PD:
Como você avalia a importância de iniciativas como o Projeto Pensando o
Direito?
FS:
Junto às atividades do Ipea e do Departamento de Pesquisa Judiciária do
Conselho Nacional de Justiça, o Pensando o Direito se tornou uma das principais
referências e um dos principais catalisadores da pesquisa em direito no país,
com caráter empírico e aplicado.
Creio que
isso dá uma boa medida da importância do Projeto e sinaliza para a formação de
um novo terreno, repleto de desafios, mas também de potencialidades.
PD:
Como você vê o papel que pesquisas jurídicas de cunho empírico podem
desempenhar no processo de formulação de políticas públicas?
FS:
Prefiro responder em termos mais amplos, falando sobre a relação entre ciência
e política. É um pressuposto das sociedades modernas que a produção de
conhecimento mais rigoroso sobre a realidade pode nos ajudar a transformá-la,
de preferência para melhor.
Mas, a
partir dos anos 1970, esse pressuposto passou a receber críticas importantes. A
primeira foi no sentido de que a atividade científica padece de limitações e
constitui, quando muito, uma forma aproximada de conhecer a realidade. Por
isso, especialmente quando vivemos a constituição ou a dissolução de paradigmas
no conhecimento, é perfeitamente possível que tenhamos duas ou mais narrativas
igualmente “científicas” concorrendo para descrever ou explicar um elemento da
realidade. A segunda foi no sentido de que políticas públicas não podem ser
vistas como respostas “racionais” e lineares para problemas, senão como uma
arena de disputa permanente.
Uma vez que
minha trajetória nas Ciências Sociais foi profundamente marcada pelo contato
com essas críticas, entendo que pesquisas empíricas em Direito cumprem uma
função modesta, porém de suma importância na formulação de políticas públicas:
elas jogam luz sobre os debates, apontam o caráter ideológico de determinadas
propostas e exigem maior qualificação dos argumentos. Isso é especialmente
importante diante da tradição bacharelesca na produção de conhecimento jurídico
no Brasil, que deu aos juristas uma notável oportunidade de exercício de poder,
sob o manto da detenção de um conhecimento especializado, como foi destacado
por muitos autores como Luis Alberto Warat, José Eduardo Faria, Roberto Lyra
Filho e José Geraldo de Sousa Júnior.
PD:
Conte como se deu o acordo entre o Ministério da Justiça e o Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) para viabilizar a continuidade do Projeto
Pensando o Direito.
FS:
De alguns anos para cá, depois de um processo de planejamento estratégico, o
Ipea estabeleceu, entre outros, dois objetivos: retomar a conexão com atores
sociais e, em especial, governamentais envolvidos no processo de planejamento e
formulação de políticas públicas; e ampliar o seu leque de atuação em direção a
áreas que não eram tradicionalmente trabalhadas no Instituto. Isso envolveu,
inclusive, a realização de um concurso com perfil mais plural e aberto, por
meio do qual foi possível recrutar quadros com formação em áreas como
Sociologia, Ciência Política e Direito.
Também foi
importante, nesse processo, o fato de Ipea ter aperfeiçoado instrumentos para a
mobilização e a articulação do conhecimento técnico-científico em seus
projetos. Hoje o Ipea dispõe de linhas de financiamento para redes de pesquisa
e eventos técnico-científicos, com os quais amplia sua capacidade de produção e
troca de conhecimento.
A partir
daí, o órgão intensificou sua interação com o Ministério da Justiça. A parceria
com a SAL em torno do Projeto Pensando o Direito foi facilitada pela convergência
quanto ao objeto (pesquisa empírica em Direito, com o envolvimento de atores
externos) e a finalidade (subsidiar políticas públicas e reformas
legislativas).
O resultado
foi a celebração de um arranjo até agora proveitoso para o Ministério da Justiça
e para o Ipea. O Ministério delimita áreas de política nas quais verifica
necessidade de se conhecer melhor a realidade e se pensar em formas de
intervenção. O Ipea dá apoio técnico, ajudando a traduzir essa demanda para um
projeto de pesquisa aplicada, que também executa e monitora, em estreita
parceria com a SAL. Ganha, ainda, a comunidade que trabalha com pesquisa
empírica em Direito, que tem a oportunidade de se envolver nos projetos e
colaborar com o Governo.
PD:
Você já esteve mais de uma vez no encontro internacional da Law and Society
Association, que é o principal fórum de pesquisa empírica em Direito, e tem
doutorado pela Northeastern University. Quais as principais diferenças que você
nota entre aquele ambiente e a Academia Jurídica brasileira?
FS:
Costumo dizer que não tivemos, por aqui, um movimento de realismo jurídico,
que, nos Estados Unidos, levou à valorização de dados concretos da realidade
para informar a tomada de decisões no mundo do Direito. Mas preciso fazer a
ressalva de que, com essa consideração, não entendo que o Direito deva se
curvar aos fatos. O Direito moderno é, em princípio, um campo específico, que
opera com um código (normativo) específico e é mediado por atores sociais
autorizados. É inocente e talvez seja mesmo equivocado pensar que esse campo
possa ou deva ser subvertido por imperativos de ordem econômica ou social, os
“fatos” da pesquisa empírica. Mesmo assim, é possível enriquecer o repertório e
as práticas do campo a partir de um olhar externo sobre o que ele produz, o
que, em todo caso, é diferente do que os seus atores dizem que ele produz.
De todo modo,
não entendo que a pesquisa empírica em Direito deva ser objeto apenas da
Academia jurídica. Ao contrário, o que minha experiência no exterior diz é,
exatamente, que a pesquisa empírica em Direito será tão mais rica e proveitosa
quanto mais seja feita conjuntamente entre profissionais do Direito e das
várias Ciências sociais, especialmente Ciência Política, Sociologia e
Antropologia. Essas outras Ciências Sociais têm ajudado os juristas a
reconstruírem o seu objeto de análise (a antiga questão do que é Direito),
mobilizar métodos de pesquisa com maior consciência sobre suas potencialidades
e limites, e, finalmente, teorizar, em termos mais amplos, sobre os resultados
encontrados.
PD:
Fale um pouco sobre o processo de criação e consolidação da Rede de Pesquisa
Empírica em Direito (REED), e seus encontros anuais em Ribeirão Preto.
FS:
A REED surgiu de vários impulsos. Um deles era o sentimento de orfandade de
alguns acadêmicos brasileiros que trabalhavam com pesquisa empírica em Direito
e não encontravam interlocutores, especialmente no âmbito de faculdades de
Direito. O segundo foi o interesse institucional de órgãos como o Ipea, que
frequentemente buscam recrutar colaboradores para atuar em seus projetos e, a
partir de um determinado momento, já não conseguiam mais identificar bons
candidatos em suas chamadas públicas.
Um terceiro
talvez tenha sido o contato de pesquisadores brasileiros com experiências
internacionais, tais como a reunião da Law and Society. Esse tipo de
experiência dá a sensação de que é possível desenvolver uma carreira
profissional de pesquisa empírica em Direito; de que esse é um empreendimento
que, não obstante eventual sensação de solidão, mobiliza um contingente grande
de pessoas, programas e instituições.
A REED
buscou criar ou melhorar as condições para o trabalho dessas pessoas, programas
e instituições no Brasil. Para tanto, os principais instrumentos escolhidos
foram a realização de encontros anuais, a manutenção de um site, a organização
de uma revista científica, o contato com atores internacionais e a formação de
quadros.
A Faculdade
de Direito da USP de Ribeirão Preto, desde o princípio, se ofereceu para sediar
os encontros, mas o restante da operação da REED é descentralizado – e,
inclusive, houve encontros regionais no último ano. O site www.reedpesquisa.org
está ativo e, dados os recursos de que a REED dispõe, eu diria que é um espaço
agradável e informativo. A revista científica nasce com a aspiração de ser
referência nacional e internacional, e o primeiro número deve ser lançado no
final de 2013 ou início de 2014.
A
internacionalização também caminha bem – além de ter celebrado convênio para o
envio de fellows para o programa de Jurisprudence and Social Policy da
Universidade da Califórnia em Berkeley, referência na pesquisa empírica em
direito dos EUA, criado, aliás, pelo falecido professor Philip Selznick, o
último encontro nacional, em setembro de 2013, teve a presença de Marc
Galanter, da Universidade de Wisconsin, e Álvaro Pires, da Universidade de
Ottawa.
O desafio da
REED permanece sendo o da capacitação. Quanto a isso, há uma intenção de se
fazer uma série de cursos e workshops em métodos e temas substantivos de
pesquisa empírica em Direito, em 2014. Aqui, há espaço para intensa colaboração
entre a REED e o Pensando o Direito. Dois workshops patrocinados pelo Pensando
o Direito, ainda sem uma parceria plena com a REED, foram realizados em 2013;
para 2014, esperamos fazer essa prática convergir com as demandas da REED e
atrair seus integrantes.
PD:
Descreva as dificuldades mais frequentes que você tem observado para
pesquisadores que utilizam métodos empíricos no Brasil.
FS:
Há duas dificuldades básicas que estão relacionadas à apropriação de métodos e
técnicas pelos juristas (ou à compreensão “de dentro” do mundo do Direito para
os demais cientistas sociais); e à falta de espaços para a interlocução sobre
esse tipo de pesquisa na Academia. Creio que a REED tem ajudado no
enfrentamento de ambas, embora ainda esteja longe de ser uma Law and Society
brasileira.
Porém, tenho
insistido com meus colegas que o uso de técnicas ou métodos empíricos para a
investigação do Direito no Brasil está se consolidando em um nível muito
inicial, que é o da descrição da realidade jurídica. Em outras palavras, nossos
pesquisadores têm sido capazes de dizer como o direito se manifesta
concretamente, mas isso ainda é pouco, tanto para o direito quanto para as
Ciências Sociais.
Para o
Direito, pesquisas de caráter descritivo dizem como a realidade é, mas o
Direito não é o mundo do ser, e sim do dever ser. Não basta dizer, por exemplo,
que a Justiça Penal tem um viés contra negros e pobres; do ponto de vista
jurídico teríamos que criticar as teorias, as ferramentas e a arquitetura
institucional dentro da qual esse viés é produzido: a descrição da realidade
tem que ter rebatimento na concepção de novos princípios e meios para a
organização das liberdades, citando a definição de Direito de Lyra Filho.
Já para as
Ciências Sociais, tampouco basta dizer que há um determinado padrão na realidade
jurídica, sem dialogar com teorias que ajudam a situar esse padrão na
compreensão das relações sociais, em sentido mais amplo (e, inclusive, do papel
que o Direito ocupa nessas relações). Essa terceira dificuldade, então, pode
estar relacionada com o déficit de teorização na Academia, que nos estabelece
uma zona de conforto na qual nos limitamos a descrever e às vezes a “explicar”
padrões, sem refletir criticamente a respeito do que eles revelam sobre nós
mesmos.
PD:
Um dos grandes desafios que o Projeto Pensando o Direito procura superar é
levar para organizações da sociedade civil, movimentos sociais e para a
população em geral conhecimentos sobre como ocorre o Processo Legislativo e
como é possível influir positivamente nos seus resultados. Como você avalia a
relação entre o cidadão brasileiro e a formulação da política legislativa?
FS: Já
tive a ocasião de gerir políticas públicas e participo ocasionalmente de
estudos sobre comportamento político e estou convencido de que a sociedade
brasileira é interessada e predisposta a intervir em processos de elaboração de
políticas públicas. Obviamente, tudo depende da natureza e do escopo do
conflito. Em políticas muito técnicas, por exemplo, a população só pode atuar
em relação aos contornos gerais ou na censura a um ou outro aspecto que lhe
pareça afrontar mais os sentidos. Essa mobilização supera, inclusive,
obstáculos para a constituição de debates públicos plurais, como a concentração
da mídia.
A questão,
em todo o caso, é prover os cidadãos com as possibilidades e os meios de
participação. Nesse aspecto, a atividade Legislativa tem estado atrasado em
relação a outras, como a Executiva (na qual assistimos a uma profusão de interfaces
como conselhos, conferências, audiências públicas, ouvidorias, entre outros,
bem mapeada pelo Ipea, aliás) e a própria atividade Judiciária, que, bem ou
mal, também incorporou mecanismos como audiências públicas e amicus curiae. A
agenda legislativa é, infelizmente, desconhecida pela maior parte dos cidadãos
e as condições de lobby carecem de regulamentação. Essa dimensão do Projeto
Pensando o Direito é, portanto, mais que salutar.
PD:
Considerando esses avanços identificados e os potenciais que ainda podem ser
explorados, quais seriam as suas propostas e sugestões para o aprimoramento do
Projeto Pensando o Direito?
FS:
Sendo bastante crítico, entendo que o Projeto Pensando o Direito passou por uma
mudança ao longo do tempo. No início, o Projeto não deixava de reproduzir um
pouco o padrão dominante nas Faculdades de Direito: seu objetivo de fundo era
selecionar grupos ou indivíduos com posição já consolidada no cenário jurídico,
como forma de adensar a capacidade propositiva da Secretaria, mas também de se
apoiar no argumento de autoridade desses personagens. Mais adiante é que ele
foi enfatizando a pesquisa empírica e aplicada em Direito e a própria ideia de
democratização da política legislativa.
No primeiro
caso, isso implicou maior valorização da coleta e a análise de dados empíricos,
visando refletir a realidade jurídica – coincidência ou não, isso permitiu que
grupos e pesquisadores menos tradicionais se tornassem mais competitivos ou não
na seleção de candidaturas do Projeto. No segundo, isso implicou a realização
de seminários, debates e consultas públicas em torno dos estudos, de modo que,
como considerei anteriormente, a produção do conhecimento é um elemento em um
debate mais amplo, que também não perde de vista interesses, argumentos e experiências
de atores e movimentos sociais.
Espero que o
Projeto aprofunde essa trajetória e explore, especialmente, as inovações que
construímos ao longo deste ano de 2013, como a série de workshops. E, partindo
de minha experiência no Ipea, tenho sugerido aos colegas da SAL que façamos um
experimento em 2014, selecionando vários grupos no país para atuar em um mesmo
projeto. Isso permitiria fazer uma pesquisa com abrangência nacional (saindo do
modelo atual, muito orientado a estudos de caso), em temas de grande
relevância, envolvendo uma diversidade de colaboradores (em termos não só
geográficos, mas também de tradições e disciplinas) e com grande capacidade de
mobilização para debates. Quem sabe uma história como essa não poderá ser
contada na edição nº 100?
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