Ludmila
Cerqueira Correia**
Ciudad de México, novembro de 2016.
Conhecer um pouco do México
a partir das lutas dos movimentos sociais daquele país e de outros irmãos
latino americanos foi um alento num 2016 tão turbulento e que ainda não acabou
(e vai demorar para acabar). Os debates sobre a atual conjuntura política na
América Latina, justiça indígena, justiça de gênero, justiça zapatista, educação
popular, feminismo multiculturalista, feminismo popular, crítica descolonial ao
patriarcalismo e ao capitalismo, epistemologias do sul, metodologias
feministas, uso contra-hegemônico do direito, uso pedagógico do direito, pluralismo
jurídico, estratégias de resistência, experiências de autogestão, movimentos de
rebeldia, dentre outros temas, deram o tom do I Congresso Nacional de Estudios
de los Movimientos Sociales e da minha vivência de poucos dias naquele país.
As pessoas são a sua maior
riqueza, em diversos sentidos. Cheguei a afirmar que os mexicanos são o povo
mais nordestino que já conheci nas minhas andanças. Nesses momentos é que
consigo concretizar a irmandade entre o Brasil e outros países da América Latina,
que por muitas vezes nos foi negada ou que alguns insistem em negar. Conheci
gente simples, aguerrida, batalhadora, que tem a história do seu povo na ponta
da língua e muita vontade de conhecer o Brasil. Com elas consegui compreender
melhor a história de um país tão complexo e que tem muito a nos ensinar.
Foi também com
professoras/es, estudantes e pesquisadoras/es participantes do Congresso, como
Armando Bartra, Luis Tapia, Manuel Garretón, Ligia Tavera, Alberto Acosta,
dentre outros, que tive ainda mais clareza sobre as tensões, contradições e
resistências observadas nos governos eleitos pelos movimentos sociais na
América Latina. O caso brasileiro, com Lula, e o uruguaio, com Mujica, foram
citados como “países que deram um salto para a dimensão de projeto de sociedade
refundacional.”. Além disso, os fatos ocorridos recentemente no Brasil foram
bastante debatidos, restando claro o entendimento de que o que houve foi
realmente um golpe parlamentar, narrativa corrente naquele Congresso.
No campo dos movimentos sociais,
cidadania e democratização no México, destacou-se a existência de 5.478
organizações sociais***, como é o caso da “Frente del Pueblo”, organização que
teve como objetivo organizar um partido do povo. Durante os debates sobre esse
tema, discutiram-se a estrutura estatal e a força das elites dominantes que
passaram a limitar esses movimentos e coletivos, além dos ataques aos direitos
sociais e da criminalização dos protestos e dos movimentos sociais. Nesse
último aspecto, observou-se que a criminalização nos governos ditos
progressistas está ocorrendo através do Judiciário. Como não identificar
semelhanças com o Brasil?
A tensão entre a política
(representação) e a participação dos movimentos sociais na política (com
destaque para os candidatos indígenas à Presidência da República) também foi
tema candente, com análises sobre a disputa desses movimentos pelos partidos
políticos, tendo como exemplo os parlamentares oriundos do MST (Brasil) e do
Sindicato Campesino (Bolívia). Um dos grandes problemas detectados refere-se à
representação autônoma, que muitas vezes é “engolida” pelo partido político e
este defende projetos contrários aos movimentos. No caso do Equador,
discutiu-se que a presença do Estado implica na perda de autonomia dos
movimentos indígenas e outros movimentos sociais, inclusive com a acusação do
governo equatoriano de que o órgão de representação indígena (CONAI) participa
da vida política do país (como destacaram alguns equatorianos ali presentes,
não basta a criminalização desses movimentos, mas também deslegitimá-los
politicamente).
Outro debate bastante
presente foi o dos desaparecimentos forçados, sendo que o caso Ayotzinapa
(ocorrido no México em 2014) está longe de ser o único, mas constitui-se como
emblemático tendo em vista o número de estudantes desaparecidos de uma só vez
(43) e a repercussão internacional que alcançou. Para muitas organizações de
direitos humanos e estudiosas do tema, esse caso reflete o fracasso do Estado
mexicano, seja porque o governo não consegue fazer frente ao crime organizado,
seja porque se constata a participação ou tolerância das autoridades municipais.
Por outro lado, o desaparecimento forçado é visto como uma tática repressiva do
Estado em resposta aos protestos, como forma de rechaçar as ações de defesa dos
direitos humanos. De acordo com dados oficiais, há cerca de 28 mil pessoas
desaparecidas, extraviadas ou não localizadas no México, e as organizações da
sociedade civil e os coletivos de familiares de pessoas desaparecidas lutam
pela promulgação de uma lei sobre desaparecimento forçado, que previna tal
violação, facilite a localização das pessoas desaparecidas e contribua para
garantir a reparação integral às vítimas.
Ainda nesse debate, chamou a
atenção a organização da Assembleia Nacional Popular, que reúne mais de 300
organizações e realizou diversas marchas (cerca de 35 somente ao Palácio
Nacional, na Cidade do México) além de “tomar 27 municípios”. Como afirmou Omar
García, estudante sobrevivente de Ayotzinapa, “quando começamos com nossa
organização estudantil, não tínhamos ideia do que nos esperava.”. Tal estudante
de 26 anos de idade lançou uma reflexão que esquentou o debate e deu o tom
sobre a participação dos pais e mães dos 43 estudantes desaparecidos nas
marchas: “nos juntamos às demandas de outros movimentos sociais, mas nossa
bandeira principal são os desaparecidos.”. Naquele momento o que se viu foi um
verdadeiro desabafo do jovem que se sentiu, algumas vezes, juntamente com os
familiares dos 43, pressionado a integrar organicamente alguns movimentos
sociais já existentes no país ou participar de formações políticas por sugestão
de lideranças de outros movimentos. Omar García falou sobre a condição e origem
daquelas pessoas que passaram a reivindicar os corpos dos seus filhos (que
nunca tinham integrado nenhum movimento social ou organização comunitária) e
reconheceu que somente com a atuação conjunta de pais e mães, estudantes e
advogadas/os, aquela luta ganhou corpo, visibilidade e pressão política.
Foram também nesses dias que
pude conhecer, através de seus/suas protagonistas e estudiosas, algumas lutas
dos povos indígenas daquele país, a partir de experiências exitosas como os
“grupos de autodefensa comunitaria” (ou polícias comunitárias, como também são
chamados) existentes em algumas cidades desde 2013; a autonomia de Cherán, com
uma espécie de autogoverno a partir de formas tradicionais de organização com
novos conteúdos e a forte presença de mulheres; e as “escuelas integrales de
Michoacán”, com inspiração explícita em Paulo Freire.
Falando em inspiração, foi a
mesa que encerrou o Congresso que proporcionou mais um debate tão caro no campo
dos movimentos sociais ou de resistência e rebeldia (como defende John
Holloway): o Movimento Feminista e sua intersecção com outros movimentos. Foi a
partir das reflexões de Martha Lamas e Marcela Lagarde que conheci outras
perspectivas nas discussões sobre movimentos feministas, movimentos de
mulheres, perspectivas de gênero, políticas para a igualdade de gênero,
ativismo feminista nas organizações no México, o tema da paridade, dentre
outras questões. Como afirmou Marcela Lagarde, “ser feminista é se colocar na
vida em uma situação de complexidade.”
Durante aqueles dias, com as
visitas aos museus, palácios, sítios históricos, pirâmides, mercados, parques,
universidades, bibliotecas, organismos de direitos humanos, praças, “pueblos
mágicos”; com destaque para: os murais públicos com arte para o povo, que
registram de forma única a Revolução Mexicana; o diálogo sobre alguns temas de
direitos humanos no Brasil com a Comissão de Direitos Humanos da Ciudad de
México; a comida de rua por toda parte; o rico artesanato; e a festa dos mortos em todo o país; me
senti provocada a conhecer mais o México, sobretudo para compreender também a
nossa história. Ainda há muito que caminhar...
Como já dizia Frida Kahlo,
“Pies, para qué los quiero si tengo alas pa’ volar?”
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Frase síntese da discussão do trabalho intitulado “Zapatismo, utopia y
democracia”, apresentado no I Congreso Nacional de Estudios de los Movimientos
Sociales na Ciudad de México – 17 a 21/10/2016
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Ludmila Cerqueira Correia é advogada popular, extensionista e pesquisadora. Doutoranda
em Direito, Estado e Constituição no Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade de Brasília, integrante do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na
Rua. Professora do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal
da Paraíba e coordenadora do Grupo de Pesquisa e Extensão Loucura e Cidadania.
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Dado informado durante apresentação do trabalho intitulado “Incidencia política
y dilemas de la construcción de ciudadanía”, de Miguel Rodrigo González Ibarra,
no mencionado Congresso.