quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

O Caso Milton Santos: o desafio continua

Jorge Luiz Souto Maior(*)
Quando, em 2011, a sociedade brasileira se viu aturdida com o desfecho que foi dado ao caso Pinheirinho, em São José dos Campos, muita discussão se produziu a respeito dos fundamentos jurídicos da decisão judicial, que determinou a reintegração de posse do terreno onde estava instalada a comunidade, e da legalidade da ação policial que se seguiu, incluindo os métodos de ação.
Sem retomar todos os aspectos do debate, já bastante difundido, um argumento que insta retomar, para tratar do caso Milton Santos, é o de que o direito de propriedade, para ser preservado, não deve justificar atos de violência, promovidos pelo Estado contra o cidadão, pois cumpre ao Estado, igualmente, defender o direito à vida e a integridade de todos os cidadãos, constituindo, por si, uma violência retirar, à força, pessoas de suas residências, deixando-as ao relento e sem condições de uma sobrevivência digna, violência esta que se efetivaria para tentar reverter, de forma abrupta, uma situação fática constituída ao longo de anos, restituindo “limpa” a propriedade a seu dono.
Lembre-se, ainda, que a propriedade, juridicamente considerada, deve cumprir uma função social. Não se trata de negar o direito de propriedade, mas de compreender que do ponto de vista do direito a propriedade não se justifica em si, mas pela função social que cumpre, e que ao Estado democrático de direito social cabe, também, garantir a todos os cidadãos, por ações afirmativas, a dignidade (inciso III, do art. 1º., da CF), tendo sido relacionados, no artigo 6º da Constituição Federal brasileira, como Direitos Fundamentais, os seguintes valores: a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados.
Em termos constitucionais, a própria ordem econômica, que deve ser fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: da função social da propriedade; da redução das desigualdades regionais e sociais; e da busca do pleno emprego (art. 170, caput, incisos II, III e VIII).
Não há como negar, portanto, que a ordem jurídica nacional esteja pautada pelos preceitos do Direito Social, cujos objetivos são: construir a justiça social e efetivar a democracia. Impera a concepção de um regramento que tem por conseqüência a melhoria da posição econômica e social de todos e a preservação da dignidade do sentido da elevação da condição humana.
No Direito Social, ao se fixar a prevalência da solução dos problemas postos pela questão social, que é abertamente reconhecida como tal, o postulado da justiça social aparece como condição de sustentabilidade de todo o sistema.
A função do Direito Social é distribuir a riqueza coletivamente produzida, para fins não apenas de eliminar, por benevolência, a pobreza, mas de integrar todos ao projeto de uma sociedade na qual todos possam, efetivamente, adquirir, em sua concepção plena, a cidadania, experimentando a beleza da condição humana, sendo certo que um dos maiores sentimentos que agridem o ser é a injustiça.
A defesa concreta da dignidade humana é a expressão máxima do Direito Social, na medida em que vislumbra a formalização das bases existenciais necessárias para que esses valores humanos sejam efetivados, sendo de se destacar que a maior relevância do Direito neste assunto diz respeito às pessoas que estão em posição inferiorizada na sociedade dos pontos de vistas político, cultural, social e econômico. A racionalidade imposta pelo Direito Social deve permitir que se vislumbrem as angústias, as dificuldades e as restrições que atingem todas as pessoas que integram a sociedade, sobretudo, as que são mais vulneráveis economicamente, incentivando a prática de atos voltados à efetiva defesa dos seus direitos.
No contexto enunciado, a Reforma Agrária apresenta-se como instrumento relevante tanto para que o Estado efetive suas obrigações jurídicas no campo social quanto para garantir que a propriedade, no âmbito rural, cumpra a sua função social, muito embora, ao longo de décadas, as forças políticas brasileiras tenham feito vistas grossas ao tema.
Juridicamente, se os proprietários têm o direito de defender seu patrimônio, não se pode olvidar que esta defesa se faz por intermédio do direito e é evidente que o direito se integra ao problema como um todo e não parcialmente, no limite restrito de um interesse. Assim, por aplicação do próprio direito, há de se verificar se a propriedade cumpre sua função social e em se tratando de uma propriedade rural, há de ser verificado o aspecto pertinente à produtividade (conjugação dos incisos XXII e XXIII, do artigo 5o., da CF e incisos II e III, do art. 170, CF, e conforme expressamente previsto no art. 184, da CF), gerando, como efeito jurídico possível, na hipótese de ser improdutiva, a desapropriação, mediante indenização prévia e justa (art. 184). Os incisos III e IV do art. 186 da Constituição Federal, além disso, condicionam o cumprimento da função social da propriedade agrária ao respeito das disposições que regulam as relações de trabalho e à exploração que favoreça ao bem-estar do trabalhador rural.
Pois bem, somando-se todos esses preceitos, não pode passar despercebido à sociedade brasileira o problema que envolve os moradores do assentamento Milton Santos, em Americana/SP. Neste caso, os moradores foram assentados no local, com a ciência do INCRA, em 2006, após o Presidente da República, Luís Inácio da Silva, ter assinado termo de concessão do terreno (sítio Boa Vista), para fins de reforma agrária, sendo que a perda da posse do terreno, pelos proprietários, estava ligada a dívidas trabalhistas e previdenciárias.
Após isso, o assentamento Milton Santos se instituiu, abrigando várias famílias, que passaram a conferir às terras uma função social relevante, inclusive no aspecto da produção de alimentos sem o uso de agrotóxicos. A comunidade ali instalada hoje é responsável pelo fornecimento de mais de 300 toneladas de alimentos para a região metropolitana de Campinas.
No final de 2012, no entanto, veio a notícia de que o direito à posse do terreno foi restituído aos proprietários na ação judicial, em razão de ter havido o pagamento da dívida da qual originou o ato processual expropriatório, tendo havido, na seqüência, a publicação de decisão judicial, determinando a desocupação.
Mas, a situação consolidada no local, que envolve a sobrevivência de várias pessoas e mesmo os projetos de vida que tiveram início com o apoio institucional do próprio Estado, não pode ser simplesmente revertida como se nada tivesse ocorrido. Afinal a situação presente envolve uma enorme gama de valores jurídicos, que não podem ser “apagados”, como se nunca tivessem vindo à tona.
A não visualização desse feixe de relações, aliás, é o que mais impressiona quando se trata, na nossa tradição cultural, de conferir validade a um valor: a propriedade. Ainda que se visualize o fundamento para restituir a posse, vez que a dívida, que pendia sobre o bem, foi quitada, não dá para, simplesmente, apagar da história todos os fatos que decorreram desde então, que fizeram incidir vários outros direitos de diversas outras pessoas, direitos estes igualmente garantidos pelo Estado e muitos deles inseridos na órbita dos direitos fundamentais. Não se pode esquecer, igualmente, que a ocorrência desses fatos se deu por responsabilidade dos proprietários, que detinham, à época, dívidas socialmente relevantes. Pagar, posteriormente, as dívidas não é ato suficiente para restituir os fatos ao estado em que antes se encontravam.
Nesse meio tempo, principalmente nos últimos seis anos, 68 famílias foram licitamente instaladas no local, investiram na produção, firmaram compromissos e estabeleceram seus projetos de vida. Devolver a posse das terras aos proprietários representa, ao mesmo tempo, interferir nessas outras esferas jurídicas, retirando dessas pessoas parte de suas vidas. Destaque-se que não se pode debitar a essas famílias, em nenhum aspecto, qualquer parcela de culpa pela situação, muito pelo contrário.
Então, cabe ao Estado cumprir a sua função política e jurídica de estabilizar a situação, conferindo a essas pessoas a titularidade da posse, com base nos preceitos jurídicos atinentes à Reforma Agrária, indenizando, de forma justa, os proprietários, até porque, em não o fazendo, estaria o governo agindo na contramão de sua obrigação, instituindo uma espécie de “antirreforma Agrária”, representada pela destruição de um assentamento, onde várias pessoas, coletivamente, vivem e produzem, promovendo-se, assim, a destruição de inúmeros valores sociais e humanos em favor de apenas um, a propriedade, desvinculada, inclusive, de qualquer motivação social.
Ainda que por absurdo se considere a possibilidade disso ocorrer, esse ato reverso da função social do Estado teria que ser, no mínimo, precedido do pagamento de indenizações, decorrentes dos prejuízos morais e materiais experimentados, a todos que se viram envolvidos numa situação que, hoje, apareceria como um engodo, patrocinado pelo INCRA e pelo então Presidente da República, Luís Inácio da Silva, sendo certo que o recebimento dessa indenização, diante da natureza alimentar que a integra, não pode ser submetido às iniciativas individuais de se recorrer ao Judiciário. As indenizações, ademais, precisam ser acompanhadas das obrigações de fazer pertinentes à moradia e demais meios de subsistência, como acesso à escola, ao trabalho etc.
Assim, na hipótese de se querer ir adiante com o processo de reversão do assentamento, o prejuízo mínimo necessário seria o do juiz, no próprio processo em que se discute a posse do bem, fixasse as obrigações que decorreriam ao Estado, que é parte no processo, vez que um dos interessados é o INSS, condicionando o cumprimento da reintegração à efetivação das medidas correspondentes, fixando desde já o valor das indenizações e o conteúdo das obrigações de fazer, com prazo específico, sob pena de, não sendo atendidas, declarar a expropriação do bem, fixando o valor a ser pago pelo Estado, a título de indenização, aos proprietários.
De todo modo, até por conta das muitas objeções de ordem processual que se podem vislumbrar com relação às proposições supra destinadas à imediata efetivação de indenizações aos assentados, o ideal é a preservação do assentamento e das relações jurídicas já consolidadas, levando adiante a desapropriação, para fins de Reforma Agrária, já iniciada.
Considerando o feixe de relações jurídicas envolvidas, o único efeito impossível de ocorrer é o que se anuncia da mera reintegração de posse, mediante ação policial, para retirada das 68 (sessenta e oito) famílias do local, afastando-as de seu sustento, conduzindo-as ao relento e negando-lhes a própria condição humana, com esquecimento de todos os fatos que as conduziram até o local e ao momento presente.
O desafio, no entanto, não está em encontrar fundamentos jurídicos para preservar os interesses envolvidos. O desafio é o de conseguir visualizar exatamente a ocorrência dessa contraposição jurídica de interesses, como se o direito de propriedade fosse o único valor a ser preservado, sobrepondo-se a qualquer outro interesse que, assim, nem jurídico seria.
A dificuldade é mais sociológica que jurídica. O que provoca nebulosidade na questão, turvando a vista, talvez seja o “medo” do que os exemplos das ações coletivas, iniciados por um processo de Reforma Agrária, produzam em termos multiplicadores, incentivando novas ações. Nesta perspectiva, importa muito mais destruir o assentamento do que, propriamente, defender a propriedade, até porque, conforme se anuncia, aos proprietários do terreno, onde se situa, ironicamente, o Sítio Boa Vista, propriedade é que não falta.


(*) Juiz do trabalho, titular da 3ª. Vara do Trabalho de Jundiaí. Professor livre-docente da Faculdade de Direito da USP. Membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

América Latina: o povo em movimento

Roberta Traspadini é professora da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) e da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF)


Para aqueles que acreditavam que chegamos ao fim da história com a etapa do domínio do capital financeiro internacionalizado, ao fim da luta de classes e ao fim das revoluções, a América Latina se apresenta como uma antítese.
A história real, ontem e hoje, é a do movimento dos povos na luta por sua libertação. Movimento cuja forma e o conteúdo não podem ser compreendidos através de um modelo predeterminado sobre o que é e como deve ser a luta revolucionária. São movimentos em movimento. Logo, as contradições quando aparecem, explicitam, na substância da luta de classes, as dificuldades reais vivenciadas por cada um dos povos latinos na luta cotidiana contra os opressores, exploradores.
No início do ano, vivenciamos três grandes mostras da força popular no continente.
Na Venezuela, a posse do presidente Hugo Chávez realçou o poder popular quando milhares de venezuelanos fizeram vigorar seu voto nas ruas e com sua voz clamaram, em alto e bom som, para toda América que Chávez estava presente, tardasse o tempo que fosse necessário para sua posse oficial. E fizeram juramento coletivo de seguir construindo um processo de mudanças estruturais da sociedade. Foi uma mostra real da conquista do poder e da luta popular para mantê-lo em suas mãos, mesmo tendo contra si um sistema mundial integrado para matá-lo.
No México, no dia 21 de dezembro, enquanto a mídia burguesa mundial se deliciava com a interpretação equivocada sobre o fim do mundo supostamente realçado pelos nossos ancestrais maias, os zapatistas saíram numa marcha silenciosa, com 40 mil participantes indígenas, cujo grito era evidente. Milhares de pessoas se uniram à luta zapatista. E não tinham dúvida nenhuma sobre o que reivindicavam frente à ode neoliberal dos governos mexicanos dos últimos 40 anos. A clareza do que querem, mediada pela certeza da sociedade na qual estão inseridos, fez do silêncio um grito real sobre as opressões/explorações.
A luta por outro mundo, necessário e possível, reforça, na particularidade histórica atual do povo mexicano, que não há em seu cenário político atual um nome partidário que possa abrir o horizonte de mudanças reais da tomada do Estado, através do voto, com voz popular. Isto não quer dizer que não acreditem na disputa do Estado, ou na tomada do Estado. Todo o contrário. Quer dizer que não acreditam que haja uma verdadeira disputa política no país, ou seja, um projeto partidário de direita contra um de esquerda, que possa colocar em movimento uma reação popular. Isso faz toda a diferença.
No Brasil, temos a luta do MST, que enfrenta muitas dificuldades frente ao novo modelo do capital, o agronegócio. Com sua existência e teimosia, o MST se prepara para realizar seu VI Congresso Nacional, cujos debates com a base já estão em curso e devem ser concluídos com um grande evento em janeiro de 2014. Neste mesmo ano, também comemorará seus 30 anos em movimento. Além da reforma agrária, o MST deu visibilidade a muitas outras lutas políticas da classe trabalhadora: educação, trabalho, terra, dignidade, cooperação para agroindústria autogestionaria e recuperou a agroecologia, sendo referência para muitos movimentos sociais no Brasil e em todo mundo. Afinal, resistir e acumular durante 30 anos enfrentando o capital é uma missão histórica!
Estas três histórias têm em comum a luta pela consolidação do poder popular. No conteúdo, a vitória e continuidade de Chávez no poder não é diferente da vitória e luta continuada do MST e do EZLN. Os movimentos sociais na Venezuela, na Bolívia e no Equador conseguiram, na disputa eleitoral, colocar nomes que legitimavam seus anseios. No México e no Brasil, as contradições políticas e econômicas sugerem mais cautela na análise sobre o que se tem e o que se quer.
Todas essas expressões de luta e poder popular expõem a clareza do referencial de classe desses movimentos, cuja construção popular gravita como o centro de suas ações.
No entanto, cada povo, com suas cores, suas misturas, seus sabores, expressa de forma única dito conteúdo de classe. A beleza dessas expressões está na clareza de suas ações. A opção não é por um ou por outro jeito. A opção é por todos os jeitos que manifestem, na convocatória da unidade, integração continental, que outro mundo possível está cotidianamente em construção em nossa América.


quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Para Unir as Esquerdas

                                                                 Boaventura de Sousa Santos

2013 será um desastre no plano social e imprevisível no plano político. Conseguirá o Governo criar a estabilidade que lhe permita terminar o mandato ou haverá uma crise política que obrigue a eleições antecipadas? Digamos que cada uma destas hipóteses tem 50% de chances de se realizar. Assim sendo, é necessário que os portugueses tenham a certeza de que a instabilidade política que possa surgir é o preço a pagar para que surja uma alternativa de poder e não apenas uma alternância no poder. Poderão as esquerdas construir tal alternativa? Sim, mas só se se transformarem e se unirem, o que é exigir muito em pouco tempo. À partida, as perspectivas são negativas e para as inverter é preciso coragem e criatividade políticas. Primeiro, é preciso eliminar dois sensos comuns partidários com muito pouco senso. O PS pensa que sozinho ganhará as eleições por maioria absoluta. É possível, mas, se estiver tal como está, poderá garantir alternância, mas não alternativa. Com um líder mal preparado, atado à troika por não ter projeto, mal disfarçando que considera inevitável a erosão dos direitos sociais e que, assim sendo, a direita está a prestar um favor ao PS, e mais preocupado em combater os rivais do que o Governo, o PS corre o risco de frustrar mais uma vez as expectativas dos portugueses, o que, sendo fatal para o PS (veja-se o caso do PASOK), será sobretudo fatal para o país. O PS tem congresso marcado para 2013 e tudo pode mudar, oxalá que para bem da democracia. Por sua vez, o pouco senso dos partidos à esquerda do PS consiste em estabelecer condições, aparentemente rígidas, para qualquer entendimento com o PS e apresentadas na forma que mais dificulta esse entendimento.
Se conseguirmos ultrapassar estes bloqueios, então haverá alternativa e não apenas alternância. Ofereço o meu contributo para a configuração de tal alternativa. Primeiro, as esquerdas devem centrar-se no bem-estar dos portugueses e não nas possíveis reações dos credores. A história mostra que o capital financeiro e as instituições multilaterais (FMI, BCE, Comissão Europeia) só são rígidas na medida em que as circunstâncias não as forçarem a ser flexíveis. Segundo, o que historicamente une as esquerdas é a defesa do Estado social forte: educação pública obrigatória gratuita; serviço nacional de saúde tendencialmente gratuito, ou seja, taxas moderadoras, sim, co-pagamento, nunca; segurança social sustentável com sistema de pensões assente no princípio da repartição e não no de capitalização; bens estratégicos ou monopólios naturais (água, correios) nacionalizados. As diferenças entre as esquerdas são importantes, mas não ofuscam esta convergência de base e foi ela que sempre determinou as preferências eleitorais das classes populares. É certo que a direita também contribuiu para o Estado social (basta lembrar Bismark na Prússia), mas fê-lo sempre pressionada pelas esquerdas e recuou sempre que essa pressão baixou, como é o caso, desde há 30 anos, na Europa. A defesa do Estado social forte deve ser a prioridade das prioridades e, portanto, deve condicionar todas as outras. Assim, o Estado social não é sustentável sem desenvolvimento e por isso esta deve ser a segunda prioridade a unir as esquerdas. Haverá divergências sobre o peso da ecologia, da ciência ou da flexissegurança no trabalho, mas o acordo de fundo sobre o desenvolvimento é inequívoco e esta é, portanto, a segunda prioridade a unir as esquerdas, já que, como a salvaguarda do Estado social é prioritária, tudo tem de ser feito para garantir o investimento e a criação de emprego. E aqui entra a terceira prioridade que deverá unir as esquerdas. Se para garantir o Estado social e o desenvolvimento é preciso renegociar com a troika e os restantes credores, então tal renegociação tem de ser feita com determinação. Ou seja, a hierarquia das prioridades torna claro que não é o Estado social que se deve adaptar às condições da troika, mas, ao contrário, que devem ser estas a adaptar-se à prioridade em manter o Estado social. Esta é uma mensagem que tanto os portugueses como os credores entenderão bem, ainda que por razões diferentes.
Para que a unidade assim criada entre as esquerdas tenha êxito político, há que considerar três fatores: risco, credibilidade e oportunidade. Quanto ao risco, é importante mostrar que os riscos não são superiores aos que os portugueses já estão a correr: empobrecer acorrentados à condição de periferia, fornecendo mão- -de-obra barata à Europa desenvolvida. Trata-se de um risco calculado destinado a pôr à prova a convicção com que o projeto europeu está a ser salvaguardado. A credibilidade reside, por um lado, na convicção e na seriedade com que se formular a alternativa e no apoio democrático com que ela contar e, por outro lado, no facto de o país ter mostrado que é capaz de fazer sacrifícios de boa-fé. Apenas não aceita sacrifícios impostos de má-fé, como se prova ter sido caso dos dois últimos anos: sacrifícios impostos como máximos apenas para abrir caminho para outros maiores. A oportunidade está aí para ser aproveitada. O BCE e UE dão sinais de que levam a sério o risco de desagregação da zona euro e das consequências que daí advirão. Chega a ser patético verificar que a troika só não abre a renegociação porque o Governo não a solicita. Basta ler as entrelinhas do que dizem os responsáveis (não os funcionários menores com o DNA modificado para só ver o Estado como inimigo). Ao nível mais alto sabe-se que é preciso tirar consequências do facto de o memorando não ter sido cumprido em aspetos decisivos (por exemplo, financiamento da economia), de serem claras as consequências perversas do que foi cumprido e de o contexto europeu se ter alterado. A oportunidade, para o ser, tem de ser aproveitada por aqueles a quem aproveita.

 

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Desafios da Democracia Participativa

                                                            Giovanni Allegretti, em  Le Monde Diplomatique - Brasil


O que os cientistas políticos franceses Yves Sintomer e Loïc Blondiaux chamam de "imperativo deliberativo";1 da modernidade impõe-se progressivamente entre administradores e dirigentes do planeta. Concretamente, trata-se de abrir as instâncias de poder ao diálogo, tanto político como social. Para explicar esse movimento, os cientistas políticos Leonardo Avritzer, brasileiro, e Boaventura de Sousa Santos, português, analisaram o círculo vicioso no qual estão presas as democracias modernas: a desconfiança suscitada pelo comportamento das instâncias representativas provoca um desinteresse pela participação ativa, considerada "inócua"; e incapaz de transformar a gestão pública.2 Curar essa "patologia"; típica das sociedades liberais implica a invenção de práticas que permitam sair do domínio discursivo e influenciar diretamente as escolhas governamentais. Esses processos não se limitam a modificar as relações entre os prestadores de serviços e os usuários/clientes. Eles constituem um meio de transformar a cultura política com o objetivo de favorecer o envolvimento concreto de todas as camadas da população. Compreendida dessa forma, a participação não teme o debate ou o conflito, pois a própria prática participativa valoriza os pontos de vista diferentes e a liberdade de expressão. É normal, contudo, que surjam tensões quando se abrem espaços de diálogo em benefício daqueles que foram por muito tempo oprimidos pelas maiorias políticas dominantes. Ademais, essas confrontações não são estéreis. Ao contrário: permitem debater e chegar a um consenso sobre os interesses gerais da comunidade. A "participação"; das populações se opõe, dessa forma, à inércia política batizada pelo sociólogo Antonio Tosi de "teoria administrativa das necessidades";3 – ou seja, a incapacidade das instituições de conhecer intimamente o conjunto de seus territórios e perceber as necessidades não manifestadas.
O crescimento das desigualdades e a mobilização multiforme das populações impõem novos desafios às cidades, para os quais não há uma resposta imediata. É por isso que, especialmente na América Latina e na África (ver artigo de Bachir Kkanoute, na página 21), a gestão municipal precisou transformar-se radicalmente. Não se trata apenas de um movimento neomunicipalista:4 a consolidação e difusão das inovações de base permitem modificar todas as esferas governamentais. O objetivo é instaurar um tipo de "federalismo solidário"; que parte "de baixo"; para reformar as relações entre as diferentes instâncias do Estado e reforçar o intercâmbio entre países e culturas diferentes. O mundo político local apresenta-se, assim, como o primeiro elo entre os atores da "sociedade civil"; e as instituições de representação. O movimento nacional pela reforma urbana (Fórum Nacional de Reforma Urbana, FNRU) no Brasil é um exemplo do papel que desempenha a experimentação local na transformação durável das políticas públicas. Em um país de urbanização acelerada e forte segregação espacial e social, o FNRU, criado em 1988, lutou contra a habitação precária e pela gestão municipal democrática. Na Assembleia Constituinte de 1988, o movimento conseguiu inscrever na lei fundamental o princípio segundo o qual a cidade exerce uma função social. Nessa luta, o movimento contou com o apoio de milhares de associações, sindicatos e reagrupamentos profissionais, mas também com a aplicação, em nível local, das inovações propostas. Graças a esse trabalho de campo adotado com sucesso por muitas municipalidades – com os riscos e perigos que implica –, o FNRU, em 2001, convenceu o Congresso brasileiro a votar (por unanimidade, e sob a presidência de Fernando Henrique Cardoso, impregnada de ideologia liberal) o "estatuto das cidades";. Esse instrumento jurídico urbano é hoje um dos mais audaciosos do mundo.

Participação esvaziada
Se por um lado os progressos são visíveis, por outro a extensão da democracia participativa depara com tentativas de cooptação em todos os continentes. A cientista política brasileira Evelina Dagnino evoca uma "convergência perversa";5 entre as aspirações das populações e certo credo neoliberal, notadamente explícita no processo pelo qual grandes instituições internacionais transformam a "participação local"; em desresponsabilização institucional e em redução do papel do Estado social. A promoção de parcerias com organizações do terceiro setor tende a destruir os aspectos públicos da solidariedade e substituí-los por mecanismos de caridade. De uma perspectiva utilitarista, a implicação dos cidadãos nesses mecanismos é considerada expressão do indivíduo e de suas preferências particulares. Por exemplo, os eleitos convidam os habitantes a comentar os projetos de renovação urbana – como vemos na maioria das capitais que instalam postos de informação e organizam belas exposições –, porém sem fazer os cidadãos participarem das decisões e escolhas. Da mesma forma, algumas ferramentas eletrônicas (como os fóruns de discussão de comunidades na internet) são usadas como "canal de comunicação"; entre cidadãos e administradores – contato virtual que permite que os gestores públicos interpretem as preferências da população como bem entenderem. No fim das contas, essas instituições buscam "dividir para melhor reinar";.
Um debate levado adiante pelo primeiro-ministro inglês David Cameron é ilustrativo: ele defende a importância do papel desempenhado pela "Big Society"; (comunidade de voluntários) na reforma do Estado de bem-estar social, ou seja, no processo de reduzir suas dimensões e terceirizar serviços. A perspectiva neoliberal também foi formulada de forma mais brutal pelo empreendedor indiano Narayana Murthy, por meio do aforismo que busca propagar: "Acreditamos em Deus. Todos os outros são apenas portadores de informação";. Nessa visão utilitarista da participação, os cidadãos não figuram como cogestores ou portadores de saberes; são apenas "informantes-chave"; para os estrategistas de comunicação ou marketing de administrações públicas.
É certo que a crise política pela qual atravessam as sociedades modernas favorece a confusão, e muitos administradores locais, progressistas ou liberais, não diferenciam uma aproximação da outra. Isso ocorre porque as constatações são as mesmas para uns e outros: 1) as instituições sociais e políticas (administrações, partidos, sindicatos, mídia, igrejas, ONGs...) teriam perdido a legitimidade; 2) a crise financeira atingiu as fontes públicas locais, em um contexto de "subsídio assimétrico";, no qual a descentralização das responsabilidades mais "sensíveis"; (social, de saúde, de infraestrutura) seria realizada sem recursos suficientes ou capacidade decisória real; 3) as necessidades sociais se multiplicariam na mesma proporção do aparecimento de soluções técnicas para elas. Com base nesses fatores, escolher entre as duas formas de aproximação com os cidadãos torna-se um ato político difícil, que afeta sua durabilidade. Assim, é necessário refletir sobre as práticas adotadas e esclarecer conceitos cuja ambiguidade possa ser um obstáculo, ou até mesmo o fracasso, a mudanças políticas concretas.
As leituras honestas do "imperativo deliberativo"; partem da constatação que, em uma sociedade fragmentada e tendencialmente individualista, convém ampliar o diálogo social para além dos "corpos intermediários"; já organizados (como associações e sindicatos). A ideia central dessa concepção é escutar também os membros informais e "emergentes"; da sociedade, voluntariamente ignorados pelos utilitaristas liberais. Essa "cidadania insurgente"; abarca os movimentos "rebeldes e contestatórios"; analisados pelo antropólogo norte-americano James Holston6 e as organizações "de solidariedade e formuladoras de projetos";, tais como as descritas pela socióloga australiana Leoni Sandercock.7 Estas últimas atuam de forma empírica no território, sem projeto preconcebido. Em ambos os casos, a dificuldade reside no fato de esses atores, ao trabalharem sob o princípio de rede, preocuparem-se mais com o "apoio mútuo"; do que com o papel inovador que poderiam desempenhar na transformação da sociedade.

Além do utilitarismo
O processo participativo não visa a um ganho utilitarista, e sim à valorização de cada indivíduo e de suas exigências sem renunciar às possibilidades de compartilhar espaços coletivos. Para evitar as armadilhas do utilitarismo liberal, deve-se, em primeiro lugar, valorizar o componente pedagógico da participação, ou seja, a prática dos interventores de se transformar por meio da escuta recíproca e da busca pelo lugar da diferença no processo, o que amplia o conhecimento e os sentimentos de coletividade e humanidade. Nesse sentido, os "cursos de autoformação sobre políticas públicas"; – que precedem as sessões de balanço participativo em 75 cidades da Coreia do Sul e também em grandes cidades brasileiras, como Fortaleza e Guarulhos – são instrutivos. Essas duas últimas cidades experimentaram os métodos de ensino-aprendizagem de Paulo Freire, que tendem a evitar a impressão dos cidadãos de ser "doutrinados"; pelos próprios administradores antes de participar das decisões.
Em segundo lugar, deve-se canalizar a participação também para a difusão de informação que os meios dominantes ignoram, o que supõe a constituição de redes alternativas de comunicação e, sobretudo, a vontade de "abrir as caixas-pretas"; das administrações públicas, em particular as que têm um forte caráter "técnico";. Em geral, o funcionamento dessas estruturas impede os cidadãos menos cultos de compreender o trabalho realizado e formular necessidades. É por isso que vemos nascer grupos de "observatórios da participação"; ou "fiscalizadores das promessas eleitorais"; em Camarões e no Brasil, por exemplo.
Em terceiro lugar, é preciso reformar as próprias ferramentas de participação a fim de limitar as possibilidades de cooptação. Se continuarmos a utilizar instrumentos que não permitem a evolução das negociações no decorrer do processo participativo, a maior parte dos dirigentes políticos continuará a ver os cidadãos como uma massa egoísta que formula demandas autorreferentes; e os eleitos jamais serão levados a abrir novos espaços de codecisão que, de um lado, criam solidariedade e, de outro, favorecem a melhor compreensão das contingências da gestão administrativa por parte das populações. É necessário, portanto, abandonar a separação entre saberes laicos e saberes especializados. O processo participativo deve suscitar não só a justiça cognitiva – que aproveita uma série de conhecimentos tirados do mundo dos tecnólogos –, mas também as práticas dos habitantes. Ademais, mobiliza o que Sintomer chama de saber político do cidadão, ou seja, a capacidade dos habitantes de elaborar estratégias que dialogam com as do mundo político. Paralelamente, os gestores públicos devem ser vinculados a essas mudanças, muitas vezes consideradas por eles ocasiões para colocar em dúvida certezas profissionais veiculadas por formações universitárias às vezes incapazes de autocrítica.
Um quarto fato para evitar as armadilhas do utilitarismo liberal é reconhecer os cidadãos (e suas organizações) como interlocutores concretos, o que implica a renovação dos modelos culturais nos quais se inserem os projetos locais. Existem de fato hábitos administrativos e ideias preconcebidas cuja reprodução é um obstáculo ao desenvolvimento endógeno durável e à integração de todas as camadas da população. Colocar em questão os modos de funcionamento e os hábitos das instituições é a parte mais difícil. A única possibilidade de chegar a resultados inovadores com o apoio dos atores sociais é formular projetos participativos claros para mostrar os custos e benefícios de cada uma das opções. É a dimensão cultural da participação: a sociedade deve tomar consciência dos princípios que são indispensáveis de se respeitar para alcançar uma verdadeira "durabilidade";.
Um quinto elemento para consolidar a gestão participativa é a adoção de estatutos jurídicos, cujo enquadro das novas aproximações não deve servir apenas de suporte "técnico";, mas também de fundamento cultural. De fato, sem a afirmação clara de valores fundamentais, a elaboração empírica de regras corre o risco de se desmontar progressivamente.


Ambiguidades

As discussões sobre os processos participativos avançam, mas ainda há ambiguidades a serem esclarecidas. Uma delas é que a complementaridade entre atores locais, públicos e privados, administrativos e populares deve ser real. Se as instituições locais são constantemente submetidas a níveis superiores de poder, acabam elas mesmas reproduzindo esse tipo de relação com suas bases quando delegam serviços sociais e contratam associações com poucos recursos e responsabilidades excessivas. É preciso sair desse círculo vicioso, na perspectiva de fazer frente comum (sociedade e instituições locais) para reivindicar do Estado mais redistribuição.
Outro ponto é a questão da escassez de recursos, que não pode justificar indefinidamente a impossibilidade de cumprir as reformas reivindicadas pelos cidadãos. O sucesso de milhares de "moedas locais"; no mundo, como as "economias do dom"; em vigor em numerosos territórios no Sul, são a prova de que é possível reintegrar o social à economia. Sem tais iniciativas, perdurará a ideia de que a economia é um universo com regras imutáveis, um campo no qual é impossível inovar.
Um terceiro ponto que permanece ambíguo é a incoerência das ações locais, uma verdadeira praga em muitas comunidades. Uma cidade baseada em grandes centros comerciais não é compatível com a vizinhança de pequenos núcleos imersos na natureza e que valorizam o pequeno comércio da proximidade. Se uma municipalidade deseja construir um desenvolvimento horizontal, deve recusar os guetos e as polarizações sociais.
Deve-se mencionar também a prestação de contas, que não pode ser reduzida apenas ao componente técnico da "transparência";. Ela supõe uma forte vontade política de responsabilidade em cada fase do processo de coelaboração e aplicação das escolhas.
Além disso, a participação não deve ser limitada às inovações técnicas, e sim pensada como um processo de profunda transformação cultural e política. Imaginar que o mundo político construído pela "representação"; nacional possa tirar proveito do processo participativo sem ceder uma parte de seu poder revela um mal-entendido ou uma quimera (ver artigo de Ernesto Ganuza, na página 20). Da mesma forma, a participação "esporádica"; suscita apenas falta de compromisso, embora recorrer a ciclos repetidos seja necessário para criar uma nova rotina, mais plausível.
Para gerar o encontro entre os cidadãos e as instituições, cada setor deve dar um passo em direção ao outro. Esse elemento também ainda pouco definido pede que cada parte pense no "bem comum"; e olhe para além de seus interesses específicos.
Finalmente, é perigoso acreditar que a integração social e a justiça redistributiva são efeitos colaterais automáticos de todos os processos participativos. As experiências latino-americanas e africanas mostram que, sem meios específicos que permitem a tradução concreta desses objetivos em ações, as desigualdades tendem a se reproduzir.
São poucos os casos em que as administrações prestam atenção a todas essas exigências. Há muita dificuldade em abandonar velhos hábitos da cultura política tradicional. Contudo, as mudanças são visíveis em um número crescente de municipalidades. Sousa Santos imagina um cenário em que uma parte do Estado se apresentará como um "novo tipo de movimento social";, compartilhando com os componentes mais dinâmicos da sociedade a aspiração à transformação política.8
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Bibliografia:
1 Yves Sintomer e Loïc Blondiaux. L’impératif délibératif [O imperativo deliberativo]. Paris: Colégio Internacional de Filosofia, 2010.
2 Leonardo Avritzer e Boaventura de Sousa Santos, Towards widening the democratic canon [Rumo à ampliação do cânone democrático], 2003. Disponível em www.ces.uc.pt/bss/documentos/Intro-DemoENG.pdf.
3 Antonio Tosi, "Urban theory and the treatment of differences: administrative practices, social sciences and the difficulties of specifics"; [Teoria urbana e o tratamento das diferenças: práticas administrativas, ciências sociais e as dificuldades das especificidades], International Journal of Urban and Regional Research, Montreal, v.15, n.4, p.594-609, dez. 1991.
4 O municipalismo é uma doutrina que preconiza a intervenção das municipalidades na economia.
5 Evelina Dagnino (coord.), Sociedad civil, esfera pública y democratización en América Latina: Brasil, Fondo de Cultura Económica, México, 2004.
6 James Holston, Insurgent citizenship: disjunctions of democracy and modernity in Brazil [Cidadania insurgente: disjunções da democracia e modernidade no Brasil], Nova Jersey: Universidade de Princeton, 2007.
7 Leonie Sandercock, Towards cosmopolis: planning for multicultural cities [Rumo às cosmópolis: planejamento para cidades multiculturais], Londres: John Wiley, 1998.
8 Boaventura de Sousa Santos, Reinventar la Democracia: reinventar el Estado, Madri: Clacso, 2005.


 

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Reforma agrária e Direito

Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária forma bacharéis em Direito na Bahia


14/01/2012

Cícero Araújo e Marília Mercês,
de Feira de Santana (BA),  Jornal Brasil de Fato


   
   Estudantes comemoram a matrícula no curso de Direito da Uefs - Foto: MST
No dia 11 de dezembro de 2012, no campus da Universidade Estadual de Feira de Santana-BA (Uefs), foram realizadas as matrículas da segunda turma do Curso de Direito para beneficiários da Reforma Agrária pelo Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), com 40 estudantes, futuros advogados e advogadas populares, provenientes do campo, de várias regiões do país e de diversos movimentos sociais camponeses, como Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Movimento de Luta Camponesa (MLC), Movimento das Comunidades Populares (MCP), Associações de Pequenos Agricultores, Fatres-Bahia e Pastoral Rural (PR).
Esta concretização, antes de tudo, significa uma conquista esperada pelos trabalhadores e trabalhadoras rurais em todo o país, que em constante luta por justiça social, abrem a possibilidade de que seus filhos e filhas adentrem de maneira legítima nas universidades públicas brasileiras. Especialmente, em cursos como o de Direito, que se dá de forma elitizada e excludente no ensino superior no país. Aos quais as elites agrárias historicamente lhes concedeu, unicamente, o “direito” a serem meros “lavradores da terra” e despossuídos do conhecimento formal e acesso à universidade. Outro significado que a abertura da turma da Uefs carrega é o de ser o resultado do acúmulo de forças de anos de embates políticos travados entre os sujeitos sociais do campo, a mídia e o judiciário conservador brasileiro, que, tentaram impedir que se consolidasse o projeto da turma de Goiás (Turma Evandro Lins e Silva), a qual diplomou em agosto 58 novos advogados e advogadas, em que cerca de metade já foi aprovada na prova da OAB. A turma da UFG foi a primeira desse gênero e uma parceria entre a Universidade Federal de Goiás, a Via Campesina e o Pronera.
Por estas questões, a nova turma de direito avança na elevação da democratização do ensino superior e formação acadêmica para preparação de advogados e advogadas populares que poderão atuar no campo dos direitos humanos, dos camponeses e na advocacia popular em todo o Brasil.
“A turma especial de Direito de assentados da reforma agrária representa um momento histórico da Universidade Estadual de Feira de Santana. Nós temos assumido um compromisso para que essa universidade seja cada vez mais democrática, cada vez mais sociorreferenciada e tenha uma formação de uma turma dessas. Nós entendemos que a universidade cumpre seu papel ao promover esta possibilidade de que pessoas oriundas de um movimento tão importante como o de reforma agrária possam estar aqui e se formar para continuar a sua luta por transformação social”, afirma o reitor da Uefs, José Carlos Barreto.
Em seu discurso na aula inaugural, o reitor ainda afirmou que “ a Uefs é um espaço de lutas e conquistas” e que “está em curso um projeto diferenciado do que a universidade viveu em mais de 30 anos”, desde a sua fundação.

Histórico
O curso foi demandado pelo conjunto dos movimentos sociais do campo, especialmente o MST, desde 2009. Foi apresentada a demanda ao colegiado do curso de Direito que aprovou e constituiu uma comissão para elaborar o projeto com base nas prerrogativas do Pronera. A Comissão foi composta pelos professores da Uefs, Cloves dos Santos Araújo e Paulo Torres que elaboraram e apresentaram o projeto da Uefs ao Pronera/Incra. O processo seletivo se deu de forma transparente, com edital publicado e divulgado amplamente com vestibular envolvendo todas as disciplinas das ciências humanas, exatas e da natureza, processo coordenado por meio do Setor de Seleção da Uefs mediante inscrição dos candidatos que apresentaram legitimidade nos requisitos previstos nas normativas do Pronera.
O curso será ministrado por meio do método da Pedagogia da Alternância, dividido em tempo-escola e tempo-comunidade. Os professores serão oriundos do próprio quadro da Uefs, contando com a seleção de novos professores, assim como colaboradores eventuais em parceria e cooperação com outras instituições de ensino superior, a exemplo da Universidade Estadual da Bahia (Uneb), que já atua nestes termos de parceria.
Além da efetivação das matrículas dos quarenta educandos no dia 11 de dezembro de 2012, houve também na noite do dia 13 do mesmo mês a aula inaugural do curso que contou com a participação da comunidade acadêmica da Uefs, principalmente dos alunos do curso de Direito e representados no Diretório Acadêmico e Diretório Central dos Estudantes da Uefs. A noite contou com a presença do ex -reitor da Universidade Nacional de Brasília (UNB), o professor José Geraldo de Sousa Junior, que conduziu a aula com o tema “Universidade e Inclusão Social”. Também participou da mesa no evento o Ney Strozake, dirigente do Setor Nacional de Direitos Humanos do MST e advogado popular da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap). Ney Strozake, em sua fala, chamou a atenção da turma para que não se distanciem dos vínculos orgânicos com os agricultores e agricultoras. “Como futuros advogados, devem direcionar sua prática profissional na defesa dos direitos humanos e dos camponeses em todo o Brasil, bem como na luta pelos direitos do conjunto da classe trabalhadora”, afirmou.
Indagado sobre o significado que este curso vem a ter no ambiente político–jurídico brasileiro, José Geraldo respondeu: “Eu diria que este curso, pelo impacto que ele traz e pelos antagonismos que ele suscitou, mobiliza duas dimensões muito grandes e que se combinam: a primeira é perceber que no processo social há novos protagonistas que ganharam força com a revolução da questão democrática, que na questão da terra, por exemplo, na capacidade assídua dos movimentos sociais, é simbolizada pelo MST. É importante relembrar que o um ministro de Estado chegou a dizer que o MST é o movimento social mais importante do século 20, e que esse protagonismo gerou nos movimentos sociais uma interpelação dos modos de organização da política, da economia e da vida da sociedade. É claro que isso implicou em sair da organicidade do movimento, a qualificação dos seus atores, e essa qualificação se deu nos vários níveis a que me referi, entre eles o nível técnico, quer dizer, no papel de exercitar a capacidade de atuar no campo da formação do ambientário da política e do judiciário”.
José Geraldo também apontou a importância da participação dos alunos ligados ao movimento de reforma agrária na consolidação de um outro tipo de universidade e ensino. “A entrada de vocês na universidade é uma expressão desse protagonismo que abre espaço de inclusão. O positivismo tem reduzido o conhecimento a ciência, o poder ao Estado, o Direito à lei. Este curso pode contribuir noutra significância”, apontou.
A aula inaugural não foi apenas uma aula, mas um marco na construção do próprio curso que se inicia e uma certeza de que as lutas dos trabalhadores e trabalhadoras rurais, por justiça social e democracia, também se dá no campo da academia, de abrir o caminho para que milhares de outros jovens possam encontrar no acesso ao ensino superior mais uma ferramenta para contribuir na construção de outra sociedade possível e diferente da que vivemos.

Cícero Araújo e Marília Mercês são militantes do MST e educandos do curso de Direito Uefs/Proner

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Nem Tudo está Perdido

 
                                                         Boaventura de Sousa Santos
 
Esperar sem esperança é a pior maldição que pode cair sobre um povo. A esperança não se inventa, constrói-se com alternativas à situação presente a partir de diagnósticos que habilitem os agentes sociais e políticos a serem convincentes no seu inconformismo e realistas nas alternativas que propõem. Se o desmantelamento do Estado social e certas privatizações (a da água) ocorrerem, estaremos a entrar numa sociedade politicamente democrática mas socialmente fascista, na medida em que as classes sociais mais vulneráveis (a grande maioria da população) verão as suas expectativas de vida dependerem da benevolência e, portanto, do direito de veto de grupos sociais minoritários mas poderosos. O fascismo que emerge não é político, é social e coexiste com uma democracia de baixíssima intensidade. A direita que está no poder não é homogénea mas nela domina a fação para quem a democracia, longe de ser um valor inestimável, é um custo económico e o fascismo social é um estado normal.

A construção de alternativas assenta em duas distinções cruciais: entre a direita da democracia-como-custo e a direita da democracia-como-valor; e entre esta última e as esquerdas (no espetro político atual não há uma esquerda para quem a democracia seja um custo). As alternativas democráticas hão-de surgir desta última distinção.
Os democratas portugueses, de esquerda e de direita, terão de ter presente, tanto o que os une como o que os divide. O que os une é a ideia de que a democracia não se sustenta sem as condições que a tornem credível ante a maioria da população. Tal credibilidade assenta na representatividade efetiva de quem representa (sistema político, sistema eleitoral, democracia interna dos partidos, financiamento de campanhas, etc.); no desempenho de quem governa (prestação de contas, punição da corrupção e do abuso de poder); no mínimo de ética política e de equidade para que o cidadão não o seja apenas quando vota mas também quando trabalha, quando adoece, quando vai à escola, quando se diverte e cultiva, quando envelhece. Na conjuntura que atravessamos, este menor denominador comum é mais importante do que nunca mas, ao contrário do que pode parecer, as divergências que a partir dele existem são igualmente mais importantes do que nunca. São elas que vão dominar a vida política dos portugueses e dos europeus nas próximas décadas.

Principais divergências.
Primeiro, para a esquerda, a democracia representativa de raiz liberal é hoje incapaz de garantir, por si, as condições da sua sustentabilidade. O poder económico e financeiro está de tal modo concentrado e globalizado que o seu músculo consegue sequestrar com facilidade os representantes e os governantes (por que há dinheiro para resgatar bancos e não há dinheiro para resgatar famílias?). Daí a necessidade de complementar a democracia representativa com a democracia participativa (orçamentos participativos, referendos, consultas populares e conselhos de cidadãos). No contexto europeu, não haverá democracia de alta intensidade sem a democratização das instituições e processos de decisão comunitários.

Segundo, crescimento só é desenvolvimento quando for ecologicamente sustentável e contribuir para democratizar as relações sociais em todos os domínios da vida coletiva (na empresa, na rua, na escola, na família, no acesso ao direito, na opção religiosa). Democracia é todo o processo de transformação de relações de poder desigual em relações da autoridade partilhada. O socialismo é a democracia sem fim.

Terceiro, só o Estado providência forte torna possível a sociedade providência forte (pais reformados com pensões cortadas deixam de poder ajudar os filhos desempregados, tal como filhos desempregados deixam de poder ajudar os pais idosos ou doentes). A filantropia e a caridade são politicamente reacionárias quando, em vez de complementar os direitos sociais, se substituem a eles.

Quarto, a diversidade cultural, sexual, racial, religiosa deve ser celebrada e não apenas tolerada.

sábado, 12 de janeiro de 2013

Unesco premia Frei Betto por contribuição à paz



A Unesco reconheceu nesta sexta-feira Frei Betto com o Prêmio José Martí 2013 por sua "contribuição à construção de uma cultura de paz universal e a justiça social e os direitos humanos na América Latina e no Caribe".
A diretora geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) escolheu Frei Betto - cujo nome completo é Carlos Alberto Libânio Christo - por recomendação de um júri internacional, informou em comunicado a organização com sede em Paris.
"Frei Betto (Belo Horizonte, 1944) foi eleito por seu trabalho como educador, escritor e teólogo, por sua oposição a todas as formas de discriminação, injustiça e exclusão e por sua promoção da cultura de paz e os direitos humanos", detalhou a Unesco.
O premiado, autor de mais de 50 livros traduzidos para vários idiomas, ingressou na ordem dos dominicanos aos 20 anos de idade, quando estudava jornalismo.
Durante a ditadura militar, o mineiro foi preso duas vezes, a primeira em 1964, que o levou a deixar a universidade, e a segunda entre 1969 e 1973, por colaborador com a organização guerrilheira Ação Libertadora Nacional (ALN), que dirigia Carlos Marighella.
Quando recuperou a liberdade, trabalhou durante cinco anos em uma favela da cidade de Vitoria.
Durante a década dos anos 1980, foi consultor sobre as relações Igreja-Estado de vários países como Nicarágua, Cuba, China, União Soviética, Polônia e Tchecoslováquia e na década seguinte integrou o conselho da Fundação Sueca de Direitos Humanos.
Adepto à Teologia da Libertação e militante de movimentos pastorais e sociais, foi assessor especial do ex-presidente Lula, entre 2003 e 2004 e foi coordenador de Mobilização Social do programa "Fome Zero".
O prêmio José Martí, criado em 1994, reconhece "contribuições extraordinárias de organizações e de indivíduos à unidade e a integração da América Latina e do Caribe baseada no respeito das tradições culturais e nos valores humanistas".
A cerimônia de entrega do prêmio vai acontecer no dia 30 em Havana, durante a terceira Conferência Internacional pelo Equilíbrio do Mundo, realizado na capital cubana de 28 a 30 de janeiro e marca o 160º aniversário do nascimento de José Martí.
O último vencedor do prêmio  foi o analista político argentino Atilio Alberto Borón, por sua contribuição à unidade e integração dos países da América Latina e do Caribe e por sua contribuição ao estudo e a promoção do pensamento do apóstolo da independência de Cuba, concluiu a Unesco.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

O Estado Social, Estado Providência e de Bem-Estar


A designação “estado social” tem várias genealogias. Foi com esta designação que Marcello Caetano tentou rebatizar o Estado Novo.  No virar do século XIX para o século XX foi a designação usada pelos socialistas para marcar a forma política do estado que faria a transição para o socialismo. É esta também a designação que consta da Constituição Portuguesa de 1976. Nas ciências sociais, e consoante as filiações teóricas, as designações mais comuns têm sido a de estado-providência ou estado de bem-estar.
É tendo em mente estas últimas designações que falo do estado social, um tipo de estado cuja melhor concretização teve lugar nos países europeus mais desenvolvidos depois da segunda guerra mundial. O estado social é o resultado de um compromisso histórico entre as classes trabalhadoras e os detentores do capital. Este compromisso foi a resposta a uma dolorosa história recente de guerras destrutivas, lutas sociais violentas e crises económicas graves. Nos termos desse compromisso ou pacto, os capitalistas renunciam a parte da sua autonomia enquanto proprietários dos fatores de produção (aceitam negociar com os trabalhadores temas que antes lhes pertenciam em exclusividade) e a parte dos seus lucros no curto prazo (aceitam ser mais fortemente tributados), enquanto os trabalhadores renunciam às suas reivindicações mais radicais de subversão da economia capitalista (o socialismo e, para o atingir, a agitação social sem condições face à injustiça da exploração do homem pelo homem). Esta dupla renúncia é gerida pelo estado, o que confere a este alguma autonomia em relação aos interesses contraditórios em presença. O estado tutela a negociação coletiva entre o capital e o trabalho (a concertação social) e transforma os recursos financeiros que lhe advêm da tributação do capital privado e dos rendimentos salariais em “capital social”, ou seja, num vasto conjunto de políticas públicas e sociais. As políticas públicas traduzem-se num forte intervencionismo estatal na produção de bens e serviços que aumentam a médio prazo a produtividade do trabalho e a rentabilidade do capital (formação profissional, investigação científica, aeroportos e portos, autoestradas, política industrial e de desenvolvimento regional, parques industriais, telecomunicações, etc., etc.). As políticas sociais são as políticas públicas que decorrem dos direitos económicos e sociais dos trabalhadores e dos cidadãos em geral (população ativa efetiva, crianças, jovens, desempregados, idosos, reformados, “domésticas”, produtores autónomos). Traduzem-se em despesas em bens e serviços consumidos pelos cidadãos gratuitamente ou a preços subsidiados: educação, saúde, serviços sociais, habitação, transportes urbanos, atividades culturais, atividades de tempos livres. Algumas das políticas sociais envolvem transferências de pagamentos de vária ordem financiados por contribuições dos trabalhadores ou por impostos no âmbito da Segurança Social (bolsas de estudo, abono de família, rendimento social de inserção, pensões, subsídios por doença e por desemprego). As transferências ocorrem, por via da solidariedade social institucionalizada pelo estado, dos mais ricos para os mais pobres, dos empregados para os desempregados, da geração adulta e ativa para as gerações futuras e os reformados, dos saudáveis para os doentes. O conjunto das políticas públicas e sociais tem uma tripla função.
Primeiro, cria condições para o aumento da produtividade que, pela sua natureza ou volume, não podem ser realizadas pelas empresas individuais, abrindo assim o caminho para a socialização dos custos da acumulação capitalista, razão por que a redução dos lucros a curto prazo redundará, no médio prazo, em expansão dos lucros.
Segundo, as despesas em capital social aumentam a procura interna de bens e serviços através de investimentos e consumos coletivos e individuais. Terceiro, garante uma expectativa de harmonia social porque assenta na institucionalização (isto é, normalização, desradicalização) dos conflitos entre o capital e o trabalho e porque proporciona uma redistribuição de rendimentos a favor das classes trabalhadoras (salários indiretos) e da população carenciada, fomentando o crescimento das classes médias, em todos criando um interesse na manutenção do sistema de relações, políticas, sociais e económicas que torna possível essa redistribuição. Enquanto gestor global deste sistema, o estado assume grande complexidade porque tem de garantir uma articulação estável entre os três princípios de regulação do estado moderno propícios a tensões entre si: o estado, o mercado e a comunidade. A estabilidade exige que o estado tenha certa primazia sem asfixiar o mercado ou a comunidade. Se, por um lado, o estado garante a consolidação do sistema capitalista, por outro lado, obriga os principais atores do sistema a alterarem o seu cálculo estratégico: os empresários são levados a trocar o curto prazo pelo médio prazo e os trabalhadores são levados a trocar um futuro radioso mas muito distante e incerto por um presente e um futuro próximo com alguma dignidade. O estado social assenta, assim, na ideia da compatibilidade (e até complementaridade) entre desenvolvimento económico e proteção social, entre acumulação de capital e legitimidade social e política de quem a garante; em suma, entre capitalismo e democracia.
Este modelo de estado e de capitalismo tem vindo a  ser atacado a partir dos anos 1970 até a seu cume nos anos 1990 por um modelo alternativo, designado por neoliberalismo, que assenta na substituição da primazia do estado pela do mercado na regulação social. É um ataque ideológico, ainda que disfarçado de uma nova racionalidade económica.
São muitas as razões para a crescente agressividade deste ataque, mas todas elas têm em comum o serem fatores que favorecem a transformação da ideologia em pretensa racionalidade. Eis algumas delas: o modelo neoliberal está centrado na predominância do capital financeiro (sobre o capital produtivo) e para ele só há curto prazo; ou o médio prazo é, quando muito, alguns minutos mais; com o tempo, os trabalhadores e seus aliados transformaram a opção socialista, de incerta e distante, em opção esquecida, e passaram a aceitar, como vitórias, perdas menores, que só são menores porque vão sendo seguidas por outras maiores; o trabalho assalariado alterou-se profundamente e transformou-se num recurso global, sem que entretanto se tenha criado um mercado globalmente regulado de trabalho; o “compromisso histórico” gerido pelo estado nacional transforma-se num anacronismo quando o próprio estado passa a ser gerido pelo capital global.
O estado social português nasceu em contraciclo, depois da revolução do 25 de Abril de 1974. Em parte por isso, nunca passou de um estado muito pouco ambicioso (quando comparado com os outros estados europeus), um quase-estado-providência, como o designei nos anos 1990, e nunca deixou de depender de uma forte sociedade-providência. Mas, mesmo assim, foi essencial na criação e consolidação da democracia portuguesa do pós-25 de Abril. É este o sentido da  sua consagração constitucional. E porque entre nós a democracia e o estado social nasceram juntos, não é possível garantir a sobrevivência de qualquer deles sem o outro.

                                                 Boaventura de Sousa Santos

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Cada direito é fruto de uma luta

Primeira turma do Projeto de Promotoras Legais Populares em Curitiba capacita 60 mulheres no combate à violência

07/01/2013

Camilla Hoshino
de Curitiba (PR), para o Jornal Brasil de Fato

No dia 15 de dezembro de 2012, 60 mulheres do meio popular, de universidades, de movimentos sociais e organizações sindicais concluíram o primeiro curso do Projeto de Promotoras Legais Populares (PLPs), realizado na cidade de Curitiba (PR). Batizada com o nome de Maria Amélia Teles, em homenagem à militante feminista que lutou contra a ditadura militar no Brasil e que está à frente do projeto das PLPs desde seu início, a primeira turma celebrou a formatura com discursos, homenagens, poemas e palavras de ordem.
“Quando uma mulher avança, nenhum homem retrocede”, gritavam as mulheres presentes no Salão Nobre da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR). As palavras simbólicas tinham o intuito de reafirmar um dos principais papeis das mulheres feministas: lutar por igualdade.
Foram cinco meses de curso, 20 encontros, totalizando 40 horas de estudos. Mais de 10 organizações apoiaram o projeto, entre sindicatos, órgãos públicos e entidades da sociedade civil. O curso capacitou mulheres debatendo temas como gênero, sexualidade, Lei Maria da Penha, mídia, violência, saúde e poder. Todos eles a partir de uma perspectiva da educação popular feminista. Com a colaboração de aproximadamente 30 facilitadoras, 60 histórias de vida se uniram para combater o machismo e a violência.   
Segundo o Mapa da Violência 2012, publicado no mês de abril pelo Instituto Sangari, 4,4 mulheres morreram em homicídios a cada 100 mil habitantes, o que deixa o Brasil entre os sete países do mundo com maior taxa de homicídios femininos, ficando atrás apenas de El Salvador,Trinidad e Tobago, Guatemala, Rússia, Colômbia e Belize. Dentro do país, um dos piores números se encontra no Paraná. Com 6,3 homicídios a cada 100 mil mulheres, o estado está em 3º no ranking nacional.
Paula Cozero, coordenadora do projeto em Curitiba, trouxe essas informações durante a cerimônia de formatura, mas deixou claro que o objetivo de dar visibilidade à situação não é vitimizar as mulheres, mas colocá-las como protagonistas das lutas sociais. “Cada direito é fruto de uma luta”, relembrou a advogada e mestranda da UFPR. E é a luta por direitos sociais, econômicos e políticos para as mulheres que as Promotoras Legais Populares iniciam no momento da sua formatura.
Colocando-se como resposta a uma realidade de violência, a formação de Promotoras Legais Populares representa uma tentativa de descentralizar as forças que atuam na defesa e no cumprimento do direito. O principal objetivo do curso é empoderar as mulheres para que reconheçam as situações de violência, os seus direitos e ferramentas legais de acesso à cidadania e combate à discriminação e violência de gênero. Além de ressaltar a intenção do projeto, Paula também deu ênfase à importância de trazer para o meio popular um debate que permaneceu enclausurado durante muito tempo na academia.

Ocupar, Resistir e Construir
Para a formatura das PLPs, o 3º andar do prédio histórico da UFPR foi decorado com um varal contendo a foto de cada uma das integrantes da turma Maria Amélia Teles. O rosto de 60 mulheres contrastou com os inúmeros retratos de homens juristas distribuídos pelos corredores da faculdade. No mês em que a UFPR comemora seu centenário, celebrar a capacitação de dezenas de mulheres em torno da luta feminista representa um marco e também um convite a uma transição mais profunda desse cenário acadêmico destoante. Essa é a opinião da integrante da Articulação Popular e Sindical de Mulheres Negras-SP, Magali Mendes, convidada pelas coordenadoras do curso para a formatura das PLPs em Curitiba.
Durante a cerimônia, Magali criticou, fazendo alusão às bandeiras dos movimentos sociais presentes no salão nobre no momento da cerimônia, os espaços centralizadores de poder da sociedade. “É preciso ocupar, resistir e construir dentro de espaços como a universidade pública, dominada historicamente por homens, brancos, pertencentes a uma elite”, disse.
No Brasil, a realidade dentro das universidades públicas faz parte de um palco político mais amplo, em que a mulher se encontra sub-representada, apesar de ser maioria da população. Atualmente, as mulheres não chegam a 20% nos cargos de maior nível hierárquico no parlamento, nos governos municipais e estaduais, nas secretarias do primeiro escalão do poder executivo, no judiciário, nos sindicatos e nem nas reitorias.
Em 2010, nas eleições gerais, as mulheres ficaram com 12,9% das cadeiras nas Assembleias Legislativas, com 8,5% das vagas na Câmara dos Deputados, com 9,8% no Senado e 7,4% nas câmaras municipais. Mas o fenômeno não é apenas nacional. No mundo, apenas 35 países (19%) contam com mulheres no Parlamento, enquanto que outras 152 nações (81%) não têm sequer uma mulher em seus Parlamentos, de acordo com a União Interparlamentar (IPU).
Os dados do Relatório 2009/2010 do Observatório Brasil da Igualdade de Gênero ainda mostram que, no setor privado, num total de 89.075 empresas as mulheres ocupavam apenas 21,4%dos cargos de chefia.
Magali Mendes, Promotora Legal Popular desde 1994, ano em que se formou no 1º curso realizado em São Paulo, explica a urgência do projeto que vem sendo construído e multiplicado pelo país. “O Brasil é um país continental, onde a pobreza é feminina, tendo cara, cor e sexo. A intenção dos cursos é capacitar cada vez mais mulheres para que percebam que a as leis podem e devem estar a nosso serviço”, diz.

Histórico
A história das Promotoras Legais Populares teve início na América Latina por meio da organização Flora Tristan, localizada no Peru. Em 1992, O Comitê Latino Americano e Caribenho em Defesa dos Direitos das Mulheres (Cladem), trouxe para o Brasil seminários a fim de discutir a implementação do curso no país. O desenvolvimento do projeto foi viabilizado com a contribuição inicial da União de Mulheres de São Paulo e do Grupo Themis, organização de direitos humanos atuante em assessoria jurídica, do Rio Grande do Sul.
A primeira experiência desenvolvida no Brasil aconteceu em 1992, em Porto Alegre (RS), e em 1994 o projeto foi levado para São Paulo. Além de estar presente em diversos estados como Rio de Janeiro, Pernambuco e mais recentemente no Paraná, em Curitiba e Londrina, o Projeto de Promotoras Legais Populares também é uma prática em outros países da América Latina, como Chile e Argentina.
Assim como nos outros locais, a partir da formatura, a luta das Promotoras Legais Populares se torna permanente, buscando superar as situações de discriminação e desigualdade identificadas no cotidiano. “Tornar-se uma Promotora Legal Popular é assumir a responsabilidade de lutar constantemente pela justiça, pela igualdade das mulheres e pela transformação da sociedade, é assumir uma responsabilidade com as mulheres que estão lá fora”, enfatiza Magali, que terminou sua fala na formatura criticando a forma como a sociedade desqualifica o feminismo e o papel das mulheres na promoção e exercício da cidadania.

Multiplicando a luta 
Para que o conhecimento construído durante o curso possa ser compartilhado no dia a dia do trabalho, das lutas sociais ou das organizações das quais fazem parte, o primeiro passo é o despertar da própria consciência das mulheres que integram o projeto e do reconhecimento como Promotora Legal Popular. Oengredi Mendes Maio dos Santos, assistente social, procurou o curso para que servisse de suporte e subsídio ao seu trabalho com catadoras de papel, na maioria mulheres que sofrem violência domiciliar. “Uma surpresa grande foi compreender porque eu estava naquele curso enquanto mulher. Além dos motivos que já tinha para o trabalho, em acreditar em uma sociedade diferente, foi importante para transformar a minha própria vida”, confessa.
Assim como Oengredi, a colega de turma Olga Ferreira de Souza Silva, cabeleireira e moradora da região metropolitana de Curitiba, deseja contribuir para que todas as mulheres avancem. “Agora estamos muito mais preparadas para instruir outras mulheres, pois conhecemos os direitos, os serviços e as políticas públicas a nosso favor”. Para Olga, uma das lideranças comunitárias de sua região, se tornar uma Promotora Legal Popular significa “contribuir para que outras mulheres possam sair do casulo e ser livres”, já que 6 em cada 10 brasileiros conhecem alguma mulher que já sofreu violência doméstica.
A Central de Atendimento à Mulher, por meio do Ligue 180, mostra a dimensão da violência doméstica sofrida pelas brasileiras. Em apuração realizada no primeiro semestre de 2012 pela Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), contatou-se que quase 60% dos relatos recebidos eram de violência diária contra a mulher, totalizando 19.171 casos. A violência semanal marca 21% dos registros, um total de 6.856 denúncias.
“O Direito tem sido um instrumento que estrutura e mantém um sistema injusto, desigual. As PLPs fazem uma enorme diferença quando buscam construir um Direito, com uma abordagem feminista, transformadora, que defenda todos os setores explorados da sociedade [...] Lembremos neste momento que a cada 24 segundos uma mulher é espancada e que a cada duas horas uma mulher é assassinada pela violência sexista, no Brasil”, relata Maria Amélia Teles, em sua mensagem encaminha às PLPs, especialmente para o momento da formatura.
Grata pela homenagem feita pela turma, que carrega seu nome no início de uma construção histórica em Curitiba, Amelinha, como assina em sua mensagem, termina sua carta fazendo um apelo às Promotoras Legais Populares do Paraná: “Espero que em Curitiba também seja realizado o movimento do abraço solidário ás vitimas de violência de gênero como forma de cobrar das autoridades e do poder público, as políticas públicas eficientes para enfrentar a violência. Só para informar em São Paulo, já realizamos o 3º Abraço Solidário. Amigas, obrigada por tudo. Sucesso na vida e sejam, onde estiverem, uma promotora legal popular [...] Beijos, Amelinha”.
Organizado apenas por mulheres e para mulheres, os cursos se tornaram um espaço importante para que as Promotoras Legais Populares se construam e se fortaleçam coletivamente. “Além de mais fortes, juntas, nós nos libertamos”, encerrou a oradora da turma, Lucilene Aparecida Soares, após a entrega dos diploma