quinta-feira, 26 de setembro de 2024

 

Quem quer a Paz Trabalha para a Paz

Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF

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Proponho esse título para me contrapor a uma expressão tradicional que sempre me incomodou: “Si vis pacem, para bellum”, pronunciada em latim, frequentemente interpretada como uma forma de dizer que a paz é alcançada através da força, ou seja, que uma sociedade forte é menos propensa a ser atacada. “Se queres a paz, prepara-te para a guerra”.

Talvez uma remissão à dimensão política da guerra, que desde Julio César – Commentarii de BelloGallico(latim para “Comentários sobre a Guerra Gálica”) o César relata as operações militares durante as Guerras da Gália, que se desenrolaram de 58 a.C. a 52 a.C., das quais ele foi vencedor, para dar ênfase em parecer eficiente, decisivo e direto, e oferecer sua visão sobre como a guerra deve ser travada e justificar o conflito como ação política, inevitável e necessária.

Da Guerra, é um livro sobre guerra e estratégia militar do general prussiano Carl von Clausewitz, escrito principalmente após as guerras napoleônicas, entre 1816 e 1830, e publicado postumamente por sua esposa Marie von Brühl em 1832. No entendimento de Clausewitz,“guerra é ação política forte que envolve não somente fortes sentimentos como também um caráter transformador da realidade”. Pare ele, “guerra é, portanto, um ato de força para obrigar o nosso inimigo a fazer a nossa vontade”. Por meio dessa frase, o estrategista prussiano estabelece uma importante relação, explicando que a guerra, por não ser autônoma, é a extensão da política. Numa frase: “A guerra é a continuação da política por outros meios”.

Em todo caso, uma condição invariável que conduz, como mostra o Dom Carlos (Shakspeare, Friedrich Schiller), diante da interpelação de Filipe II pelo Marquês de Posa, íntimo do príncipe protagonista, sobre o que pretendia fazer com os domínios flamengos do império e constar na afirmação de Filipe que o seu “projecto” é idêntico ao que pratica na “sede” – a paz.  Ao que Posa responde desafiadoramente: ” estaSire, não é a paz dos cemitérios?”. A paz que a abreviatura RIP da expressão latina requiescat in pace, que significa “descanse em paz”, indica para desejar paz após a morte, para a retirada irremediável da luta pela vida.

Curioso que no mesmo período, marcado pelas guerras napoleônicas, outro notável escritor Lev Tolstói tenha escrito um romance monumental Guerra e Paz (1869).Não sei se há relação, mas é sabido quedurante a década de 1870, Tolstói experimentou uma profunda crise moral, seguida do que ele considerou um despertar espiritual igualmente profundo, conforme descrito em seu trabalho não-ficcional A Confissão (1882), o que certamente o conduziu a uma postura fervorosa anarquista cristã e pacifista, aplicada ao valor da educação e da comunicação. Ele próprio fundou 13 escolas para crianças camponesas que acabavam de ser emancipadas pela reforma de 1861. Tolstói descreveu os princípios educacionais em seu ensaio The SchoolatYasnaya Polyana (1862). No entanto, suas experiências pedagógicas duraram pouco por conta do assédio imposto pela polícia secreta czarista. Tolstói pode ser considerado o precursor da liberdade na educação escolar, além de ser pioneiro na aplicação teórica da gestão democrática nas escolas.

É de Tolstói o conceito de não-violência ou Ahimsa reforçado quando ele leu uma tradução alemã dos versos sagrados Tirukkural. Mais tarde, ele sugeriu esse estilo de vida ao jovem Mahatma Gandhi, com quem se correspondia e aconselhava, como se pode conferirem sua Carta ao Hindu.

A referência a Tolstói e a Gandhi, vem a propósito de uma conversa com o Dr. Ulisses Riedel, idealizador com Isaac Roitman e outros colegas da UnB, Professor Mário Brasil (CEAM), Nair Bicalho (NEP – Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos), dessa Tribuna Livre pela Paz, em seguida à exposição do Professor Cristovam Buarque. Me surpreendeua interpelação do humanista e teósofo, em pretender conferir aos diálogos que a TV Supren propaga, uma disposição de cientificidade.

Eu pensava ser mais próximo da agenda da Tribuna, ver transparecer como em JidduKrishnamurti, conforme depreendi no programa Diálogos Sobre a Vida, no qual Marcos Resende e Eduardo Weaver refletem sobre “A Paz Em Nós e a Paz do Mundo”, a perspectiva de que para que a paz seja alcançada no mundo, cada pessoa deve fazer as pazes consigo mesma, buscando alcançar  um estado de harmonia ou tranquilidade, sem conflitos ou violência, experenciando em diferentes níveis, na vida pessoal, profissional, em família, com amigos, ou mesmo globalmente, o respeito a vida, a rejeição à violência, a generosidade, o ouvir para compreender, a preservação do planeta, a redescoberta da solidariedade.

Ou artisticamente, como em Fernando Pessoa, pelo sensacionismoteopoético – “Quero sentir tudo de todas as maneiras” – de seu heterônimo Álvaro de Campos, no poema Dá-nos a Tua paz, (Álvaro de Campos – Livro de Versos. Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.  – 25)

Pensando como integrante da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília, tenho que, se queremos a paz devemos trabalhar para a Paz. No sentido a que alude o lema da CJP: “Se queres a paz, trabalha pela justiça”. Porque, construir a paz é contribuir para a formulação de propostas que visem solucionar questões ou desafios identificados no campo dos direitos humanos universais, da promoção da justiça, condição para a edificação da paz.

Na Pacem in Terris (11 de abril de 1963) | João XXIII, num tempo tenso de reconstrução do pós-segunda guerra, mas no rico contínua de uma “guerra fria”, convocou para a construção deum mundo onde a paz seja alcançada pelos governos dedicados ao cumprimento dos direitos humanos e onde as instituições globais seriam estabelecidas para atender às necessidades globais.

Atualmente, o Papa Francisco, atento aos conflitos do que já caracteriza com uma terceira guerra mundial em pedaços, tem relativamente à paz, o entendimento de que ela é uma construção que requer compromisso, colaboração e paciência; para ser duradoura só pode ser uma paz sem armas, por isso ela precisa estar nas mãos do povo, pois ela é fruto de relações que reconhecem e acolhem o outro na sua dignidade inalienável.

Todo esforço pela paz implica e requer um compromisso com a justiça. A paz sem justiça não é paz verdadeira, não tem fundamentos sólidos nem possibilidades de futuro. A justiça não é uma abstração ou uma utopia, é o cumprimento honesto e fiel de um dever:Não é apenas o resultado de um conjunto de regras a aplicar com competência técnica, mas é a virtude pela qual damos a todos aquilo que lhe diz respeito, indispensável ao bom funcionamento de todas as áreas da vida comum e de todos para levar uma vida tranquila.”

A cada ano o Papa proclama mensagens pelo dia mundial da paz (1º de janeiro). Agora em 2024, o núcleo da mensagem éninguém pode salvar-se sozinho; recomeçarmos juntos a partir da Covid-19 para traçar caminhos de paz; compreender que a tecnologia é resultado do potencial criativo da pessoa humana; a  necessidade de discernimento no uso de dados e conteúdos da internet; ter consciência de que o vírus da guerra é mais difícil de derrotar do que os vírus que atingem o organismo humano; cuidar para que a Inteligência Artificial possa promover o desenvolvimento humano desde que seja utilizada de forma ética.

Volto à exortação do Dr. Ulisses Riedel. Instalada na UnB, no Memorial Darcy Ribeiro, é sim importante que A Tribuna Livre pela Paz, esteja integrada à perspectiva da racionalidade científica, na sua dimensão paradigmática do complexo, do multi, inter e transdiscisplinar que organizam o protocolo do conhecimento no contemporâneo. A paz como campo de estudo, de pesquisa, como modo de conhecer.

É pertinente essa exortação. Desde seu estatuto, a UnB insere em seu projeto (universidade necessária), a atualização de suas finalidades, nelas inscrita a condição de inclusão, de completude, de lealdade com o social (universidade emancipatória) assumindo o compromisso, conforme as finalidades essenciais inscrita no seu Estatuto  Art. 3º, item XII  com a paz, com a defesa dos direitos humanos e com a preservação do meio ambiente.

Em Educando para os Direitos Humanos: Pautas Pedagógicas para a Cidadania na Universidade. Organizadores: José Geraldo de Sousa Jr, Nair Heloisa Bicalho de Sousa, Alayde Avelar Freire Sant’Anna, José Eduardo Elias Romão, Marilson dos Santos Santana, Sara da Nova Quadros Côrtes. Porto Alegre: Editora Síntese, 2004, anotamos que a inserção dos temas Paz e Direitos Humanos, para conduzir as reflexões temáticas neste novo modelo, derivou de duas motivações complementares. No primeiro termo, -a eleição naquele ano do Reitor CRISTOVAM BUARQUE para a Presidência do Conselho da Universidade para a Paz, das Nações Unidas, com sede em San José, Costa Rica, criando condições para a celebração de um protocolo de intenções entre aquela Universidade e a UnB, para o desenvolvimento de um programa comum.

O protocolo, assinado na cidade de Yxtapa (México), pelo escritor colombiano Gabriel Garcia Marques, Prêmio Nobel de Literatura, na qualidade de testemunha, pedia um ambiente universitárioadequado ao desenvolvimento dos seus termos. Este ambiente, na UnB, foi o NEP,  criado em 1º de janeiro de 1986, como Núcleo de Estudos e Pesquisas para a Paz e os Direitos Humanos.  Para alcançar os seus objetivos, o NEP se propôs, conforme os seus documentos constitutivos, a: (1) desenvolver pesquisa capaz de produzir conhecimento novo sobre a paz e os direitos humanos, reunindo investigadores de diferentes campos científicos num esforço interdisciplinar; (2) manter programa permanente de ensino e pesquisa no âmbito da universidade e da comunidade; (3) divulgar os conhecimentos sobre a paz e os direitos humanos, mediante publicações de resultados de pesquisas, do próprio NEP e de centros congêneres. Organizar seminários, cursos e atualizações, e promover conferências, colóquios, exposições e eventos; (4) efetuar intercâmbios com centros similares; e (5) oferecer à comunidade acesso às suas atividades.

A atuação consolidada do NEP levou à especificação de três linhas principais de estudos e pesquisa: O Direito Achado na Rua e Os Direitos Humanos e Cidadania;  a pesquisa para a paz, propriamente dita, instituída e coordenada pelo Professor NIELSEN DE PAULA PIRES e focalizada nos estudos de graduação (disciplina pesquisa para a paz) e de pós-graduação. O professor Nielsen aliás, foi Diretor do CEAM e, originado do Instituto de Ciências Políticas acabou institucionalizando nessa unidade, como vocação fomentadora do CEAM, a campo de estudos e pesquisas sobre a paz.

Ainda no CEAM, os esforços para institucionalizar epistemologicamente os estudos e as pesquisas para a paz, se deram pela interlocução internacional com os setores avançados nessa área, relevo para a cooperação coma IPRA – International Peace ResearchAssociation.

Nessa interlocução a fonte principal de referência foi Johan Galtung, professor e pesquisador norueguês que se insurgiu contra a naturalização da guerra na política internacional e reorientou o debate acadêmico sobre a paz durante a Guerra Fria. Galtung faleceu neste ano de 2024, no dia 17 de fevereiro, aos 93 anos de idade. Ele deixou um legado intelectual importante, que abrange contribuições seminais sobre tópicos tão diversos como os conceitos de violência direta-estrutural-cultural, o conceito de paz negativa e paz positiva, o imperialismo e suas implicações para a paz, as noções de peacekeeping, peacemaking e peacebuilding, a resistência não violenta, bem como o conceito de transformação de conflitos.

Para uma referência mais direta remeto a https://diplomatique.org.br/johan-galtung-paz/, de modo a reter de Galtung, a sua indicação de que a equação da paz que daí emerge é complexa e levanta desafios imensos no campo da resolução de conflitos e construção da paz, apontando para a necessidade de um conjunto abrangente de medidas que engloba não só os tradicionais mecanismos diplomáticos de cessação da violência direta (negociação, mediação, acordos de paz), mas também ações mais ambiciosas, voltadas para a transformação das raízes estruturais da violência (desenvolvimento social e econômico, redução da pobreza e das desigualdades, paridade de gêneros, ampliação das oportunidades de acesso à saúde, educação, habitação e à terra, aumento da participação política, combate aos mecanismos de opressão e exploração, justiça de transição, etc.) e para a transformação das raízes culturais da violência (educação e comunicação para a paz, revisão de mitos e narrativas históricas, atividades culturais e artísticas que desconstruam estereótipos e promovam a reconciliação e a tolerância etc.).

Forte nessas referências, dirijo a atenção para a edição temática – Guerra e Paz – da Revista Humanidades. Brasília: Editora UnB, nº 18, ano V/1988. A edição contou com a colaboração de Clóvis Brigagão, Secretário-Geral da IPRA no Brasil (International Peace ResearchAsociation). Na abertura, o texto-editorial do Reitor Cristovam Buarque, contextualiza a proposta editorial: “A luta pela paz exige o entendimento, o esclarecimento, a denúncia e a reformulação do próprio conceito de guerra – ampliando-o a todas as formas de destruição do patrimônio humano, provocadas, contraditoriamente, pelo poder e esforço criativo do homem. Nesta luta de ideias, pela paz singular contra todas as guerras, a educação é o principal fator, a escola o principal exército. Mas um fator que não cumprirá o seu papel se for apenas um agente propagandístico. É preciso que a escola que busque a paz seja uma escola que busque desvendar o véu que encoberta todas as formas de relações injustas entre os homens”.

E, certamente, a dimensão educadora e política da abordagem do tema, leal aos paradigmas acadêmicos de racionalidade epistemológica, estão em concordância com os pressupostos do que a UNESCO já fixou como Cultura de Paz. Uma perspectiva presente no teto de Cristovam mas, igualmente, no texto contextualizador de VicençFisas no pressuposto de que “o conceito de paz não se refere somente à ausência de guerra mas relaciona-se com a ausência de qualquer tipo de violência que impeça a satisfação de necessidades humanas básicas. Assim, a paz se caracteriza ‘por um elevado grau de justiça e uma expressão mínima de violência’. Trata-se da possibilidade de reencontro do ser humano com seu ambiente social, político, econômico, tecnológico e ecológico, em termos de equilíbrio e isento de opressão”. Dito de forma sintetizadora, com o escritor e poeta Tetê Catalão, um dos editores: “Se é de paz, faz…”.

Ao fim e ao cabo, trata-se de conectar, a partir das tradições ancestrais, muito presente na UnB, a quem o Conselho Universitário outorgou o título de Doutor Honoris Causa, e um dos mais recentes intelectuais admitidos na Academia Brasileira de Letras, Ailton Krenak. Em discurso em prol da coletividade, da tolerância, da ciência e da paz, proferido em abertura de semestre na UnB (aliás, foi também na UnB que ele cunhou a expressão que dá título a um de seus livros – Ideias para Adiar o Fim do Mundo, Krenak toca a sensibilidade dos estudantes quanto à expectativa que têm das universidades.Krenak vislumbra como horizonte: “produzir ciência e conhecimento que auxilie o mundo a viver em paz”, ciente de que a paz é resultado de lutas. “Ciência. Ciência. Ciência. Paz. Paz. Paz, ciência”. “Paz não é um orvalho da manhã, mas resultado de resistência e luta“, O Bem Viver pode ser a difícil experiência de manter um equilíbrio entre o que nós podemos obter da vida, da natureza, e o que nós podemos devolver. É um equilíbrio, um balanço muito sensível e não é alguma coisa que a gente acessa por uma decisão pessoal (KRENAK, Ailton. Caminhos para a cultura do bem viver. São Paulo, Cultura do Bem Viver, 2020).

Num Brasil de quebradas, num Brasil com s, sufocado por um Brazil com z (Aldir Blanc, Querelas do Brasil), qual a paz que queremos, qual a paz a construir. Essa é a função da atitude científica para conhecer a paz; a disposição sensível já exibe a paz que não queremos, como em Minha alma (A paz que eu não quero), canção de O Rappa (https://www.youtube.com/watch?v=vF1Ad3hrdzY):A minha alma ‘tá armada/E apontada para a cara do sossego/Pois paz sem voz paz sem voz/Não é paz é medo…

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

 

Silêncio Perpétuo? Anistia e transição política no Brasil (República Velha e Era Vargas)

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Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

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Mauro Almeida Noleto. Silêncio Perpétuo? Anistia e transição política no Brasil (República Velha e Era Vargas). Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares da Universidade de Brasília (PPGDH/CEAM/UnB), 2024, 335 fls.

 

Integrei a Banca Examinadora, presidida pelo Orientador professor Menelick de Carvalho Netto e formada ainda pela professora Juliana Neuenschwander Magalhães, da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pelos professores José Carlos Moreira da Silva Filho, da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e Mamede Said Maia Filho, da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB).

Desde logo, com a dupla satisfação de um reencontro. Primeiro, pelo que política e epistemologicamente nos liga, já anotado por Mauro nos agradecimentos com que abre a tese, no que me toca por, diz ele, lhe ter apresentado “ao Direito como libertação e me   ter acolhido, desde a graduação, na reflexão crítica da matriz teórica de O Direito Achado na Rua‘furando os colchões da rotina e da opinião vulgar’. Posso dizer, mais de três décadas depois desse encontro, que aqueles anos de formação foram decisivos e me orientam na caminhada desde então”.

Depois, acompanhando o seu percurso, no que tenho registrado em comentários e prefácios a trabalhos seus – https://estadodedireito.com.br/subjetividade-juridica-a-titularidade-de-direitos-em-perspectiva-emancipatoria/ – NOLETO, Mauro Almeida. Subjetividade Jurídica. A Titularidade de Direitos em Perspectiva Emancipatória. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, ao me debruçar sobre seus livros, um deles fruto da dissertação que tive o gosto de orientar, na Faculdade de Direito da UnB para recuperar do autor, estudos mais avançados – https://estadodedireito.com.br/sujeitos-de-direito-ensaios-criticos-de-introducao-ao-direito/ – NOLETO, Mauro. Sujeitos de Direito. Ensaios Críticos de Introdução ao Direito. São Paulo: Editora Dialética, 2021, que prefaciei, e no qual Mauro analisa “a temática dos direitos (subjetivos) humanos enquanto bases para uma práxis jurídica emancipatória, na qual a hermenêutica pode assumir um papel de destaque no reenquadramento dos significados jurídicos das práticas sociais, conforme as pautas éticas de realização de uma ordem democrática. Os direitos humanos são encarados aqui sob a luz de sua historicidade e complexidade, afastando-se as interpretações idealistas e naturalizadas”.

Sobre a sua tese, tomo o resumo:

A tradição de conciliação via anistia tem prevalecido no Brasil desde os primórdios da nacionalidade e se mostrou ainda mais presente ao longo de todo o período republicano, desempenhando papel importante nas “aberturas”, isto é, nas transições para os regimes de restauração da constitucionalidade democrática. Mas, há muito silêncio sobre como se deu a fixação dessa tradição na rotina institucional e política. As anistias parecem ter conseguido, pelo menos parcialmente, promover um duplo silenciamento: dos crimes abrangidos pelo seu comando de esquecimento e dos próprios fatos e circunstâncias políticas que determinaram as sucessivas edições da medida ao longo da história republicana. No entanto, a concessão da medida nem sempre conseguiu de fato impedir a irrupção de novos surtos de violência política, insurreições e até mesmo de golpes de Estado. Ao contrário, pode ter contribuído para a manutenção desse quadro latente de ruptura institucional. Por outro lado, a promessa de esquecimento dos crimes anistiados também não foi cumprida à risca, como o demonstra a luta por direitos de reparação ou restituição de status civil e militar de muitos grupos de anistiados durante todo o período republicano. A tradição conciliatória, em que as anistias se inserem, por muitas vezes silenciou as vozes dissonantes, as críticas aos abusos e distorções cometidos com o emprego concreto da medida e a sua relação essencial com o “estado de exceção” e com a impunidade dos abusos da repressão, tudo em nome de um uso idealizado e exemplar, em que a anistia é vista como instrumento (mágico) de pacificação pelo silenciamento das disputas passadas. A hipótese aqui aventada é a de que, ao comandar reiterada e sucessivamente o esquecimento de um passado de conflitos políticos e de repressão violenta (os “crimes conexos”), as anistias editadas em momentos de transição de regimes no Brasil acabaram por acomodar e camuflar a presença (ou a ameaça) da exceção e do arbítrio na ordem constitucional ao longo do tempo, naturalizando tanto o recurso à violência para a tomada do poder, quanto a repressão política de exceção aos “inimigos” do Estado. Mas, ao criar restrições, condições e exclusões, de modo a satisfazer interesses políticos dos regimes de força, as anistias de transição entram em contradição com o seu sentido comum, o esquecimento (silêncio perpétuo) e até mesmo a conciliação.

 

Aliás, antes mesmo de completar a leitura da tese, vali-me desse resumo, para situar artigo de opinião recém publicado  – https://brasilpopular.com/autoanistia-uma-violencia-inconstitucional-e-inconvencionaldo-delinquente-a-fim-gerar-sua-impunidade/. Com efeito, bem na linha de advertência que a tese traz, vi ser urgente confrontar consulta pública aberta no Senado, nos termos regimentais, a propósito do PROJETO DE LEI nº 5064 de 2023 (PL 5064/2023), que concede anistia aos acusados e condenados pelos crimes definidos nos arts. 359-L e 359-M do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, em razão das manifestações ocorridas em Brasília, na Praça dos Três Poderes, no dia 8 de janeiro de 2023.

 

A autoria da proposição é do General-Senador Hamilton Mourão (REPUBLICANOS/RS), sabidamente, basta conferir seus atos e pronunciamentos, um possível beneficiário futuro a depender do curso das investigações e dos indiciamentos, assim como de seu anterior superior no governo, a quem serviu e escudou com fidelidade.

Curiosamente o projeto exclui da anistia os executores dos delitos e serve de escapismo complacente, aos que dele se beneficiam ou se beneficiarão. É a lição de Maquiavel: “para os amigos tudo; para os inimigos a lei”. Diz o projeto: “Esta Lei não alcança as acusações e as condenações pelos crimes de dano qualificado, deterioração de patrimônio tombado e associação criminosa, porventura ocorridas em razão das manifestações indicadas no caput deste artigo”.

A justificativa do projeto me soou como um acinte à dignidade da política e uma afronta à Justiça: “As manifestações ocorridas no dia 8 de janeiro de 2023, em Brasília, constituem conduta deplorável, que merece nossa reprovação, pelo nítido caráter antidemocrático do movimento. Todavia, não se pode apenar indistintamente aqueles manifestantes, pois a maioria não agiu em comunhão de desígnios. Ocorre que os órgãos de persecução penal não têm conseguido individualizar as condutas praticadas por cada um dos manifestantes. Diante dessa realidade, é inconcebível que sejam acusados e condenados indistintamente por crimes de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito”.

Mas, simultaneamente, uma confissão e uma mobilização, sem justa causa e sem base constitucional ou convencional ((sistema internacional de direitos, especialmente Corte Interamericana de Direitos Humanos), para impor silêncio perpétuo à delinquência que tolerou.

Por isso que, no meu artigo, indiquei ter retirado a expressão silêncio perpétuo, de tese que estou lendo para defesa ainda neste mês de setembro (Mauro Almeida Noleto. Silêncio Perpétuo? Anistia e transição política no Brasil (República Velha e Era Vargas). Faculdade de Direito da UnB. Claro que considerei haver um recorte temporal na tese, para cumprir cronograma de apresentação do trabalho. Mas salientei que a consideração do autor, na tese, é atemporal: “ao comandar reiterada e sucessivamente o esquecimento de um passado de conflitos políticos e de repressão violenta (os ‘crimes conexos’, as anistias editadas em momentos de transição de regimes no Brasil acabaram por acomodar e camuflar a presença (ou a ameaça) da exceção e do arbítrio na ordem constitucional”.

É certo, também, que a consulta refere a mais uma iniciativa inscrita no móvel da anistia como esquecimento, como uma forma de “passar pano na delinquência política”. Assim que em outra oportunidade, tive ensejo de abordar o tema, conforme https://brasilpopular.com/artigo-repudio-culpabilidade-justica-e-responsabilizacao/, a propósito de abonar entendimento que considero certo,  que sustentam que é hora de falar em punição e não em pacificação, como o faz Milly Lacombe, colunista do UOL (https://www.uol.com.br/esporte/colunas/milly-lacombe/2022/11/05/e-hora-de-falar-em-punicao-e-nao-em-pacificacao.htm).

Pois, na linha da melhor orientação da chamada justiça de transição, acentua que repúdio, culpabilidade, justiça e responsabilização, são marcas de memória para prevenir recorrências e não premiar contraventores que lesam a humanidade, o país e o povo (cf. livro que co-organizei: Série O Direito Achado na Rua, vol. 7: Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina (https://www.gov.br/mj/pt-br/central-de-conteudo_legado1/anistia/anexos/direito-achado-na-rua-vol-7_pdf.pdf), e que teve em José Carlos Moreira Silva Filho, seu mais orgânico e diligente co-organizador, incluindo um dos desdobramentos a série de vídeos-documentários produzidos pela UnBTV, parte do projeto de edição.

Em relação ao projeto submetido a consulta, não hesito em dizer que ele ilustra a metáfora do gato que quer se esconder, mas deixa seu rabo comprido de fora. Pois, apesar da astúcia, é inconstitucional e inconvencional (sistema internacional de direitos), medidas de autoanistia para infrações que são imprescritíveis por sua ofensividade, tortura entre elas, também será inconstitucional e inconvencional qualquer medida que tenha por fim gerar impunidade, tal qual a espúria iniciativa dessa proposta.

Com efeito, Mauro chama a atenção para isso nas suas conclusões, que o sistema internacional de proteção aos direitos humanos já consagrou com fundamento de medidas de autoanistia, sobretudo quando elas deixam claro a intenção de acobertar crimes contra a humanidade e os direitos humanos. Mauro deixa isso claro ao trazer a confronto, especialmente quanto ao julgamento no STF na ADPF 153, a sentença no caso Gomes Lund e outros versus Brasil (caso da Guerrilha do Araguaia)

Também como já afirmei – https://brasilpopular.com/60-anos-do-golpe-de-1964-memoria-verdade-mas-tambem-justica-razoes-para-o-nunca-mais/ – estar seguro de que tudo que se vivencia no país desde o 8 de janeiro de 2023 deve ser avaliado sob o enfoque da Justiça Transicional. E isso significa estar atento às reiteradas manifestações da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre estabelecer que as disposições de anistia ampla, absoluta e incondicional consagram a impunidade em casos de graves violações dos direitos humanos, pois impossibilitam uma investigação efetiva das violações, a persecução penal e sanção dos responsáveis. A Comissão afirmou que esses crimes têm uma série de características diferenciadas do resto dos crimes, em virtude dos fins e objetivos que perseguem, dentre eles, o conceito da humanidade como vítima, e sua função de garantia de não repetição de atentados contra a democracia e de atrocidades inesquecíveis.

Especificamente sobre o monitoramento que exercita em relação ao Brasil, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em seu último relatório (2021), ofereceu recomendações sobre ações que tendem a fragilizar e até extinguir esse sistema, como o enfraquecimento dos espaços de participação democrática, indicando, entre as recomendações, a necessidade de “investigar, processar e, se determinada a responsabilidade penal, sancionar os autores de graves violações aos direitos humanos, abstendo-se de recorrer a figuras como a anistia, o indulto, a prescrição ou outras excludentes inaplicáveis a crimes contra a humanidade”.

 

Penso que a tese de Mauro Noleto incide agudamente na desconstrução de algumas falácias. A primeira, sobre recusar a posição gatopardista de transição política, como conciliação, esquecimento de dissensos e antagonismos, que querem naturalizar restaurações dos processos de rupturas na História, banalizando a sua crueza e a letalidade que neles se desencadeia, na atenuação dissimuladora de uma cordialidade generosa e pacificadora que nos caracterizaria, disfarçando a violência própria de uma experiência que se mantêm neocolonial, apesar da descolonização sem o a decolonialidade que poderia superá-la. Por isso Mauro fala em silenciamento. Para ele, um cálculo político, que impõe a condição do esquecimento: “os militares não trabalhavam com um acordo, mas com um plano para aprovar o projeto de anistia em condições ‘inegociáveis’ quanto ao tratamento legal do seu passado”.

 

Veja-se o Sumário da tese:

Introdução

Capítulo I – Anistia e Exceção

  1. Anistia: o esquecimento excepcional comandado
  2. Anistia à brasileira: repressão e conciliação controlada
  3. O estado de exceção e sua emergência na história republicana brasileira
  4. Anistias de transição em revista

Capítulo II – A transição da Monarquia para a República: uma “anistia inversa” moderniza a tradição

  1. A abolição do “passado negro”: anistia?
  2. República proclamada: golpes, guerras e anistias
  3. Marechais no Poder: consolidação militar da República
  4. Estado de sítio e anistia na Primeira República: a exceção ordinária
  5. Anistiar e Punir: a anistia teratológica
  6. A judicialização da anistia: o “caso Trindade” (crimes conexos) e o julgamento da constitucionalidade da “anistia inversa” (razão de Estado)
  7. O Atentado de 5 de novembro: epílogo do florianismo e da transição.

Capítulo III – A República em transição: revoluções tenentistas, anistias e a constitucionalização efêmera (1922-1934)

  1. Tenentismo: revolução, exílio e anistia

1922: “sangue nas areias de Copacabana”

1924: a “Revolução Esquecida”

Clevelândia

Depois da Coluna Prestes: exílio e luta pela anistia

  1. Outubro de 1930: “façamos a revolução antes que o povo a faça”
  2. Governo Provisório: entre duas anistias
  3. A pressão por anistia “ampla” na Constituinte de 1933/1934

Capítulo IV – A transição para a ditadura do Estado Novo (1935-1937).

  1. Sob estado de (exceção) Segurança Nacional: o “plano inclinado”
  2. A “Lei Monstro”
  3. O inimigo é vermelho: a “revolução” que virou “intentona”
  4. A reforma da Constituição: “o fetichismo constitucional vai muito bem nos tempos normais, agora não!”
  5. A “Segurança”: um Tribunal para “julgar” os inimigos
  6. Estado Novo: “o golpe silencioso” sem anistia.

Epílogo – A anistia de 1945: “mil bocas em silêncio, murmurando”

CONSIDERAÇÕES FINAIS

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FONTES DOCUMENTAIS

IMAGENS

ANEXOS

Por essas razões, meu relevo na leitura da tese de Mauro Noleto está na sua tomada de posição relativamente a vencer os limites de entendimento, seja sob a perspectiva linguística, seja sob o enfoque hermenêutico, ou da critica teórica, para localizar e ampliar “as iniciativas de recuperação da memória e da história desse tempo (p. 19), de modo a resgatar a anistia extorquida ou o uso parasitário do seu conceito, para romper o silêncio perpétuo, tal como indica o título de sua tese.

Sua abordagem reclama a necessidade da ousadia e da novidade na concepção política do presente e do futuro. E, de algum modo, uma disposição crítica da política e da história, com apoio em boa base conceitual para escovar a contrapelo e permitir que se revele um singular coletivo, uma passagem entre o passado e o futuro.

Em artigo da minha Coluna O Direito Achado na Rua, no Jornal Brasil Popular, 60 anos do Golpe de 1964: Memória, Verdade mas também Justiça. Razões para o Nunca Mais(https://brasilpopular.com/60-anos-do-golpe-de-1964-memoria-verdade-mas-tambem-justica-razoes-para-o-nunca-mais/), referi-me ao livro organizado por Eneá de Stutz e Almeida, a atual presidenta da Comissão de Anistia – http://justicadetransicao.org/a-transicao-brasileira-memoria-verdade-reparacao-e-justica-1979-2021/ (A transição brasileira: memória, verdade, reparação e justiça (1979-2021), Salvador: Soffia10 Editora, uma publicação do Grupo de Pesquisa Justiça de Transição, da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília). No livro, os organizadores (Eneá de Stutz e Almeida) designam uma justiça de transição reversa, que  insiste em preservar essa astúcia de acobertamento da violência e da afronta aos direitos, numa exceção que parece não ter fim na sua recorrência.

Em outro texto -https://brasilpopular.com/60-anos-do-golpe-de-1964-memoria-verdade-mas-tambem-justica-razoes-para-o-nunca-mais/, lembrei, com Nair Heloisa Bicalho de Sousa, voltando ao nosso texto de apresentação ao volume 7, da Série O Direito Achado na Rua (Justiça de transição: direito à memória e à verdade), aliás citado por Mauro, que também participa da obra (embora associando sistema eleitoral e justiça de transição, pra expor O Direito Eleitoral da Ditadura, as aparências enganam?) que é necessário “um esforço para vencer a tendência a deixar no esquecimento os fatos reveladores das práticas políticas do regime autoritário. Vê-se, assim, com Pollack (1989), que memória e esquecimento são eixos fundamentais da esfera do poder, disputando o modo como a memória coletiva constrói-se em cada sociedade”. Em outro texto (Direito à memória e à verdade, Observatório da Constituição e da Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, n. 17, outubro e novembro de 2007), avançamos esse ponto para reafirmar que há “uma memória coletiva em processo de construção necessitando que as diferentes gerações tenham conhecimento da verdade.

Teria sido possível apelar para a verdade, conforme a diretriz do pensamento da grande filósofa Hannah Arendt, e assim recuperar um “hiato de credibilidade” para resgatar a verdade como dimensão da política, em condições de estabelecer base para a confiança desejada entre governo e cidadãos. Atende-se à questão posta por Walter Benjamin, para designar o processo da memória histórica que segundo ele, implica articular historicamente o passado sem que isso signifique conhecê-lo “como ele de fato foi”, mas antes, apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo?

Benjamin não explica como a história humana pode dar o que o homem não tem. O objeto da memória não é um passado morto, mas uma linha tênue cujo desenrolar pode provocar novos emaranhados. O que não se tem hoje ao seu alcance de nosso discernimento ativo a história animada por esse passado pode ter”.

A imagem elaborada por Benjamin, serviu a sua interpretação da realidade de um tempo de paroxismo totalitário, ao qual ele próprio sucumbiu, e que marcou o mundo por uma referência de brutal irracionalidade, e assim, “reconstruir memórias que permitam ressignificar as experiências de outros sujeitos do passado e, com eles, estabelecer um diálogo no tempo presente”.

Reivindicar a verdade e resgatar a memória, como referências éticas contribui para estancar a mentira na política. Referi-me à grande pensadora Hanna Arendt exatamente para reter, sobre esse tema (cf. meu Memória e Verdade como Direitos Humanos in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Ideias para a Cidadania e para a Justiça. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 2008, p. 99-100) a sua advertência de que “uma das lições que podem ser apreendidas das experiências totalitárias é a assustadora confiança de seus dirigentes no poder da mentira e na capacidade de reescreverem a história para a adaptar a uma linha política”. Ou, dito poeticamente, com Milan Kundera, para o homenagear, há poucos meses de seu falecimento (11/07/23): “Para liquidar os povos, começa-se por lhes tirar a memória. Destroem-se seus livros, sua cultura, sua história. E uma outra pessoa lhes escreve outros livros, lhes dá outra cultura e lhes inventa uma outra história” (O Livro do Riso e do Esquecimento, 1978).

Mauro afirma (p. 32), que a hipótese aventada na tese “é a de que, ao comandar reiterada e sucessivamente o esquecimento de um passado de conflitos políticos e de repressão violenta (os “crimes conexos”), as anistias editadas em momentos de transição de regimes no Brasil acabaram por acomodar e camuflar a presença (ou a ameaça) da exceção e do arbítrio na ordem constitucional ao longo do tempo, naturalizando tanto o recurso à violência para a tomada do poder, quanto a repressão política de exceção aos “inimigos” do Estado. Mas, ao criar restrições, condições e exclusões, de modo a satisfazer interesses políticos dos regimes de força, as anistias de transição entram em contradição com o seu sentido comum, o esquecimento (silêncio perpétuo) e até mesmo a conciliação”.

A questão que lhe ponho é simplesHá acúmulo para se abrir uma agenda para esses questionamentos e tornar possível instituir finalmente políticas de Memória, Verdade e Justiça aplicáveis a condutas das Forças Armadas ou pelos menos de seus membros, incluindo os mais proeminentes, já “não confiáveis” ou a outros fautores sabidamente perpetradores de crimes, imprescritíveis e não anistiáveis? Quando pergunto se há horizonte é no sentido de aferir as condições de completude da transição, abrindo-se conforme as condicionantes presentes no trabalho do Mauro. A tese, realmente conduz à admissão dessa possibilidade que coincide em boa parte com aquelas que eu próprio menciono (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Anistia, compromisso da liberdade. In Revista Humanidades, nº 13, Editora UnB, 1987; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Memória e Verdade como Direitos Humanos. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Idéias para a Cidadania e para a Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor/Sindjus – Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário do Ministério Público da União do DF, 2008, pp. 99-100). Sobretudo em meu artigo de 1987, quando então, eu tinha na constituinte, na anistia e na busca da memória e da verdade para resgatar a política e calibrar a própria transição entre o regime ditatorial e a instalação de um regime de enunciado democrático, as condições de possibilidade para esse trânsito.

Em relação à anistia, vou ao meu texto (Humanidades, 1987: 26-28): anistia, neste contexto, define responsabilidade, não apenas função corretiva que se exerça por meio do esquecimento de comoções já conjuradas; a sua substância real lhe define o título político: é inevitável extrair da liberdade a nova ordem para a qual ela é mediação necessária e impedir que a velha ordem sustente ainda os seus interesses com a reivindicação de uma interpretação obscurantista.