César Baldi (*)
A vaia sofrida pela Presidenta do País, ano passado na Copa das
Confederações, foi, na abertura da Copa, transmutada em típico
xingamento, o que despertou reações estranhas. De um lado, opositores
políticos, também candidatos à Presidência, entendendo como “colhendo o
que foi semeado” (um paradoxo: até no campo da disputa diretamente
política, o imaginário do agronegócio parece estar presente). Por outro,
considerações sobre machismo, sobre respeito a Chefes do Executivo, à
representação que o país está passando aos olhos de milhares de pessoas
no mundo todo. Em grande parte, os xingamentos vieram justamente da ala
VIP do estádio. No dia seguinte, Diego Costa, jogador brasileiro,
naturalizado espanhol, é chamado aos brados de “viado”. Não muito
recentemente, Daniel Alves, mais uma vez, teve comportamento racista por
parte da torcida: desta vez, ao invés do tradicional “macaco”, foi
jogada uma banana, prontamente comida. Em todas estas vezes, as
observações usuais foram: isso é sempre assim nos estádios de futebol.
A diferença- alguns sustentam- é que o público “habitual” destes
novos estádios- construídos como “arenas” de espetáculos- são de
distinta classe social, e isso seria a novidade do fenômeno. Algumas
observações poderiam ser feitas sobre estes comportamentos nestes dias
que vão transcorrendo.
Primeiro, é irônico, se não fosse trágico, que os estádios tenham se
convertido em “arenas”. Justamente porque, nestas, na Roma “antiga”, os
gladiadores, lutadores escravos treinados, lutavam para “entreter o
público”, sendo o duelo somente encerrava quando um deles morria, ficava
desarmado ou ferido sem poder combater. Neste momento, decidia-se se o
derrotado teria como destino a morte ou não. Ainda que, em princípio, a
situação estivesse mais próxima do atual MMA, o interessante é a forma
de luta, o comportamento violento tido como “natural”, a decisão como um
“duelo de vida e morte” e que, na base de tudo isso, estava a
escravidão.
Segundo, passa pelo próprio comportamento da mídia corporativa. Se a
abertura teve considerações sobre o “índio de verdade”, ao se referir ao
guarani, que estendeu uma faixa a favor da demarcação de terras, que
sequer foi mostrado na TV, por outro é um verdadeiro “campeonato” de
escolha, na plateia, das “musas” dos respectivos times. Hulk, no campo,
talvez seja a exceção que confirma a regra, mas tal cobertura
“jornalística” revela muito mais que um machismo ou sexismo por parte
dos meios de comunicação: coloca as mulheres, presentes no estádio, como
meras expectadoras, que nunca estão no mesmo patamar dos “torcedores”,
masculinos. A representação de uma não participação, de cunho
nitidamente político, dentro do estádio, é a outra face da
invisibilização, em muitos espaços, da agência feminina.
Terceiro, a homofobia latente expressa em várias frases de que
“futebol é coisa de macho”, aliás, reproduzida, em sentença, envolvendo o
jogador Richarlyson. Ou os “desmentidos” por parte de Sheik, que,
depois de dar um selinho em amigo e protestar contra o preconceito
“babaca”, tem que reforçar o estereótipo de que não era integrante do
time adversário, o são paulino, o “bambi”. Resposta da torcida: como vão
“zoar” do adversário, se um corintiano dá “um mau exemplo”? Ou seja, o
que era um ato contra a discriminação passa a ser o reforço da
homofobia. Talvez Cristiano Ronaldo seja, neste ponto, a exceção que
confirma a regra: reconhecidamente vaidoso, que se depila, passa cremes e
que não teme ser fotografado em shorts minúsculos e ser tachado de
“gay”, “metrossexual”. E nem- diga-se de passagem- de fazer críticas à
política de Israel! De toda forma, o comportamento em relação a Diego
Costa demonstra que não é somente nos âmbitos religiosos- e, portanto,
dentro de espaços tidos como “evangélicos”, que se manifesta a
discriminação contra orientação sexual. A pesquisa- mais tarde
contestada- do IPEA já revelava este comportamento de boa parte da
população brasileira.
Quarto, já passou da hora de imaginar que a questão racial não está
presente no país da “democracia” que não reconhece a existência de uma
“elite branca”, que acha demérito que existem cotas para universidades
ou mesmo para cargos públicos ( mesmo que o STF já tenha decidido pela
constitucionalidade de ações afirmativas, além daquelas expressamente
previstas na Constituição) e que estabelece distintos “apartheids”
dentro dos espaços públicos e privados, de que a dependência de
empregada e a relutância em reconhecer seus direitos trabalhistas tenha
sido apenas mais uma manifestação. Neste ponto, o fenômeno, longe de ser
brasileiro- a Europa, seguidamente, dá demonstrações de racismo e de
xenofobia as mais variadas- não tem, contudo, tido a atenção- que, em
tempos anteriores, teve- da atuação dos Poderes Públicos, em especial do
Ministérios Público.
Neste sentido, a famosa observação de Fanon de que o “negro não é
homem”, pode ser lida, por uma lado, como mostrando que a articulação do
humano está “tão plenamente racializada que nenhum homem negro pode ser
qualificado como humano”, mas, por outro, como criticando a
masculinidade, uma vez que a figura do negro é feminizada, sugerindo que
tanto a masculinidade quanto o privilégio racial reforçam a noção do
homem. Talvez o melhor exemplo ainda seja a imagem do “casal ideal
brasileiro”, o homem branco e a mulher negra, sugerindo uma associação
entre masculinidade/raça branca e construção da nação como produto de
relações heterossexuais. As representações de nacionalismo e
patriotismo- como vem destacando a teoria queer- tem um forte componente
de sexismo e heteronormatividade.
Se é verdade que os cientistas sociais e os “operadores jurídicos”
não têm prestado a devida atenção para a forma como espaço cria, recria
ou impossibilita o exercício de direitos humanos, o estádio de futebol,
neste ponto, pode servir como uma metáfora, em pleno período de Copa do
Mundo, das lutas que devem ser travadas dentro do Estado- inclusive como
novíssimo movimento social- quanto da denominada “sociedade civil”.
O estádio de futebol, neste sentido, não pode continuar sendo o
espaço-naturalizado- do sexismo, do machismo, da homofobia, do racismo e
todas as formas de discriminações. Há que se combater, cotidianamente,
nestes espaços- públicos e privados- as violações que vêm sendo feitas
aos que, sendo “diferentes”, “diversos” ou “não normativos” possam ter
seus direitos violados porque a opressão é tida como “natural”. A luta
por direitos humanos não é por tolerância, que sempre implica uma
posição colonial de superioridade e de “hybris do ponto zero”, nem
tampouco em nome de de princípios de “dignidade humana”, mas,
fundamentalmente, contra situações de “indignidade” que vêm sendo
naturalizadas e que merecem ser combatidas. A Copa do Mundo talvez seja o
momento para, metaforicamente, dar o “pontapé inicial” na
“naturalização” das discriminações que vêm persistindo e se
intensificando.
(*) César Augusto Baldi, mestre em Direito (ULBRA/RS),
doutorando Universidad Pablo Olavide (Espanha), servidor do TRF-4ª
Região desde 1989,é organizador do livro “Direitos humanos na sociedade
cosmopolita” (Ed. Renovar, 2004). César Baldi é pesquisador associado do Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos - NEP, CEAM/UnB e integra o coletivo Diálogos Lyrianos (www.odireitoachadonarua.blogspot.com.br)
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