8 de Janeiro. Golpe Derrotado Democracia Preservada

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito


Gisele Cittadino e Carol Proner (Organizadoras). 8 de Janeiro. Golpe Derrotado Democracia Preservada. Recife: Editora Publius/Instituto Joaquin Herrera Flores, 2025.
LANÇAMENTO GOLPE DERROTADO, DEMOCRACIA PRESERVADA. 8 DE JANEIRO. Carol Proner, uma das organizadoras da obra convida e explica o contexto dessa edição importantíssima – “Eis que, no fim de janeiro deste ano, recebo um zap da Gisele Cittadino. Meu celular tem um toque especial para quando a Gisele escreve, já que não posso perder os comandos. Ela disse: Carol, precisamos organizar um livro imediatamente, já que os golpistas serão julgados este ano! Ela tinha razão. Depois de meses de trabalho, o resultado está aí: 08 de janeiro. Golpe derrotado, democracia preservada! Muito obrigada à centena de autores que participaram, bem como às Centrais Sindicais, ao IJHF e à Editora Publius, do nosso querido Marcelo Labanca, em nome de quem saudamos o compromisso com a memória e a verdade. Vamos nos reunir em Brasília, no dia 09 de setembro, (restaurante Tia Zélia), para declarar nosso apoio à soberania política e judicial do Brasil diante das ameaças internas e internacionais”.
Entre tantos autores e autoras, que mantêm a vigília intelectual em defesa da democracia, também eu e minha esposa, Nair Heloisa Bicalho de Sousa, co-autora em inúmeras publicações com essa característica, ao receber o convite da querida Carol para integrar a obra, logo enviamos a nossa contribuição, com o título: “O Golpe de 1964 e a Tentativa de 2023: Memória, Verdade mas também Justiça. Razões Pedagógicas para o Nunca Mais”.
Com Nair dissemos eu e ela, em nosso texto de apresentação ao volume 7, da Série O Direito Achado na Rua (Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina, https://cjt.ufmg.br/wp-content/uploads/2019/02/DE-SOUSA-JR-Jos%C3%A9-Geraldo.-DA-FONSECA-L%C3%ADvia-Gimenes-Dias.-DA-SILVA-FILHO-Jos%C3%A9-Carlos-Moreira.-PAIX%C3%83O-Cristiano.-RAMPIN-Talita-Tatiana-Dias.-S%C3%A9rie-O-Direito-Achado-na-Rua-vol.-7_compressed.pdf) , “em parte por se manterem deliberadamente ocultados e em parte por apresentarem objeção sonegadora de agentes ainda resistentes e insubordinados ao comando legal e das autoridades constituídas […] isso retrata, de certa maneira, uma tendência a deixar no esquecimento os fatos reveladores das práticas políticas do regime autoritário. Vê-se, assim, com Pollack (1989), que memória e esquecimento são eixos fundamentais da esfera do poder, disputando o modo como a memória coletiva constrói-se em cada sociedade”. Em outro texto (Direito à memória e à verdade, Observatório da Constituição e da Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, n. 17, outubro e novembro de 2007), avançamos esse ponto para reafirmar que “esta memória coletiva está em processo de construção e necessita que as diferentes gerações tenham conhecimento da verdade. É tempo de reivindicar a verdade. É tempo de reivindicar a verdade e de resgatar a memória, como referências éticas para conter a mentira na política, pois, como lembra Hanna Arendt, ‘uma das lições que podem ser apreendidas das experiências totalitárias é a assustadora confiança de seus dirigentes no poder da mentira e na capacidade de reescreverem a história para a adaptar a uma linha política’”.
Agora, no livro organizado por Carol Proner e por Gisele Cittadino, o meu artigo com Nair, insiste em que uma das formas de inibir recrudescências autoritárias, de atentados à democracia e de afronta ao Estado de Direito é o antídoto da memória e da verdade, da responsabilização, da reparação e da justiça. Por isso, é inaceitável qualquer tipo de mediação gatopardista que aceite o expurgo da excrecência armada que se projetou para um novo golpe (8 de janeiro), que não começou em 2023 nem terminou ainda em 2025. O fato é que não recuperamos a nossa subjetividade política de autores de nossa própria história, sem que as lições da Justiça de Transição promovam o nosso aprendizado democrático.
Do que cuidamos, no nosso artigo, resumo aqui, foi sustentar que a Justiça de Transição se estrutura em quatro pilares fundamentais: o direito à memória e à verdade, a reparação às vítimas, a responsabilização penal dos perpetradores e a reforma das instituições democráticas e de segurança. Ela não se limita a promover reconciliação, mas exige enfrentar os crimes cometidos, revelar a verdade, conceder reparações simbólicas e materiais, reformar instituições e promover uma educação voltada para a cidadania, os direitos humanos e a não repetição de atentados contra a democracia. O contexto brasileiro, sobretudo após os eventos de 8 de janeiro de 2023, precisa ser analisado sob essa ótica, considerando que a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenam as anistias amplas e incondicionais, pois elas consagram a impunidade e inviabilizam a investigação e punição de crimes contra a humanidade, que têm como vítima a própria humanidade e exigem garantias de não repetição.
Nesse sentido, o relatório da CIDH de 2021 advertiu sobre retrocessos no Brasil, como o enfraquecimento da participação democrática, e recomendou que se investigue, processe e sancione os responsáveis por graves violações, rejeitando figuras como a anistia, o indulto ou a prescrição. Isso reforça a necessidade de manter viva a memória. Milan Kundera (KUNDERA, Milan. O livro do riso e do esquecimento. São Paulo: Companhia das Letras / Companhia de bolso. 2010) já advertia que para liquidar um povo é preciso apagar sua memória, enquanto Michael Pollack (POLLACK, M. Memória, esquecimento e silêncio. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 2, ,n. 3,1989) mostrou que memória e esquecimento estão em disputa constante no exercício do poder. Democratizar a memória, portanto, é condição para que diferentes gerações tenham acesso à verdade e para que o passado ilumine as estratégias do presente. Hannah Arendt (ARENDT, Hanna. Crises da República. São Paulo: Perspectiva, 1973) ressaltava a importância de restaurar a verdade como fundamento da política, enquanto Walter Benjamin (BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987) via a memória histórica como apropriação de reminiscências que surgem em momentos de perigo, permitindo ressignificar experiências do passado para orientar a ação no presente.
No Brasil, a ausência de responsabilização dos crimes de 1964 abriu caminho para repetições, como as ocorridas em 2023. A mentira política, como alertava Arendt, se apoia na manipulação da história e na confiança de líderes totalitários em reescrevê-la. Nesse ponto, Mauro Noleto, em Silêncio Perpétuo?,( NOLETO, Mauro. Silêncio perpétuo? Anistia e transição política no Brasil (República Velha e Era Vargas). Belo Horizonte: D’Plácido, 2024), desmonta a falácia de uma transição conciliatória que apaga antagonismos e naturaliza a violência estrutural, defendendo a superação do “silêncio perpétuo” e da anistia distorcida. Sua análise exige ousadia crítica e hermenêutica para restituir a credibilidade da política, vinculando passado e presente. José Carlos Moreira da Silva Filho (In: SOUSA JR. et al. (Orgs). Direito Achado na Rua vol. 7. Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina. Brasília / DF. UnB 2015) acrescenta que a anistia brasileira é ambígua: foi bandeira democrática contra a ditadura, mas também instrumento de limitações. A Constituição de 1988 a ressignificou em termos de reparação e repúdio aos atos de exceção, possibilitando a criação da Comissão de Anistia. Contudo, sua atuação oscilou conforme governos, chegando a ser capturada entre 2019 e 2022 por uma “anti-Comissão” de extrema direita, que negou a ditadura e revitimizou perseguidos.
José Carlos, um acadêmico reconhecido por sua atuação construtiva, no plano político e também no teórico, participa da obra, com o artigo “Sem Anistia para golpistas e torturadores de ontem e de hoje – os crimes contra o estado democrático de direito e a prestação de contas pelos crimes da ditadura”. José Carlos, não é o único companheiro e co-contrutor de uma aliança de protagonismo atento e ativo para agir em defesa da democracia e dos direitos humanos. Entre a centena de autores e autoras que formam a obra, além das organizadoras, com José Carlos e Nair, festejo a aliança que entretemos, Cezar Britto, Diego Vedovatto, Euzamara de Carvalho, GladstoneLeonel Silva Junior, José Eymard Loguércio, Eduardo Lemos que mais intensamente atuamos no contexto do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua.
Nesse coletivo temos sustentado que a Justiça Transicional, não admite autoanistias, pois crimes como a tortura são imprescritíveis e inanistiáveis. O direito internacional já consolidou, pelo jus cogens, a jurisdição universal para responsabilizar crimes contra a humanidade, como demonstrou o caso Pinochet. No Brasil, é preciso combater medidas de impunidade e, ao mesmo tempo, fortalecer uma pedagogia de direitos humanos, inspirada em Paulo Freire, que dê voz aos sujeitos e promova práticas participativas. A educação em direitos humanos deve se tornar eixo para a formação crítica, como caminho para a construção de uma sociedade democrática, entendida, como afirma Marilena Chauí (CHAUÍ, Marilena. Direitos humanos e educação. Revista do Observatório de Educação em Direitos Humanos, vol. 12, n. 1, 2022), como forma sociopolítica que reconhece a isonomia, o conflito legítimo e a soberania popular.
No entanto, a democracia no Brasil ainda é horizonte a ser alcançado, em meio a uma sociedade autoritária, hierárquica e desigual. Por isso, a educação para os direitos humanos deve ser cultivada como aprendizado coletivo para o “nunca mais”, preservando a memória da ditadura de 1964 a 1985, marcada por torturas, desaparecimentos e assassinatos. Esse processo pedagógico ajuda a enfrentar a cultura do silêncio, a invisibilidade e a impunidade dos responsáveis, ao mesmo tempo em que combate discriminações de gênero, raça, sexualidade, deficiência e outras formas de opressão. A formação permanente em direitos humanos, em espaços formais e informais, é um imperativo para garantir igualdade, equidade e respeito às diferenças.
Educar para a memória, a verdade e a justiça é, portanto, um compromisso pedagógico e ético. Trata-se de construir uma aprendizagem emancipatória que habilite sujeitos para ações concretas em sua realidade local, mas que também se projetem para uma compreensão crítica das contradições nacionais e globais. Dessa forma, a Justiça Transicional não se reduz a punição, mas se afirma como projeto de reconstrução democrática, exigindo memória viva, verdade pública, reparação integral e educação política voltada para uma democracia substantiva e duradoura.
O livro surge como projeto, dessa exigência de compromisso que nos mobiliza. Desde a conspiração armada na etapa de afastamento da presidência legítima, primeira etapa de um golpe ainda não totalmente debelado, estamos organizando a expressão crítica desse compromisso. Não vou aqui arrolar os eventos dessa atuação, apenas alguns dos quais fiz registro: https://estadodedireito.com.br/a-politica-do-esquecimento-os-limites-do-toleravel-e-a-resposta-aos-ataques-do-8-de-janeiro/; https://estadodedireito.com.br/anistia-a-atos-antidemocraticos-no-brasil-limites-juridicos-e-protecao-do-estado-de-direito/, este com a participação de outro autor da obra – Marcelo Labanca Cortes de Araújo – também seu editor, juntamente com João Paulo Allain Teixeira em Anistia a Atos Antidemocráticos no Brasil: limites jurídicos e proteção do Estado de Direito / organizada por Marcelo Labanca Corrêa de Araújo, Gustavo Ferreira Santos, João Paulo Allain Teixeira e Glauco Salomão Leite. – 1. ed. – Recife: Editora Publius, 2025. 346 p. ; PDF – https://drive.google.com/file/d/1KfdRODxpn3Kej6tfpW6KWWrkF9jNb3jj/view; https://estadodedireito.com.br/novo-velho-inimigo-o-antiterrorismo-no-brasil-e-o-retorno-do-discurso-da-doutrina-de-seguranca-nacional/; muito especialmente, com a cuidadosa edição de Larissa Ramina, https://estadodedireito.com.br/lawfare-guerra-juridica-e-retrocesso-democratico/. E com mais intensidade em https://estadodedireito.com.br/lawfare-e-america-latina-a-guerra-juridica-no-contexto-da-guerra-hibrida/, aqui me referindo a Lawfare e América Latina: a guerra jurídica no contexto da guerra híbrida. Homenagem a Carol Proner. Larissa Ramina (org). – VOLUMES I, II e III. Coleção Mulheres no Direito Internacional. Curitiba: Editora Íthala, 2022. Vol. I 284 p; Vol. II 388 p; Vol. III 346 p.
Já então pude lançar meu depoimento sobre a trajetória, acadêmica e profissional, de Carol Proner que Gisele nos coordena nesta obra, sobretudo depois de 2016, quando no Brasil, derrapamos numa voragem destituinte de direitos, Carol tem sido presença político-jurídica nos espaços nos quais se abriu convocação mobilizadora para resistir ao impulso parlamentar-judicial-midiático para interromper o projeto democrático-popular e liberar dos subterrâneos da política as forças conservadoras e oligárquicas hibernantes, abraçadas a Maritornes sonhando com Dulcinéia.
Em debates, em fóruns institucionais, numa ação editorial pulsante, ela interpela, discerne, formula, propõe direções, fora daquela tensão antiga entre o que se chamou num tempo de intelectual livre em contraposição a intelectual orgânico, mas àquela disposição que mais caracteriza um intelectual de retaguarda: “a teoria é sempre uma condensação da própria prática e não pode ser outra coisa. É a prática a refletir sobre si própria, a teoria não pode ser outra coisa. Por isso, não há lugar a teorias de vanguarda porque ninguém vai na frente e ninguém vai atrás, vamos todos juntos. E como é que vamos juntos? Vamos juntos em diferentes posições, obviamente, mas partilhando um destino. Não podemos aceitar que a hora da verdade se mantenha com a teoria e a hora da mentira com a prática, não nos podemos separar dessa forma, eu penso que é muito desonesto” (Boaventura de Sousa Santos: https://journals.openedition.org/rccs/7647).
Aplicada à questão do sistema de justiça, um dos vetores que acossa o trânsito dramático desconstituinte, a mobilização intelectual de Carol Proner, tem contribuído e muito, para a melhor compreensão das tensões em curso, e seus impactos no programa democrático.
Elaborado para acumular fundamentos para a defesa dos valores democráticos que repudiam atentados ao estado de direito e à Constituição, fortalecendo um acervo já bem adensado, a obra sai exatamente entre o 2 de setembro quando está prevista a abertura do julgamento com a primeira audiência e o 12 de setembro quando se estima se consume o julgamento dos réus na ação no Supremo tribunal Federal que julga seus atos antidemocráticos denunciados pelo Ministério Público Federal. Tal como sintetizei em artigo de minha coluna de opinião O Direito Achado na Rua (https://brasilpopular.com/julgar-crimes-contra-o-estado-de-direito-credencia-o-stf-como-garante-da-democracia/): “Julgar Crimes contra o Estado de Direito credencia o STF como garante da Democracia, mas é também uma oportunidade incontornável para aferir a nossa capacidade pedagógica de exercitar uma experiência exemplar de educação para a Democracia e para a Cidadania”. É sobre essa capacidade e com essa esperança que a obra foi elaborada e é publicada. Mas com a espera ativa de que fala Cassiano Ricardo, em seu poema Rua:
A Rua
Bem sei que, muitas vezes,
o único remédio
é adiar tudo. É adiar a sede, a fome, a viagem,
a dívida, o divertimento,
o pedido de emprego, ou a própria alegria.
A esperança é também uma forma
de contínuo adiamento.
Sei que é preciso prestigiar a esperança,
numa sala de espera.
Mas sei também que espera significa luta e não,
[apenas,
esperança sentada.
Não abdicação diante da vida.
A esperança
nunca é a forma burguesa, sentada e tranquila da
[espera.
Nunca é a figura de mulher
do quadro antigo.
Sentada, dando milho aos pombos.
Publicado no livro Um dia depois do outro, 1944/1946 (1947). In: RICARDO, Cassiano. Poesias completas. Pref. Tristão de Athayde. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1957. p.26