Quando, em 2011, a
sociedade brasileira se viu aturdida com o desfecho que foi dado ao caso
Pinheirinho, em São José dos Campos, muita discussão se produziu a respeito dos
fundamentos jurídicos da decisão judicial, que determinou a reintegração de
posse do terreno onde estava instalada a comunidade, e da legalidade da ação
policial que se seguiu, incluindo os métodos de ação.
Sem retomar todos os
aspectos do debate, já bastante difundido, um argumento que insta retomar, para
tratar do caso Milton Santos, é o de que o direito de propriedade, para ser preservado,
não deve justificar atos de violência, promovidos pelo Estado contra o cidadão,
pois cumpre ao Estado, igualmente, defender o direito à vida e a integridade de
todos os cidadãos, constituindo, por si, uma violência retirar, à força,
pessoas de suas residências, deixando-as ao relento e sem condições de uma
sobrevivência digna, violência esta que se efetivaria para tentar reverter, de
forma abrupta, uma situação fática constituída ao longo de anos, restituindo “limpa”
a propriedade a seu dono.
Lembre-se, ainda, que a
propriedade, juridicamente considerada, deve cumprir uma função social. Não se
trata de negar o direito de propriedade, mas de compreender que do ponto de
vista do direito a propriedade não se justifica em si, mas pela função social
que cumpre, e que ao Estado democrático de direito social cabe, também, garantir
a todos os cidadãos, por ações afirmativas, a dignidade (inciso III, do art.
1º., da CF), tendo sido relacionados, no artigo 6º da Constituição Federal
brasileira, como Direitos Fundamentais, os seguintes valores: a educação, a
saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados.
Em termos
constitucionais, a própria ordem econômica, que deve ser fundada na valorização
do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos uma existência
digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes
princípios: da função social da propriedade; da redução das desigualdades
regionais e sociais; e da busca do pleno emprego (art. 170, caput, incisos II,
III e VIII).
Não há como negar,
portanto, que a ordem jurídica nacional esteja pautada pelos preceitos do
Direito Social, cujos objetivos são: construir a justiça social e efetivar a
democracia. Impera a concepção de um regramento que tem por conseqüência a
melhoria da posição econômica e social de todos e a preservação da dignidade do
sentido da elevação da condição humana.
No Direito Social, ao se
fixar a prevalência da solução dos problemas postos pela questão social, que é
abertamente reconhecida como tal, o postulado da justiça social aparece como
condição de sustentabilidade de todo o sistema.
A função do Direito
Social é distribuir a riqueza coletivamente produzida, para fins não apenas de
eliminar, por benevolência, a pobreza, mas de integrar todos ao projeto de uma
sociedade na qual todos possam, efetivamente, adquirir, em sua concepção plena,
a cidadania, experimentando a beleza da condição humana, sendo certo que um dos
maiores sentimentos que agridem o ser é a injustiça.
A defesa concreta da
dignidade humana é a expressão máxima do Direito Social, na medida em que
vislumbra a formalização das bases existenciais necessárias para que esses
valores humanos sejam efetivados, sendo de se destacar que a maior relevância
do Direito neste assunto diz respeito às pessoas que estão em posição
inferiorizada na sociedade dos pontos de vistas político, cultural, social e
econômico. A racionalidade imposta pelo Direito Social deve permitir que se
vislumbrem as angústias, as dificuldades e as restrições que atingem todas as
pessoas que integram a sociedade, sobretudo, as que são mais vulneráveis economicamente,
incentivando a prática de atos voltados à efetiva defesa dos seus direitos.
No contexto enunciado, a
Reforma Agrária apresenta-se como instrumento relevante tanto para que o Estado
efetive suas obrigações jurídicas no campo social quanto para garantir que a propriedade,
no âmbito rural, cumpra a sua função social, muito embora, ao longo de décadas,
as forças políticas brasileiras tenham feito vistas grossas ao tema.
Juridicamente, se os proprietários
têm o direito de defender seu patrimônio, não se pode olvidar que esta defesa
se faz por intermédio do direito e é evidente que o direito se integra ao
problema como um todo e não parcialmente, no limite restrito de um interesse.
Assim, por aplicação do próprio direito, há de se verificar se a propriedade
cumpre sua função social e em se tratando de uma propriedade rural, há de ser
verificado o aspecto pertinente à produtividade (conjugação dos incisos XXII e
XXIII, do artigo 5o., da CF e incisos II e III, do art. 170, CF, e
conforme expressamente previsto no art. 184, da CF), gerando, como efeito
jurídico possível, na hipótese de ser improdutiva, a desapropriação, mediante indenização
prévia e justa (art. 184). Os incisos III e IV do art. 186 da Constituição
Federal, além disso, condicionam o cumprimento da função social da propriedade
agrária ao respeito das disposições que regulam as relações de trabalho e à
exploração que favoreça ao bem-estar do trabalhador rural.
Pois bem, somando-se
todos esses preceitos, não pode passar despercebido à sociedade brasileira o
problema que envolve os moradores do assentamento Milton Santos, em Americana/SP.
Neste caso, os moradores foram assentados no local, com a ciência do INCRA, em
2006, após o Presidente da República, Luís Inácio da Silva, ter assinado termo
de concessão do terreno (sítio Boa Vista), para fins de reforma agrária, sendo
que a perda da posse do terreno, pelos proprietários, estava ligada a dívidas
trabalhistas e previdenciárias.
Após isso, o assentamento
Milton Santos se instituiu, abrigando várias famílias, que passaram a conferir
às terras uma função social relevante, inclusive no aspecto da produção de
alimentos sem o uso de agrotóxicos. A comunidade ali instalada hoje é
responsável pelo fornecimento de mais de 300 toneladas de alimentos para a
região metropolitana de Campinas.
No final de 2012, no
entanto, veio a notícia de que o direito à posse do terreno foi restituído aos
proprietários na ação judicial, em razão de ter havido o pagamento da dívida da
qual originou o ato processual expropriatório, tendo havido, na seqüência, a
publicação de decisão judicial, determinando a desocupação.
Mas, a situação consolidada
no local, que envolve a sobrevivência de várias pessoas e mesmo os projetos de
vida que tiveram início com o apoio institucional do próprio Estado, não pode
ser simplesmente revertida como se nada tivesse ocorrido. Afinal a situação
presente envolve uma enorme gama de valores jurídicos, que não podem ser “apagados”,
como se nunca tivessem vindo à tona.
A não visualização desse
feixe de relações, aliás, é o que mais impressiona quando se trata, na nossa
tradição cultural, de conferir validade a um valor: a propriedade. Ainda que se
visualize o fundamento para restituir a posse, vez que a dívida, que pendia sobre
o bem, foi quitada, não dá para, simplesmente, apagar da história todos os
fatos que decorreram desde então, que fizeram incidir vários outros direitos de
diversas outras pessoas, direitos estes igualmente garantidos pelo Estado e
muitos deles inseridos na órbita dos direitos fundamentais. Não se pode
esquecer, igualmente, que a ocorrência desses fatos se deu por responsabilidade
dos proprietários, que detinham, à época, dívidas socialmente relevantes. Pagar,
posteriormente, as dívidas não é ato suficiente para restituir os fatos ao
estado em que antes se encontravam.
Nesse meio tempo,
principalmente nos últimos seis anos, 68 famílias foram licitamente instaladas
no local, investiram na produção, firmaram compromissos e estabeleceram seus
projetos de vida. Devolver a posse das terras aos proprietários representa, ao
mesmo tempo, interferir nessas outras esferas jurídicas, retirando dessas
pessoas parte de suas vidas. Destaque-se que não se pode debitar a essas
famílias, em nenhum aspecto, qualquer parcela de culpa pela situação, muito
pelo contrário.
Então, cabe ao Estado
cumprir a sua função política e jurídica de estabilizar a situação, conferindo
a essas pessoas a titularidade da posse, com base nos preceitos jurídicos
atinentes à Reforma Agrária, indenizando, de forma justa, os proprietários, até
porque, em não o fazendo, estaria o governo agindo na contramão de sua
obrigação, instituindo uma espécie de “antirreforma Agrária”, representada pela
destruição de um assentamento, onde várias pessoas, coletivamente, vivem e
produzem, promovendo-se, assim, a destruição de inúmeros valores sociais e
humanos em favor de apenas um, a propriedade, desvinculada, inclusive, de
qualquer motivação social.
Ainda que por absurdo se
considere a possibilidade disso ocorrer, esse ato reverso da função social do
Estado teria que ser, no mínimo, precedido do pagamento de indenizações, decorrentes
dos prejuízos morais e materiais experimentados, a todos que se viram
envolvidos numa situação que, hoje, apareceria como um engodo, patrocinado pelo
INCRA e pelo então Presidente da República, Luís Inácio da Silva, sendo certo
que o recebimento dessa indenização, diante da natureza alimentar que a
integra, não pode ser submetido às iniciativas individuais de se recorrer ao
Judiciário. As indenizações, ademais, precisam ser acompanhadas das obrigações
de fazer pertinentes à moradia e demais meios de subsistência, como acesso à
escola, ao trabalho etc.
Assim, na hipótese de se
querer ir adiante com o processo de reversão do assentamento, o prejuízo mínimo
necessário seria o do juiz, no próprio processo em que se discute a posse do
bem, fixasse as obrigações que decorreriam ao Estado, que é parte no processo,
vez que um dos interessados é o INSS, condicionando o cumprimento da
reintegração à efetivação das medidas correspondentes, fixando desde já o valor
das indenizações e o conteúdo das obrigações de fazer, com prazo específico, sob
pena de, não sendo atendidas, declarar a expropriação do bem, fixando o valor a
ser pago pelo Estado, a título de indenização, aos proprietários.
De todo modo, até por
conta das muitas objeções de ordem processual que se podem vislumbrar com
relação às proposições supra destinadas à imediata efetivação de indenizações
aos assentados, o ideal é a preservação do assentamento e das relações
jurídicas já consolidadas, levando adiante a desapropriação, para fins de
Reforma Agrária, já iniciada.
Considerando o feixe de
relações jurídicas envolvidas, o único efeito impossível de ocorrer é o que se
anuncia da mera reintegração de posse, mediante ação policial, para retirada
das 68 (sessenta e oito) famílias do local, afastando-as de seu sustento,
conduzindo-as ao relento e negando-lhes a própria condição humana, com
esquecimento de todos os fatos que as conduziram até o local e ao momento
presente.
O desafio, no entanto,
não está em encontrar fundamentos jurídicos para preservar os interesses
envolvidos. O desafio é o de conseguir visualizar exatamente a ocorrência dessa
contraposição jurídica de interesses, como se o direito de propriedade fosse o
único valor a ser preservado, sobrepondo-se a qualquer outro interesse que,
assim, nem jurídico seria.
A dificuldade é mais
sociológica que jurídica. O que provoca nebulosidade na questão, turvando a
vista, talvez seja o “medo” do que os exemplos das ações coletivas, iniciados
por um processo de Reforma Agrária, produzam em termos multiplicadores,
incentivando novas ações. Nesta perspectiva, importa muito mais destruir o
assentamento do que, propriamente, defender a propriedade, até porque, conforme
se anuncia, aos proprietários do terreno, onde se situa, ironicamente, o Sítio Boa
Vista, propriedade é que não falta.
(*)
Juiz do trabalho, titular da 3ª. Vara do Trabalho de Jundiaí. Professor
livre-docente da Faculdade de Direito da USP. Membro da Associação Juízes para
a Democracia (AJD).