Testamento da presença de Paulo Freire, o educador do Brasil. Depoimentos e testemunhos.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Testamento da presença de Paulo Freire, o educador do Brasil. Depoimentos e testemunhos. Ana Maria Araújo Freire (org). Vários Autores. São Paulo: 1ª Ed. Editora Paz & Terra, 2021, 464 p.
O centenário de Paulo Freire foi celebrado no mundo neste 19 de setembro, até pelo Google em ícone globalmente difundido, com a desonrosa exceção do calendário oficial do governo brasileiro que insiste e se revela em sua hostilidade ao maior educador contemporâneo, ainda assim patrono da educação do Brasil.
No que me toca diretamente, me sinto presente e leal ao destacado brasileiro. A convite de sua viúva e colaboradora Ana Maria Araújo Freire participei da obra comemorativa que organizou, junto com um seleto grupo de autores e autoras de depoimentos, reunidos neste livro ora Lido para Você.
A obra reúne, repito, o depoimento de intelectuais e personalidades cientificas, Conforme informa a Editora ela representa um “testamento da presença de Paulo Freire e mostra como o Patrono da Educação foi e ainda é fundamental para a educação, a pedagogia e principalmente para a democracia brasileira. A festa de aniversário de 100 anos não estaria completa sem este Testamento da presença de Paulo Freire, o educador do Brasil. Aqui, a organizadora, a educadora Ana Maria Araújo Freire, reúne personalidades que nos ajudam a reconstituir o convívio com o grande professor. Intelectuais renomados como Noam Chomsky ajudam a dimensionar a obra freireana e sua influência planetária. Políticos influentes como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mostram como o pensamento de Paulo Freire é fundamental para a construção de nossa democracia. E educadores como Luiza Erundina recuperam as lições que receberam dos profissionais que se dedicaram (e se dedicam) à educação pública com amor e luta.As mil e uma atividades de Paulo Freire tornaram-no uma lenda ainda em vida. Ele foi um teórico rigoroso que ousou criar e implementar um programa de alfabetização de adultos em 40 dias. Foi um professor de ensino básico que se exilou no Chile para não ser encontrado pelos gorilas da ditadura militar. Foi um acadêmico, professor da PUC-SP, que trabalhou na reconstrução da Guiné-Bissau recém-independente. Foi um gestor, secretário de Educação da cidade de São Paulo, que palestrou incontáveis vezes nos Estados Unidos. Sua trajetória é rica em histórias e ensinamentos. E seu legado não pode ser totalmente compreendido sem que também sejam ouvidas as pessoas que viveram junto com ele. Por isso Testamento da presença de Paulo Freire, o educador do Brasil é tão importante”.
Nela contribuem Aloizio Mercadante, Ana Mae Barbosa, Antonia Darder, Balduino Antonio Andreola, Cardeal Michael Czerny S.J., Celso Amorim, Claudius Ceccon, Donaldo Macedo, Eduardo Matarazzo Suplicy, Emir Sader, Fátima Bezerra, Federico Mayor Zaragoza, Felipe Camarão, Flávio Dino, Frei Betto, Henry Giroux, Isabela Camini, João Pedro Stédile, José Eduardo Cardozo, Leonardo Boff, Luiz Inácio Lula da Silva, Luiza Erundina, Marcelo Barros, Marcos Guerra, Mario Sergio Cortella, Mayra Cardozo, Noam Chomsky, Peter McLaren, Renato Janine Ribeiro, Silke Weber, Tarso Genro, Venício Lima, a própria Ana Maria (Nita Freire), assim como eu.
Meu depoimento no livro traz como título “Direitos Humanos e Educação Libertadora em Paulo Freire”. De propósito evoquei matéria de outra coluna minha nesse Lido para Você, sobre livro organizado também por Ana Maria e Erasto Fortes (Direitos Humanos e Educação Libertadora. Gestão Democrática da Educação Pública na Cidade de São Paulo. Paulo Freire Patrono da Educação Brasileira. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2019) – http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-e-educacao-libertadora/. Então, aludi a outro texto constante do livro “Educação, diversidade, direitos humanos e cidadania. Escritos e compromissos”. Organizadores: Lúcia Helena Cavasin Zabotto Pulino e Clerismar Aparecido Longo. São Paulo: Editora Letra e Voz, 2020, 214 p. (https://estadodedireito.com.br/educacao-diversidade-direitos-humanos-e-cidadania/), oportunidade em que conclui o meu escrito com uma nota evocativa: “Trata-se, diz freireanamente a Professora Pulino, no Prefácio, de forjar ‘a escrita e a leitura como direito e dever de mudar o mundo’, o que significa compreender, ainda com Paulo Freire, (Direitos Humanos e Educação Libertadora. Gestão Democrática da Educação Pública na Cidade de São Paulo. Paulo Freire Patrono da Educação Brasileira. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2019), livro ao qual em breve, pretendo fazer um mergulho evocativo que resgate a saga de Paulo Freire sob a perspectiva da interrelação entre Direitos Humanos e Educação Libertadora. Trata-se, em suma, conforme diz Erasto, na dedicatória manuscrita de seu livro com Nita Freire, certamente na expectativa de que eu o resenhe, de ‘compreender a educação como prática social humanizadora’, e com Paulo Freire, ‘assumir nossa causa comum, a dos Direitos Humanos’”.
Eis que, para cumprir minha promessa, e a convite da própria Nita Freire, que se propôs assumir a tarefa entre a sua alta responsabilidade política e sua amorosa lealdade, com a preparação da obra “100 anos do nascimento do educador pernambucano PAULO FREIRE: Práxis, Memórias e Testemunhos”, em edição histórica acolhida pela Editora Paz e Terra, concluí a leitura da obra e a trago como pano de fundo de minha contribuição.
Mas o fiz com uma nota prévia, recuperada de um momento de forte emoção para mim, então Reitor da UnB, quando pude marcar os eventos do jubileu da universidade (2012), com um conjunto de eventos marcados por muito simbolismo, entre os quais a outorga do título de Doutor Honoris Causa, post-mortem, a Paulo Freire.
Na Universidade de Brasília, a homenagem a Paulo Freire, que foi membro de seu Conselho Diretor (1985) coincidiu com a realização da Semana Universitária, evento em que a universidade se abria para o público externo, com mais de 500 atividades distribuídas nos quatro campi. O objetivo foi deslocar os papéis de aluno e professor para descobrir, como já Paulo Freire nos apontou, que a educação somente se faz no contato com o ser concreto, inserido em sua realidade histórica. Com a outorga do honoris causa a Paulo Freire, foi também uma oportunidade para fazer o encontro entre dois gigantes que permaneceram encarnados nas ações de educandos e educadores também quando experimentaram a “gestão democrática da educação pública”, conforme tão bem documentada na organização do livro Direitos Humanos e Educação Libertadora.
O livro, uma atualização bem organizada de um experimento que não pode ser considerado datado e que se faz necessário sobretudo na conjuntura de deliberado esvaziamento da função emancipatória da educação pública é, dizem os seus organizadores, “uma reunião de escritos e falas de Paulo Freire. Apresenta, sob um ponto de vista inédito, a experiência do educador como secretário de Educação da cidade de São Paulo, entre 1989 e 1991. A esses textos, acrescentaram-se outros, escritos por alguns daqueles que compartilharam com Freire o sonho de reinventar a escola da Rede Municipal paulistana e democratizar a educação pública de qualidade”.
A chave de leitura que Paulo Freire indica para extrair significado da obra está, em texto que ele justifica o seu título: “Direitos Humanos e Educação Libertadora”, na extensão de uma concepção muitas vezes lançada em seus trabalhos, segundo a qual a educação não transforma o mundo, transforma as pessoas que transformam o mundo. Por isso, em sua justificativa, ele recupera essa chave: “A educação não é a chave, a alavanca, o instrumento para a transformação social. Ela não o é, precisamente porque poderia ser”. Explicitando: “É exatamente porque a educação se submete a limites que ela é eficaz…Se a educação pudesse tudo, não haveria por que falar nos limites dela. Mas constata-se, historicamente, que a educação não pode tudo. E é exatamente não podendo tudo que pode algumas coisa, e nesse poder alguma coisa se encontra a eficácia da educação. A questão que se coloca ao educador é saber qual é esse poder ser da educação, que é histórico, social e político”.
Por isso que na Apresentação, Ana Maria Araújo Freire (Nita Freire) situa a proposta filosófica de Paulo Freire na sua perspectiva de autonomia no sentido utópico de “um inédito viável de humanização”, que pôde ser orientado por uma gestão apta a traduzir a compreensão “ético-político-antropológica de uma epistemologia crítico-educativo-conscientizadora, que, em última instância, tem como ponto central a humanização de todos e todas”, portanto, um programa para “dignificar as gentes, as pessoas”, sendo assim, substantivamente, uma política de educação em e para os direitos humanos.
Isso o confirma Paulo Freire. A Educação em Direitos Humanos pressupõe “compreensão política, ideológica do professor” para se constituir em “educação para os direitos humanos, na perspectiva da justiça, (que) é exatamente aquela educação que desperta os dominados para a necessidade da briga, da organização, da mobilização crítica, justa, democrática, séria, rigorosa, disciplinada, sem manipulações, com vistas à reinvenção do mundo, à reinvenção do poder”. Em suma, “Essa educação para a liberdade, essa educação ligada aos direitos humanos nesta perspectiva, (que) tem que ser abrangentes, totalizante, (que) tem a ver com o conhecimento crítico do real e com a alegria de viver”.
Reside nesse passo, a segunda motivação que me compromete com a obra e que dá sentido ao meu depoimento. Ou seja, essa apreensão que pode se encontrar entre Paulo Freire, de uma ligação entre educação, justiça, direito e direitos humanos, que não seja apenas uma evocação de sua originária formação em Direito, depois de um rápido ensaio inicial na advocacia.
Anoto que essa ligação foi desde logo estabelecida por Nita Freire. É dela a leitura que desvela uma “pedagogia dos direitos humanos” como proposta freireana de “inserção crítica dos homens e das mulheres nas suas sociedades ao possibilitar-lhes terem voz, dizerem a sua palavra, biografarem-se” (FREIRE, Ana Maria Araújo (Nita Freire). Acesso à Justiça e a Pedagogia dos Vulneráveis. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al. Organizador. Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação. Série O Direito Achado na Rua, vol. 8. Brasília: FAC/UnB Livros, 2017).
A meu ver, a notável apreensão dessa imbricação emancipatória se apresentou de forma inesperada quando recebi um pedido de Nita Freire que me solicitava referências jurídicas de uma possível relação que se pudesse estabelecer entre o pensamento do educador brasileiro, forte numa pedagogia de autonomia, e o direito. É que ela havia sido convidada a proferir uma conferência na Escuela del Servicio de Justicia, a Escola de Magistratura argentina, e gostaria de focalizar a sua apresentação pondo em relevo essa relação.
Diante do pedido de Nita, enviei-lhe duas dissertações de mestrado, ao final, fortemente citadas em sua conferência – “Acesso à Justiça e a pedagogia dos vulneráveis”; ou “O pensamento de Paulo Freire e sua relação com o Direito como prática para a libertação” – em base as quais desenvolveu os seus argumentos afirmativos da relação procurada (FREIRE, 2014): FEITOZA, Pedro Rezende Santos. O direito como modelo avançado de legítima organização social da liberdade: a teoria dialética de Roberto Lyra Filho. Dissertação apresentada em 2014, na UnB; GÓES JUNIOR, José Humberto de. Da Pedagogia do Oprimido ao Direito do Oprimido: Uma Noção de Direitos Humanos na Obra de Paulo Freire. Dissertação de Mestrado, Mestrado em Ciências Jurídicas, UFPB, João Pessoa, 2008.
Tal como exponho em outro escrito meu (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. O Direito Achado na Rua: Condições Sociais e Fundamentos Teóricos. Revista Direito e Praxis, Rio de Janeiro, vol. 10, n º 4, 2019, p. 2776-2817).
Não deixou, entretanto, de ser uma surpresa, rica e inesperada, acompanhar o modo como a conferencista estabelece a relação e sabe se valer das contribuições que lhe foram oferecidas, tanto mais valiosas quanto elaboradas por dois bem investidos do conhecimento e da prática que balizam O Direito Achado na Rua, para operar com as categorias formuladas por Roberto Lyra Filho e designar, na interconexão que logra estabelecer, entre Roberto Lyra Filho e Paulo Freire, entre o Direito e a Pedagogia da Autonomia, na sua leitura, tornada possível pela mediação de O Direito Achado na Rua. Percebe-se isso na conclusão que propõe (FREIRE, Ana Maria Araújo Freire (nita freire). Conferência proferida em Buenos Aires, em 25 de setembro de 2014, na Escola de Serviço de Justiça, em programa de especialização em Magistratura. www.odireitoachadonarua.blogspot.com, acesso em 03.02.2015):
“Por tudo que foi exposto torna-se possível asseverar, que, a relação de Paulo Freire com o Direito nega veemente a concepção tradicional do direito da Modernidade e se alia ___ talvez fosse mais correto dizer que ele, ao lado de outros intelectuais que enriqueceram o pensamento da esquerda mundial criaram um nova leitura do mundo, humanista e transformadora, dentro da qual meu marido concebeu uma teoria epistemológico-ético-político-antropológico-critica de educação, que está alinhada com a concepção do Direito Achado na Rua, a Teoria Dialética Social do Direito. Entretanto, cabe aqui uma ressalva: o jurista Roberto Lyra Filho, que embasa Feitoza e Góes, como também este meu trabalho, não cita Paulo Freire em nenhum dos seus mais de 40 livros. Porém, fica evidente, com uma simples leitura dos trabalhos deles, que Lyra sorveu princípios e utilizou algumas categorias fundamentais da teoria do educador brasileiro, seu conterrâneo”.
E agora, exatamente no embalo das mobilizações do centenário de Paulo Freire, um outro achado precioso vem corroborar essa ligação, repito, no grande brasileiro, entre educação, justiça, direito e direitos humanos. Trata-se de uma quase arqueologia. Com sabor de mística. O meu dileto colega José Eymard Loguércio|, que já havia com seu grupo de companheiros do Grupo Direito e Avesso (denominação do Boletim fundado em 1982 por Roberto Lyra Filho para organizar os resultados dos estudos da por ele denominada NAIR – Nova Escola Jurídica Brasileira, que levou à criação Brasil afora de inúmeros coletivos antidogmáticos de professores e estudantes de direito insatisfeitos com a ideologização do campo pelo paradigma do positivismo jurídico), preservando em fita VHS a última conferência de Roberto Lyra Filho, às vésperas de sua morte em 1986, preserva também, em notas datilografadas, a roda de conversa mantida pelo grupo com Paulo Freire, sobre conhecimento e ensino do Direito.
Diz Eymard, em nota emocionada:
“Compartilho com vocês, nestes 100 anos de Paulo Freire, a transcrição de um encontro em 25/05/1987 com Paulo Freire sobre ensino jurídico. Eu, à época, estudante na Puccamp, coordenava um grupo Direito e Avesso e fizemos uma roda informal com Paulo Freire sobre Ensino Juridico”
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Recorto do fac-simile da página 7, da transcrição, essa passagem singular:
“Vocês dizem que há uma certa dissociação entre o ensino do Direito e a realidade social. Para mim, ao contrário, há uma associação enorme entre Direito e a realidade, mas a realidade da classe dominante, a minha dissociação é entre Direito e a realidade social popular. Nesse sentido é que o positivismo deve, a meu ver, ser encarado, não como um método de ensino, mas como a positividade do direito atual em favor das classes dominantes. Vocês têm que levar em conta que tudo está tão bem feito e organizado, que inclusive o arcabouço do Estado está positivisticamente estruturado, e é por isso que existe uma perversidade nas estruturas”.
Ana Maria certamente desconhecia essa passagem de seu marido e co-autor com ela em muitos escritos. Mas acertou em cheio ao asseverar que a relação de Paulo Freire com o Direito nega veemente a concepção tradicional do direito da Modernidade no que ele concebeu como uma teoria epistemológico-ético-político-antropológico-critica de educação, que está alinhada com a concepção do Direito Achado na Rua, a Teoria Dialética Social do Direito.
Observe-se que o próprio Paulo Freire, no fragmento recolhido por José Eymard Loguércio e colegas, o confirma indicando um programa de direitos humanos para uma educação libertadora, na medida em que mudando as pessoas essas possam mudar a sociedade:
“Portanto, um sonho de universidade passa necessariamente pelo sonho de sociedade – e o sonho da universidade só se plenifica quando a sociedade radicalmente se transforma. Isso não significa que a gente tenha que esperar a mudança da sociedade para começar a ensaiar mudanças… Se a gente cair na estória de que só é possível modificar essa estrutura jurídica solidamente positivista – tanto sua compreensão como sua prática – depois que a sociedade capitalista mudar…”
Apesar do estranhamento de Paulo Freire com a prática da advocacia, curiosamente conforme dizem Ricardo Prestes Pazello e Tchenna Fernandes Maso (O Legado de Paulo Freire para a Assessoria Jurídica Popular. Revista Estudos do Sul Global nº 2), são exatamente os:
“juristas populares [que] vão buscar inspiração em seu legado para construir uma nova prática de militância no direito [nas] Assessorias Jurídicas Populares (AJP)”. De fato, dizem esses autores, o “pensamento de Freire é central para construir a ponte entre o trabalho dos juristas populares com os movimentos sociais [num] sentido ampliado de educação como prática da liberdade [para construir] um uso dialógico e crítico do direito, inserido em um horizonte de transformação social”.
Para esses autores, enquanto relaciona práticas do campo do direito que se colocam em apoio aos sujeitos oprimidos, a pedagogia da autonomia de Freire e seu método de conscientização, como que se inscrevem em fundamento do afazer da assessoria jurídica popular. Com efeito, eles dizem:
“Como eixos políticos, a AJP atua: em uma perspectiva crítica do direito que pode ser traduzida, no geral, como um uso tático do direito, podendo se exemplificar na litigância que se vale da normativa progressista, sobretudo após a Constituição de 1988 ou no uso relido do direito, principalmente por magistrados, promotores, defensores compro em todas as suas dimensões e potencialidades; b) na educação popular, por meio da práxis jurídica insurgente como contribuição para o processo de organização das massas, a partir da luta por condições fundamentais à vida do povo; e na formação política necessária para uma ação que promova transformações estruturais na sociedade”.
E eles continuam:
“A Pedagogia do oprimido, é, portanto, o livro de cabeceira dos sujeitos da AJP, é nele que esses atores encontram formas de enfrentar as contradições do capital nos territórios que atuam conseguindo estabelecer com as comunidades as relações de seus conflitos com a totalidade e a superação da alienação que afeta a ambos. A noção de dignidade humana, a ação como prática da libertação, o educar como ato de amor são o método para que esses sujeitos rompam com as categorias abstratas do direito em sua ação concreta, tornando a educação popular o carro-chefe da transformação em que os direitos humanos serão ressignificados”.
Ainda sobre essa influência e o método, esses Autores pontuam:
“Quando esses sujeitos da AJP vão ao territórios, ajudam a decodificar a realidade e estabelecer a comunicação, construindo os caminhos para a educação política em sua prática. Esse trabalho é feito por meio da construção de temas geradores que representam as totalidades a serem problematizadas. Dessa forma o método da AJP, inspirado em Freire, permite construir uma ação com intencionalidade, calcando a conquista do direito em caminho maior, porque estratégico, o de um projeto político de superação”.
Retomo Nita Freire quando ela estabelece a incindível ligação entre a “teoria epistemológico-ético-político-antropológico-critica de educação, que está alinhada com a concepção do Direito Achado na Rua, a Teoria Dialética Social do Direito”. É exatamente essa ligação, explícita, que fundamenta, na Faculdade de Direito, a institucionalização da Assessoria Jurídica Popular Roberto Lyra Filho. Colocando na mesma mesa dialógica Freire e Lyra Filho, os proponentes do projeto o inserem na modelagem segundo a qual “a Assessoria Jurídica Universitária Popular, por ser um projeto de extensão, tem, em sua essência, o condão de ser um braço da educação popular dentro da universidade, tornando-se um ‘instrumento indispensável à produção de um saber emancipatório e contextualizado com o seu tempo e espaço’ (SOUSA; COSTA; FONSECA; BICALHO: 2010). De forma concreta e objetiva, a AJUP, como uma assessoria, faz parte de todo o processo de tomada de consciência e de reação de sujeitos frente a conflitos fomentados pela própria relação injusta na sociedade. O acompanhamento da questão problema, desde a relação dos sujeitos envolvidos às resoluções encontradas, é de suma importância técnica, no que se refere à educação popular, mas também, política e metodologicamente, para quem está compreendendo e mudando a relação dos próprios conflitos” (SOUSA, Adda Luisa de Melo; MACÊDO, Gabriel Remus; CARILHO, Jana Louise Pereira; SILVA, Kelle Cristina Pereira da; PRÓBIO, Marcos Vítor Evangelista; BERALDO, Maria Antônia Melo; RODRIGUES, Moema Oliveira. Educação Popular e Práxis Extensionista Transformadora: a ação da Assessoria Universitária Popular e O Direito Achado na Rua. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (orgs) O Direito Achado na Rua vol. 10: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora UnB/Editora da OAB Nacional, 2021, p. 611-622).
Resgato a conclusão de um engajamento que se fortaleceu desse enlace (cf. PINHEIRO, Carolina de Martins; PASSOS, Luisa de Marillac Xavier dos; BENÍCIO, Miliane Nogueira Magalhães; BICALHO, Mariana de. “Eu, Sujeito de Direitos? Me Conta Essa História”. O Caso da Comunidade Tororó, do Direito à Educação e a Educação do Direito: uma reflexão sobre Educação, Direito e cidadania. In COSTA, Alexandre Bernardino (Organizador). A Experiência da Extensão Universitária na Faculdade de Direito da UnB. Vol. 3, Coleção “O Que se Pensa na Colina”. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, 2007, p. 123-169):
“Aprendemos que querer produzir conhecimento de forma horizontal significa saber e poder dialogar. Chamamos a responsabilidade para nós ao aceitarmos trabalhar de forma inovadora a demanda da comunidade do Tororó e levamos a sério a citação de Paulo Freire que abre esse desabafo em forma de conclusão. Contudo, fomos severos na nossa interpretação e tememos, em alguns momentos, afirmar nossa história perante os tororenses. Queriamos ser um deles e não éramos. Não queríamos estabelecer relações verticais, mas nos percebíamos como referência atroz. Quisemos ser humildes, sob o risco de não estarmos abertos para a troca de experiências, e por vezes nos negamos enquanto estudantes universitários ou profissionais formados.
O projeto Tororó nos ensinou que o processo pedagógico não anula o papel jurídico em um processo emancipatório de construção de cidadania. A percepção da necessidade de afirmação das nossas subjetividades não se desvencilha da noção moderna de identidade, de reconhecimento do papel social que cada profissão exerce. Trata-se de uma dimensão a mais e não uma substituição.
Por isso, possível hoje conceber a dimensão pedagógica do direito achado na rua. No caso do Tororó, descobrimos a importância de trabalhar nas bases do direito achado na rua com grupos ainda não conscientes de sua condição coletiva de direitos não exclui a possibilidade de trabalhar problemas comunitários, mesmo que estes ainda não possam ser demandados com a força de um movimento social formado. Em outros casos, de assessoria jurídica popular a movimentos sociais consolidados, fica a reflexão sobre a importância de trabalhar a dimensão pedagógica do direito achado na rua para que a emancipação social seja articulada entre a identidade de grupo e a subjetividade de cada pessoa que dele faça parte ou com ele interaja.
A história não termina aqui. O que aprendemos continuamos a desenvolver em espaços e tempos ainda pouco delineados. Mas fica a certeza de que a experiência do Tororó nos servirá de fonte e estímulo para atuarmos no campo da assessoria jurídica popular. Ao trabalhar o direito pelo ângulo da rua e da pedagogia percebemos o processo de afirmação de nossa identidade e de nossas subjetividades, dois níveis de ação e reflexão imprescindíveis para fortalecer um grupo e seus integrantes; fundamentais para a abertura franca ao diálogo freireano e à assessoria jurídica popular realmente emancipatória”.
Com certeza, a história nem começa, nem termina aqui. Ela se orienta por um exigente aprendizado, feito de evidentes ganhos intersubjetivos, na UnB, proporcionados por essa incindível ligação entre O Direito Achado na Rua (Roberto Lyra Filho) e a Pedagogia da Autonomia (Paulo Freire). Mas cada vez mais entre o direito como emancipação e o pensamento interpelante de Paulo Freire.
Mais fortemente quando o apelo ao Direito parte dos Movimentos Sociais, atentos às exigências de processos formativos para adensar os protagonismos dos sujeitos que neles se inscrevem. Nesse passo, ou porque diretamente suscitando as dimensões metodológicas que trazem o jurídico e o seu ensino para o chão da realidade que desafia os saberes, conforme constato nas frequentes jornadas universitárias em defesa da reforma agrária – Jura, no caminho que a extensão abre para o diálogo acadêmico com entidades desse campo – MST, Via Campesina – criando espaços de reflexão sobre a epistemologia e a metodologia freireanas apropriadas aos processos dialógicos e afetivos que o direito proporciona à emancipação, a exemplo da roda de conversa instalada no ambiente da Universidade Federal de Rondonia, sobre o tema “O Direito Achado na Rua e o Método Paulo Freire no Ensino do Direito” – https://www.youtube.com/watch?v=wL8vpwLyOq4. Seja quando abre pautas acadêmicas para a reflexão avançada em pós-graduação, nesse contexto específico da relação entre formação em direito e em direitos humanos tendo como horizonte epistemológico-político questões suscitadas por movimentos sociais.
Neste último caso, anoto a dissertação de mestrado defendida por Euzamara de Carvalho (Via Campesina, Comissão Pastoral da Terra) – “Educação em Direitos Humanos para o Enfrentamento da Criminalização dos Movimentos Sociais do Campo” – até para pôr em relevo, diz ela “o ‘humanismo’, evocado por Paulo Freire como sendo necessário à efetividade das práticas educativas” (conferir minha Coluna Lido para Você http://estadodedireito.com.br/educacao-em-direitos-humanos-para-o-enfrentamento-da-criminalizacao-dos-movimentos-sociais-do-campo/).
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua |