sábado, 28 de dezembro de 2024

 

Lido para Você: Comentários à Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos das Camponesas e dos Camponeses

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

Comentários à Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos das Camponesas e dos Camponeses/ organizado por Maria Cristina Vidotte Blanco Tárrega, Girolamo Domenico Treccani, Thaisa Mara Held, Tiago Resende Botelho. – São Paulo, SP : Liber Ars, 2022. 240 p. E-book

Acesso: https://www.academia.edu/126478691/Comentários_à_Declaração_das_Nações_Unidas_sobre_os_Direitos_das_Camponesas_e_dos_Camponeses

Reproduzo o Sumário para que se tenha uma visualização da relevância dos autores e autoras que contribuem, num coletivo de pensamento e ação, para a leitura crítica dos enunciados da Declaração, desde uma perspectiva comum de construção social dos direitos das camponesas e camponeses:

INTRODUÇÃO AOS COMENTÁRIOS À DECLARAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE OS DIREITOS DAS CAMPONESAS E DOS CAMPONESES

CAROL PRONER /JUVELINO JOSÉ NEY STROZAKE/ TIAGO RESENDE BOTELHO / THAISA HELD

ARTIGO 1: SUJEITO DE DIREITO

JOSÉ HEDER BENATTI

ARTIGO 2: OBRIGAÇÃO GERAL DOS ESTADOS

JULIANA DE OLIVEIRA SALES

ARTIGO 3: IGUALDADE E NÃO DISCRIMINAÇÃO

GIVÂNIA MARIA DA SILVA / VERCILENE FRANCISCO DIAS

ARTIGO 4: NÃO DISCRIMINAÇÃO DAS MULHERES

LARISSA RAMINA / LUCAS SILVA DE SOUZA

ARTIGO 5: DIREITO AOS RECURSOS NATURAIS E AO DESENVOLVIMENTO

VERÔNICA MARIA BEZERRA GUIMARÃES

ARTIGO 6: DIREITO À VIDA, A LIBERDADE E A SEGURANÇA DA PESSOA

ALYSSON MAIA FONTENELE / MARCELO BUDAL CABRAL

ARTIGO 6: DIREITO À VIDA, A LIBERDADE E A SEGURANÇA DA PESSOA

SHIRLEY SILVEIRA ANDRADE / NATALY MENDONÇA DOS SANTOS

ARTIGO 7: LIBERDADE DE CIRCULAÇÃO

THAISA HELD

ARTIGO 8: LIBERDADE DE PENSAMENTO, OPINIÃO E EXPRESSÃO

JOSÉ GERALDO DE SOUSA JUNIOR

ARTIGO 9: LIBERDADE DE ASSOCIAÇÃO

MARCELO IORIS KÖCHE JÚNIOR

ARTIGO 10: DIREITO À PARTICIPAÇÃO

FABIANO COELHO

ARTIGO 10

PEDRO PULZATTO PERUZZO

ARTIGO 11: DIREITO À INFORMAÇÃO

GISELE CITTADINO

ARTIGO 11

ROBERTA OLIVEIRA LIMA /JÚLIO CÉSAR MOREIRA DE JESUS

ARTIGO 12: ACESSO À JUSTIÇA

FABIO JULIO / THAISA HELD / TIAGO BOTELHO

ARTIGO 13: DIREITO AO TRABALHO

TCHOYA GARDENAL FINA DO NASCIMENTO

ARTIGO 14: DIREITO A UM AMBIENTE DE TRABALHO SEGURO E SAUDÁVEL

JOAQUIM BASSO

ARTIGO 14

MÔNICA DE OLIVEIRA CASARTELLI

ARTIGO 15: DIREITO À ALIMENTAÇÃO E SOBERANIA ALIMENTAR

MARIA GORETTI DAL BOSCO

ARTIGO 15

ISLANDIA BEZERRA DA COSTA

ARTIGO 16: DIREITO À RENDA E SUBSISTÊNCIA DIGNA

E AOS MEIOS DE PRODUÇÃO

BERNARDO MANÇANO FERNANDES

ARTIGO 17: DIREITO À TERRA

TIAGO RESENDE BOTELHO / GIROLAMO DOMENICO TRECCANI

LIANA AMIN LIMA DA SILVA

ARTIGO 18: DIREITO A UM AMBIENTE LIMPO, SEGURO

E SAUDÁVEL PARA UTILIZAR E ADMINISTRAR

CARLOS TEODORO JOSÉ HUGUENEY IRIGARAY

SILVANO CARMO DE SOUZA

ARTIGO 18

LARISSA AMBROSANO PACKER

ARTIGO 19: DIREITO ÀS SEMENTES

KATYA REGINA ISAGUIRRE-TORRES / NAIARA ANDREOLI BITTENCOURT

ARTIGO 20: DIREITO À DIVERSIDADE BIOLÓGICA

JULIANA MONTEIRO PEDRO / CÉLIA SOUZA DA COSTA

ARTIGO 20

CIRO DE SOUZA BRITO

ARTIGO 21: DIREITO A SISTEMAS DE ÁGUA POTÁVEL

DANIELLE DE OURO MAMED

ARTIGO 21

GISELLE MARQUES DE ARAÚJO /INGRYD KHRISTINA DE BRITO

ARTIGO 22: DIREITO À SEGURIDADE SOCIAL

LEANDRO FERREIRA BERNARDO

ARTIGO 23: DIREITO À SAÚDE FÍSICA E MENTAL

PRISCILA LINI

ARTIGO 23

MATHEUS DE ANDRADE BUENO

ARTIGO 24: DIREITO À MORADIA

ENER VANESKI FILHO

ARTIGO 25: DIREITO À EDUCAÇÃO E A FORMAÇÃO

JOSÉ MAURÍCIO ARRUTI

ARTIGO 25

SÔNIA FÁTIMA SCHWENDLER

ARTIGO 26: DIREITOS CULTURAIS E SABERES TRADICIONAIS

GLADSTONE LEONEL JÚNIOR

ARTIGO 26

CARLOS MARÉS

ARTIGO 27: RESPONSABILIDADE DA ONU E OUTRAS ORGANIZAÇÕES INTERGOVERNAMENTAIS

FERNANDA FRIZZO BRAGATO / LARA SANTOS ZANGEROLAME TAROCO

ARTIGO 28

TIAGO RESENDE BOTELHO / THAISA HELD

O texto de abertura, Carol Proner, Juvelino José Ney Strozake, Tiago Resende Botelho e Thaisa Held, oferece uma chave de leitura das abordagens das autoras e autores, mais que convidados, na verdade, por seu engajamento e lealdade ao movimento camponês, caracterizadas exatamente para assentar essa hermenêutica de efetividade dos direitos das camponesas e camponeses.

Retiro desse texto, no qual há uma boa síntese do conteúdo da obra, o alcance que a edição visa a estabelecer:

É relevante destacar que, ao contrário de outros documentos com valor simbólico e perfil quase retórico, e mesmo sendo uma declaração (soft law no sentido formal) e com efeitos vinculantes controversos, a Declaração da ONU sobre Direito dos Camponeses vai além e é percebida pelos que lutam pela terra como um instrumento legal internacional decorrente de compromissos com a agroecologia e a preservação da vida na terra e devem ser operados pela Via Campesina e por seus aliados em processos de implementação obrigatória de políticas regionais e nacionais.

Representa, portanto, um instrumento orientador do direito internacional que expressa o compromisso da ONU e dos Estados signatários em harmonizar os direitos ali previstos com a legislação nacional e internacional. E não são poucos os temas e documentos correlatos, bem como instituições e instâncias que necessariamente terão que regulamentar suas políticas relacionadas com a terra aos compromissos assumidos.

Também me senti convocado pelos organizadores e pelas organizadoras e também pela causa para contribuir para o livro. Um pouco para externar o sentido dessa convocação e um tanto como amostra, reproduzo o teor de meu comentário dirigido ao artigo 8º da Declaração – Liberdade de Pensamento, Opinião e Expressão:

1. Os camponeses e outras pessoas que trabalham em áreas rurais têm o direito à liberdade de pensamento, crença, consciência, religião, opinião, expressão e reunião pacífica. Têm o direito de exprimir a sua opinião, oralmente, por escrito ou em letra imprensa na forma de arte, ou através de qualquer outro meio da sua escolha, a nível local, regional, nacional e internacional.

2. Os camponeses e outras pessoas que trabalham em áreas rurais têm o direito, individual e colevamente, em associação com outros ou como comunidade, de parcipar de avidades pacíficas contra violações dos direitos humanos e das liberdades fundamentais.

3. O exercício dos direitos previstos no presente argo implica deveres e responsabilidades especiais. Por conseguinte, pode estar sujeita a certas restrições, que deverão, no entanto, estar expressamente previstas em lei e ser necessárias para: (a)Para assegurar o respeito aos direitos ou reputações dos outros; (b) Para a proteção da segurança nacional ou da ordem pública, da saúde ou da moral públicas.

4. Os Estados devem adotar todas as medidas necessárias para assegurar a proteção por parte das autoridades competentes de todoas as pessoas, individualmente ou em associação com outras, contra qualquer ato de violência, ameaça, retaliação, discriminação de direito ou de fato, pressão ou qualquer outra ação arbitrária como consequência do seu exercício de legima defesa dos direitos descritos na presente Declaração.

Valho-me para este comentário, da edição por iniciativa da Via Campesina e das Organizações que a integram, de publicação de 202199. O texto tem tradução e revisão de Rafael Bastos, Tairí Felipe Zambenedetti, Tchenna Maso, Marina dos Santos, Marciano Toledo. A publicação, anotam os editores, “é uma produção dos camponeses e das camponesas, não teve a participação do governo brasileiro”.

A publicação, já se vê, é uma manifestação pedagógica dos direitos contidos na Declaração, não só em realização dos enunciados da liberdade de pensamento, opinião e expressão mas, no alcance interseccional do conjunto de direitos nela declarados, que se escoram reciprocamente e lhe dão integridade e completude para fins hermenêuticos e de aplicação.

Tal como indica Tchenna Fernandes Maso, militante do Movimento dos Atingidos e Atingidas por Barragem, no texto de abertura da publicação – Construindo direitos desde a resistência camponesa – o avanço das organizações dos movimentos populares do campo em todo mundo, assenta num trabalho organizativo das lutas históricas e construção de resistências que forjaram a necessidade de reconhecimento de direitosinstituídos por sujeitos históricos inscritos no protagonismo de movimentos sociais entre eles o movimento social camponês.

Portanto, os direitos não são dados, são construídos, resultam de lutas por reconhecimento, na sua síntese mais ampla, por acesso ao resultado da riqueza socialmente produzida; e por participação política no processo de decisão sobre a distribuição justa dos bens da vida.

Daí resultam duas tensões com impactos históricos, sociais, políticos, éticos e jurídicos: a disputa pelo modo de exercitar e de abrir acessos aos meios articulados de realizar justiça; e de estabelecimento de procedimentos válidos para administrar os critérios deliberativos que balizem a relação problemática entre a produção e a reprodução da existência e a satisfação das necessidades sociais.

A dialética que se inscreve no movimento dessas tensões, evidentemente configuradas numa indeterminação de efeitos, pode ser, para fins desse comentário, aferida em três dimensões discerníveis: o constituir da subjetividade ativa que desencadeia as interações sociais, o humanizar-se e fazer-se sujeito; o designar os espaços e os modos de interação para o exercício da inteligibilidade cognitiva acerca dos modos de manifestar o pensamento, exercitar posicionamentos formando opiniões e os de os expressar de modo comunicativo e avaliativo; e os juízos valorativos para estabelecer a materialidade ordenadora da convivência e do agir.

Penso que esse processo pode ser aferido num salto que a conscientização opera da história para a política por mediação da justiça e do direito. A conscientização enquanto afirmação de inter-subjetividades, vale dizer, o sentido que estrutura identidade e pensamento, como passagem da existência para a consciência, é um processo que permite constituir continuamente o humano e sua expressão como sujeito. A dialética e o pensamento filosófico de práxis, em qualquer de suas vertentes, idealista ou materialista, não se conforma com o humano como derivação única da biologia, senão como experiência na história, o que significa dizer, que não nascemos humanos, nos tornamos humanos, sujeitos.

É o indígena, silvícola, desalmado, selvagem, besta, monstro, que se faz reconhecer humano, sujeito e protagonista de direitos, disputando lugar político e narrativa jurídica; é a mulher, propriedade do homem, que recusa o vazio concupiscente, diabolizado de sua corporeidade subalternizada, para se realizar com identidade e autonomia; é o trabalhador que reage à alienação que a escravidão provoca para quebrar a canga e libdrtar-se da condição de utensílio vocalis e emancipar-se também como zoon politikon.

São processos dramáticos de lutas por reconhecimento, humanização e titularidade de direitos, no campo e na cidade, numa trama ética, teológica, política e jurídica, por libertação, emancipação e democracia.

Por isso que se diz que a democracia não é somente uma forma de governo, mas antes uma forma de sociedade, porque faz a mediação das interações sociais contribuindo para o emancipar-se e a realiza pela criação de direitos, continuamente, já que o humanizar-se também é uma experiência contínua. Isso significa que os direitos não são quantidades, são relações, não são artefatos legislativos ou judiciais que se estoquem em prateleiras normativas, são invenções, institucionalidades ativas.

Não é esse o sentido hermenêutico inscrito no artigo 5º da Constituição de 1988, pacto de cidadania, elaborada de modo participativo, sob a titularidade do poder popular soberano? O que diz o artigo? Que aquele elenco extenso de direitos, não exclui outros (direitos ainda nela não constituídos), mas que, instituintes, derivem do regime (democrático) e dos princípios que adota (os direitos humanos, pois não será constituição a que não assegure a proteção dos direitos humanos). Por isso que a Democracia é invenção, criação permanente de direitos, que expressam lutas por humanização e emancipação.

Tenho desenvolvido essa perspectiva teórico-política, num movimento epistemológico em articulação com movimentos sociais por meio de suas assessorias jurídicas, num programa acadêmico-social designado O Direito Achado na Rua. Trata-se de uma concepção que consiste em compreender e refletir sobre a situação jurídica dos novos movimentos sociais e, com base na análise das experiências populares de criação do direito: 1. Determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos, a partir mesmo de sua constituição extralegal, como por exemplo, os direitos humanos; 2. Definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; 3. Enquadrar os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurídicas para estruturar as relações solidárias de uma sociedade alternativa em que sejam superadas as condições de espoliação e de opressão entre as pessoas e na qual o direito possa realizar-se como um projeto de legítima organização social da liberdade.

É dessa seiva que se deve nutrir uma interpretação dos enunciados da DECLARAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE OS DIREITOS DOS CAMPONESES E DAS CAMPONESAS. Ainda que o texto que abre o documento, na publicação da Via Campesina, se conforme a uma auto-contenção, atribuindo às declarações um caráter instrumental “soft law”, isto é, sem força vinculava ou mecanismos formais de monitoramento ou execução, sabe-se hoje que não é bem assim. Sabe-se, desde Viena e o conjunto de declarações que a década dos 1990 proporcionou, por impulso globalizado da força política dos movimentos sociais, em temas como habitação, mulheres, populações, racismo, xenofobia, tolerância que elas se tornaram, reconhece o texto, importante elemento do sistema internacional de direitos humanos e tem uma potencialidade para transformar práticas em todo mundo.

E esse potencial de realização, faz hermeneuticamente e na própria aplicação das disposições de direitos humanos pelos tribunais internacionais, operar-se um salto formidável do simplesmente prometido para o cogente, inscrito na resoluções dessas Cortes. Por meio de novos paradigmas, novos conceitos ou alargamento de categorias antigas, de que é referência tomada aqui a título de homenagem, a judicatura de Antonio Augusto Cançado Trindade, duas vezes presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos e juiz na Corte Internacional de Haia, em exercício de mandato, quando a morte o colheu, prematuramente, no dia 27 de maio de 2022. De Cançado Trindade são os conceitos de projeto de vida que se deve preservar na aplicação das normas internacionais de direitos humanos; de reparação da dignidade ofendida, não apenas indenizatória a violações mas restauradas da dignidade e do projeto de vida; de uma hermenêutica expandida, apta a vencer no plano da internacionalização dos direitos das declarações, trados e convenções, a promessa dos direitos humanos que não fiquem aprisionadas, confinadas, estioladas, no enquadramento formal de um positivismo exacerbado e atrasado que impede a sua realização.

Está aí uma percepção esclarecida que se dá conta de que os direitos humanos não são as declarações, não são os monumentos, não são sequer as ideias que pretendam enquadrá-los, são as expectativas inscritas nos movimentos, nas lutas sociais por reconhecimento, em projetos de vida e de sociedade que buscam instituição. Os monumentos, em geral, pelo arranjo ideológico, são entronizações de colonizadores, de escravistas, de opressores, de expressões do status quo.

Os movimentos sociais em seus protestos imediatamente derrubam essas estátuas e desafiam até os estatutos que a propósito de constituir direitos, preservam privilégios, favores, clientelismos, prebendismos, nepotismos, concessões patriarcais e de classe.

Por isso a Declaração dos Direitos dos Camponeses e das Camponesas reconhece que no espaço qualificado das Nações Unidas, os seus termos seguem o convencimento da necessidade de uma maior proteção aos direitos humanos dos camponeses e outras pessoas que trabalham em áreas rurais e de uma interpretação e aplicação coerentes das normas e dos princípios internacionais dos direitos humanos relativos à matéria em questão, e que assim ela deve ser interpretada.

O enunciado vem na sequência de um fundamento com estandares bem estabelecidos pelas Cortes Internacionais, a partir do artigo 13 da Declaração de 1948, dos Pactos em que se desdobrou e nas Convenções regionais e específicas. Nesse caso, a leitura do princípio tutelado pela Declaração ainda mais robustece o sentido relacional que o conjunto normativo civilizatório pois preserva, tal como, aliás, já decidiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos (OEA), conforme expressa o Caso López Lone e outros Vs. Honduras (Sentença de 5 de outubro de 2015), ocasião em que a Corte reconheceu a relação existente entre os direitos políticos, a liberdade de expressão, o direito de reunião e a liberdade de associação. Reconheceu também que, em conjunto, esses direitos tornam possível a dinâmica democrática. Em situações de ruptura institucional, após um golpe de Estado, a relação entre esses direitos torna-se ainda mais manifesta. Do mesmo modo, a Corte apontou que as manifestações e expressões a favor da democracia devem contar com a máxima proteção possível, e, dependendo das circunstâncias, podem estar ligadas a todos ou a alguns desses direitos.

Portanto, desse modo devem ser compreendidos os enunciados articulados na Declaração dos Direitos dos Camponeses e das Camponesas, notadamente os contidos no artigo 8º. Assegurar aos camponeses e outras pessoas que trabalham em áreas rurais o direito à liberdade de pensamento, crença, consciência, religião, opinião, expressão e reunião pacífica, e os modos e âmbitos em que os podem realizar é, simultaneamente, reconhecer o alcance e o significado de seu protagonismo histórico e o projeto de sociedade que aspiram construir, local, nacional e internacionalmente.

A compreensão desses direitos é tradução de um percurso do fazer-se sujeito, organizar- se e projetar um modo de vida e de sociabilidade. Por isso os seus termos. Algo que procede do gripo primal por libertação – grito de excluído -;são ainda o politizar a sua ação, rejeitando enquadramentos criminalizadores com tipificações exacerbadas que vão do esbulho possessório ao terrorismo; o semantizar sua narrativa desafiando o fascismo da língua e disputando poder político no manejo do vernáculo – não é invadir é ocupar (porque não pode ser considerado invasor quem ocupa terra para fazer cumprir a promessa constitucional da reforma agrária);é ser capaz de assumir o protagonismo como práxis de seus direitos e dos seus modos de existir e reexistir, retomando ou auto-demarcando territórios e estabelecendo seus próprios protocolos para orientar consentimento em debates que impliquem consultas sobre projetos de desenvolvimento; é disputar o pedagógico na educação e na cidadania, reivindicando políticas públicas de educação do campo – no Pronera, para criar licenciaturas de educação do campo e turmas especiais de ensino superior para assentados, descolonizando, despatriarcalizando e rejeitando domínios epistemológicos de classe ou de dogmatizando positivista de conceitos em todos os planos curriculares; é pensar um modelo social de produção que salvaguarde a vida e não que a aliene subordinada a uma economia coisificadora que a mercadorize, fiel ao fundamento de a justiça é medida pela contribuição do trabalho de cada um voltado para satisfazer suas necessidades (num contínuo justificador que vai dos Atos dos Apóstolos ao Manifesto Comunista); é co-mobilizar-se por uma Carta da Terra, para pensar a natureza como vida e não como recurso, solidária e responsavelmente com o Planeta e com as gerações futuras, consumando uma perspectiva ética inclusiva que reconheça que a proteção ambiental, os direitos humanos, o desenvolvimento humano equitativo e a paz, são interdependentes e indivisíveis, assim como a agenda de suas lutas e os direitos que realiza.

E se recaídas eruptivas de autoritarismo reassentam o sitio à cidadela da autonomia e das liberdades de pensamento, de opinião e de expressão, assim como a liberdade de ensinar, capturando os caminhos da própria judicialização, há a salvaguarda do monitoramento internacional, em sede de aplicação dos enunciados cogentes do sistema jurídico convencional. Tanto mais se em causa, ameaças à dinâmica democrática.

No mesmo diapasão de reiteradas decisões judiciais e do Supremo Tribunal Federal, não se pode admitir sequer, a simples enunciação da possibilidade de interferência no âmbito da liberdade das liberdades – que é uma categoria constitutiva dos direitos fundamentais, a liberdade de consciência de expressão, de comunicação, sem falar daquelas ligadas ao sistema de proteção à educação, que estão tanto na Declaração Universal dos Direitos Humanos quanto na Convenção Interamericana de Direitos, quanto nos protocolos derivados dela, como o de São Salvador. Esse é o perigo iminente que traz o obscurantismo sombrio da exceção na esfera de governo, liberando o fascismo não só governamental mas social, açulando desde o guarda do esquina, ao milicianismo dos grupos encastelados no sistema de poder para assaltar a economia popular e fazer a gestão do orçamento público de forma clandestina, secreta, no interesse de aliados e de clientes, trocando favores enquanto destitui direitos.

Somente o social organizado e consciente pode por cobro a essa ação predatória, desdemocratizante e desconstituinte, agindo politicamente para com liberdade autonomia se contrapor, democraticamente, numa atitude que resista à discriminação, às interferências indevidas do Estado, à violência inclusive a política, à violação dos espaços de autonomia, contra a censura e até contra o exercício punitivo institucional de qualquer procedência.

Algo assim capaz de restituir a confiança no poder de quebrar as algemas que aprisionam os sujeitos sociais em meio às opressões e espoliações que o alienam da História, e os impedem de exercitar a capacidade de transformar seus destinos e de conduzir a sua própria experiência na direção de novos espaços de emancipação.

Volto à relevância da publicação sobretudo quando ainda se faz muito difícil afirmar a condição de projeto quando nos deparamos com os conflitos que envolvem camponeses e agronegociantes numa conjuntura neoliberal.

Lembro, nesse aspecto, a minha própria experiência ao participar de debate em comissão parlamentar exatamente para fazer circular posições negadoras de direito, no caso contra os trabalhadores rurais, contrapondo ás teses criminalizadoras a concepção de que a açã e ocupação politiza e realiza a promessa constitucional de fazer a reforma agrária.

Contra essas estratégias desconstituintes e desdemocratizantes já há acervo constitutivo para pensar outras possibilidades, em sede constitucional, de conferir “definição jurídica diferente”, descriminalizando e politizando no sentido instituinte, condutas que ampliam acesso a direitos. No volume 3, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito Agrário. Brasília: Editora da UnB/Editora da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002 organizado por mim, Mônica Castagna Molina e Fernando da Costa Tourinho Neto (então Presidente da Associação dos Juízes Federais), anotamos uma dessas clivagens do sistema de justiça à realidade fática sob julgamento.

A referência é ao voto paradigmático, seja em seu refinamento técnico, seja em seu profundo sentido humano, proferido pelo Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, quando do julgamento no STJ, do Habeas Corpus nº 4.399-SP, em que foram pacientes Diolinda Alves de Souza e outras lideranças do MST. O Tribunal, como é sabido, e como se pode ver do acórdão a cargo do relator Ministro William Patterson, concedeu a liberdade aos pacientes. Na sessão, houve inclusive vozes (Ministro Ademar Maciel) que cogitou com base na filosofa Hannah Arendt se não se trataria de aplicação do princípio de desobediência civil, tema de instigante ensaio da grande pensadora, orientado a justificar esse fundamento sobre qualquer de suas expressões – a incontitucionalidade de normas ilegítimas ou a objeção de consciência em face da lei injusta.

Mas prevaleceu o voto, que tem tido larga repercussão do Ministro , até porque à época presidia a Comissão de Reforma do Código Penal, voto que não perdeu de vista o contexto histórico no qual são designadas as circunstâncias factuais do tema em discussão; põe em relevo, o Ministro, a condicionalidade da atuação das “chamadas instâncias formais de controle da criminalidade”, sujeitas, segundo ele, à “posição política, econômica e social da pessoa”. Finalmente, como membro legítimo da comunidade aberta dos realizadores da Constituição, pondera judiciosamente a condição prejudicial na qual se encontram os pacientes, reconhecendo que “as chamadas classes sociais menos favorecidas não têm acesso político ao governo, a fim de conseguir preferência na implantação de programa posto na Constituição da República”. Sua decisão é descriminalizadora, acentuando novas dimensões da subjetividade jurídica, em cujo âmbito tem sido situada “a titularidade de direitos em perspectiva emancipatória” (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (orgs). O Direito Achado na Rua. Sujeitos Coletivos de Direito. Só a luta garante os direitos do povo!.Coleção Direito Vivo vol. 7. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2023). Decide, pois, o Tribunal “não poder ser considerado esbulhador aquele que ocupa uma terra para fazer cumprir a promessa constitucional da reforma agrária” (https://brasilpopular.com/cpi-do-mst-contexto-e-diagnostico-da-situacao-agraria-brasileira/).

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