quarta-feira, 3 de setembro de 2025

 

8 de Janeiro. Golpe Derrotado Democracia Preservada

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

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Gisele Cittadino e Carol Proner (Organizadoras). 8 de Janeiro. Golpe Derrotado Democracia Preservada. Recife: Editora Publius/Instituto Joaquin Herrera Flores, 2025.

LANÇAMENTO GOLPE DERROTADO, DEMOCRACIA PRESERVADA. 8 DE JANEIRO. Carol Proner, uma das organizadoras da obra convida e explica o contexto dessa edição importantíssima – “Eis que, no fim de janeiro deste ano, recebo um zap da Gisele Cittadino. Meu celular tem um toque especial para quando a Gisele escreve, já que não posso perder os comandos. Ela disse: Carol, precisamos organizar um livro imediatamente, já que os golpistas serão julgados este ano! Ela tinha razão. Depois de meses de trabalho, o resultado está aí: 08 de janeiro. Golpe derrotado, democracia preservada! Muito obrigada à centena de autores que participaram, bem como às Centrais Sindicais, ao IJHF e à Editora Publius, do nosso querido Marcelo Labanca, em nome de quem saudamos o compromisso com a memória e a verdade. Vamos nos reunir em Brasília, no dia 09 de setembro, (restaurante Tia Zélia), para declarar nosso apoio à soberania política e judicial do Brasil diante das ameaças internas e internacionais”.

Entre tantos autores e autoras, que mantêm a vigília intelectual em defesa da democracia, também eu e minha esposa, Nair Heloisa Bicalho de Sousa, co-autora em inúmeras publicações com essa característica, ao receber o convite da querida Carol para integrar a obra, logo enviamos a nossa contribuição, com o título: “O Golpe de 1964 e a Tentativa de 2023: Memória, Verdade mas também Justiça. Razões Pedagógicas para o Nunca Mais”.

Com Nair dissemos eu e ela, em nosso texto de apresentação ao volume 7, da Série O Direito Achado na Rua (Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina, https://cjt.ufmg.br/wp-content/uploads/2019/02/DE-SOUSA-JR-Jos%C3%A9-Geraldo.-DA-FONSECA-L%C3%ADvia-Gimenes-Dias.-DA-SILVA-FILHO-Jos%C3%A9-Carlos-Moreira.-PAIX%C3%83O-Cristiano.-RAMPIN-Talita-Tatiana-Dias.-S%C3%A9rie-O-Direito-Achado-na-Rua-vol.-7_compressed.pdf) , “em parte por se manterem deliberadamente ocultados e em parte por apresentarem objeção sonegadora de agentes ainda resistentes e insubordinados ao comando legal e das autoridades constituídas […] isso retrata, de certa maneira, uma tendência a deixar no esquecimento os fatos reveladores das práticas políticas do regime autoritário. Vê-se, assim, com Pollack (1989), que memória e esquecimento são eixos fundamentais da esfera do poder, disputando o modo como a memória coletiva constrói-se em cada sociedade”. Em outro texto (Direito à memória e à verdade, Observatório da Constituição e da Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, n. 17, outubro e novembro de 2007), avançamos esse ponto para reafirmar que “esta memória coletiva está em processo de construção e necessita que as diferentes gerações tenham conhecimento da verdade. É tempo de reivindicar a verdade. É tempo de reivindicar a verdade e de resgatar a memória, como referências éticas para conter a mentira na política, pois, como lembra Hanna Arendt, ‘uma das lições que podem ser apreendidas das experiências totalitárias é a assustadora confiança de seus dirigentes no poder da mentira e na capacidade de reescreverem a história para a adaptar a uma linha política’”.

Agora, no livro organizado por Carol Proner e por Gisele Cittadino, o meu artigo com Nair, insiste em que uma das formas de inibir recrudescências autoritárias, de atentados à democracia e de afronta ao Estado de Direito é o antídoto da memória e da verdade, da responsabilização, da reparação e da justiça. Por isso, é inaceitável qualquer tipo de mediação gatopardista que aceite o expurgo da excrecência armada que se projetou para um novo golpe (8 de janeiro), que não começou em 2023 nem terminou ainda em 2025. O fato é que não recuperamos a nossa subjetividade política de autores de nossa própria história, sem que as lições da Justiça de Transição promovam o nosso aprendizado democrático.

Do que cuidamos, no nosso artigo, resumo aqui, foi sustentar que a Justiça de Transição se estrutura em quatro pilares fundamentais: o direito à memória e à verdade, a reparação às vítimas, a responsabilização penal dos perpetradores e a reforma das instituições democráticas e de segurança. Ela não se limita a promover reconciliação, mas exige enfrentar os crimes cometidos, revelar a verdade, conceder reparações simbólicas e materiais, reformar instituições e promover uma educação voltada para a cidadania, os direitos humanos e a não repetição de atentados contra a democracia. O contexto brasileiro, sobretudo após os eventos de 8 de janeiro de 2023, precisa ser analisado sob essa ótica, considerando que a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenam as anistias amplas e incondicionais, pois elas consagram a impunidade e inviabilizam a investigação e punição de crimes contra a humanidade, que têm como vítima a própria humanidade e exigem garantias de não repetição.

Nesse sentido, o relatório da CIDH de 2021 advertiu sobre retrocessos no Brasil, como o enfraquecimento da participação democrática, e recomendou que se investigue, processe e sancione os responsáveis por graves violações, rejeitando figuras como a anistia, o indulto ou a prescrição. Isso reforça a necessidade de manter viva a memória. Milan Kundera (KUNDERA, Milan. O livro do riso e do esquecimento. São Paulo: Companhia das Letras / Companhia de bolso. 2010) já advertia que para liquidar um povo é preciso apagar sua memória, enquanto Michael Pollack (POLLACK, M. Memória, esquecimento e silêncio. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 2, ,n. 3,1989) mostrou que memória e esquecimento estão em disputa constante no exercício do poder. Democratizar a memória, portanto, é condição para que diferentes gerações tenham acesso à verdade e para que o passado ilumine as estratégias do presente. Hannah Arendt (ARENDT, Hanna. Crises da República. São Paulo: Perspectiva, 1973) ressaltava a importância de restaurar a verdade como fundamento da política, enquanto Walter Benjamin (BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987) via a memória histórica como apropriação de reminiscências que surgem em momentos de perigo, permitindo ressignificar experiências do passado para orientar a ação no presente.

No Brasil, a ausência de responsabilização dos crimes de 1964 abriu caminho para repetições, como as ocorridas em 2023. A mentira política, como alertava Arendt, se apoia na manipulação da história e na confiança de líderes totalitários em reescrevê-la. Nesse ponto, Mauro Noleto, em Silêncio Perpétuo?,( NOLETO, Mauro. Silêncio perpétuo? Anistia e transição política no Brasil (República Velha e Era Vargas). Belo Horizonte: D’Plácido, 2024), desmonta a falácia de uma transição conciliatória que apaga antagonismos e naturaliza a violência estrutural, defendendo a superação do “silêncio perpétuo” e da anistia distorcida. Sua análise exige ousadia crítica e hermenêutica para restituir a credibilidade da política, vinculando passado e presente. José Carlos Moreira da Silva Filho (In: SOUSA JR. et al. (Orgs). Direito Achado na Rua vol. 7. Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina. Brasília / DF. UnB 2015) acrescenta que a anistia brasileira é ambígua: foi bandeira democrática contra a ditadura, mas também instrumento de limitações. A Constituição de 1988 a ressignificou em termos de reparação e repúdio aos atos de exceção, possibilitando a criação da Comissão de Anistia. Contudo, sua atuação oscilou conforme governos, chegando a ser capturada entre 2019 e 2022 por uma “anti-Comissão” de extrema direita, que negou a ditadura e revitimizou perseguidos.

José Carlos, um acadêmico reconhecido por sua atuação construtiva, no plano político e também no teórico, participa da obra, com o artigo “Sem Anistia para golpistas e torturadores de ontem e de hoje – os crimes contra o estado democrático de direito e a prestação de contas pelos crimes da ditadura”. José Carlos, não é o único companheiro e co-contrutor de uma aliança de protagonismo atento e ativo para agir em defesa da democracia e dos direitos humanos. Entre a centena de autores e autoras que formam a obra, além das organizadoras, com José Carlos e Nair, festejo a aliança que entretemos, Cezar Britto, Diego Vedovatto, Euzamara de Carvalho, GladstoneLeonel Silva Junior, José Eymard Loguércio, Eduardo Lemos que mais intensamente atuamos no contexto do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua.

Nesse coletivo temos sustentado que a Justiça Transicional, não admite autoanistias, pois crimes como a tortura são imprescritíveis e inanistiáveis. O direito internacional já consolidou, pelo jus cogens, a jurisdição universal para responsabilizar crimes contra a humanidade, como demonstrou o caso Pinochet. No Brasil, é preciso combater medidas de impunidade e, ao mesmo tempo, fortalecer uma pedagogia de direitos humanos, inspirada em Paulo Freire, que dê voz aos sujeitos e promova práticas participativas. A educação em direitos humanos deve se tornar eixo para a formação crítica, como caminho para a construção de uma sociedade democrática, entendida, como afirma Marilena Chauí (CHAUÍ, Marilena. Direitos humanos e educação. Revista do Observatório de Educação em Direitos Humanos, vol. 12, n. 1, 2022), como forma sociopolítica que reconhece a isonomia, o conflito legítimo e a soberania popular.

No entanto, a democracia no Brasil ainda é horizonte a ser alcançado, em meio a uma sociedade autoritária, hierárquica e desigual. Por isso, a educação para os direitos humanos deve ser cultivada como aprendizado coletivo para o “nunca mais”, preservando a memória da ditadura de 1964 a 1985, marcada por torturas, desaparecimentos e assassinatos. Esse processo pedagógico ajuda a enfrentar a cultura do silêncio, a invisibilidade e a impunidade dos responsáveis, ao mesmo tempo em que combate discriminações de gênero, raça, sexualidade, deficiência e outras formas de opressão. A formação permanente em direitos humanos, em espaços formais e informais, é um imperativo para garantir igualdade, equidade e respeito às diferenças.

Educar para a memória, a verdade e a justiça é, portanto, um compromisso pedagógico e ético. Trata-se de construir uma aprendizagem emancipatória que habilite sujeitos para ações concretas em sua realidade local, mas que também se projetem para uma compreensão crítica das contradições nacionais e globais. Dessa forma, a Justiça Transicional não se reduz a punição, mas se afirma como projeto de reconstrução democrática, exigindo memória viva, verdade pública, reparação integral e educação política voltada para uma democracia substantiva e duradoura.

O livro surge como projeto, dessa exigência de compromisso que nos mobiliza. Desde a conspiração armada na etapa de afastamento da presidência legítima, primeira etapa de um golpe ainda não totalmente debelado, estamos organizando a expressão crítica desse compromisso. Não vou aqui arrolar os eventos dessa atuação, apenas alguns dos quais fiz registro: https://estadodedireito.com.br/a-politica-do-esquecimento-os-limites-do-toleravel-e-a-resposta-aos-ataques-do-8-de-janeiro/https://estadodedireito.com.br/anistia-a-atos-antidemocraticos-no-brasil-limites-juridicos-e-protecao-do-estado-de-direito/, este com a participação de outro autor da obra – Marcelo Labanca Cortes de Araújo – também seu editor, juntamente com João Paulo Allain Teixeira em Anistia a Atos Antidemocráticos no Brasil: limites jurídicos e proteção do Estado de Direito / organizada por Marcelo Labanca Corrêa de Araújo, Gustavo Ferreira Santos, João Paulo Allain Teixeira e Glauco Salomão Leite. – 1. ed. – Recife: Editora Publius, 2025. 346  p. ; PDF – https://drive.google.com/file/d/1KfdRODxpn3Kej6tfpW6KWWrkF9jNb3jj/viewhttps://estadodedireito.com.br/novo-velho-inimigo-o-antiterrorismo-no-brasil-e-o-retorno-do-discurso-da-doutrina-de-seguranca-nacional/; muito especialmente, com a cuidadosa edição de Larissa Ramina, https://estadodedireito.com.br/lawfare-guerra-juridica-e-retrocesso-democratico/. E com mais intensidade em https://estadodedireito.com.br/lawfare-e-america-latina-a-guerra-juridica-no-contexto-da-guerra-hibrida/, aqui me referindo a Lawfare e América Latina: a guerra jurídica no contexto da guerra híbrida. Homenagem a Carol Proner. Larissa Ramina (org).  – VOLUMES I, II e III. Coleção Mulheres no Direito Internacional. Curitiba: Editora Íthala, 2022.  Vol. I 284 p; Vol. II 388 p; Vol. III 346 p.

Já então pude lançar meu depoimento sobre a trajetória, acadêmica e profissional, de Carol Proner que Gisele nos coordena nesta obra, sobretudo depois de 2016, quando no Brasil, derrapamos numa voragem destituinte de direitos, Carol tem sido presença político-jurídica nos espaços nos quais se abriu convocação mobilizadora para resistir ao impulso parlamentar-judicial-midiático para interromper o projeto democrático-popular e liberar dos subterrâneos da política as forças conservadoras e oligárquicas hibernantes, abraçadas a Maritornes sonhando com Dulcinéia.

Em debates, em fóruns institucionais, numa ação editorial pulsante, ela interpela, discerne, formula, propõe direções, fora daquela tensão antiga entre o que se chamou num tempo de intelectual livre em contraposição a intelectual orgânico, mas àquela disposição que mais caracteriza um intelectual de retaguarda: “a teoria é sempre uma condensação da própria prática e não pode ser outra coisa. É a prática a refletir sobre si própria, a teoria não pode ser outra coisa. Por isso, não há lugar a teorias de vanguarda porque ninguém vai na frente e ninguém vai atrás, vamos todos juntos. E como é que vamos juntos? Vamos juntos em diferentes posições, obviamente, mas partilhando um destino. Não podemos aceitar que a hora da verdade se mantenha com a teoria e a hora da mentira com a prática, não nos podemos separar dessa forma, eu penso que é muito desonesto” (Boaventura de Sousa Santos: https://journals.openedition.org/rccs/7647).

Aplicada à questão do sistema de justiça, um dos vetores que acossa o trânsito dramático desconstituinte, a mobilização intelectual de Carol Proner, tem contribuído e muito, para a melhor compreensão das tensões em curso, e seus impactos no programa democrático.

Elaborado para acumular fundamentos para a defesa dos valores democráticos que repudiam atentados ao estado de direito e à Constituição, fortalecendo um acervo já bem adensado, a obra sai exatamente entre o 2 de setembro quando está prevista a abertura do julgamento com a primeira audiência e o 12 de setembro quando se estima se consume o julgamento dos réus na ação no Supremo tribunal Federal que julga seus atos antidemocráticos denunciados pelo Ministério Público Federal. Tal como sintetizei em artigo de minha coluna de opinião O Direito Achado na Rua (https://brasilpopular.com/julgar-crimes-contra-o-estado-de-direito-credencia-o-stf-como-garante-da-democracia/): “Julgar Crimes contra o Estado de Direito credencia o STF como garante da Democracia, mas é também uma oportunidade incontornável para aferir a nossa capacidade pedagógica de exercitar uma experiência exemplar de educação para a Democracia e para a Cidadania”. É sobre essa capacidade e com essa esperança que a obra foi elaborada e é publicada. Mas com a espera ativa de que fala Cassiano Ricardo, em seu poema Rua:

A Rua

Bem sei que, muitas vezes,

o único remédio

é adiar tudo. É adiar a sede, a fome, a viagem,

a dívida, o divertimento,

o pedido de emprego, ou a própria alegria.

A esperança é também uma forma

de contínuo adiamento.

Sei que é preciso prestigiar a esperança,

numa sala de espera.

Mas sei também que espera significa luta e não,

[apenas,

esperança sentada.

Não abdicação diante da vida.

A esperança

nunca é a forma burguesa, sentada e tranquila da

[espera.

Nunca é a figura de mulher

do quadro antigo.

Sentada, dando milho aos pombos.

 

Publicado no livro Um dia depois do outro, 1944/1946 (1947). In: RICARDO, Cassiano. Poesias completas. Pref. Tristão de Athayde. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1957. p.26

 

 

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

 

Seminário e Residência Petrobras Voo Livre História. Companhia Brasileira de Teatro

Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF

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Foto de Kamilla Pacheco

Na sua temporada de 2025, o espaço do Festival Cena Contemporânea, abriu-se para um campo de mobilização pela arte cênica. A companhia brasileira de teatro lança seu novo e instigante projeto, História, no CENA CONTEMPORÂNEA – Festival Internacional de Teatro de Brasília. Entre 22 de agosto e 3 de setembro, a iniciativa pretende realizar, dentro da programação do Festival, uma série de ações na área das artes cênicas, como a Residência Voo Livre-História e o Seminário História, ambos gratuitos, além das apresentações do espetáculo AO VIVO [dentro da cabeça de alguém]. Para melhor ver em https://cenacontemporanea.com.br/2025/amaro-e-a-orquestra-alada-trovao-da-mata/.

Agradeço a Guilherme Reis, idealizador do Cena Contemporânea, o convite para participar do seminário História. Creio que são cerca de 30 anos de uma realização contínua. O projeto “Cena Contemporânea” em Brasília, mais especificamente o Festival Internacional de Teatro de Brasília, realiza-se desde 1996, orientado pelo conceito de promover as artes cênicas, oferecendo uma plataforma para artistas nacionais e internacionais compartilharem seus trabalhos.

Notável em sua realização é a Diversidade Artística (apresentar uma programação diversa, incluindo teatro e dança, para todas as idades), a Reflexão e o Debate (espaço para discutir as artes cênicas e seu futuro), Inovação (oferecer apresentações inovadoras e experimentais, incluindo trabalhos especialmente preparados para o festival) e Acessibilidade (tornar a arte acessível ao público, com apresentações gratuitas e virtuais, quando necessário.

Na página do Festival, há a explicação de que “as ações fazem parte da programação de um projeto mais amplo e ousado da companhia, chamado HISTÓRIA, apresentado pela Petrobras por meio da Lei Rouanet e Ministério da Cultura do Governo Federal do Brasil. Trata-se de um projeto de manutenção da companhia brasileira de teatro que se estrutura em três eixos principais de atividades, distribuídas ao longo do período de um ano (agosto/2025-julho/2026), com possibilidades de extensão e desdobramentos para além do circunscrito no projeto inicial”.

Neste 2025 o projeto insere na programação o Seminário História. São “Encontros entre integrantes da companhia brasileira de teatro e convidados especiais, para refletir sobre prismas fundamentais da história do Brasil, abertos à participação do público. A atividade é ligada à plataforma de criação artística VOO LIVRE, criada em 2023, pelo diretor Márcio Abreu, pelas atrizes Nadja Naira e Cassia Damasceno e pelo produtor José Maria, para ressignificar processos criativos e propor perguntas sobre como seguir fazendo arte no mundo de hoje. A proposta é levantar, junto com os espectadores, as possíveis relações entre história íntima e história coletiva: como cada pessoa, individualmente, pode interferir na grande História e como ela determina aspectos das nossas próprias vidas. O material servirá de base para a dramaturgia de um novo trabalho da companhia”.

Além da participação especial de convidados ilustres como o advogado Carlos Moura, referência na luta pelos direitos humanos e pela igualdade racial; a professora Glória Moura, doutora em Educação pela USP e pioneira da luta pela inclusão racial nas universidades; a psicóloga, professora universitária e ativista brasileira Jaqueline Gomes de Jesus; eu próprio, a convite do Guilherme Reis e com o acolhimento de José Maria e Lilian Bento, figuro entre os convidados, na programação do dia 30/8 (sábado) – Teatro Marco Antonio Guimarães (Espaço Cultural Renato Russo 508 Sul), das 17h30 às 20h., para contribuir para o debate. Estive na roda de conversa que então se realizou compartilhando a minha apresentação com a minha esposa Nair Heloisa Bicalho de Sousa, do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, ela própria uma interprete da história social de Brasília, a partir do “subterrâneo”, condição de resgate de memória social disputando com as “histórias oficiais”.

Nair, que sensível à capacidade da arte de apreender o mundo (lembrando Eduardo Lourenço segundo o qual a literatura e a arte não são delírios, mas apreensão do real por meio de outra linguagem), demonstrou essa capacidade mediadora quando depois de entrevistar lideranças das marchas do MST sobre Brasília em 1997, e de estudar os diários da marcha, os registros feitos em cadernos escolares, acabou por desistir de escrever um ensaio sociológico sobre o acontecimento, sua intenção original, e compôs com esse material uma peça de teatro – O Brasil em Movimento por Reforma Agrária, Emprego e Justiça – que pode ser lida nas páginas 384-396 de Série O Direito Achado na Rua, vol. 3: Introdução Crítica ao Direito Agrário/Mônica Castagna Molina, José Geraldo de Sousa Junior, Fernando da Costa Tourinho Neto (organizadores). São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002.

Para Nair, ela lembrou no debate, com Michael Pollack (POLLACK, M. Memória, esquecimento e silêncio. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 2, ,n. 3,1989), que memória e esquecimento estão em disputa constante no exercício do poder. Democratizar a memória, portanto, é condição para que diferentes gerações tenham acesso à verdade e para que o passado ilumine as estratégias do presente. Hannah Arendt (ARENDT, Hanna. Crises da República. São Paulo: Perspectiva, 1973) ressaltava a importância de restaurar a verdade como fundamento da política, enquanto Walter Benjamin (BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987) via a memória histórica como apropriação de reminiscências que surgem em momentos de perigo, permitindo ressignificar experiências do passado para orientar a ação no presente.

Foto de Kamilla Pacheco

Pensando a relação entre arte e história, comecei por me perguntar sobre tal entrelaçamento, desde minhas memórias de leituras literárias, quando, lendo Tolstói, acabei me deparando no epílogo de sua grande obra (Guerra e Paz), com um ensaio em que o grande autor se pergunta sobre o que move a História? Ali, Tolstói, em face do confronto entre Napoleão e Kutuzov acaba se conformando ao conceito de que a história não é obra dos “grandes homens”, mas da soma de infinitas ações individuais. Claro que ele quer encontrar um fundamento numa lei geral que refere essa massa de atos, como uma espécie de “necessidade histórica” que se manifesta como resultado de todos esses movimentos.

Roberto Lyra Filho critica a visão do escritor russo de que a história é determinada por forças conscienciais e subjetivas, ignorando as relações de poder e as estruturas sociais que influenciam os acontecimentos históricos. Para ele, assim como para Benjamin, Tolstói ainda que superando os aspectos objetivos e materiais da história, não venceu o limite da compreensão da dinâmica social e política, que se move por impulso não de indivíduos mas de coletivos, de sujeitos coletivos históricos.

Penso que essa percepção centrada no indivíduo que tem apelo literário, dificilmente escapa da relação entre história singular e a geral cujo entrelaçamento determina os acontecimentos.

Penso em Alexandre Dumas na cena de “Vinte Anos Depois” (Vingt Ans Après), continuação de “Os Três Mosqueteiros”. Durante a Fronda (período de revoltas contra o governo de Mazarino na França, por volta de 1648), o porteiro da Bastilha (ou de um outro posto estratégico) — por causa de uma briga com a amante — esquece de trancar uma porta ou de assumir seu posto com rigor, permitindo que os conspiradores ou inimigos do governo tomem o local de surpresa.

Dumas utiliza esse incidente para mostrar como um detalhe da vida privada de um personagem pode ter efeitos desproporcionais sobre a vida pública e os destinos de um país.

Benjamin em “Sobre o conceito de história”, também conhecido como “Teses sobre o conceito de história” (1940), refere a essa passagem na Tese VII, que diz:

“O cronista que narra os acontecimentos sem distinguir entre os grandes e os pequenos age de acordo com a seguinte verdade: nada do que um dia aconteceu deve ser considerado perdido para a história. Certamente, só a humanidade redimida possui o seu passado completo — o que significa: apenas para a humanidade redimida o passado se tornou citação em cada um dos seus momentos. Cada segundo vivido com consciência pode se tornar uma porta por onde o Messias pode entrar.”

Há toda uma construção conceitual, notadamente com a Escola dos Annales, que valorizava o papel do “acaso” e da vida cotidiana nos processos históricos. Entretanto, embora essa concepção seja cara a Walter Benjamin, que cita a passagem de Dumas para mostrar como a história é feita de entrelaçamentos não lineares, nele, ao citar esse episódio de Dumas, a reflexão se orienta para como acontecimentos históricos não devem ser reduzidos apenas às ações dos grandes homens ou aos grandes eventos, mas que a história também se constitui de pequenos gestos, acasos, emoções — daquilo que é aparentemente irrelevante. Trata-se de uma crítica ao historicismo, e uma defesa de uma história materialista com sensibilidade para o tempo dos vencidos, dos esquecidos, dos detalhes.

Mas Benjamin discute mesmo é como as classes revolucionárias têm consciência de romper com o contínuo histórico por meio de rupturas simbólicas. Para ele, o sentido da história é armar o social para a redenção dos vencidos e a interrupção da barbárie. O olhar da história é ético-político: salvar a memória dos oprimidos contra a narrativa triunfal dos vencedores, um sentido interessado no uso revolucionário da memória. É tomar a história a contrapelo, para capturar o momento que se vive o perigo, e poder transitar para a emancipação, para não deixar acontecer de novo.

Por isso é tão importante, na conjuntura em que vivemos, depois dos atentados à democracia, nos ensaios de golpe que têm no 8 de janeiro seu momento mais performático, perceber nesse evento o relampejar que desperta a nossa consciência histórica. Por isso que, julgar crimes contra o Estado de Direito credencia o STF como garante da Democracia, mas é também uma oportunidade incontornável para aferir a nossa capacidade pedagógica de exercitar uma experiência exemplar de educação para a Democracia e para a Cidadania

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)