aqui, há espaço para intensa colaboração entre a REED e o Pensando o Direito. Dois workshops patrocinados pelo Pensando o Direito, ainda sem uma parceria plena com a REED, foram realizados em 2013; para 2014, esperamos fazer essa prática convergir com as demandas da REED e atrair seus integrantes.

PD: Descreva as dificuldades mais frequentes que você tem observado para pesquisadores que utilizam métodos empíricos no Brasil.

FS: Há duas dificuldades básicas que estão relacionadas à apropriação de métodos e técnicas pelos juristas (ou à compreensão “de dentro” do mundo do Direito para os demais cientistas sociais); e à falta de espaços para a interlocução sobre esse tipo de pesquisa na Academia. Creio que a REED tem ajudado no enfrentamento de ambas, embora ainda esteja longe de ser uma Law and Society brasileira.

Porém, tenho insistido com meus colegas que o uso de técnicas ou métodos empíricos para a investigação do Direito no Brasil está se consolidando em um nível muito inicial, que é o da descrição da realidade jurídica. Em outras palavras, nossos pesquisadores têm sido capazes de dizer como o direito se manifesta concretamente, mas isso ainda é pouco, tanto para o direito quanto para as Ciências Sociais.

Para o Direito, pesquisas de caráter descritivo dizem como a realidade é, mas o Direito não é o mundo do ser, e sim do dever ser. Não basta dizer, por exemplo, que a Justiça Penal tem um viés contra negros e pobres; do ponto de vista jurídico teríamos que criticar as teorias, as ferramentas e a arquitetura institucional dentro da qual esse viés é produzido: a descrição da realidade tem que ter rebatimento na concepção de novos princípios e meios para a organização das liberdades, citando a definição de Direito de Lyra Filho.

Já para as Ciências Sociais, tampouco basta dizer que há um determinado padrão na realidade jurídica, sem dialogar com teorias que ajudam a situar esse padrão na compreensão das relações sociais, em sentido mais amplo (e, inclusive, do papel que o Direito ocupa nessas relações). Essa terceira dificuldade, então, pode estar relacionada com o déficit de teorização na Academia, que nos estabelece uma zona de conforto na qual nos limitamos a descrever e às vezes a “explicar” padrões, sem refletir criticamente a respeito do que eles revelam sobre nós mesmos.

PD: Um dos grandes desafios que o Projeto Pensando o Direito procura superar é levar para organizações da sociedade civil, movimentos sociais e para a população em geral conhecimentos sobre como ocorre o Processo Legislativo e como é possível influir positivamente nos seus resultados. Como você avalia a relação entre o cidadão brasileiro e a formulação da política legislativa?

FS: Já tive a ocasião de gerir políticas públicas e participo ocasionalmente de estudos sobre comportamento político e estou convencido de que a sociedade brasileira é interessada e predisposta a intervir em processos de elaboração de políticas públicas. Obviamente, tudo depende da natureza e do escopo do conflito. Em políticas muito técnicas, por exemplo, a população só pode atuar em relação aos contornos gerais ou na censura a um ou outro aspecto que lhe pareça afrontar mais os sentidos. Essa mobilização supera, inclusive, obstáculos para a constituição de debates públicos plurais, como a concentração da mídia.

A questão, em todo o caso, é prover os cidadãos com as possibilidades e os meios de participação. Nesse aspecto, a atividade Legislativa tem estado atrasado em relação a outras, como a Executiva (na qual assistimos a uma profusão de interfaces como conselhos, conferências, audiências públicas, ouvidorias, entre outros, bem mapeada pelo Ipea, aliás) e a própria atividade Judiciária, que, bem ou mal, também incorporou mecanismos como audiências públicas e amicus curiae. A agenda legislativa é, infelizmente, desconhecida pela maior parte dos cidadãos e as condições de lobby carecem de regulamentação. Essa dimensão do Projeto Pensando o Direito é, portanto, mais que salutar.

PD: Considerando esses avanços identificados e os potenciais que ainda podem ser explorados, quais seriam as suas propostas e sugestões para o aprimoramento do Projeto Pensando o Direito?

FS: Sendo bastante crítico, entendo que o Projeto Pensando o Direito passou por uma mudança ao longo do tempo. No início, o Projeto não deixava de reproduzir um pouco o padrão dominante nas Faculdades de Direito: seu objetivo de fundo era selecionar grupos ou indivíduos com posição já consolidada no cenário jurídico, como forma de adensar a capacidade propositiva da Secretaria, mas também de se apoiar no argumento de autoridade desses personagens. Mais adiante é que ele foi enfatizando a pesquisa empírica e aplicada em Direito e a própria ideia de democratização da política legislativa.

No primeiro caso, isso implicou maior valorização da coleta e a análise de dados empíricos, visando refletir a realidade jurídica – coincidência ou não, isso permitiu que grupos e pesquisadores menos tradicionais se tornassem mais competitivos ou não na seleção de candidaturas do Projeto. No segundo, isso implicou a realização de seminários, debates e consultas públicas em torno dos estudos, de modo que, como considerei anteriormente, a produção do conhecimento é um elemento em um debate mais amplo, que também não perde de vista interesses, argumentos e experiências de atores e movimentos sociais.

Espero que o Projeto aprofunde essa trajetória e explore, especialmente, as inovações que construímos ao longo deste ano de 2013, como a série de workshops. E, partindo de minha experiência no Ipea, tenho sugerido aos colegas da SAL que façamos um experimento em 2014, selecionando vários grupos no país para atuar em um mesmo projeto. Isso permitiria fazer uma pesquisa com abrangência nacional (saindo do modelo atual, muito orientado a estudos de caso), em temas de grande relevância, envolvendo uma diversidade de colaboradores (em termos não só geográficos, mas também de tradições e disciplinas) e com grande capacidade de mobilização para debates. Quem sabe uma história como essa não poderá ser contada na edição nº 100?

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