quarta-feira, 20 de setembro de 2023

 

Colonialidade do Poder, Biodiversidade e Direito. Raça, classe e capitalismo na construção da legalidade

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

Colonialidade do Poder, Biodiversidade e Direito. Raça, classe e capitalismo na construção da legalidade. Pedro Brandão. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2023, 288 p.

 

                   

Para compreender o alcance dessa bela obra, vale tomar da descrição que ela recebeu na página da Editora, dois comentários convocatórios. De Deise Benedito, colega de Pedro na Pós-Graduação em Direito da UnB, ela na área de Criminologia e também sua colega de assessoria parlamentar (PSOL) e de ativismo político. Diz ela:

O Prof. Pedro Brandão, ao analisar os conflitos na construção de novo marco legal de acesso à biodiversidade, propõe ao leitor refletir sobre as relações perversas entre colonialidade, racismo e a formação da legalidade. Ele detalha o padrão colonial de poder que rege o parlamento brasileiro para refletir sobre o papel do direito e das instituições em um capitalismo racializado. É nesse contexto que o autor retrata a importância das articulações dos movimentos de insurgência contra a exploração e propõe, através da luta política e jurídica, o combate ao racismo e à desigualdade para a garantia de uma vida plena e livre.

O segundo comentário, de Sonia Guajajara, atualmente ministra dos Povos Indígenas do Brasil, mas também ativista nesse campo que é demarcado pelo subtítulo da obra e que remete à questão da biodiversidade e o direito.

            Para Sonia,

O trabalho de Pedro Brandão analisa as lutas dos povos indígenas e das comunidades tradicionais durante a tramitação do novo marco legal de acesso à biodiversidade. Participei dessa luta no Congresso Nacional, enquanto representante da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), na mobilização em defesa da nossa biodiversidade e contra os interesses da bancada ruralista e de grandes empresas capitalistas. Durante as audiências, falei que a raiz de uma planta, a folha, a flor, o fruto, tudo isso tem um significado para nós. Como o livro mostra, denunciei os interesses do então Projeto de Lei: “[…] o que eu vejo aqui é essa preocupação total e exclusiva sobre a economia, sobre a mercantilização desse conhecimento. Como transformar tudo isso em dinheiro? Como ficam os nossos povos indígenas?”.

Ao demonstrar as relações coloniais que ainda imperam no parlamento brasileiro, o livro nos convida a refletir sobre novas imaginações jurídicas e políticas para pensar o nosso país e a urgente necessidade de aldear a política!

 

O livro de Pedro Brandão, ao avançar sobre uma questão que ele acentua, como hipótese para o caso concreto que estuda, retoma uma perspectiva que já havia sido proposta em trabalho seu anterior, entretanto, “numa deriva para uma leitura estrutural sobre a própria formação da legalidade, levando a uma conclusão que é resultado da reflexão central para o trabalho: “a legalidade como fruto de uma disputa assimétrica e violenta de poder, articulada mutuamente pelos diferentes eixos da colonialidade, confrontando a leitura comum de que a legitimidade da legislação reside, necessariamente, na sua natureza ‘democrática’, ‘racional’, ‘legítima’ e ‘mediada’ entre os interesses em disputa”.

Com efeito, em seu livro Novo Constitucionalismo Pluralista Latino – Americano – 2ª Tiragem – 2023, também pela Editora Lumen Juris, vamos encontrar a afirmação identificada por Fernando Antonio de Carvalho Dantas, professor titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás, ex-coordenador, no Brasil, da Rede para o Constitucionalismo Democrático Latino-Americano, segundo o qual, tomando a metáfora da Karibérica e Brasilíndia, que

A américa Latina é Brasil e o Brasil América Latina. Este é o sentimento do leitor ao se deparar com o texto de Pedro Brandão sobre o novo constitucionalismo pluralista latino-americano em perspectiva descolonial. Texto criativo e cientificamente denso que diz sim, temos culturas, histórias, identidades, experiências e possibilidades de trato, em dimensão jurídica, de formas de ser, fazer, viver, conhecer, organizar e regulamentar a complexa, porque muito plural, vida social no mundo do sul global . A lúdica referência inicial à América karib e ao Brasil índio mostra a disposição de parte da academia jurídica brasileira atual em romper com o senso comum preconceituoso do Brasil de costas para a América Latina e retomar o diálogo construtivo de um novo mundo com o resgate e a valorização das cosmovisões e processos culturais dos povos originários (em verdadeira e necessária antropofagia jurídica) bem como o pensar a relação entre povos e sociedades com mais simetria e democracia. Neste livro o autor sustenta que o novo constitucionalismo pluralista latino-americano é resultado de processos que reconhecem em sede constitucional e buscam concretizar, na prática, formas intensas de participação popular e mecanismos democráticos, bem assim dão visibilidade aos povos indígenas, cujas cosmovisões, culturas e subjetividades coletivas, outrora violentamente ocultadas, integram o pilar fundamental das novas constituições a exemplo do Equador e Bolívia. Isto se dá com a construção do Estado Plurinacional, com os direitos da pachamama que atribuem subjetividade à natureza e territorialidades específicas com formas diferenciadas de participação como a democracia comunitária, entre outras, que rompem e superam o modelo do constitucionalismo tradicional. Assim, se constitui em livro imprescindível para conhecer e sentir esse novo contexto constitucional latino-americano enquanto epistemologia constitucional do sul.

 

Disso sabia eu. O que eu ignorava, ao menos até a publicação do novo livro, é que aquela perspectiva de participação democrática comunitária para romper modelos de colonialidade, conduziria o Autor a também promover uma inflexão analítica para compreender as tensões próprias desse processo.

Fico feliz, ao ler o livro, que ele me credite um tanto dessa inflexão, na medida do que confirma, na Introdução (p. 9), que ano ênfase, em sua “investigação, reside exatamente nas relações de poder que guiam o processo jurídico/político. Na linha de Sousa Júnior, optamos pela transição de uma perspectiva normativista para uma investigação focada no conflito. Não se trata, assim, somente de uma análise legal da legislação, mas de um estudo da forma como ela foi construída a partir dos antagonismos em conflito”.

Talvez em retribuição ao posicionamento, tornado opção analítica, tenha me solicitado redigir a orelha do livro, uma maneira de ratificar o ponto-de-vista. Ali digo eu:

A Editora Lumen Juris nos brinda com um novo livro de Pedro Brandão Colonialidade do Poder, Biodiversidade e Direito: Raça, classe e capitalismo na construção da legalidade. Pela Lumen Pedro já havia publicado, em 2015, o livro O Novo Constitucionalismo Pluralista Latino-Americano, obra que eu categorizei como uma contribuição que abriu espaço editorial para o tema no Brasil, fortalecendo uma vertente do assim denominado Constitucionalismo Latino-Americano.

No novo livro, seguindo o fio condutor de realização de um constitucionalismo que emancipe, Pedro Brandão mergulha na trama violenta do encontro entre a colonialidade do poder e a possibilidade de abrir espaços políticos para o reencontro de humanidades que forjem uma latinoamericanidade apta a vencer os desafios de toda ordem.

Eis a novidade do novo livro de Pedro Brandão. Responder as exigências de libertação e de emancipação seguindo o fio condutor de sua aproximação constitucional político-epistemológica decolonial, naquela sua dimensão que mais aguda: raça, classe e capitalismo que formam a colonialidade do poder (Quijano) e desafiam a construção do novo marco legal de acesso à biodiversidade, na direção de um constitucionalismo achado na rua.

Os caminhos percorridos pelo Autor para confrontar tais e tamanhos desafios, o próprio Autor os indica ao resumir o escopo nuclear de seu livro:

No primeiro capítulo, desenvolvemos uma análise da colonialidade do poder, da formação do capitalismo racializado, das disputas de sentido sobre a modernidade, e do moderno sistema-mundo (Wallerstein). Destacamos que a colonialidade do poder afeta as diversas dimensões da vida e permeia todas as instâncias de poder. Tal conceito, na concepção de Quijano, é central para pensar a constituição e o desenvolvimento do capitalismo. Da formação da América até o presente momento, há um profundo entrelaçamento entre a “ideia de raça” e o processo de acumulação capitalista. A hierarquia racial é simultânea à divisão internacional do trabalho, de maneira que a “ideia de raça” está diretamente relacionada à história das relações de poder do capitalismo mundial.

Em seguida, revisitamos a concepção de totalidade heterogênea e seus eixos de poder, tema central na abordagem quijaniana. Na leitura do autor, esta totalidade assume um caráter fragmentário, articulada por meio da dominação/exploração/conflito e baseada na seguinte estruturação: i) o capitalismo, como o controle do trabalho estruturante das formas históricas de exploração sob o predomínio da relação capital-trabalho; ii) a autoridade coletiva (Estado-nação), como instituição hegemônica para centralizar a dominação, sendo a violência organizada o seu recurso permanente e principal; iii) o controle do sexo, sob a égide do patriarcado; e, iv) o controle da subjetividade, por meio da hegemonia do eurocentrismo e da colonialidade do saber. Buscamos desenredar essa complexa teia no segundo capítulo deste livro.

Na vertente do controle do trabalho, realçamos o questionamento da unidirecionalidade dos modos de produção no mundo capitalista. De acordo com a percepção quijaniana, em especial na periferia, os diversos modos de produção sempre estiveram coordenados e articulados. Já no campo da construção do Estado-nação, destacamos como a perspectiva eurocêntrica foi fundamental para estruturar o Estado na América Latina, permeada pela exclusão de povos indígenas, negros e negras e trabalhadores do poder, o que resultou numa lógica altamente funcional para a superexploração capitalista. Ainda, tendo em vista a conexão entre legalidade e colonialidade numa perspectiva do capitalismo mundial, e não apenas localizado no Estado nacional, a própria ideia de sistema-mundo é fundamental para entender a globalidade do poder capitalista, inclusive na construção da legalidade.

No eixo do controle do imaginário, refletimos sobre a expansão da economia capitalista – sempre atrelada à “ideia de raça” – e as formas de controle e de neutralização de outros conhecimentos e epistemicídios. Na parte sobre gênero, considerando a necessidade de revelar o papel do patriarcado na formação do capitalismo e da modernidade, analisamos as críticas, os limites e as insuficiências teóricas da colonialidade do poder apontadas por autoras feministas, considerando o papel central das mulheres nas disputas pela preservação da biodiversidade.

O fundamental, nesta primeira parte da investigação, para além das limitações dos institutos jurídico, é compreender a formação do capitalismo racializado, em especial na periferia do mundo. Discutir a teoria quijaniana e suas leituras sobre a modernidade não significa somente disputar as narrativas acerca do passado, mas, acima de tudo, pensar sobre as suas continuidades e resistências no presente – em especial, na nossa leitura, na política e no direito.

 

Para o professor Alexandre Bernardino Costa que orientou a tese que dá origem ao livro e o apresenta, o ponto central do trabalho de Pedro Brandão, é o de constatar “boa parte dos dilemas que vive a sociedade mundial sobre nosso futuro comum. Aborda as apropriações capitalistas da natureza, e sua utilização por uma pequena parcela da população, em benefício próprio, ao mesmo tempo em que a maior parcela da sociedade é condenada ao seu próprio destino fatal, ainda que o conhecimento tenha sido gerado a partir de suas tradições e sua cultura. Discorrer sobre biopirataria de bens comuns e coletivos da natureza é falar sobre qual modelo do direito, de política e de economia queremos seguir”.

Nesse sentido, no Prefácio, a professora Ela Wiecko V. de Castilho, ratifica que o marco teórico adensado que o Autor adora, permite que ele “problematize a Lei nº 13.123, de 2015, que normatizou o acesso à biodiversidade brasileira, analisando a participação nos debates legislativos de representantes de quatro setores: Estado, povos e comunidades tradicionais, empresas e ciência/tecnologia”.

Ao avaliar que “a lei aprovada é um ‘produto do conflito assimétrico de poder’ influenciado pela colonialidade, e não um resultado do “processo democrático”. Ou seja, é uma legalidade racista, classista, sexista e capitalista”.

Assim que, para ela, “a questão que se coloca é sobre a possibilidade real de descolonização. Não basta entender como se constituiu a colonialidade e como ela vem operando. Como quebrar a estrutura de dominação, exploração e conflito que se articula nos cinco âmbitos da existência social: o trabalho, a natureza, o sexo, a subjetividade e a autoridade? Para a pergunta, não temos respostas prontas e testadas. Pedro Brandão não desconsidera a utilização de instrumentos normativos para frear a estrutura predatória de dominação, exploração e conflito, mas afirma que a luta mais decisiva é a da mobilização popular”.

Folgo em constatar o extremo zelo e a lealdade de Pedro que ao fixar posicionamento, ainda quando se valha da melhor e mais qualificada base teórica para o fundamentar, não se descole de seu percurso em coletivo de pesquisa e tribute a seus companheiros e companheiras de percurso, os achados comuns que reuniram em seus diálogos político-epistemológicos. Essa forma ética de assentar posições interpretativas, por ele designadas na abertura do livro, está firmemente assinalada a cada etapa de elaboração do texto.

Note-se, por exemplo, no tocante ao arcabouço do modo decolonial de interpretar, a referência a achados de seus colegas, que percorrem os mesmos caminhos: “O conhecimento tido como tradicional ou local, na realidade, é plural, heterogêneo e cambiante, e não está ligado ao imobilismo ou a algo estático. São conhecimentos transmitidos e experimentados, transformados e inovados, a partir de práticas sociais que possuem uma diversidade de processos de produção que estão diretamente associadas aos modos de vida, territórios e visões de mundo desses povos”. Ainda que a enunciação seja autoralmente própria, a nota (395, p. 193), remete aos estudos de sua colega Renata Vieira (cf. VIEIRA, R. C. C. Povos indígenas, Povos e comunidades tradicionais e agricultores familiares: a disputa pelo direito no Conselho de Gestão do Património Genético. Dissertação (Mestrado). Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania. Universidade de Brasília – UnB. Brasília/DF, 2021. 168p.).

É claro que diviso nessa aliança acadêmica, a repercussão de um campo de investigação, embora não central ao seu núcleo de mais contundente referência, todavia forte na incidência constitutiva de seu próprio pensamento: O Direito Achado na Rua sua concepção e prática.

O Autor não esconde essa incidência. Em várias conexões de seu texto. Nas páginas 21/218, para focalizar, no que pertine a seu trabalho, “o percurso da sociologia jurídica crítica, com a qual analisar a construção sociopolítica da legislação – e todos os interesses capitalistas em jogo – e não simplesmente o direito positivado enquanto pretenso resultado do processo democrático”.

Mas, sobretudo, e até como pressuposto (p. 85), o relevo aos “estudos jurídicos que mostram a interseção entre o direito e a colonialidade, através de diferentes perspectivas: o monumental trabalho fortemente ancorado na crítica marxista ao direito em diálogo com a teoria quijaniana, a filosofia da libertação para pensar a reconstrução dos direitos humanos; além da proposta de uma ecologia de justiças baseada na ecologia de saberes. Também numa análise da aproximação entre o Direito Achado na Rua e o Direito Constitucional através de um Constitucionalismo desde la calle, há importantes reflexões sobre o os desafios contemporâneos do Constitucionalismo Achado na Rua diante da ascensão da extrema direita, passando pela investigação entre a descolonialidade e a dialética social do Direito de Roberto Lyra Filho e a crítica feminista decolonial”. Para a devida precisão as referências de situação contidas nas notas 182, 183, 184 e 185, notadamente para demarcar o plano no qual se pode afirmar, desde essa perspectiva, o que temos chamado de constitucionalismo achado na rua (aqui também uma nota de referência para o verbete que meus alunos da disciplina Pesquisa Jurídica – Graduação em Direito – para a wikipedia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Constitucionalismo_achado_na_rua.

A obra, abre, pois, o que Pedro Brandão designa de “imaginário de superação da sociabilidade capitalista”, para emancipar a democracia com “um contínuo sistema de negociação institucionalizada dos limites, das condições e das modalidades de exploração e de dominação” e assim, afirmar-se como eixo de um projeto de sociedade, na qual possam ser superadas todas as formas de opressão e de espoliação, que ainda persistem no espaço da política, para alienar os sujeitos de seu projeto de plena humanização.

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

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