Liberdade, justiça e reparação para Maria Zezé
Por: Por Ana Paula Daltoé Inglês Barbalho[1], José Geraldo de Sousa Junior[2] e Ingrid Martins [3] – Jornal Brasil Popular/DF
Nesta quinta-feira, às 2hs55, Zezé enviava uma mensagem por whatsapp: Bom dia saindo daqui agora!. Notícia alvissareira na madrugada, próximo ao Natal. Ela estava deixando o presídio, depois de alvará de soltura por força de decisão proferida pelo Desembargador Asiel Henrique de Sousa, acatando pedido liminar em processo de revisão criminal a favor de Maria José Costa Almeida (Maria Zezé).
Na decisão o Desembargador relator da revisão criminal afirma: “não parece manifestamente improcedente ou desprovida de suporte probatório a alegação de que o valor de R$ 50,00 seria, na realidade, uma contribuição voluntária destinada a auxiliar no financiamento das atividades do movimento habitacional. Nesse sentido, testemunhas afirmaram expressamente que o montante era utilizado para custear lanches e transporte durante as manifestações. Também confirmaram que a ré não exercia qualquer controle sobre o auxílio-aluguel, uma vez que a avaliação das famílias foi realizada diretamente pela SEDEST, e o benefício era sacado individualmente pelo próprio morador beneficiário. Essas circunstâncias são indicativas de que há plausibilidade na alegação da requerente”
Cumprido o alvará de soltura, consuma-se uma primeira vitória, resultado de uma dupla mobilização. Uma defesa técnica altamente qualificada conduzida pro-bono pela equipe de Almeida Castro, Castro e Turbay Advogados, que se incumbiu da revisão criminal, atualmente em curso no Tribunal de Justiça do DF. A peça da revisão criminal e os memoriais apresentados pelos advogados Roberta Cristina R. de Castro Queiroz, Samuel Gomes dos Santos, Ingrid Gomes Martins e Álvaro Augusto Cerqueira Mangabeira do mandato do Deputado Fábio Felix, e pelas estagiárias Lumi Miyajima Alves e Juliana Scandiuzzi Nylander Brito, são uma medida do exercício bem fundamentado da advocacia.
A segunda mobilização, procede da sociedade civil, institucional com forte apoio do gabinete do Deputado Distrital Fábio Felix, presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos, Cidadania e Legislação Participativa – CDDHCLP, da Câmara Legislativa do Distrito Federal, do Movimento dos Trabalhadores sem Teto, da Assessoria Jurídica Popular Universitária Roberto Lyra Filho da UnB (advogada Ingrid Martins), de personalidades e, da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília, engajados em prestar solidariedade a Maria José, testemunhando seu protagonismo comunitário na defesa política dos valores da cidadania e dos direitos humanos.
A Comissão de Justiça e Paz incumbiu-se de traduzir em manifesto aberto à adesão de outras organizações e personalidades a dimensão real da conduta de Zezé, reduzida no processo, agora em fase de revisão, a a uma conduta tipificada, errônea e injusta que deve ser corrigida e reparada, ao menos no restauro da dignidade de uma militante política, leal e fraterna.
O que diz o manifesto? Desde logo, Quem é Zezé?
Maria José Costa Almeida é mulher nordestina, negra, que acredita na Constituição, nas leis, no Estado e no caminho da participação social para o acesso às políticas públicas, como o direito à moradia, à cidade e à alimentação.
Uma liderança social que dedicou o seu tempo e sua inteligência para que dezenas de famílias conseguissem uma moradia digna e foi a última de sua comunidade a entrar em sua própria casa, pois priorizou mutirões e ações de solidariedade para a construção de casas de idosos e crianças com deficiência.
Uma pessoa que coordena uma Cozinha Solidária que produz e oferta gratuitamente refeições de qualidade para dezenas de famílias da periferia de Planaltina-DF.
As lutas pela moradia e pela liberdade compartilham os desafios de inicialmente entender a luta que está nos desafiando, de vencer as barreiras e a paralisia com coragem para mudar a situação que está posta.
Zezé fez parte dos processos formativos em cidadania e democracia, propostos pela Comissão Justiça e Paz de Brasília, nos seminários Terra, Teto e Trabalho, ocorridos em 2017 na Arquidiocese de Brasília.
O sistema de Justiça agora tem ocasião para fazer justiça, para Zezé e já começou a fazê-lo, restabelecendo a sua liberdade, permitindo que se defenda solta, fora da prisão.
Zezé deveria ser reconhecida e protegida como defensora de direitos humanos. Para entender sua condenação é necessário compreender a luta por moradia, marcada por dois momentos: no primeiro, as famílias em movimento espontâneo, buscando escapar do ônus excessivo do valor do aluguel sobre suas rendas, realizam ocupação irregular de área pública; no segundo, as famílias organizam-se em associação de moradores, a Associação Esperança de um Novo Milênio, para acessar os canais de participação social da política habitacional e socioassistencial do Governo do Distrito Federal, desocupando a área pública e conquistando a sonhada moradia.
Entender a dinâmica do movimento social e as formas de auto-organização é fundamental para desmistificar a práxis do sistema judicial, que não compreende a lógica de funcionamento dos movimentos sociais e, por isso, produz uma sentença que condena Zezé por ameaça e extorsão. Um exemplo perverso do uso da força e da organização do Estado para produção da injustiça.
O relatório do inquérito policial, depois de três anos de investigação, concluiu não haver prova de irregularidade no movimento de luta por moradia liderado por mulheres negras da região de Nova Planaltina, dentre as quais Zezé.
As famílias acreditaram no caminho da institucionalidade, criaram a Associação de Moradores Esperança de um Novo Milênio, associada ao Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, cadastraram-se na política habitacional do Distrito Federal, à época Programa Morar Bem, e na política socioassistencial, à época Auxílio Excepcional, e, depois de 10 anos de luta, conquistaram sua moradia digna.
As famílias foram lideradas por mulheres corajosas que construíram um ambiente de respeito no acampamento, impedindo a violência contra mulheres e crianças e eliminando práticas ilegais que incompatíveis com a essência do movimento, como tráfico de drogas e grilagem de terras.
Um pequeno grupo dissidente, que não acreditava no caminho institucional e pacífico de desocupação da área pública, incomodado com a auto-organização das mulheres da associação de moradores, passou a perseguir a sua principal líder, Zezé.
Ameaçaram Zezé de morte.
Como Zezé se manteve firme em seu compromisso coletivo da luta pacífica por moradia, o grupo passou a propagar falsidades a respeito da Associação de Moradores Esperança de um Novo Milênio.
Acusaram o movimento de cobrar uma quota de R$ 50,00 do benefício socioassistencial, com valor total de R$ 600,00, para que as famílias fossem cadastradas nos programas habitacional e socioassistencial.
Alegaram que Zezé cobrava pessoalmente este valor das famílias, em assembleias mensais, e que as famílias que se recusassem a pagá-lo eram imediatamente excluídas dos programas pelos órgãos responsáveis do governo distrital CODHAB e SEDEST.
As acusações foram refutadas pelas informações dos órgãos distritais, que indicaram que o cadastramento e a exclusão de qualquer beneficiário era ato privativo de assistente social integrante do quadro da SEDEST.
O inquérito policial concluiu que o cadastramento de famílias para o Programa Morar Bem e para o Auxílio Habitacional era executado sob rigoroso cumprimento da lei.
O Delegado de Polícia não indiciou Zezé ou qualquer outra líder do movimento.
Apesar da robustez das provas documentais e testemunhais colhidas, a denúncia foi oferecida. Foi iniciada a ação penal e houve a condenação de Zezé a 4 anos e 8 meses de prisão, por extorsão e ameaça.
A condenação de Zezé baseou materialidade e autoria exclusivamente nos depoimentos de cinco pessoas, integrantes de um grupo minoritário de opositores do caminho institucional trilhado pelas famílias organizadas na associação de moradores.
O encarceramento reflete a necessidade de maior letramento da própria sociedade brasileira. Não à toa enfrentamos o recrudescimento crescente do antagonismo aos movimentos sociais – foi tamanho ao ponto de legitimar posicionamento estatal que buscava estrangular as organizações populares financeiramente e criminalizar a militância por meio de convocações nas redes sociais.
O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) reúne milhões de trabalhadores que, devido à ausência do Estado, não tiveram outra escolha senão se organizar.
Do ponto de vista dos direitos humanos, precisamos garantir todos os compromissos que o Brasil assumiu no âmbito internacional e institucionalizou em nossa Constituição Federal. A Constituição de 1988 estabelece que a propriedade privada deve cumprir sua função social. E, caso não cumpra a função social, a propriedade pode ser utilizada para fins de reforma agrária ou reforma urbana, para a construção de moradias para a população que necessita.
Em outubro de 2014, o Papa Francisco se reuniu com movimentos sociais dos cinco continentes e os encorajou na luta para que todos as pessoas tenham acesso “à terra, moradia decente e trabalho digno”. O Encontro Mundial dos Movimentos Populares ocorreu em Roma, e contou com a participação de 200 representantes de organizações de base de todo o mundo para analisar as causas da exclusão social.
“Terra, teto e trabalho” tornou-se um lema por lembrar que, nas palavras do Papa Francisco, “o amor aos pobres está no centro do Evangelho” e que “não responde a nenhuma ideologia”. Na ocasião, o Papa Francisco conclamou: “Digamos juntos de coração: “Nenhuma família sem casa!”, ” “Nenhum camponês sem terra!” “Nenhum trabalhador sem direitos!” “Nenhuma pessoa sem a dignidade que dá o trabalho!”.
Em 2017, inspirados pela convocatória papal, a Comissão Justiça e Paz de Brasília propôs os seminários Terra, Teto e Trabalho, ocorridos nas instalações da Arquidiocese de Brasília. Zezé fez parte daqueles processos formativos em cidadania e democracia.
O encarceramento de Zezé condena todo o movimento social por moradia, reprime e acossa a luta social, a ampliação da democracia, o empoderamento do próprio povo, representado pela liderança social.
Zezé acabou presa por ter acreditado no direito constitucional de participação social, na luta por moradia, na lei, no governo do Distrito Federal, na defesa dos Direitos Humanos, na esperança de uma vida melhor.
O grave erro de seu encarceramento precisa ser corrigido.
Por tudo isso, liberdade, justiça e reparação para Zezé! Já! Zezé nos faz, com compromisso com a dignidade, a justiça e o direito, acreditar na vida, ter esperança e lutar pela moradia e pela liberdade.
[1] Ana Paula Daltoé Inglês Barbalho é Ouvidora Pública do Serviço Florestal Brasileiro, advogada e bióloga pela Universidade de Brasília, Presidente da Comissão Justiça e Paz de Brasília.
[2] José Geraldo de Sousa Junior é Jurista, Professor Emérito da Universidade de Brasília (UnB), fundador e coordenador do grupo de pesquisa “O Direito Achado na Rua”. Foi reitor da UnB (2008/2012), membro da Comissão Justiça e Paz de Brasília
[3] Ingrid Martins é Advogada Popular; Mestre em Direitos Humanos e Cidadania da Universidade de Brasília, egressa da AJUP Roberto Lyra Filho – UnB.
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