quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Agora que passou o carnaval... (Cartas do Mondego)


Ludmila Cerqueira Correia*

Coimbra, 12 de fevereiro de 2016.

Ao contrário do calendário brasileiro, o mês de janeiro em Portugal é repleto de atividades acadêmicas. Nosso recesso terminou no dia 6 de janeiro... e muitas coisas aconteceram por aqui nesse período. Quero destacar algumas delas, por estarem entrelaçadas e, de alguma forma, me remeterem a um dos lugares que se tornou uma importante referência há muito tempo: O Direito Achado na Rua.
O Primeiro Encontro da Seção Temática da Associação Portuguesa de Sociologia “Sociologia do Direito e da Justiça”, que reuniu diversas pesquisadoras e pesquisadores, além de outras pessoas interessadas durante dois dias, foi marcado pela homenagem ao professor André-Jean Arnaud (falecido em dezembro/2015), com as palavras dos professores Pierre Guibentif (IUL/ISCTE), Adam Czarnota (IISJ) e Boaventura de Sousa Santos, tendo, ao final, a entrega de um diploma do encontro em memória do mesmo à professora Wanda Capeller.
Em seguida, houve a palestra do professor Boaventura de Sousa Santos, com o tema: “Pode o Direito ser emancipatório? – revisitado”. A abordagem retomou um texto dele de 1994, que também foi publicado em Vitória (ES), num livro da Faculdade de Direito. A partir de algumas perguntas, o percurso escolhido incluiu a sua pesquisa de Doutorado no Brasil, nos anos 70 (que cunhou a expressão “Direito de Pasárgada”), uma menção aos estudos jurídicos críticos, a contribuição da perspectiva sociológica para o estudo do direito, o debate em torno da regulação e da emancipação social, até chegar às condições para o direito ser emancipatório, com destaque para as ameaças atuais.
Durante a sua apresentação, me chamaram a atenção as seguintes questões: o direito pode ser um aliado das lutas sociais; a mobilização jurídica deve ser precedida de mobilização política; na luta jurídica, busca-se a possibilidade de alterações legislativas e interpretações das constituições conforme os direitos dos oprimidos; o papel dos advogados e advogadas populares na mobilização das causas populares; as concepções de direito que olham as classes populares e os seus conhecimentos (ecologia de saberes jurídicos); e o olhar para as sociedades a partir daqueles que não têm direitos, dos que estão excluídos.
Todas essas questões estão presentes desde o princípio das discussões de O Direito Achado na Rua, como pode ser observado nos sete volumes da série que leva o mesmo nome, publicados desde 1987**, e, mais recentemente, resgatadas e atualizadas no livro lançado em outubro/2015 no Brasil: “O Direito Achado na Rua: concepção e prática”, sob a coordenação do professor José Geraldo de Sousa Junior***. Além disso, também são questões que estão refletidas nas pesquisas dos integrantes do nosso grupo de pesquisa, seja da graduação em Direito, dos mestrados em Direito e em Direitos Humanos e do Doutorado em Direito (Universidade de Brasília).  
Destaca-se, ainda, no referido encontro, uma das sessões temáticas intitulada “Experiências do Direito na Rua”, que oportunizou às pessoas que participaram naquela manhã de sábado um bom debate, puxado, inicialmente, pela apresentação do trabalho “Exigências críticas para a assessoria jurídica popular: contribuições de O Direito Achado na Rua”****, seguido de outra apresentação sobre o direito à cidade. A rua foi o ponto de ligação entre as apresentações e o debate oportunizou o conhecimento sobre as pesquisas atuais do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, sobre as suas contribuições teórico-práticas e como estas têm tido repercussão dentro e fora do Brasil.
Por fim, outro evento ocorrido ainda em janeiro e que dialogou com as questões acima foi o Seminário do DIJUS – Diálogos Interdisciplinares sobre Direito e Justiça, com o tema: “Direitos sociais: competências do legislativo e do judiciário”. Na oportunidade, dialoguei com o magistrado brasileiro Diógenes Ribeiro e com o professor António Casimiro Ferreira (FEUC/UC), focando na atuação dos movimentos sociais na construção das políticas públicas de saúde mental no Brasil, na perspectiva de O Direito Achado na Rua. Refletindo sobre a atuação do legislativo e do judiciário, discuti a repercussão do primeiro caso em que o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, o caso Damião Ximenes Lopes, que envolve questões de ativismo jurídico transnacional, instrumentos e mecanismos de garantia de direitos humanos e, sobretudo, a atuação dos movimentos da Luta Antimanicomial no Brasil, que continua intensa.
E o que o carnaval tem a ver com isso?! O carnaval acontece na rua, nos espaços públicos, “onde se dá a formação de sociabilidades reinventadas”, como já lembrou o professor José Geraldo... ou, como refletido na proposta de “epistomologia jurídica carnavalizada”, de Luis Alberto Warat, assim seguimos... “eu quero é botar meu bloco na rua...”*****.


* Ludmila Cerqueira Correia é advogada popular, extensionista e pesquisadora. Doutoranda em Direito, Estado e Constituição no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília, integrante do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, bolsista CAPES em estágio doutoral no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Professora do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba e Coordenadora do Grupo de Pesquisa e Extensão Loucura e Cidadania. Integrante da RENAP e do IPDMS. 

** Disponível em: <http://odireitoachadonarua.blogspot.pt/p/publicacoes.html>.

*** Disponível em: <https://www.lumenjuris.com.br/product/o-direito-achado-na-rua-concepcao-e-pratica-2015/>

**** Trabalho em co-autoria: Ludmila Cerqueira Correia, Antônio Sérgio Escrivão Filho e José Geraldo de Sousa Junior.


***** Música de Sérgio Sampaio: <https://www.letras.mus.br/sergio-sampaio/236958/>








sábado, 13 de fevereiro de 2016

Direito relembra trajetórias de Roberto Lyra Filho e Luis Alberto Warat

15 de enero de 2016 UnB lembra a Luis Alberto Warat Direito relembra trajetórias de Roberto Lyra Filho e Luis Alberto Warat Ex-professores da UnB se destacaram por pensar em alternativas à prática jurídica amarrada em ritos e normas (1/07/2011). Roberto Lyra Filho e Luis Alberto Warat marcaram gerações de pesquisadores na Faculdade de Direito da UnB. O primeiro era carioca e fundou o Direito Achado na Rua, corrente alternativa aos dogmas normativos. O segundo era o argentino Luis Alberto Warat, que se destacou por incluir poesia e arte na prática jurídica. Os dois foram homenageados no ciclo de debates que comemora os 25 anos do Núcleo de Estudos para a Paz e Direitos Humanos da UnB. “São pensamentos profundamente humanizados e que valorizam o afeto, em detrimento do autoritarismo e da burocracia”, defende a professora Nair Bicalho, coordenadora do NEP. Segundo ela, o encontro entre os dois pensadores por meio de seus discípulos é um compromisso com a teoria crítica do direito e com a sociedade. Lyra Filho morreu em 1986, e Warat em 2010. O reitor José Geraldo de Sousa Júnior viveu todas essas experiências. Foi orientado por Lyra no mestrado e por Warat em seu doutorado. Para ele, ambos buscavam a emancipação. “Eles tinham uma perspectiva instigadora para transformar nossas próprias atitudes na universidade e na própria existência”, diz. Tanto Warat como Lyra sofreram por pregar a liberdade durante os anos de repressão. “Por muitos momentos, ambos foram ridicularizados pela Academia”, diz Fábio Sá e Silva, pesquisador da Eastern University, nos EUA. “Quando alguém dá voz aos oprimidos a academia tem uma postura reticente”, afirma Nair Bicalho. Roberto Lyra foi um dos fundadores do curso de Direito da UnB, em 1962. Aqui, evoluiu seu pensamento dos estudos dogmáticos para uma perspectiva libertadora, fundando a teoria do Direito Achado na Rua. Usando as bases da dialética marxista, buscou uma libertação conscientizadora. Seu trabalho era uma resposta às demandas de populações mais carentes, onde, muitas vezes, o direito formal não chega.“A tarefa principal era criar uma ciência jurídica sem dogmas, sem se reduzir às normas”, diz Antônio Wolkmer, professor da Universidade Federal de Santa Catarina. “O direito tem um aparato formalista, burocrático e essas organizações comunitárias acabam organizando-se sozinhas para resolver seus problemas e criar direitos”. Luis Alberto Warat também deixou sua marca na UnB. Dentre os palestrantes de hoje, poucos definiam o jurista em uma só palavra. “Warat é muita coisa”, disse o professor Cloves Araújo, da Universidade Federal da Bahia. O jurista chegou ao Brasil em 1968. Em 1972 inaugurou na Universidade Federal do Rio de Janeiro a disciplina Semiologia em Direito, inédita na América Latina. A evolução de seu pensamento parte da crítica à epistemologia do direito e chega a uma total ruptura com os dogmas do cientificismo. Ele criou conceitos como o "surrealismo jurídico" e a "carnavalização do Direito". Chegou à UnB em 1980, para cursar o pós-doutorado na UnB e voltou em 2005 já como professor. Mesmo depois de 30 anos de Brasil, era um legítimo praticante do portunhol e pregava uma vivência baseada na poesia. Criou os Cabarets Surrealistas, eventos sem lógica formal, que convidavam estudantes de Direito a praticar teatro, música e poesia. “Foi uma espaço de reafirmação da ruptura proposta por Warat”, diz Carolina Torkaski, que participou do primeiro Cabaret. A ideia era combater a “pinguinização” conceito criado por Warat. Um pingüim é o último estágio do estudante de direito, vestido de branco e preto, duro e fechado após abandonar todos os sonhos e ideais de calouros. “Hoje os estudantes já entram sem brilho nos olhos”, analisa Juliana Magalhães, professora da UFRJ. O reitor José Geraldo defende que, para evitar esse processo, é preciso engajar os alunos no protagonismo criativo do Direito, como fazem projetos de extensão como o Promotoras Legais Populares, que capacita mulheres líderes comunitárias em noções de direito, gênero e cidadania. “É um direito formado no diálogo, que constrói a liberdade e emancipação das mulheres”, diz a mestranda Lívia Gimenez. Para o professor Alexandre Costa, da FD, a salvação está na extensão universitária. “O que realiza e modifica o Direito é a inserção desses estudantes na sociedade”, afirma. O Direito Achado na Rua tornou-se uma linha teórica difundida por todo o Brasil e no exterior. O quarto livro da série, Crítica ao Direito da Saúde: o Direito Achado na Rua, por exemplo, terá 40 mil exemplares em espanhol. No segundo semestre de 2011 sai o quinto volume, sobre Direito e Gênero. Fuente: Secom UnB. Publicado por Casa Warat en 16:51

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Cartas de Bologna: famílias arco-íris, normatividades e reação conservadora em torno do decreto lei Cirinnà na Itália




*Patrícia Vilanova Becker
E eis que volto, após um mês no Brasil matando saudades infinitas. E poucos dias depois do meu retorno à Bologna sou recebida pelo movimento Svegliati Italia, ou melhor, #svegliatItalia (tradução: 'desperta, Itália'), que levou milhares de pessoas às praças de diversas cidades da Itália no dia 23 de janeiro. Em Bologna, onde as praças não costumam ficar vazias por muito tempo, não foi diferente.

“Famiglia è dove c’è amore”
Itália enfrenta uma questão semelhante ao Brasil quando nos deparamos com propostas legislativas (bem intencionadas) que buscam reconhecer direitos negados pelas frentes conservadoras, mas que, ao mesmo tempo, trazem o risco de instaurar normatividades que capturam e normalizam a insurgência na qual parte dos movimentos transfeministas-queer-LGBT sentam suas pautas.

“Família é onde há amor”, diz o slogan em prol das chamadas "famiglie arcobaleno" ('famílias arco-íris'). E assim a ctica à família enquanto instituição patriarcal destinada à transmissão de propriedade e à preservação das classes sociais perde sua radicalidade. Família é também onde há estupros, abusos, silenciamentos, sexismo, institucionalidades. Família é também onde há Estado.

De outra parte, é visível que o movimento #svegliatiItalia levou às ruas pessoas que não possuem práticas políticas coletivas nas suas rotinas cotidianas, conseguindo conglomerar pessoas progressistas em torno da pauta do casamento igualitário, mas que não estão necessariamente lutando contra as cis-hetero-normatividades europeias e hegemônicas.

Chegando na Piazza Nettuno em Bologna, deparei-me com um conglomerado de bandeiras. Socialistas, comunistas, Partido Democrático, juventudes estudantis, ONGs… aos montes, reuniam-se supostamente em torno de uma pauta comum. Busquei, como de costume, fazer uma cartografia mínima do território e procurei a “minha bandeira”. Amontoei-me, quase instintivamente, perto da Favolosa Coalizione, frente transfeminista e queer local, que trazia cartazes que desafiavam as bases do movimento que se instaurava.

Segundo Matteo Renzi em il Fatto Quotidiano, “una legge ci vuole”, ou seja, uma lei é necessária. E afirma que “somos [italianos] os únicos da união Europeia sem ter uma lei”.  E assim, os movimentos transfeministas-queer-LGBT se deparam com a difícil decisão de como comportar-se diante da pauta do reconhecimento do casamento igualitário que - ao conseguir congregar o apoio desde alas progressistas, liberais e algumas conservadoras - desperta dúvidas inevitáveis acerca de seu caráter normalizador.
“Molto più di Cirinnà”
“Muita mais que Cirinnà”, diziam os cartazes da Favolosa Coalizione. O decreto lei Cirinnà (ddl Cirinnà) traz uma proposta de união civil similar ao matrimônio, criando um novo instituto que concede direitos como a adoção “Step Child”, ou seja, adoção do filho biológico de uma das pessoas do casal pela outra companheira. Segundo o ativista queer Renato Busarello em entrevista à Kaos GL Magazine, “inclusive o movimento mainstream LGBT optou pelo reconhecimento apenas da união civil, como um primeiro passo para o casamento igualitário”. Segundo o ativista, a polêmica em torno da lei gira especialmente acerca do capitulo 5 onde a adoção  “Step child” é prevista: “para conservadores e católicos, isto poderia abrir para o reconhecimento de todas as forma de adoção para pessoas homossexuais”, afirma.

Segundo o ativista “Enquanto grupos transfeministas e queer, apoiamos a luta contra a homofobia e pela igualdade do movimento LGBT mainstream, mas temos focado no que nós chamamos de “outras intimidades”, redes de afetividade, relações não monogâmicas e não românticas, e colocamos no topo da agenda a autodeterminação de indivíduos e grupos, renda universal básica e bem estar para todas as pessoas, direito à informação e à educação sobre sexualidade, abolição dos privilégios econômicos da Igreja Católica. A nova lei, se não for transformada pelo Parlamento em uma lei discriminatória de compromisso, mudaria o imaginário das pessoas LGBT na Itália, e certamente seria uma mudança positiva para pessoas LGBTQ e comunidade.”

A chamada para o ato feita pela Favolosa Coalizione provocava: “Nos sentimos esmagadas de uma parte pela comunidade lgbt nacional que aspira e reproduz um modelo normalizado (ou seja, uma “família do Mulino Bianco homossexualizada” <<o equivalente à ‘familia Doriana’>>) e de outra parte pela falta de tutela que responda às nossas necessidade e desejos cotidianos, independentemente do tipo de relações afetivas vividas”

Family Day
A reação conservadora ocorreu hoje em 30 de janeiro em algumas cidades italianas reunindo grupos conservadores no chamado Comitato difendiamo i nostri figli - "em defesa da família e das crianças". Os números anunciados pelas entidades organizadoras que giram 2 milhões de pessoas viraram piada na internet, diante de fotos onde era visível a baixa adesão. Se me permitem a analogia, hoje senti na Itália algo similar ao que sentia em Brasília nos domingos verde e amarelo de #impeachment.

A reação conservadora em torno das pautas LGBT na Itália é tão intensa que faz a tímida lei Cirinnà parecer uma transgressão intolerável. E assim, por hora, vou observando. Buscando paralelos que me permitam pensar em nossos próprios problemas brasileiros, envolvendo um Congresso cada vez mais conservador que representa um risco de retrocessos às pautas LGBTQ e feministas - pautas onde avanços são obtidos primordialmente via Judiciário no contexto da luta histórica dos movimentos sociais. Também nos Brasil, nossas propostas legislativas em torno das pautas transfeministas-queer-LGBT dividem os movimentos, que muitas vezes se sentem diante de verdadeiras armadilhas quando para se ter direitos reconhecidos na dimensão legislativa é preciso ser capturada por normatividades que violentam identidades divergentes.
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*Patrícia Vilanova Becker integra o Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua; mestranda em Direito pela UnB, participa atualmente do Programa Erasmus Mundus Master´s Degree in Women's and Gender Studies na Universidade de Bolonha e Universidade de Oviedo.