segunda-feira, 12 de junho de 2017

Resenha do artigo "A expansão semântica do acesso à justiça e o direito achado na assessoria jurídica popular", por estudantes de Pesquisa Jurídica na UnB

Resenha: CORREIA, Ludmila Cerqueira; ESCRIVÃO FILHO, Antonio; SOUZA JUNIOR, José Geraldo. A expansão semântica do acesso à justiça e o direito achado na assessoria jurídica popular. In: REBOUÇAS, Gabriela Maia; SOUSA JUNIOR, José Geraldo; CARVALHO NETO, Ernani Rodrigues (Org.). Experiências compartilhadas de acesso à justiça: Reflexões teóricas e práticas. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2016.


Autoras e autores: Alyne Maria Figueira de Alencar; Ana Luísa Domingues Galvão; Camila Almeida Ferreira; Carlos Eduardo Silva Barbedo; Carlos Henrique da Silva Figueiredo; Diogo da Silva Ferreira; Égon Rafael Oliveira; Gustavo Galassi; Jhonas de Sousa Santos; João Mário Ribeiro Santos; Julyane Laine Gomes da Silva; Mariana Maciel Viana Ferreira; Myllena Cristina Araujo de Moura; Samya Trinie da Silva S. Costa; Victor Vicente. Brasília.


1. INTRODUÇÃO

A relatoria apresentada à disciplina de Pesquisa Jurídica tem como objetivo discutir o tema Assessoria Jurídica Popular. A premissa inicial versava sobre a apresentação do texto (produzido por Ludmila Cerqueira Correia – Universidade Federal da Paraíba; Antonio Escrivão Filho – Universidade de Brasília; e José Geraldo de Sousa Junior – Universidade de Brasília) “A expansão semântica do acesso à justiça e o direito achado na assessoria jurídica popular”, que compõe os escritos da parte I do livro “Experiências compartilhadas de acesso à justiça: Reflexões teóricas e práticas”, onde a autora e os autores propõem uma reflexão teórica a respeito do acesso à justiça através da experiência da assessoria jurídica popular.
Sabendo da extensão e importância do tema, buscamos, no trabalho apresentado aqui, a articulação, dessa perspectiva inicial, com discussões correlatas. Assim, somamos os escritos de Boaventura de Sousa Santos, expoente na discussão de acesso à justiça e pautas de cunho democratizante e outros pensadores que dialogam com o tema e suas ramificações. Logo, o presente trabalho irá abordar e delinear as principais características da assessoria jurídica popular e algumas de suas possíveis intersecções.
Para isso o trabalho foi dividido em: Para uma revolução democrática da justiça; O direito na concepção de “O Direito Achado na Rua”; Deslocamentos analíticos para a compreensão do acesso ao direito e à justiça; Reflexões a partir da assessoria jurídica popular; e O Direito Achado Na Rua e a assessoria jurídica popular.

2. PARA UMA REVOLUÇÃO DEMOCRÁTICA DA JUSTIÇA

2.1. A politização do Direito

Um dos maiores impasses da atualidade é a relação conflituosa entre perguntas fortes e respostas fracas, segundo Boaventura de Sousa Santos. Assim, no que tange ao direito, faz-se o seguinte questionamento forte: “Se o direito tem desempenhado uma função crucial na regulação das sociedades, qual a sua contribuição para a construção de uma sociedade mais justa?” (SANTOS, 2011, p. 25). A resposta fraca para a indagação em tela consiste em focalizar a importância do Estado de direito e das instituições jurídicas para garantir o desenvolvimento econômico. Nesse sentido, a busca por uma resposta forte exige o alargamento dessa concepção hegemônica de Estado monopolizador da produção normativa, de forma a buscar um novo senso comum jurídico que possibilite a emancipação social.
O neoliberalismo que se verifica na contemporaneidade clama por um sistema judiciário eficiente, que confira segurança jurídica aos negócios. As reformas pelas quais passa a Justiça, então, são orientadas pelo ideal de rapidez, servindo seletivamente aos interesses econômicos de entes como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Na contramão desse movimento situa-se outro campo, constituído por cidadãos que veem no direito um instrumento de busca de suas justas aspirações (SANTOS, 2011). O que esse setor contra-majoritário enxerga é a exclusão social, a precarização do trabalho, como se verifica nos recentes projetos de reforma e na violência opressora. Boaventura de Sousa Santos denomina essa realidade a partir da noção de fascismo social (IBIDEM).
Nos últimos anos, esses cidadãos organizaram-se em movimentos sociais, criando uma nova base para a reivindicação de direitos. Utiliza-se, então, o exemplo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) para denotar o que o autor define como “legalidade cosmopolita ou subalterna” (SANTOS, 2011, p.22). Esse movimento passou a dar um novo sentido a sua luta, incorporando os institutos jurídicos como os de função social da propriedade. Verificou-se a utilização dos instrumentos hegemônicos de forma não hegemônica, mas, sim, para o atendimento das demandas por justiça social.
Ainda nesse pleito, os movimentos sociais lançam luz sobre outra ideia de muita relevância. Evidenciam que, para além da procura efetiva de direitos, existe uma procura suprimida. “É a procura daqueles cidadãos que têm consciência dos seus direitos, mas que se sentem totalmente impotentes para os reivindicar quando são violados” (SANTOS, 2011, p.23). O titular do direito violado sente-se esmagado, oprimido pela opulência da linguagem jurídica, pela luxuosidade dos prédios, pela complexidade do processo. Esse é um distanciamento socialmente construído e que, se considerado, deve levar a uma grande revolução do sistema judiciário.
Nesse contexto, é de suma importância o questionamento a respeito de que tipo de mobilização política pode ser feita para sustentar a mobilização jurídica de aprofundamento democrático. Focaliza-se, então, uma mudança recíproca, de cunho jurídico-política, baseada em profundas reformas processuais; novos protagonismos no acesso ao direito à justiça; pluralismo jurídico; revolução na formação do profissional do direito; uma relação do poder judicial mais transparente com o poder político e a mídia, entre outros (SANTOS, 2011).
Portanto, é fundamental que o sistema judicial afaste a posição de independência corporativa rígida para assumir uma postura engajada, angariando aliados na sociedade e abandonando o isolamento a fim de buscar a articulação com outras organizações e instituições para melhor realização da justiça social. A politização do direito, nesse sentido, consiste em aumentar o nível de tensionamento na relação com outras instâncias de poder, adequando-se ao ideal de sistema jurídico e judicial em um Estado Democrático de Direito.

2.2. As três ondas do acesso à justiça

Objetivando sua universalização, o acesso à justiça tem passado por grandes transformações em âmbitos estrutural e processual nos últimos 50 anos (SANTOS, 2011). Em um estudo sociológico deste movimento histórico, Cappelletti e Garth apontam 3 grandes “ondas” no desenvolvimento do acesso à justiça, e que pautaram a luta por este direito.
A primeira onda, chamada por Cappelletti e Garth de “assistência judiciária para os pobres” (1988, p.31), compreenderia o processo em que as sociedades ocidentais buscariam “proporcionar serviços jurídicos para os pobres” (IBIDEM). De acordo com Cappelletti e Garth, a tecnicidade que as práticas jurídicas adquiriram exigiram um conhecimento cada vez mais especializado e, por isso, cada vez mais distante da realidade das classes mais pobres, cenário que a primeira onda almejaria mudar. A partir dos avanços desta onda, “o apoio judiciário deixa de ser entendido como filantropia e passa a ser incluído como medida de combate à pobreza” (SANTOS, 2010, p. 31).
A segunda onda se diferiu da primeira no ponto em que buscava a representação de interesses coletivos e difusos, se opondo ao esquema tradicional de resolução de processos, que se baseava no contraponto entre duas partes de caráter individuais (CAPPELLETTI & GARTH, 1988). Cappelletti e Garth ainda afirmam que este movimento está fortemente vinculado com o caráter de política pública que muitos destes litígios adquiriram e que a legitimação de grupos os quais representam interesses coletivos se deu neste contexto. Assim “a visão individualista do devido processo judicial está cedendo lugar rapidamente, ou melhor, está se fundindo com uma concepção social, coletiva” (CAPPELLETTI & GARTH, 1988, p.51).
A terceira e última onda alia pontos e conquistas das duas anteriores, porém as apresenta como algumas dentre várias possibilidades, já que estas estão estritamente vinculadas a uma busca por representação, individual na primeira onda e coletiva na segunda (CAPPELLETTI & GARTH, 1988). A terceira onda surge à procura da ampliação da concepção de acesso à justiça, propondo uma gama maior de reformas, considerando os tribunais como parte de uma rede e admitindo formas alternativas de resolução de litígios (SANTOS, 2011, p. 31).

2.3. As Defensorias Públicas

Ao discorrer sobre as defensorias públicas, Boaventura de Sousa Santos enumera seus objetivos, contidos em sua concepção: a orientação pela defesa da população mais encarecida e a universalização do acesso. Ambos dialogam com os movimentos das ondas de acesso à justiça. Um modelo ideal de defensoria pública, como está prevista a atuação desta instituição no Brasil, carregaria consigo uma série de vantagens potenciais, como “universalização do acesso […], assistência jurídica especializada […], diversificação do atendimento e da consulta jurídica […], e ainda, atuação na educação para os direitos” (SANTOS, 2011, p.33).
Obviamente que estas vantagens nem sempre se traduzem em vantagens reais. A limitação do atendimento, as diferenças de estruturas funcional e orçamentária nos diversos estados da federação e a sobrecarga dos defensores públicos são apenas alguns dos obstáculos apontados por Sousa Santos. Há ainda a problemática que diz respeito a juridicidade da defensoria pública e de sua atuação: a Ordem dos Advogados do Brasil pleiteia a competência de processos individuais enquanto o Ministério Público atua na direção dos processos coletivos e difusos.

2.4. Custas judiciais

Talvez o maior desafio enfrentado por um projeto de universalização do acesso à justiça ainda seja o dos custos envolvidos em um processo judicial. A disparidade existente entre os custos das diversas Unidades Federativas traduz uma carência de padrões nos critérios envolvidos (SANTOS, 2011). Mas não é apenas isso, Sousa Santos aponta também a falta de transparência da legislação, a existência de políticas que oneram classes economicamente inferiores em alguns estados e a distorção entre valores praticados nas 1ª e 2ª instâncias*. Como soluções para estes problemas, Sousa Santos aponta a padronização dos valores envolvendo o sistema judiciário e, principalmente, o aumento do estímulo a outras iniciativas, alternativas às resoluções nos tribunais.

2.5. Modelos de iniciativas de assessoria jurídica popular

Apresentando como modelos alternativos, Santos demonstra o sucesso e importância de inciativas como as promotoras legais populares, as assessorias jurídicas universitárias populares, a capacitação jurídica de líderes comunitários e a advocacia popular. Cada uma possui um enfoque, porém se encaixam dentro de uma proposta geral de sistema judiciário alternativo, que está intimamente ligado à realidade social e que busca a resolução de litígios fora dos tribunais de justiça e a emancipação de seus participantes através do conhecimento jurídico. Santos descreve modelos organizacionais de assessoria jurídica popular. Nessa descrição, é digno de nota, o avanço histórico deste tipo de atividade a partir da transição democrática. Nota-se também um tom otimista do autor (em 2010). A assessoria jurídica popular transita de campo temático: inicialmente com ênfase nos direitos sociais, passa a focalizar direitos coletivos. Há avanço quantitativo e qualitativo das organizações prestadoras de assessoria jurídica popular. Nas defensorias públicas, aumento do quadro de pessoal, do número de entes federativos que a prestam, positivação legal e constitucional, autonomia funcional e financeira. Por fim, é possível perceber na sociedade civil a ampliação do número de atendimentos e dos laços com o setor público, um maior nexo entre a práxis social e o tripé universitário ensino-pesquisa-extensão.

3. O DIREITO NA CONCEPÇÃO DE O DIREITO ACHADO NA RUA

É possível observar, no século XX, o momento de esgotamento do paradigma do modelo econômico de organização social pautado no pensamento liberal e a expansão discursiva de pautas, dadas, até então, a partir de uma perspectiva socialista. Essa perda de hegemonia do pensamento liberal clássico interfere nas demais estruturas e relações sociais, dentre elas o direito. Esse processo possibilita a busca por uma nova orientação jurídica, com vistas à expansão da justiça social em detrimento de noções puramente positivistas.
Essa busca por noções claras de justiça social leva em consideração o papel dos oprimidos e historicamente marginalizados, como criadores de direitos, e a negação do Estado, como único produtor do direito. Sendo fruto de um momento histórico, que rompe paradigmas, tal como fez o movimento da magistratura democrática italiana no final da década de 60, que preza por um “uso alternativo do direito”, tendo influenciado pensamentos em outros países da Europa, como Espanha, França, Alemanha e diversos países da América Latina (BERCLAZ, 2005), bem como “O Direito Achado na Rua” no Brasil. Marcada pela luta por abertura política e formação da constituinte que favoreceu o desenvolvimento dessa nova prática do direito, que buscava manter o diálogo entre a norma e a realidade, bem como o respeito aos Direitos Humanos e a busca pelos direitos sociais. Dessa forma, o direito passa a compreender e reconhecer a existência de estruturas sociais dinâmicas e reivindicações populares.
Desse modo o direito é o meio para a formação de uma sociedade menos díspare, na qual o respeito pela dignidade humana é superior aos aspectos econômicos e puramente jurídicos. Como defende Roberto Lyra Filho, em um de seus muitos princípios, “não nos curvamos ante o fetichismo do chamado direito positivo, seja ele costumeiro ou legal” (FILHO, 2000, p.499). Assim, O Direito Achado na Rua contribui como propositor de noções emancipatórias e não a repetição de uma restrição regulamentar, usando o direito de maneira política, afirmando-o de maneira clara e sem subterfúgios de suposta neutralidade, sendo o seu objetivo, sobretudo, a busca por legitimar a luta por direitos dos movimentos populares nos âmbitos jurídico e normativo brasileiro.

4. DESLOCAMENTOS ANALÍTICOS PARA COMPREENSÃO DO ACESSO AO DIREITO E À JUSTIÇA

Com a criação da Constituição de 1988 – que em seu artigo 5º garante a todos o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder – houve a positivação do direito ao apoio para acesso jurídico para todos os cidadãos brasileiros. O direito de acesso à justiça, portanto, é assegurado pela Carta Magna, e configura-se entre os direitos fundamentais. Contudo, no Brasil, esse acesso à justiça não é assegurado a todos, havendo grandes desigualdades nessa área, uma vez que a porta de entrada na Justiça não tem se configurado como possibilidade de inclusão e construção da cidadania.
Essa dificuldade de consonância é expressada por obstáculos de ordem econômica, social e cultural. Em outras palavras, no Brasil, apresenta-se a possibilidade positivada de acesso aos direitos constitucionalizados, mas a impossibilidade de produção e expansão desses direitos. Por isso fez-se, e ainda é, indispensável a abertura de canais de interlocução a respeito das disparidades experimentadas entre o direito da lei e o direito da práxis. Assim sendo, o deslocamento proposicional realizado pela assessoria jurídica popular, que transporta dos gabinetes e autarquias, das formas e normas dadas e postas, o direito inteligível e inacessível, para as camadas desassistidas e invisibilizadas, dando a elas condições de expansão da noção de direito e de exercício de cidadania, permite-me, logo, conceber o alinhamento conceitual dessas práticas com as proposições realizadas pelo O Direito Achado na Rua que “se apoia sobre um exercício analítico que desloca a centralidade e prioridade da norma estatal enquanto referencial de legitimidade e validade do direito, para encontrar como referencial os processos sociais de lutas por libertação e dignidade” (CORREIA; ESCRIVÃO FILHO; SOUZA JUNIOR, 2016, p.85). A partir disso “a investigação passa então a demonstrar como o acesso à justiça está relacionado com a mobilização jurídica dos movimentos sociais, reconhecendo os fatores que impedem que o acesso seja efetivo” (IBIDI, p.88).

5. REFLEXÕES A PARTIR DA ASSESSORIA JURÍDICA POPULAR

Assim, a assessoria jurídica popular nasce no Brasil como expressão jurídico-política da emergência dos movimentos sindicais e sociais, que a partir da década de 1970 viriam a combater a ditadura civil-militar e conquistar a abertura a um regime de enunciado democrático. A assessoria jurídica popular se configura como uma prática jurídica diferenciada, voltada para a realização de ações para garantia do acesso à justiça a sujeitos coletivos organizados em torno da luta por direitos, mesclando assistência jurídica e atividades de educação popular em direitos humanos, organização comunitária e participação popular (CORREIA; ESCRIVÃO FILHO; SOUZA JUNIOR, 2016, p.90).

A assessoria jurídica se torna um instrumento de acesso à justiça por grupos e indivíduos marginalizados, cujos direitos, até então, haviam sido completamente negados. Assim, para sua efetivação, faz-se necessário o contato com os assessorados, para que se compreendam suas reais demandas e necessidades e se façam ações organizadas. Esse contato e a socialização do saber jurídico se dão pelas metodologias empregadas de educação popular, sendo indispensável o empoderamento de grupos e indivíduos para que sejam os atores principais da luta pelos seus próprios direitos.
Quanto à sua unidade e organicidade, no país, temos a Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares – RENAP. Além disso, existem os advogados profissionais, cuja atuação é pautada no compromisso com a luta social, e os mais de 40 escritórios de Assessoria Jurídica Universitária Popular – AJUPS. Todas essas organizações, advogados e escritórios atuam na formação de uma cultura participativa. Por meio do assessoramento popular, as pessoas têm a oportunidade de se inserir no meio jurídico com o apoio de profissionais, os quais podem contribuir para a construção de um direito democrático e plural com vistas à emancipação jurídica. Além de propor a desconstrução do modelo político instituído, que reserva o direito à voz política, na prática, apenas a uma classe dominadora e ao Estado. Sua atuação, leva à aproximação entre o direito e a realidade social e procura garantir o direito dos vulneráveis, proporcionando a atuação do Direito na práxis e a introdução do indivíduo na prática da cidadania.

6. O DIREITO ACHADO NA RUA E A ASSESSORIA JURÍDICA POPULAR: REALIZAÇÃO POLÍTICA DO DIREITO E DA JUSTIÇA

O Direito Achado na Rua assume uma posição emancipadora que envolve teoria crítica social sem excluir a prática da mesma, apresentando-nos sua eficácia. Nesse aspecto, o projeto se apresenta como uma proposta epistemológica e orgânica, a qual se concretiza em materiais didáticos, seminários, encontros de debate e deliberação e em práticas de formação comunitária. Tamanha é a magnitude de O Direito Achado na Rua, que ele se reflete, por exemplo, em experiências como a Assessoria Jurídica Universitária Popular, doravante tomada pela sigla AJUP, a qual é orientada pela interação entre assessoria jurídica para comunidades secundarizadas e educação popular no campo dos direitos humanos. É ainda a representação de um projeto de extensão universitária que busca viabilizar o diálogo entre diversas camadas sociais acerca dos problemas enfrentados por elas, a fim de solucioná-los por meio da efetivação dos direitos fundamentais de cada indivíduo, que se dá através de mecanismos institucionais e extrajurídicos.
A universidade tem um papel primordial nesse contexto, uma vez que é ponto convergente de ensino, pesquisa e extensão. Essa tríade fundamental é transformada na variante “pesquisa-ação, ensino crítico e extensão popular” (SOUSA JÚNIOR, 2015, p.164), programas esses que foram incrementados pelo prisma d’O Direito Achado na Rua, visando que os estudantes não sejam meros assimiladores de conteúdo, mas que possam articular sala de aula e ruas, o que exige deles um aprofundamento filosófico para que trabalhem a partir das necessidades sociais, mas com o rigor metodológico que convém. Essa nova dinâmica inserida no aprendizado do Direito proporciona a concretização da responsabilidade social que cabe às Universidades como centros pensantes e atores de otimização pública. Assim, os estudantes têm a oportunidade de abandonarem uma posição passiva frente aos conteúdos e o modo como são ensinados e tanto assumirem o papel de críticos, quanto poderem ser ativos na sociedade. Eles são estimulados a pensar no Direito como ferramenta de transformação que se dá por intermédio da relação direta com a comunidade.
As AJUPS estão sediadas nas principais universidades brasileiras, não sendo a Universidade de Brasília uma exceção. Aqui está representada a AJUP Roberto Lyra Filho, a qual além de evocar o nome do mentor teórico de O Direito Achado na Rua, assessora as comunidades marginalizadas do Distrito Federal. Essa relação implica em resultados satisfatórios para ambas as partes envolvidas no projeto. O protagonismo estudantil favorece a prática do Direito no sentido em que desconstrói a visão elitista e burocrática do mesmo, e o 11 concebe como um caminho para o exercício da cidadania e de se fazer política. Pois, através do diálogo público, pode-se identificar os anseios sociais e propor elucidações que precisam ser testadas e ponderadas pelos estudantes e pesquisadores que são gerados aqui.
Desfaz-se assim a rotulação de que a universidade é um meio autossuficiente: visão que ainda permeia o imaginário e perpassa gerações, cegando e limitando a prática jurídica genuína. Em contrapartida, a prática da Assessoria Jurídica Universitária Popular auxilia os movimentos sociais e populares na medida em que, além de na educação dos direitos, atua na defesa jurídica e com estratégias políticas, fazendo do direito um recurso de empoderamento comunitário. Nesse sentido, os grupos secundarizados da sociedade que são atendidos se veem em uma posição ativa que os permitem ter acesso à justiça, uma vez que são não apenas instruídos para isso, como são encorajados em seu ativismo e prática cidadãs.
Esse caráter engajado, como já havia sido anunciado por Sousa Junior, se substancializa quando da intervenção social se objetiva a democratização da justiça e se leva essa experiência para o ambiente acadêmico como “referência para a definição de novas práticas docentes e de pesquisa” (SOUSA JÚNIOR, 1993, p. 13). Desse modo a partir do momento em que advogados populares, estudantes e educadores desenvolvem um trabalho com vistas ao esclarecimento, conscientização e reivindicação dos indivíduos frente às leis, ao direito positivo, fazendo com que essas pessoas invisibilizadas percam o temor de cobrar e buscar o que lhes é assegurado pela Constituição, o Direito achado na rua e a ação da Assessoria Jurídica Popular se complementam e notabilizam a afirmação do direito como sendo uma legítima organização social da liberdade.

7. CONCLUSÃO

São muitas as faces do direito e todas elas ficam claras na temática de O Direito Achado na Rua. Mulheres, trabalhadores, pessoas sem terra e muitos outros movimentos sociais lutam por seu espaço na sociedade e lutam por ver brotar, a cada dia, o direito legítimo, ancorado na liberdade. Esse Direito legítimo já nos é formalmente afirmado na nossa dita Constituição Cidadã, claramente no Art. 3°, IV, em que se promove o bem de todos os cidadãos independentemente das diferenças. É garantida a justiça e o acesso a essa justiça. Porém, como diz Dalmo de Abreu Dallari:

Não basta afirmar, formalmente, a existência dos direitos, sem que as pessoas possam gozar desses direitos na prática, [é] indispensável também a existência de instrumentos de garantia, para que os direitos não possam ser ofendidos ou anulados por ações arbitrárias de quem detiver o poder econômico, político ou militar. (DALLARI, 2004, p. 96).

Com a demanda criada a partir da Constituição, surgem e se desenvolvem muitos mecanismos de assistência, como a Assessoria Jurídica. O Direito Achado na Rua, por meio dessa Assessoria Jurídica, se faz presente na sociedade, na "rua", saindo do domínio da universidade, de dentro das salas de aula, para lutar junto com os movimentos sociais pela justiça, pela liberdade e pelos direitos de cada um, principalmente dos oprimidos pelas classes sociais detentoras do poder. A contribuição de O Direito Achado na Rua para o Direito social é tanto afirmada na teoria, com a interação entre docentes e discentes nas muitas produções didáticas por meio do tripé ensino, pesquisa e extensão, como na prática, na formação de profissionais que dialoguem com os movimentos sociais.
Por fim, é possível concluir que “a atuação articulada da assessoria jurídica popular possibilita a aproximação do direito à realidade social” (CORREIA; ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2016, p.93) e que esta reflete, a práxis de uma urgência anunciada pel’O Direito Achado na Rua desde sua fundação, num processo de dialogicidade e dialética que transmuta em sua interlocução o sujeito individual de não-direito, num sujeito coletivo de direito, “proporcionando o apoio à efetivação dos direitos dos grupos subalternizados, seja através de mecanismos institucionais, judiciais ou por mecanismos extrajudiciais, políticos e de conscientização” (IBIDEM).

8. BIBLIOGRAFIA

BERCLAZ, Marcio. O Movimento do Direito Alternativo no Brasil: Aportes e Fragmentos para Compreensão e Atualização. 2015. Disponível em http://emporiododireito.com.br/omovimento-do-direito-alternativo-no-brasil/. Acessado em 01 de Maio de 2017.

CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988.

CORREIA, Ludmila Cerqueira; ESCRIVÃO FILHO, Antonio; SOUZA JUNIOR, José Geraldo. A expansão semântica do acesso à justiça e o direito achado na assessoria jurídica popular. In: REBOUÇAS, Gabriela Maia; SOUZA JUNIOR, José Geraldo; CARVALHO NETO, Ernani Rodrigues Org(s). Experiências compartilhadas de acesso à justiça: Reflexões teóricas e práticas. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2016.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos humanos e cidadania. São Paulo: Moderna, 2004.

LYRA FILHO, Roberto. A Nova Escola Jurídica Brasileira. Revista Notícia do Direito Brasileiro. Brasília, n.º 7, 2000. p. 497-507.

SANTOS, Boaventura de. Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo: Cortez Editora, 2011.

SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2015.

SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (Org.). Introdução crítica ao direito. 4. ed. Brasília: Ed. UnB, 1993. (Série O Direito Achado na Rua, v. 1).



* Boaventura de Sousa Santos usou um estudo realizado pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias do Conselho Nacional de Justiça como base para estas afirmações.

Resenha do artigo "Acesso à Justiça e a Pedagogia dos Vulneráveis", de Nita Freire, por estudantes de Pesquisa Jurídica da UnB

Resenha: FREIRE, Ana Maria Araújo (Nita Freire). Acesso à Justiça e a Pedagogia dos Vulneráveis. O pensamento de Paulo Freire e sua relação com o Direito como prática para a libertação. In: Introdução crítica ao direito à comunicação e à informação. Série O Direito Achado na Rua, vol. 8. SOUSA JUNIOR, José Geraldo et al. (Org.). Brasília: FACUnB, 2016. p. 69-77.


Autoras e autores: Pietra Mendonça Ribeiro de Magalhães Cordeiro, Victor Frank Corso Semple, Pedro Mineiro Soares, Thaísa de Souza Galvão, Sérgio Garcia Viriato, Vitor Gonçalves Damasio, Bianca França dos Reis, Karen de Souza Paiva, Augusto Oliveira Mendonça de Carvalho, Rogério Bontempo, Cândido Gontijo, Larissa Pontes Dias Matos, Mateus Gaudêncio Marques, Camila Gomes Martins Sobrinho


O texto em análise trata-se de uma fala proferida em 2014, em uma conferência da Escola de Magistratura de Buenos Aires por Nita Freire (Ana Maria Araújo Freire), mestra e doutora em Educação. Como seu marido, Paulo Freire, Nita vai muito além da educação para explorar as pedagogias que regem as diversas formas de comportamento humano. No texto em questão, trata da pedagogia dos vulneráveis e do acesso à Justiça destes. Acesso à Justiça, para Boaventura de Sousa Santos significa uma maneira de pensar que não somente signifique um programa de reformas, mas mudanças de concepção que incorporem à Justiça e ao Direito o espectro democrático participativo (VITOVSKY, 2016). Tal tema a que se refere Nita Freire é o modo como Paulo Freire entendia o Direito como prática para libertação, ou seja, é o sistema pelo qual o pedagogo enxergava a mudança paradigmática incorporadora de ideais dialógicos e libertadores, libertando os indivíduos da condição de grupos vulneráveis.
Os grupos vulneráveis compreendem segmentos da sociedade que historicamente sofreram algum processo de segregação ou de marginalização social. Apesar de serem comumente nomeados “minorias”, esses segmentos excluídos estão longe de abranger um número reduzido de pessoas. Os indivíduos considerados vulneráveis não são desprovidos de autonomia, na realidade, o que lhes falta é o poder, e esta ausência de poder está relacionada a uma série de características, como cor da pele, idade, fatores ligados à sexualidade ou ao gênero. Essa parcela da sociedade, que possui algum grau de vulneração, inaptos de proteger seus próprios direitos e interesses, demandam atuação estatal para tutelar seus direitos.
A rigor, os grupos excluídos estão inseridos na sociedade, o que falta é reestabelecer formalmente direitos que lhes garantam um mínimo social para sua existência e que o Estado promova sua tutela para que sua dignidade seja estabelecida. Incluir socialmente é perceber que todos têm diferenças e, por meio da valorização delas é que se forma uma sociedade inclusiva e solidária. Somente quando forem garantidos os direitos essenciais à totalidade dos indivíduos da sociedade haverá condições de se atingir a real inclusão social.
O texto traz à tona a relação das concepções de educação de Paulo Freire e uma práxis libertadora, o que se associa diretamente com a proposta de O Direito Achado na Rua (DANR), observado através da inferência de pensamentos de Roberto Lyra Filho ao longo da obra. Nita Freire pronuncia-se primeiramente sobre as bases que formaram e que constituem o Direito Brasileiro moderno e sobre como este foi, por muito tempo, uma prática elitizada, excludente e restrita a grupos de “doutos da elite social e econômica” (FREIRE, 2014). Vê, porém, à época da conferência, uma mudança paradigmática na sociedade, isto é, um acesso à Justiça daqueles que outrora encontravam-se em condição de “objetos desencarnados e sem voz, nascidos para a submissão e a serventia” (FREIRE, 2014). A mudança consiste na reinterpretação da forma dialética do Direito, o Direito Social. O grande giro axiológico e prático pelo qual passa o Direito consiste na alteração de seu objeto de estudo, que passa da norma (da lei escrita) para o conflito social das ruas. Um desafio, no contexto brasileiro, segundo Nita Freire, dados os traços reacionários e conservadores da sociedade.
É de forma prática que este Direito Social vem a afirmar-se, contudo “que ainda não majoritariamente está sendo aceita e abraçada por juristas importantes [...] Não na medida do necessário, mas em crescimento, pleno caminho para este destino”. (FREIRE, 2014) O processo de exercício deste novo Direito é muitas vezes freado, por exemplo, na mera rotulação como Ativismo Judicial de decisões judiciais progressistas. Um dos maiores críticos a esta mudança de paradigma é o Jurista Lenio Streck.
A partir do ponto de inflexão apresentado por Nita Freire, em que a palestrante afirma seu posicionamento, assim como o de Paulo Freire acerca do Direito libertador, passa-se a citar a dissertação de Pedro Rezende Santos Feitoza, apresentada em 2014 na Universidade de Brasília, de tema: O direito como modelo avançado de legítima organização social da liberdade: a teoria dialética de Roberto Lyra Filho. O elo de conexão entre Lyra Filho e Freire é justamente este novo paradigma que se estabeleceu: o do Direito dialético, o qual “recuperaria a concepção do jurídico enquanto esfera da liberdade em coexistência” (FEITOZA, 2014 apud FREIRE, 2014), concepção esta que fora perdida pela tradição jurídica brasileira, até então.
Para Lyra Filho (apud FEITOZA, 2014), o Direito e a Justiça sempre foram inseparáveis, no entanto, o que recorrentemente separa-se do Direito é a Lei, quanto ela é proclamada por filósofos e juristas, e não pelo povo, real construtor do processo histórico progressista que nunca deve separar-se da Justiça. Direito não surge de algo que extrapola o mundo material, como na Lei, mas sim do que há de mais material na sociedade: do conflito social.
É da percepção de Paulo Freire sobre os Direitos Humanos que Nita constrói a associação entre o pensamento de Paulo com o Direito social e dialógico de Roberto Lyra Filho. Tal pensamento “nega veemente a concepção tradicional do direito da Modernidade” (FREIRE, 2014) e representa a introdução de um novo paradigma do Direito alinhado com o novo paradigma das novas Esquerdas, do Brasil e do mundo, pós-Guerra Fria. Nita retifica que, apesar de Lyra Filho não citar o pensamento Freiriano nas suas obras, são nítidas a introspecção e a materialização de traços do pedagogo nas obras do jurista. Isso deve-se ao fato, segundo Nita Freire (2014): de que seu marido sempre lutou por “justiça, autonomia e libertação, pela vivência da experiência democrática para todos/as brasileiros” é luta de Paulo e de Lyra Filho pelos Direitos Humanos no Brasil.
Os traços epistemológicos marcantes de Paulo Freire são apresentados por sua mulher. Entre eles, destaca-se sua compreensão de uma criticidade na educação imprescindível para formação de cidadãos plenos em sua dignidade e direitos. Um embuste, contra o que diz tudo que Paulo tanto defendeu em vida, é o projeto de lei “Escola sem Partido” (PL 867/2015), que falaciosamente pretende “neutralizar” a dialética escolar, mas que na verdade acaba por excluir os estudantes de debates, suprimir minorias sociais, gerar discriminações e uma consequente despolitização da práxis escolar em detrimento da manutenção do status quo de uma classe política elitizada e conservadora.
Além disso, Nita há muito vem afirmando que a teoria de Paulo vem consagra-se como a “pedagogia do oprimido” (FREIRE, 2014), mesmo antes dele escrever um livro com este título, uma vez que sua preocupação fundamental foi buscar mecanismos da inserção crítica dos homens e das mulheres nas suas sociedades “ao possibilitar-lhes terem voz, dizerem a sua palavra, biografarem-se” (FREIRE, 2014), dando a esses indivíduos a possibilidade de serem sujeitos também da sua própria história e não apenas objetos da exploração, de servidão a serviço das classes opressoras. Portanto, essa busca de dignificar os oprimidos e as oprimidas é a luta pelos direitos humanos mais autênticos para os vulneráveis, os esfarrapados. Enfim, conclui-se que a postura ético-político-epistemológica de Paulo, não resta dúvida, é a de quem luta pelos Direitos de toda ordem para todos e todas as pessoas.
Para explicitar a “pedagogia de todos e de todas”, de Paulo Freire, Nita apresenta na sequência de sua fala um rol de aforismos, trechos de algumas das obras de Paulo que se constituem como a axiologia por traz de seu pensamento. Ao tratar sobre a solidariedade, diz que somente quando o opressor passa a tratar o oprimido como um ser humano, um cidadão e não mais um objeto é que se tem a solidariedade verdadeira. Pois, se a solidariedade somente acontece entre opressor e oprimido, ou seja, requer posições sociais diferentes para acontecer, o opressor deve elevar o oprimido ao seu patamar para então se solidarizar.
Sobre a conscientização dos oprimidos, o educador afirma que não é a doação do sentimento revolucionário aos oprimidos que faz com que estes libertem-se dos grilhões amarrados a si, mas que esta luta revolucionária é um processo, uma caminhada fruto da autoconscientização da própria classe oprimida. Para Paulo Freire, sua prática pedagógica está condicionada pelas virtudes do educador, nesse sentido, não é possível uma pedagogia progressista e democrática, que não seja também uma pedagogia social, além da ciência e da técnica.
Sua pedagogia é também uma pedagogia metafísica, assim entendida quando Paulo escreve sobre os sonhos, as utopias e as esperanças que transbordam à noção de atos políticos necessários e passam a representar a construção histórico-social da própria natureza humana. “Não há mudança sem sonho como não há sonho sem esperança” (FREIRE, 1992). E quando as forças opressoras voltam a oprimir os oprimidos, afastando-os da práxis político-jurídica é o tempo em que não se fala mais em sonhos, utopias e esperanças. São nítidos a extração da ideia de Paulo e o posicionamento dela nos dias atuais, em que um curto período historiográfico de progresso foi novamente substituído pelas forças machistas, reacionárias e conservadoras que sempre governaram o país. Portanto, é um tempo novo em que não se fala em sonho, em utopia e que O Direito Achado na Rua deve submeter-se à norma dos governantes, que deixam de lado os aspectos sociais e a repercussão na classe oprimida em favor de suas ações. Tratar de Direitos Humanos não é somente abarcá-los dentro do ordenamento doméstico. É, acima de tudo, dignificar as gentes, os povos que constituem-se tanto no exterior quanto no interior de um ordenamento e que muitas vezes não são abraçados por ele.
Tratar de Direitos Humanos no Brasil é inevitavelmente tratar do Direito Achado na Rua. A conscientização em Paulo Freire atingiu grande parte da população nacional no final do século XX, em especial quando os movimentos nacionais passaram de coadjuvantes a protagonistas no cenário da práxis política. O novo sujeito coletivo de direitos passa a ter local de fala no país, o que em grande parte contribuiu para uma década de progresso no início do séc. XXI.
Após citar trechos das importantes obras do falecido Paulo Freire a fim de corroborar com a sua análise e demonstrar a preocupação do renomado educador com os oprimidos e as oprimidas, Nita conclui que é inquestionável a constatação de que a obra e a práxis de Paulo influenciaram sobremaneira “o processo de conscientização política de grande parte da população nacional, sobretudo a pertencente às camadas populares e da construção e participação na democracia, que temos hoje, na sociedade brasileira.” (FREIRE, 2014). É notório o esforço, engajamento e perseverança do educador Paulo Freire em trazer luz às comunidades carentes, não apenas no Brasil, uma vez que também teve participação significativa na educação de Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, além de influenciar as experiências de Angola e Moçambique.
A fala de Nita adentra na obra de seu marido para dar sentido à luta de ambos por uma libertação jurídico-social de todos e todas. O ponto central e ao mesmo tempo final de seu texto é o de que a pedagogia de Paulo Freire e sobretudo sua prática é “um Tratado do Direito Social Dialético” (FREIRE, 2014) que se verifica no Direito Achado Na Rua, como prática jurídica que nasce do concreto, do conflito social, e não da abstração jurídica, para dar voz àqueles que não a tem, como os Freires fizeram e ainda fazem por todos e todas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREIRE, Ana Maria Araújo. “Acesso à Justiça e a pedagogia dos vulneráveis”; ou “O pensamento de Paulo Freire e sua relação com o Direito como prática para a libertação”. Cuadernos de la Escuela del Servicio de Justicia N° 2, Editorial: Ministerio de Justicia y Derechos Humanos de la Nación, año I, abril de 2015.

STRECK, Lenio Luiz. O caso da ADPF 132: Defender o texto da Constituição é uma atitude positivista (ou “originalista”)? Revista de Direito da Universidade de Brasília. V. 01, N. 01. Janeiro-junho de 2014.

VITOVSKY, Vladmir Santos. O Acesso à Justiça em Boaventura de Sousa Santos. Disponível em: <http://faa.edu.br/revistas/docs/RID/2016/FDV_2016_11.pdf>. Acesso em: 19 de abr. de 2017.

BRASIL. Projeto de Lei 867, de 2015. Inclui, entre as diretrizes e bases da educação nacional, o "Programa Escola sem Partido". Disponível em: <www.camara.gov.br/sileg/integras/1317168.pdf>. Acesso em: 19 de abr. de 2017.

domingo, 11 de junho de 2017

Resenha do livro "O Direito Achado na Rua: concepção e prática", por estudantes de Pesquisa Jurídica da UnB

Resenha: SOUSA JUNIOR, José Geraldo (Org.). O Direito Achado na Rua: concepção e prática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.


Autoras e autores: Alessandra de Araújo Gonçalves dos Santos, Felipe Rocha da Silva, Gabriel, Igor Souza Neres, José Eduardo de Oliveira de Morais, Laura Rodrigues Roriz, Leonardo Martins Aborm Inglês, Lorena Lima Xavier dos Santos, Maria Letícia de Sousa Borges, Matheus Garcia Antunes, Rafaela Côrtes Faria, Thiago Braga Vidal, Vitor Hugo Firmino de Figueiredo Carvalho.


1. INTRODUÇÃO 

O sétimo volume da série O Direito Achado na Rua tem como principal característica a proposição pelo estudo das ciências jurídicas de modo emancipatório e libertador baseada nas novas demandas e desafios sociais impostas pelo século XXI. Retomando várias das ações desenvolvidas desde o início do projeto em 1984, o livro propõe novos caminhos e temas - liberdade, história, direitos humanos, transformação social - de acordo com as perspectivas atuais brasileiras e latino-americanas no recente processo de redemocratização ocorrido no fim do milênio. Assim, há uma análise profunda das concepções apresentadas em meio a uma abordagem metodológica emergente capaz de redimensionar as necessidades da prática jurídica com ênfase na participação popular, no espaço urbano e no debate antidogmático nas áreas de Ensino, Pesquisa e Extensão. 

2. O DIREITO ACHADO NA RUA: CONCEPÇÃO E PRÁTICA

Na parte introdutória é apresentada qual seria a origem do projeto, bem como sob quais bases o programa se estabelece, que seria como decorrente dos ideais e reflexões da Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR). São determinados os objetivos base do trabalho, que seriam: determinar os espaços em que ocorrem as relações sociais, definir o sujeito coletivo capaz de transformar a sociedade e estabelecer as novas categorias jurídicas de uma sociedade alternativa, pautada no conceito da liberdade, bem como definir o que foi construído pelo projeto, sua herança e fortuna crítica, a fim de ingressar o pensamento do que seria O Direito Achado na Rua. Para demonstrar a dimensão do projeto, é identificado ao longo de todo trabalho introdutório a recepção e relação do trabalho com outros autores, sendo citadas passagens de diversos estudiosos e escritores das mais diversas áreas do saber, ora para enaltecer o trabalho e identificar as suas características, ora sob a égide de críticas, que foram completamente debatidas, refutadas e explicadas, a partir do próprio repertório teórico do projeto, por parte do professor José Geraldo de Sousa Júnior. 
Ainda na introdução, é expressa a importância da visão teórica do jurista Lyra Filho, bem como a influência estabelecida pela NAIR, como base convergente de ideias e ideais. Para isso, é feita a descrição das proposições da Nova Escola Jurídica Brasileira, buscando explicitar qual seria o fruto do embasamento teórico defendido pelo projeto em questão, pautado a partir da práxis transformadora do próprio espaço público, que se faz representado pelo termo “rua”, como maneira de demonstrar que a luta por uma emancipação libertadora ocorre no próprio meio social, tendo como base o pluralismo jurídico e a mobilidade do direito, baseando-se nos mais diversos campos do saber. Outro ponto a ser destacado, é acerca da formalização dos ideais expressos, uma vez que o projeto busca não somente o entendimento teórico dessa nova forma de se pensar direito, mas também os meios para se realizar a sua devida aplicação, sob uma espécie de militância em busca da justiça e verdadeira legalidade. 
No decorrer da introdução, é esclarecido e finalizado, portanto, quais são as bases do projeto, a partir do estudo dos novos movimentos do direito e da identificação do seu real objeto de estudo, e visando ao rompimento do pragmatismo autoritário do atual direito fossilizado, bem como a própria libertação dos instrumentos coercitivos de dominação desse sistema, “toda a questão está inserida num processo dramático de mudança paradigmática” (p.35). 
Na finalização da introdução, são demarcados o conjunto de características e o foco que identificam O Direito Achado na Rua, como um projeto que procura compreender os próprios espaços públicos, representado pelas questões da rua e seus fenômenos sociais, para que dessa forma possa reproduzir a justiça, a partir da perspectiva de defesa aos direitos humanos emancipatórios, se mostrando contrário à visão redutora, autoritária, hierarquizante e formalista do direito e defendendo, portanto, a real liberdade do povo. 
Na primeira parte de desenvolvimento, ocorre a dissecação dos objetivos e ideais da Nova Escola Jurídica Brasileira – doravante chamada de NAIR –, que seria pautado na teorização e luta prática contra o direito dominador, sob todos os campos de espoliadores e espoliados, e transformação das disputas sociais, para reafirmar o projeto como fruto desse aparato teórico e demonstrar a importância da NAIR para o florescimento do trabalho, buscando afirmar que o Estado não pode ser o único detentor da realização do direito e que esta deve partir do próprio agente de luta social, “denunciavam a realidade de abusos e omissões do Estado, violências inviabilizadas e que se justificavam por intermédio do aparato jurídico positivo” (p.65). Para expressar os pensamentos da Escola, o autor explica como eram realizados os seus boletins, que eram espaços de publicação dos temas a serem expressos, meios de divulgação de combate ao direito opressor e enraizado como instrumento de rebeldia, pautado no humanismo dialético e na práxis que deu forma ao Direito Achado na Rua. 
Surgiu em 1986 o esboço de O Direito Achado na Rua, após a morte de Lyra Filho, que foi a concretização de um projeto de intervenção jurídica atrelado à práxis social dos movimentos de vanguarda apoiados pela NAIR. Coordenado pelo professor José Geraldo Sousa Junior, o projeto defende uma práxis libertária, que minimize o distanciamento entre o Direito e a realidade social, além de insistir em um ensino jurídico libertário. Essas são bandeiras levantadas pelo grupo de pesquisa O Direito Achado na Rua. 
Com uma percepção que contraria a visão metafísica e abstrata, procura reexaminar o Direito não de uma maneira estática, mas sim com um caráter móvel, multifacetado, que acompanhe a realidade social como um todo, isto é, incluindo seus conflitos, suas lutas e suas reinvindicações perante o sistema jurídico. 
No decorrer, é explicitada uma série de características que moldam o pensamento do trabalho, que se realiza através da superação tanto do jusnaturalismo, quanto do juspositivismo jurídico, a partir do pluralismo e da interdisciplinaridade, tornando, dessa forma, impossível a formulação de uma teoria pura do direito, que seria expressa somente no âmbito teórico, formulando assim, uma crítica ao pensamento Kelsiniano, uma vez que o direito se relaciona com os mais variados campos do saber e se faz a partir do seu próprio campo de ação social, necessitando da atual direta na esfera pública, a fim de realizar a emancipação justa e social dos direitos de cada cidadão.
É mostrado que o direito é ensinado de maneira errada e que é preciso a realização de uma nova forma de se ensinar e pensar a jurisprudência, pautado da dinamicidade do processo jurídico e buscando a legítima afirmação da liberdade do povo, “A essência do direito é, pois, a mediação, preservação e ampliação, num processo dialético, dessas liberdades conquistadas.” (p.81). Há ainda a descrição da sociedade como dinâmica e plural, e a identificando como princípio das relações do direito, refletindo, mais uma vez, a ideia de direito da rua. 
Por fim, é pautada a ênfase na práxis do projeto, dando grande importância as suas formas de ação, partindo do princípio que não é suficiente ser apenas crítico, é imprescindível o próprio engajamento social. São citadas, brevemente, as extensões do projeto, bem como é realizada a sua síntese, pautada no seu principal princípio, o da liberdade. 

O direito Achado na Rua se faz presente como repertório político, conceitual e ideológico, como fonte criativa e legítima de direitos, [...] se faz presente e emerge em materiais didáticos, seminários, encontros de debates e deliberação, em práticas de formulação comunitária, de capacitação de quadros de militância orgânica dos movimentos sociais. (p.64 e p.65) 

A segunda parte de desenvolvimento inicia-se com a caracterização e respectiva diferenciação entre as novas formas de estudo jurídico, o direito alternativo e o direito insurgente, este último sendo convergente com O Direito Achado na Rua, se pautando com maior ênfase na realidade social que o direito deve tratar. Essa visão traduz várias características do programa como o combate ao dogmatismo e aos paradigmas imutáveis pré- estabelecidos, assim como a defesa de que não pode ser o Estado o único a realizar o direito, pregando a idéia de que a mudança deve partir, também, da luta da população oprimida. Ainda na caracterização dos movimentos encontra-se a defesa do pluralismo jurídico e a rejeição do juspositivismo e do pensamento de que o direito poderia ser puro, já que este necessita do apoio da interdisciplinaridade para compreender e revolucionar a sociedade. A partir disso, o autor conduz o pensamento de que o direito seria vivo e dinâmico, em constante processo de auto-descobrimento, evolução e luta, formulando a partir disso o conceito de cidadania ativa, capaz de realizar a reivindicação dos seus direitos e de formar “sujeitos emergentes que realizam sua subjetividade jurídica no coletivo” (p.111).
No decorrer, é explicitado o legado deixado pelo Direito Achado na Rua, descrevendo o seu acervo de produção informacional, realização de projetos e interconexões com o estudo jurídico dentro e fora do país – contendo, entre outras coisas, uma coleção de oito volumes com perspectivas diferentes abordadas por O Direito Achado na Rua –, em um processo de interlocução de idéias e conhecimentos, realizado por professores, estudantes e integrantes de movimentos sociais, sendo descrito pelo próprio autor como fortuna crítica do projeto. Sob esta visão é que se molda o seu pluralismo jurídico, realizando referências a diversos autores, visando à produção de um direito verdadeiramente coletivo e emancipatório. 
No desenvolvimento do texto, encontram-se respostas às diversas críticas dirigidas ao trabalho, que se refere às limitações do pluralismo jurídico, ao caráter científico do projeto e à ausência da discussão sobre as relações de poder. O professor José Geraldo, sob a perspectiva do próprio Direito Achado na Rua, rebate todas as críticas, colocando-se à disposição e aberto ao debate acerca de qualquer outra crítica ou contestação, o que só demonstra a dedicação ao pluralismo de ideias e pontos de vista diversos e não uma dogmática absoluta. Ademais, é citada a importância de não se resumir o processo jurídico, a fim de se entender todas as suas vertentes, e melhor explicá-lo e trabalhá-lo. 
Na finalização dessa parte do desenvolvimento é expresso qual deve ser o comportamento do próprio cidadão, sendo este sujeito social, ativo e coletivo, pautado na ideia de cidadania ativa, em que o próprio sujeito, participante de determinada esfera social, deve buscar a luta emancipatória de seus direitos: 

o processo de ruptura para viver e reconhecer a diversidade, é uma aventura que começa internamente no ser e transborda para o coletivo, que se constrói na prática, o que justifica a forte defesa da categoria: sujeito coletivo de direito (p.137). 

A terceira e última parte de desenvolvimento se inicia discorrendo sobre a importância da pesquisa a ser realizada em parceria com a reflexão, para que dessa forma possa atuar de maneira justa na esfera pública, buscando a libertação das ideologias vigentes de caráter dominante. No desenvolver, o autor explica o porquê da realização das extensões de pesquisa e como elas devem ser realizadas, partindo do princípio de que estas contribuem na formação coletiva e individual de uma sociedade ativa e se colocam como instrumentos para a devida transformação da realidade. Seguindo a mesma linha teórica, é demonstrado qual deveria ser o papel do estudante, como promotor dessa revolução, sempre estando sob a égide da sua responsabilidade social, que se faz na rua, para com o coletivo. 
No desenvolver, é mostrado como o direito está se é mostrado como o direito está sendo utilizado como forma de dominação, bem como é demonstrado o que necessita mudar, para que esse deixe de ser uma forma de garantia da desigualdade e espoliação. 

Esse modelo dogmático e conservador do ensino jurídico ainda permanece nos dias atuais, não apenas na forma errada de como é ensinada, mas também na errada concepção do direito que se ensina. O “novo ensino jurídico” implica não somente a implementação de técnicas e estratégias pedagógicas mais atualizadas, mas também um reexame do “fenômeno jurídico”. (p.167). 

A seguir, é mostrada a importância da extensão particularmente universitária, valorizando o relacionamento da universidade com a própria realidade da sociedade. Essa atividade seria, então, uma forma de realização da emancipação do direito, contribuindo como aparato de promoção de justiça. É apresentada ainda, a importância da troca de saberes entre os diversos campos do conhecimento, processo de interdisciplinaridade, sendo que este deve ser realizado sob uma perspectiva horizontal, para realizar uma pesquisa-ação de caráter participante, pautada no antidogmatismo, na autenticidade popular, na restituição sistemática, no feedback dialético e na reflexão-ação das técnicas dialogais, buscando tornar-se como prática insurgente de perspectiva libertadora. 
No que se refere à extensão, o livro traz uma abordagem que dialoga com o pensamento de Paulo Freire e com seu livro “Extensão ou Comunicação?”. Ao fazer uma crítica à ideia de extensão como mera projeção do conhecimento dogmático jurídico produzido no contexto universitário, é proposto uma extensão horizontalizada com uma perspectiva humanista que vise a tomada de consciência do outro(público-alvo da extensão) e também do extensionista em direção a uma atuação que transforme o meio social. Assim, para a realização desta proposta, o livro propõe que o extensionista conheça a realidade social e cultural do público-alvo, uma vez que este pré-requisito é necessário para o efetivo diálogo e evita o recorrente equívoco de passar conhecimentos fúteis ou pouco aproveitável.
É realizada a especificação de outros projetos, que são convergentes e estão sob o campo de atuação do Direito Achado na Rua, bem como as suas respectivas esferas de atuação e formas de desenvolvimento prático, que seriam: O Projeto Direito à Memória e à Moradia, Ceilândia: Mapa da Cidadania, Projeto de Extensão Tororó, Direitos Humanos e Gênero: Promotoras Legais Populares, Projeto UNB/Tribuna do Brasil, Educação Popular e Direitos Humanos: capacitação de atores sociais no Distrito Federal e Goiás, o Observatório da Constituição e da Democracia e Assessoria Jurídica Universitária Popular. Todos pregando o ideário de construção social revolucionária libertadora, a partir da própria esfera dos cidadãos e sendo realizados por eles, em parceria ao acervo ideológico e fortuna teórica do Direito Achado na Rua. 
O autor discorre sobre o núcleo de prática jurídica, que se mostra como uma espécie de escritório modelo, a fim de servir de base para como o projeto deve ser conduzido, especificando ainda a técnica de assessoria jurídica popular, que é o conjunto de ações que busca garantir o acesso à justiça popular, a partir da visão de direito como transformador da sociedade, “Assim delineado, o projeto deu as bases necessárias para a nucleação de um espaço para o reconhecimento e efetivação de direitos, com protagonismo da comunidade e atuação direta da comunidade acadêmica da UNB.” (p.182). 
Já em relação à pesquisa, é preciso construir um conhecimento interdisciplinar e multilateral, de modo a “questionar não apenas como a Universidade pode contribuir para o conhecimento popular e para as comunidades, mas como essas contribuições podem interferir na realidade acadêmica universitária” (BRANDÃO apud SOUSA JUNIOR, p.228). 
O desenvolvimento é finalizado, atribuindo também a devida importância às extensões, bem como a importância dos projetos da pós-graduação e grupos de estudos, sempre realçando a necessidade da interdisciplinaridade para efetiva realização prática do bem social e a reafirmação da importância do respeito aos direitos humanos. 
A última parte da obra inicia-se com a síntese do que é o projeto Direito Achado na Rua, “projeto libertário e transformador, que tem o objetivo de unir prática e teoria para fundar novas e criativas possibilidades de pensar o Direito” (p.214). Segue-se, com a maneira de expressão e formalização do projeto, explicando qual seria a sua metodologia, a partir do processo batizado de carrossel, que é a prática contínua do diálogo rotativo de grupos engajados, a partir da perspectiva horizontal, sob determinadas etapas dos processos sociais, onde haveria a troca de papéis entre os diversos grupos, para que no fim o “carrossel” desse uma volta completa e todos participassem ativamente de todas as etapas do desenvolver social. 
Ocorre ainda a exemplificação de processos pluralistas ocorridos em vários países da América latina, a fim de reafirmar e exemplificar critérios do próprio projeto Direito Achado na Rua, como, por exemplo, o combate ao direito positivado, puro e imutável. É expresso, ainda, o raciocínio de que o acesso às informações por parte de um grupo limitado irá gerar a reprodução de um conhecimento também limitado, contextualizando a questão das ações afirmativas, que buscam diversificar os cidadãos que têm acesso à informação, para que, dessa forma, possa gerar a diversificação da própria produção do saber, sob todas as influências públicas e sob todos os tipos de agentes sociais, visando à maior abrangência e completude do projeto a ser desenvolvido, não somente no âmbito teórico, mas também na real práxis, engajada, transformadora e emancipadora de liberdade presente no contexto de exploradores e explorados. 
É desenvolvida, também, uma crítica ao modelo CAPES de produção, que é feito no distanciamento da real sociedade, a partir de uma formulação meramente teórica e com um caráter hierarquizante, produtivista, dominante e colonizador,

é preciso, portanto, inverter a lógica que guia boa parte da academia e questionar não apenas como a universidade pode contribuir para o conhecimento popular e para as comunidades, mas como essas contribuições podem interferir na realidade acadêmica. (p.236). 

A obra é concluída apresentando as novas formas de ação, acompanhadas pela própria evolução e dinamicidade do ser humano. Ocorre ainda a discussão, contextualizada, acerca da criminalização dos movimentos sociais e desarmamento da polícia, sendo expresso o pensamento de que os agentes participantes tem sim que desenvolver-se na luta de seus direitos, e que essa constante criminalização dos movimentos de luta não parte dos participantes, e sim do apoio dos conservadores e dominadores, que buscam, através desse artifício, suprimir a luta por uma sociedade mais justa e ética para todos. Ademais, há o realce da importância do palco urbano como palco das lutas sociais, e que é dali, das ruas, que o direito verdadeiramente nasce e deve se desenvolver. Por fim, ocorrem as projeções futuras do projeto, que visam à adaptação ao processo de evolução da sociedade e perpetuação da práxis libertadora pregada pelo Direito Achado na Rua e pelo professor coordenador do projeto José Geraldo, “Cabe também ao direito Achado na Rua assumir esse desafio e ter como horizonte de atuação a Universidade Emancipatória.” (p.252). 

3. CONCLUSÃO 

O Direito Achado na Rua é, portanto, um projeto libertário e transformador, que tem o objetivo de unir prática e teoria para fundar novas e criativas possibilidades de pensar o Direito. Trata-se de um projeto em constante renovação, devido à sua proposta de redirecionamento, mudança de perspectiva e abrangência analítica. O Direito Achado na Rua está voltado à reflexão sobre a atuação jurídica dos novos sujeitos coletivos de direito e sobre as experiências por eles desenvolvidas na criação de direitos e, assim, deve corresponder a um modelo atualizado de busca no qual devem determinar o espaço jurídico em que se desenvolvem as práticas sociais emancipatórias. 
A universidade, ademais, enquanto instituição que agrega diferentes contradições que expressam a dinâmica da sociedade é uma instituição social, capaz de produzir um conhecimento pluriversitário, contextual, diálogo e transdisciplinar. A corrente de “O Direito Achado na Rua” com a posição científica de que supera o positivismo e problematiza o Jusnaturalismo na perspectiva de construir uma ciência jurídica antidogmática, apresenta-se como um projeto construtor de novas formas de se fazer e pensar o direito à luz do pluralismo jurídico. Assim, possibilitando aproximar a universidade das reais demandas da sociedade. 



Resenha de dois artigos de Roberto Lyra Filho por estudantes de Pesquisa Jurídica da UnB


Resenha*:
LYRA FILHO, Roberto. Por que estudar Direito, hoje?  Brasília: Edições Nair, 1984.
LYRA FILHO, Roberto. Pesquisa em QUE Direito?  Brasília: Edições Nair, 1984.


Autores e Autoras: Antônio Nascimento, Cássia Cristina Pinheiro Lopes, Cássio Carvalho, Davi Pontes, Fábio Correia, Marcos Vinícius Nunes da Costa, Marcelo Gomes, Mateus Resende Nobre, Roberta Siqueira, Túlio Nunes.


      Roberto Lyra Filho jurista, escritor, poeta e linguista, acadêmico nas áreas de Direito Penal, Direito Processual Penal, Criminologia, Filosofia Jurídica, Sociologia Jurídica e Direito Comparado, em seus textos, nos leva a um pensamento crítico acerca do Direito e dos motivos para estudá-lo hoje. O autor não nos apresenta uma resposta simples e objetiva, visto que o Direito está sujeito a mudanças, conforme a sociedade se transforma e a história avança. Em contraposição à uma visão fixa que deturpa o direito e o diminui a um conjunto predeterminado de normas e o limita dentro de parâmetros conceituais de uma razão pura. Nos fazendo um convite a liberdade de pensar o direito pela lógica dessa mesma liberdade, para quebrar a concepção de norma, sanção, dominação do Estado.
        Apesar de o direito muitas vezes estar positivado em uma norma, a mensagem que essa norma, bem como o seu interprete e o seu aplicador repassa, está inserida num contexto que a condiciona, proporcionando, assim, leituras diversas, diante disso, o Direito é algo móvel, e não fixo, dialético e não lógico.
        Um exemplo utilizado pelo autor, para esclarecer esse ponto foi a lei de segurança do poder, que encontrou “entraves” no Supremo Tribunal Federal, quando tentou definir o que era segurança nacional. Segundo o texto:
 E o choque de mentalidades acabou nisto que o eminente Fragoso exprime de forma contundente "a fórmula complicada da lei não teve ressonância na jurisprudência dos tribunais", isto é, no ato de interpretá-la e aplicá-la, os juízes, apesar de tudo, liam um sentido consentâneo com o seu posicionamento, e não com o do legislador. (Por que estudar Direito, hoje?, p. 2)
        Para o autor, há direitos não apenas advindos das normas, mas também acima delas e até mesmo contra elas, diante dessa informação ele nos apresenta a Nova Escola Jurídica Brasileira - NAIR, para a qual o Direito é padrão atualizado de Justiça Social militante, que enseja a determinação das condições de coexistência das liberdades individuais, grupais e nacionais, com as únicas restrições admissíveis, na raiz da validade específica de toda normatividade legítima. E são elas, precisamente, que definem, de forma evolutiva e concreta, a essência manifesta da liberdade, como direito de fazer e buscar tudo o que a não prejudica direitos alheios.
        Lyra Filho faz uma análise a respeito dos tipos de docentes que temos, os quais possuem a missão de ensinar Direito, ele nos leva a refletir acerca do modelo de ensino tradicional, onde temos os docentes conservadores a serviço de um processo "educativo", onde currículo, programas, normas organizacionais, disciplinares são impostos, tornando a educação autocrática e repressiva, mas nos fala também sobre os docentes progressistas, que vão na contramão desse modelo.
         O autor nos orienta a ter uma visão crítica sobre os conservadores, entretanto nos orienta a aproveitar as lições ensinada por eles, nas palavras do autor “Como dizem os ingleses, é preciso cuidado para não jogar fora o bebê junto com a água do banho” (Por que estudar Direito, Hoje? pg. 7), esclarecendo que as divergências entre os dois tipos de docentes, conservadores e progressistas pode render frutos positivos, como:
“1) a conjugação de esforços para certos objetivos comuns (por exemplo, o combate à dogmática jurídica ou a introdução, no ensino, do elemento de conscientização política); 2) debate fraternal, em que a crítica dos companheiros com outra formação e modelo pode e deve ajudar-nos a repensar as nossas próprias opções, reavaliá-las e aperfeiçoá-las, sem deixar que a posição antidogmática se esterilize na simples troca de um dogma por outro.” (Por que estudar Direito, hoje?, p. 6)
        Quando Lyra Filho aborda a questão da pesquisa em Direito, ele tenta nos fazer entender que Direito seria esse, objeto da NAIR, e, ele nos mostra que não é um Direito tradicional, é um Direito produzido por livres produtores intelectuais associados, sem amarras, sem prisões, que possui um compromisso claro com o humanismo, com o socialismo democrático, a dialética e o movimento anti-imperialista.
        Acerca da Nair o autor no esclarece 5 características não aplicáveis a Escola: não é um conjunto de normas; não se propõe a ser uma grande e profunda revolução nem tampouco uma readaptação de modelos já existentes; não se constitui em partido político, ou em um conjunto de intelectuais tradicionais e cegos às disrupturas do mundo em constantes contrastes; bem como não se propõe a ser um grupo de gabinete assentado sobre normas e burocracias.
       Demonstra também 5 proposições acerca do Direito, enquanto produção combativa, apresentadas pela Escola: não se define o direito pela norma; não se restringe a norma como sanções a condutas; não se concede apenas ao Estado o poder de criar normas e sanções; não se deve submeter o pensamento ao fetiche positivista; não se pode formar o direito como um conjunto de restrições à liberdade.
        Concede-nos ainda esclarecimentos acerca das premissas balizadoras dos pensadores da Nair: o direito enquanto liberdade militante construída na convivência social entre indivíduos; a Justiça histórica e concreta é estabelecida por porções crescentes de libertação consciente; o padrão de legitimidade normativa está nos padrões mais avançados de direitos sociais; o processo de libertação deve conhecer seus limites jurídicos, mas não pode ser relegado a tutores estatais; o processo de positivação dialética do Direito é constante e não pode ser limitado por qualquer que seja o modelo que se arrogue as prerrogativas de controlar esse movimento histórico em um suposto “Direito Positivo”.
        Um ponto bastante importante, revelado no texto “Por que estudar Direito hoje?” é a admissão de que a Nova Escola Jurídica Brasileira não é detentora de uma verdade absoluta, ela está sempre em crescimento, pesquisando as leis, a jurisprudência, a doutrina, o Direito supralegal e, auscultando a práxis jurídica, sob o ponto de vista dos espoliados e oprimidos, sua conscientização, seus movimentos libertadores, com o objetivo de trazer rumos para a atuação do advogado na práxis, tanto de cidadão, quanto de profissional.
       O autor nos esclarece que o Direito nasce por força das leis, mas não simplesmente assim, ele vem de uma gestação histórica, no útero da libertação, fecundada pelo progresso, e, quando um grupo, classe ou povo reclama o seu direito, não está se referindo puramente à norma que o consagra, mas ao que considera a substância jurídica dessa norma.
       Importante registrar que Lyra Filho nos mostra que o Direito pode ter uma face nada nobre, aquela de atender aos interesses das elites vigentes, da estrutura dominante, sendo utilizado como forma de dominação e controle social, diante disso ele nos diz que:
Só confunde o Direito e a norma quem vê o Direito sob o ponto de vista exclusivo da classe, grupos e povos dominantes que detêm o poder estatal e interestatal e assim produzem o “direito” que melhor lhes convém... (Pesquisa em QUE Direito, p. 20)
        A mensagem repassada pelo autor, em seus dois textos, nos leva a refletir sobre a utilização do Direito como forma de dominação e planta em nós uma semente de desejo de mudança, bem como, nos traz, esperança, pois o impossível torna-se gradualmente possível, na medida que nos conscientizamos, para pressionar e conquistar, ponto a ponto, de etapa em etapa, mais e mais “condições fundamentais” de libertação (Pesquisa em QUE Direito, p.37).
        O autor lembra que as normas não-estatais não são, necessariamente, menos jurídicas que as normas criadas e impostas pelo Estado. Pelo contrário, essas normas impulsionam a dialética e permitem as mutações com reflexo na aplicação e na criação do Direito.
         Em um contexto de extremo autoritarismo nas políticas públicas brasileiras nos anos 1980, Lyra convoca os juristas a terem uma visão progressista de evolução democrática, sempre com a humildade em ouvir e refletir sobre os conceitos em prol de um constante processo de entendimento do pensamento jurídico. Para isso, entretanto, é preciso não deixar o Estado como dono de um monopólio de produzir o Direito e impor as suas normas, como “árbitro”.
      Por fim, devemos lembrar dos ensinamentos de Marx que consciência é conscientização e liberdade é libertação. Consciência não é algo que temos, vamos construindo, vamos nos livrando do que os dominadores colocam lá, e liberdade também não é algo que possuímos, ao contrário, ela vive amarrada e nós temos que cortar os nós, segundo Lyra Filho.


* Resenha produzida no curso da disciplina Pesquisa Jurídica, ministrada no 1º semestre de 2017 pelo Prof. Dr. José Geraldo de Sousa Junior na Universidade de Brasília. Os trabalhos desenvolvidos no referido curso foram utilizados para produção de verbete de O Direito Achado na Rua na Wikipedia.