Estado Democrático da Direita?*
José Geraldo de Sousa Junior
Professor da Faculdade de Direito e Ex-Reitor da UnB
Coordena o Projeto “O Direito Achado na Rua”
Uma observação do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos se presta bem
para abrir este texto. Na sua posição de enfrentamento ao modelo capitalista de
constituição da sociedade, ele afirma que não combate o capitalismo porque ele
é democrático. Para ele o capitalismo até logra cumprir as promessas
democráticas que faz. Instituir, por exemplo, um estado de direito, com
arcabouço legislativo, incluindo a sua principal expressão, qual seja, a de
institucionalizar uma Constituição e nela, estabelecer o sistema de separação
de poderes e a proteção aos direitos humanos (conforme a designação contida na
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, “não será constituição a
que não assegure a separação dos poderes e a proteção aos direitos do homem”).
Para Boaventura, entretanto, o capitalismo não
pode ser plenamente democrático, porque a sua promessa carrega um vazio de
possibilidade, consequente ao seu princípio ativo, a acumulação egoísta
tendente a uma distribuição excludente e a sua representação ideológica,
expressa no formalismo jurídico, que tudo promete formalmente, mas que pouco
concretiza no plano material.
Para lembrar Ferdinand de Lassale (o
antigo correligionário de Marx, depois bandeado para a articulação organizada
por Bismark, para constituir o estado burguês alemão) e seu conceito de
Constituição, se essa não realiza a expressão material dos “fatores de poder”
que são a sua essência material, ela será não mais que uma forma jurídica e, em
última análise, uma “mera folha de papel”.
Basta lembrar, no Brasil, o alcance desse
sentido retórico da institucionalização pelo jurídico, pondo em relevo o fato
de que todas as experiências autoritárias de nossa formação social, tomaram
forma jurídica. Todo o regime de 1964, com a ditadura que se instalou no País,
se representou com forma jurídica, inclusive constitucional, mantendo a
Constituição de 1946, promulgando a sua própria de 1967 e afeiçoando-a ao seu
recrudescimento autoritário com a emenda plena de 1969 (que muitos denominam de
Constituição), todas circunscritas a um sistema normativo sobredeterminante,
denominado Ato Institucional (como expressão “constituinte” do poder “revolucionário”,
com todas as aspas possíveis).
Anote-se o quanto, nessa medida, o
“sistema” incorporou a expressão formal do Direito, com a linguagem
atualizada das garantias fundamentais, indicando em seu texto a vigência do habeas corpus e da salvaguarda de exame judicial dos
atos administrativos, enquanto no cotidiano de governança, se censurava, se
torturava e se praticavam assassinatos políticos, sob a reserva de resguardo à
“segurança nacional”, a partir de ações interditadas ao alcance de habeas corpus ou à apreciação de sua própria
legalidade pelo Poder Judiciário.
É nesse passo que o Estado de Direito
Democrático se converte em Estado Democrático de Direita. Esse passo se dá na
medida em que a convergência entre os interesses de poder e de acumulação
capitalista, já não assimila sequer o discurso democrático, mesmo retórico,
como por exemplo, o que se prestou a legitimar a sua emergência hegemônica para
se afirmar como expressão dominante (a burguesia patrimonialista francesa
afirmando os direitos do homem para arrebatar à aristocracia seus bens
dominiais e seu poder político). Ou, no golpe de Luiz Bonaparte (18 Brumário),
escancarando situações em que a sua própria legalidade se torna um estorvo: “A
legalidade nos sufoca”, proclamava
Odilon Barrot, o chefe de governo contra a legalidade “dele”, para por em
prática a política reacionária de restrição às liberdades de imprensa e de
reunião e de dissolução dos “clubes” e outras formas de organização da oposição
política à nova ordem instalada com o golpe.
Ou ainda, o que assistimos agora em nosso
próprio País, com a Constituição argüida contra a própria Constituição, para
dela extrair-se, com o uso meramente formal de um enunciado, vale dizer, a
previsão de aplicação de procedimento de afastamento do Presidente ou da
Presidenta da República, uma retórica mobilizadora de engajamentos (sociais,
políticos, jurídicos), delirantes de seu necessário fundamento material, a
precisa tipificação de conduta que assim possa ser configurada como crime que
justifique o afastamento (impeachment). Por isso, a configuração desse
processo como um golpe, sem armas, sem quartelada, mas uma ruptura com a base
de legitimidade do sistema constitucional-jurídico, um atentado à democracia,
uma forma de traduzir, sem nenhuma sutileza, o Estado Democrático da Direita,
que se vale da lei para esvaziá-la de suas melhores promessas.
Aqui entra em causa um outro modo, esse
mais sutil, de identificar o Estado Democrático da Direita. Refiro-me à sua
disponibilidade para usurpar, apropriar-se e investir-se das representações e
das narrativas simbólicas das conquistas históricas e jurídicas conferidas nas
lutas travadas pelos sujeitos individuais e coletivos por reconhecimento da
dignidade humana, da cidadania e dos direitos.
Valho-me de um registro de experiência
pessoal para ilustrar esse deslocamento sutil. Em 1987, durante o processo
constituinte que desaguou na Constituição de 1988, a chamada “Constituição
Cidadã” por contraposição à Constituição do pós-colonialismo de 1824,
censitária, patrimonialista, patriarcalista, racista, por isso mesmo apelidada
de “Constituição da Mandioca”. Naquela ocasião, representando a Comissão
Brasileira de Justiça e Paz (CNBB), pude prestar depoimento na Subcomissão de
Cidadania e Direitos, na modelagem participativa que o Regimento da Assembleia
havia instalado para dialogar e receber indicações para o processo. Falei sobre
os novos direitos, sobre as experiências instituintes de participação já
catalogáveis nos processos sociais emancipatórios de poder local (experiências
de gestão compartilhada e participativa de várias prefeituras brasileiras),
podendo constatar o espanto e a surpresa da maioria dos parlamentares
integrantes da Comissão, muitos se deparando com aqueles conceitos e registros,
pela primeira vez, aturdidos com a contraposição, entre os enunciados do modelo
de representação com os quais estavam acostumados e com o sentido diferido de
um sistema retórico de nominação de direitos, formalmente inscritos nas
constituições, todavia, nunca realizados porque diferidos à concretização
futura, “na forma da lei” ou “como a lei venha a
estabelecer”, não mais que
promessa porém, promessa vazia. Todavia, ao final do processo, já se
encontravam esses constituintes investidos da nova linguagem democrática, de
cidadania e de direitos, de tal modo que a Constituição afinal promulgada o foi
sob a caracterização inédita de inaugurar no constitucionalismo
latino-americano o modelo de democracia direta e participativa, com
instrumentos para a iniciativa, a gestão e o controle social por meio dos novos
sujeitos constitucionais.
É certo que o embate constituinte,
instaurado numa conjuntura de transição política entre a ditadura instalada em
1964 e o movimento para resgatar a gestão civil orientada para um processo de
restabelecimento da democracia, se expressou como uma mediação possível,
precedida da luta pela anistia e preparatória da reivindicação da memória e da
verdade, enquanto medidas éticas para realizar o que se denomina Justiça de
Transição (que admite, sim, reconciliação, mas implica necessariamente
processar os perpetradores dos crimes, revelar a verdade sobre esses crimes,
conceder reparações às vítimas e reformar,
redemocratizando, as instituições responsáveis pelos abusos).
Nessas condições, acabou por incorporar no
projeto de sociedade que se reconstituía, o horizonte democrático materialmente
desenhado pelos movimentos sociais, com um balizamento ideológico orientado
pelas classes subalternas – trabalhadores do campo e das cidades – reivindicado
protagonismo ativo para o exercício do poder político e também distributivo, um
projeto, em suma, contra os interesses da direita brasileira elitista,
oligárquica e hierárquica, privatisticamente possessiva.
Enquadrada sob a direção de um programa de
governo de base popular, democrática e inclusiva (Lula/Dilma, sustentada pelos
dois principais partidos de esquerda), a direita brasileira foi aos poucos
engendrando uma estratégia de desconstitucionalização, valendo-se do disfarce
do discurso democrático-liberal e de reconfiguração do desenho do direito
formal, legal-positivo, política e epistemologicamente caro ao seu
posicionamento docemente assimilável pela racionalidade jurídico-burocrática do status quo inscrito na classe que ainda detêm os
meios de produção e opera sua regulação.
Essa disputa, travada em cada frente de
antagonismo que os dois projetos de sociedade e de país provocam, revela, a
cada embate, o modelo de Estado Democrático da Direita. Antes de tudo,
livrar-se da legalidade que a sufoca, com táticas que vão desde a elaboração de
um discurso hermenêutico de retirada de direitos (a Constituição incorporou
direitos demais, como se os direitos fossem quantidades e não relações,
contínuas e ilimitadas), até a institucionalização do Golpe, com aparência de
institucionalidade (legislativo), como procedimentalidade formal (judiciário) e
com suporte ideológico (mídia oligárquica).
Tudo já configurável quase que num “manual
de uso”, com metodologia e passo a passo totalmente previsíveis. Primeiro
passo, investir-se da linguagem democrática e dos direitos, para confundir a
interlocução. Para lembrar a advertência crítica de Merleau-Ponty, valer-se de
expressões iguais (liberdade, justiça, direito), para ocultar a realidade a que
elas remetem e os projetos que mobilizam os diferentes engajamentos. Depois,
operar os sucessivos esvaziamentos: esvaziamento do conteúdo ideológico dos
projetos em disputa (poder político e distribuição da riqueza socialmente
produzida) e em seguida, esvaziamento do alcance democrático dos projetos em
disputa: despolitização e burocratização da participação.
O convite para redigir este artigo partia
de uma afirmação. Preferi figurá-lo com uma interrogação. Um Estado Democrático
da Direita é, como situei aqui, parafraseando Boaventura de Sousa Santos em
relação ao capitalismo, a “utopia” (o fim da História) da direita, uma
contradição em termos. Para a direita, a cidadania é consumo, a participação é
tutelada e a democracia deve voltar ao leito moderno da representação e da
circulação das elites.
* Publicado na Revista Esquerda Petista n.
5, maio de 2016 (Editora Página 13, São Paulo (Publicação da Articulação de
Esquerda – Tendência do PT; editor Walter Pomar), págs. 56-58)