quarta-feira, 29 de abril de 2020

A cruel pedagogia do vírus


Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

A Cruel Pedagogia do Vírus. Boaventura de Sousa Santos. Coimbra: Edições Almedina, 2020, 32 p.

Créditos: PixaBay
     No distanciamento social, que impõe um necessário recolhimento, os que não se rendem ao imobilismo depressivo, mas que sabem exercitar suas angústias, ao invés de a elas sucumbir, disse Boaventura de Sousa Santos, há algum tempo, acabam construindo no isolamento um campo fecundo para a criatividade e para a reflexão em profundidade.
       Diz-se que William Shakespeare escreveu o Rei Lear, Macbeth e Antônio e Cleópatra, em quarentena, ou pelos menos para vencer as dificuldades da ocasião, ao tempo da peste bubônica que se alastrou em Londres, por volta dos 1606 quando, em conformidade com as posturas os teatros foram fechados, incluindo o The King’s Men, do qual era ator e acionista.
       Outro dramaturgo, seu contemporâneo, Thomas Nashe, também durante a febre bubônica que atingiu Londres em 1592, retirou-se para o interior da Inglaterra para evitar infecções. Data desse período a peça Summers’ Last Will and Testament, na qual expõe suas experiências durante a pandemia.
       Nessa mesma época, um pouco mais à frente, em 1665, Isaac Newton, também em quarentena retirado de Cambridge e confinado na propriedade da família em Woolsthorpe Manor, teria, nessa ocasião, esboçado a Teoria da Gravidade. Nesse período, um quarto da população de Londres morreu por causa da doença.
       Antes deles, o escritor e poeta florentino Giovanni Boccaccio foi pessoalmente afetado pela peste bubônica. Quando atingiu Florença em 1348, seu pai e madrasta sucumbiram à doença. Boccacio sobreviveu ao surto fugindo da cidade e se refugiando na zona rural da Toscana. O Decamerão conta as estórias de amigos que vivenciaram a quarentena durante a peste.
       Outro artista, Edvard Munch, pintor do célebre quadro O Grito, não só testemunhou, mas sofreu a pandemia da gripe espanhola, ao contrair a doença no início de 1919, na Noruega. O seu autorretrato figura-o com as feições ainda abatidas, à frente do leito de doente.
       Ninguém atravessa uma condição tão avassaladora e permanece insensível ao que ela interpela, no que somos e no que vivenciamos, mesmo após o amainar da condição tormentosa. Não será extravagante supor que a voz de Próspero, em A Tempestade, (Ato IV), de Shakspeare, não carregue esse sentido de uma reflexão sobre a vida humana, tanto quanto sobre os escombros de um mundo em necessária transformação. Algo que não escapou à observação de Marx e sua aplicação depois, no manifesto para um mundo futuro.
       Aqui está a fala de Próspero, na tradução de Bárbara Heliodora (Nova Aguilar, 2006), com grifos meus, em negrito e em itálico:
       “Próspero [dirigindo-se a Ferdinando] – Você parece, meu filho, consternado, como se estivesse preso de algum temor. Anime-se, senhor. Nossa diversão chegou ao fim. Esses nossos atores, como lhe antecipei, eram todos espíritos e dissolveram-se no ar, em pleno ar, e, tal qual a construção infundada dessa visão, as torres, cujos topos deixam-se cobrir pelas nuvens, e os palácios, maravilhosos, e os templos, solenes, e o próprio Globo, grandioso, e também todos os que nele aqui estão e todos os que o receberem por herança se esvanecerão, nada deixará para trás um sinal, um vestígio.”.
       Um tanto dessa prodigalidade interpretativa, soa amplificada pela velocidade atemporal das redes sociais, em geral, sem o sentido crítico que Paul Virilio prognosticava para os novos espaços da pós-modernidade, e que permanecem indiscerníveis nessa condição que Boaventura de Sousa Santos designou como era dos coletivos de solidão.
       Ainda que, à força de chamados de solidariedade, de fraternidade, de sonoridade, seja possível tecer coletivos de comunhão. Com o semestre letivo suspenso em minha universidade preocupo-me deixar à deriva, no limbo angustiante que fragiliza estudantes novatos, meus alunos de primeiro ano da turma de Pesquisa Jurídica. Propus então converter o espaço pedagógico formal num espaço virtual crítico solidário, mantendo um ambiente voluntário de impressões e diálogo sobre a agenda desse tempo. Entre as atividades, inspirado na criatividade dos personagens que lembrei acima, sugeri que escrevessem “Cartas da Quarentena”. Não foi surpresa para mim que esses jovens logo preenchessem esse enjoo de existência com suas cogitações num exercício de enfrentamento às incertezas. Selecionei algumas dessas cartas que estão sendo publicadas no Blog do Coletivo O Direito Achado na Rua (www.odireitoachadonarua.blogspot.com).
       Há aí, registros sensíveis, percucientes, confiantes na reconstrução de novos possíveis futuros. Um excerto, de uma dessas cartas, dirigida à “prezada comunidade”: Carta de Daniela Rocha. Brasília, 30 de março de 2020. Prezada comunidade,… É sabido por todos que o momento atual não é nada reconfortante. Correm soltas notícias de pandemia, crises econômicas, transmissões em massa, e tantos outros infortúnios por aí. Apesar de ser um direito, nem todos podem ficar reclusos na segurança de seu lar e acabam tendo que sair às ruas diariamente, sem saber ao certo se voltarão plenamente saudáveis ao fim do dia. E é a partir dessa perspectiva que desejo iniciar minha carta aos senhores e senhoras. A partir da perspectiva daqueles que não tem garantidos os Direitos que são seus por definição. A partir da triste realidade da desigualdade presente não só no contexto brasileiro, mas também no contexto internacional. É o momento ideal para pensar numa reestruturação ética e social da realidade que nos cerca….”. Futuros são ainda possíveis.
       Entretanto, na algaravia da avalanche de opiniões, o que mais aturde são os muitos ruídos. São vozes dissonantes, umas porque fora do diapasão da dramaticidade da conjuntura; outras porque perplexas em face do angustiante que impregna o real; muitas apressadas para se fazerem presentes no debate que busca reconhecimento; muitas porque são o dernier cri daquilo que já se chamou com charme de intelligentsia, entre elas as mais agudas e bem postas, mas elas próprias indo e vindo porque, nessa conjuntura de dessacralização, como lembram Shakspeare seguido por Marx, tudo que é sólido desmancha no ar, e, o que se afirmou categoricamente ontem, precisa ser reconsiderado hoje, diante de um real que filosofa, conforme advertia Kosik.
       É nesse emaranhado que mais confunde do que esclarece, que leio esse precioso texto de Boaventura de Sousa Santos – A Cruel Pedagogia do Vírus – que, tal qual a metáfora do unicórnio que o autor encontra em Leonardo da Vinci, só dominável se uma aproximação sutil, cativante e segura contiver todos os impulsos de sua disposição inquieta, porque é capaz de identificar todas as representações que eles mobilizam, se fazendo discernível, inteligível, confiável e bem orientado; assim o texto ora Lido para Você.
       Para aguçar o interesse dos leitores, recupero no texto, no capítulo 2, a configuração do que ele chama reino das causas, reino das mediações entre o humano e o não humano, para cuja compreensão ele se vale da metáfora do unicórnio. Citando da Vinci – “O unicórnio, através da sua intemperança e incapacidade de se dominar, e devido ao deleite que as donzelas lhe proporcionam, esquece a sua ferocidade e selvageria. Ele põe de parte a desconfiança, aproxima-se da donzela sentada e adormece no seu regaço. Assim, os caçadores conseguem caçá-lo”. Ou seja, aduz Boaventura: “o unicórnio é um todo-poderoso feroz e selvagem que, no entanto, tem um ponto fraco, sucumbe à astúcia de quem o souber identificar”.
       Escrito nesse momento de pandemia instalada com a propagação do Coronavírus, o Professor Boaventura se distanciou em Quintela, (agradeço a estimada Lassalete Paiva a localização topográfica do recolhimento do professor) uma aldeia que fica a cerca de 40km de Coimbra, uma viagem de mais ou menos 30 minutos de carro, para a Quinta que foi a casa dos pais, onde continua-se a cultivar legumes para a casa e também criar animais: galinhas, coelhos e cabras (exercitando por antecipação, a utopia de Marx: fazer a crítica, arte e poesia de dia e apascentar o rebanho à noite), o texto vale como um mapa de orientação para a inteligibilidade de todas essas vozes.
       De fato, recorro à noção de mapa porque o autor sempre se esmerou no exercício cartográfico como método para articular as várias dimensões do real. E essas dimensões se apresentam desde logo, nas escalas e nas projeções que organizam o livro, nos cinco ensaios ou capítulos que o compõem: Capítulo 1 Vírus: tudo o que é sólido se desfaz no ar; Capítulo 2 A trágica transparência do vírus; Capítulo 3 A sul da quarentena; Capítulo 4 A intensa pedagogia do vírus: as primeiras lições; Capítulo 5 O futuro pode começar hoje.
       Não é coincidência que eu tenha recuperado em Shakspeare e na sequência, em Marx, a metáfora do esvanecimento, que alude ao trânsito ruinoso das transformações que o curso da história provoca, não para naufragar na liquefação dos seus escombros, mas para projetar novos futuros possíveis. Por isso que o livro começa com o capítulo do desfazimento do que parece sólido e se completa com pistas para esses novos futuros alternativos.
       Já na abertura, uma questão fundante. Ei-la: “Existe um debate nas ciências sociais sobre se a verdade e a qualidade das instituições de uma dada sociedade se conhecem melhor em situações de normalidade, de funcionamento corrente, ou em situações excepcionais, de crise. Talvez os dois tipos de situação sejam igualmente indutores de conhecimento, mas certamente que nos permitem conhecer ou relevar coisas diferentes. Que potenciais conhecimentos decorrem da pandemia do coronavírus?”.
       Para enfrentá-la, ao seu estilo elegante e dialético, ele se propõe conferir um conjunto de pontos de partida para o desafio de suas contradições interpel antes: 1) A normalidade da excepção. Para ele a contradição está em que a “atual pandemia não é uma situação de crise claramente contraposta a uma situação de normalidade”, porque o que parece normal é, com efeito, um estado de crise permanente dissimulada sob a ilusão de normalidade, que é a realidade de permanência instável do próprio modo de produção capitalista. 2) A elasticidade do social. Se, conforme ele constata, “em cada época histórica, os modos de viver dominantes (trabalho, consumo, lazer, convivência) e de antecipar ou adiar a morte são relativamente rígidos e parecem decorrer de regras escritas na pedra da natureza humana”, somente uma razão preguiçosa (outra categoria analítica do autor, conforme o seu A Crítica da Razão Indolente. Contra o Desperdício da Experiência), se conforma à “ideia conservadora de que não há alternativa ao modo de vida imposto pelo hiper capitalismo em que vivemos cai por terra. Mostra-se que só não há alternativas porque o sistema político democrático foi levado a deixar de discutir as alternativas. Como foram expulsas do sistema político, as alternativas irão entrar cada vez mais frequentemente na vida dos cidadãos pela porta dos fundos das crises pandêmicas, dos desastres ambientais e dos colapsos financeiros. Ou seja, as alternativas voltarão da pior maneira possível”. 3) A fragilidade do humano. A pandemia colapsa a percepção de segurança promovida pelas ofertas mercadológicas do comércio do social e o surto viral pulveriza esse comum. Porque “Sabemos que a pandemia não é cega e tem alvos privilegiados, mas mesmo assim cria-se com ela uma consciência de comunhão planetária, de algum modo democrática. A etimologia do termo pandemia diz isso mesmo: todo o povo. A tragédia é que neste caso a melhor maneira de sermos solidários uns com os outros é isolarmo-nos uns dos outros e nem sequer nos tocarmos. É uma estranha comunhão de destinos. Não serão possíveis outras?”. 4) Os fins não justificam os meios. Enquanto dá-se um forte arrefecimento da dinâmica produtiva do modo de acumulação, com as consequências negativas inter sistêmicas, emergem consequências positivas para o equilíbrio social e planetário, em apoio à vida. Há capacidade política para construir respostas democráticas para estabelecer um relação de precedência da vida inclusive de toda a vida planetária sem que ela precise ser consumida. Ao contrário, o autor problematiza: temos condições de “imaginar soluções democráticas assentes na democracia participativa ao nível dos bairros e das comunidades e na educação cívica orientada para a solidariedade e cooperação, e não para o empreendedorismo e competitividade a todo o custo”. 5) A guerra de que é feita a paz. Não se pode perder de vista o modo de construção da narrativa da pandemia, mesmo nos meios de comunicação, que não disfarçam o sentido de sua mobilização entre dois contendores assentados numa disputa econômico-ideológica competindo por hegemonia: EUA e China. Essa narrativa arma a disposição para tomar partido entre que se espera ser o vencedor ou o vencido. 6) A sociologia das ausências. Aqui outra categoria de análise que se completa com a sociologia das emergências. Uma exigência para divisar os dramas que se desenrolam de modo muitas vezes difuso nas sombras que a visibilidade vai criando, a exigir atenção para as condições que se degradam nas zonas de invisibilidade que se descortinam em muitas regiões do mundo e talvez mesmo aqui, bem perto de cada um de nós, bastando abrir a janela.
       No Capítulo 2 – A trágica transparência do vírus, o ponto de partida está em que “debates culturais, políticos e ideológicos do nosso tempo têm uma opacidade estranha que decorre da sua distância em relação ao quotidiano vivido pela grande maioria da população, os cidadãos comuns– «la gente de a pie», como dizem os latino-americanos. Em particular, a política, que devia ser a mediadora entre as ideologias e as necessidades e aspirações dos cidadãos, tem vindo a demitir-se dessa função. Se mantém algum resíduo de mediação, é com as necessidades e aspirações dos mercados, esse mega cidadão informe e monstruoso que nunca ninguém viu nem tocou ou cheirou, um cidadão estranho que só tem direitos e nenhum dever. É como se a luz que ele projeta nos cegasse. De repente, a pandemia irrompe, a luz dos mercados empalidece, e da escuridão com que eles sempre nos ameaçam se não lhe prestarmos vassalagem emerge uma nova claridade. A claridade pandêmica e as aparições em que ela se materializa. O que ela nos permite ver e o modo como for interpretado e avaliado determinarão o futuro da civilização em que vivemos. Estas aparições, ao contrário de outras, são reais e vieram para ficar”.
       Capítulo denso, no qual as principais chaves de explicação que o autor desenvolve em suas obras se conjugam para sustentar um posicionamento inteiramente orientado para sustentar o valor da vida humana e planetária: “sujeita a uma ordem escatológica e aproxima-se do fim. A intensa teologia que é tecida à volta dessa escatologia contempla vários níveis de invisibilidade e de imprevisibilidade”.
       Nesse passo é que, em face da pandemia, o autor desvenda os modos de dominação principais que subordinam o humano, reduzindo as dimensões emancipatórias do civilizatório de modo feroz e destemperado como o unicórnio selvagem de da Vinci: o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. No enlace dessas forças poderosas e alienadoras do humano e de coisificação da vida, pondo à mostra sua fauce canibalizadora, revelando a fúria selvagem, na moldura de “duas paisagens principais onde é mais visível e cruel: a escandalosa concentração de riqueza/extrema desigualdade social e a destruição da vida do planeta/iminente catástrofe ecológica. É ante estas duas paisagens brutais que os três seres todo-poderosos e suas mediações mostram aquilo a que nos conduzem se continuarmos a considerá-los todo-poderosos”. Mas exatamente aí, onde hiberna o perigo, esse Cérbero de três cabeças, é que se coloca uma perspectiva de alternatividade que deriva da alegoria do vírus, conforme indica o autor: “Mas serão eles todo-poderosos? Ou não será a sua omnipotência apenas o espelho da induzida incapacidade dos humanos de os combater? Eis a questão”.
       O desafio é então dirigido ao pensamento crítico e a sua disponibilidade para apreender a realidade interpelante. Para ele, nessa passagem, que designa como a realidade à solta e a excepcionalidade da excepção, o autor afirma a pandemia “confere à realidade uma liberdade caótica, e qualquer tentativa de a aprisionar analiticamente está condenada ao fracasso, dado que a realidade vai sempre adiante do que pensamos ou sentimos sobre ela. Teorizar ou escrever sobre ela é pôr as nossas categorias e a nossa linguagem à beira do abismo”. Enorme desafio para os intelectuais, pois, “tal como aconteceu com os políticos, os intelectuais também deixaram, em geral, de mediar entre as ideologias e as necessidades e as aspirações dos cidadãos comuns. Medeiam entre si, entre as suas pequenas-grandes divergências ideológicas. Escrevem sobre o mundo, mas não com o mundo. São poucos os intelectuais públicos, e também estes não escapam ao abismo destes dias. A geração que nasceu ou cresceu depois da Segunda Guerra Mundial habituou-se a ter um pensamento excepcional em tempos normais. Perante a crise pandêmica, têm dificuldade em pensar a excepção em tempos excepcionais. O problema é que a prática caótica e esquiva dos dias foge à teorização e exige ser entendida em modo de sub-teorização. Ou seja, como se a claridade da pandemia criasse tanta transparência que nos impedisse de ler e muito menos reescrever o que fôssemos registando no ecrã ou no papel”. Trata-se, diz o autor, de exercitar a função intelectual “atentos às necessidades e às aspirações dos cidadãos comuns e saber partir delas para teorizar”.
       No capítulo A sul da quarentena, o caráter discriminatório da pandemia é acentuado, indicando o autor como é “mais difícil para uns grupos sociais do que para outros e impossível para um vasto grupo de cuidadores, cuja missão é tornar possível a quarentena ao conjunto da população”. O sul, metáfora epistemológica recorrente e estruturante do pensamento emancipatório do autor, em toda a sua vasta obra, não designa, sabemos, um espaço geográfico. Ele esclarece: o sul “É a metáfora do sofrimento humano injusto causado pela exploração capitalista, pela discriminação racial e pela discriminação sexual. Proponho-me analisar a quarentena a partir da perspectiva daqueles e daquelas que mais têm sofrido com estas formas de dominação e imaginar, também da sua perspectiva, as mudanças sociais que se impõem depois de terminar a quarentena”. Sem esgotar o rol, exibindo dados designativos, ele mostra as situações mais agudas, que recaem sobre as mulheres; os trabalhadores precários, informais, ditos autônomos; os trabalhadores da rua; os sem-abrigo ou populações de rua; os moradores nas periferias pobres das cidades, favelas, barriadas, slums, caniço etc; os internados em campos de internamento para refugiados, imigrantes indocumentados ou populações deslocadas internamente; os deficientes; os idosos. Assevera que a lista dos que estão a sul da quarentena está longe de ser exaustiva, aludindo aos presos e às pessoas com problemas de saúde mental, nomeadamente depressão e justifica que o elenco selecionado mostra duas coisas: “Por um lado, ao contrário do que é veiculado pelos media e pelas organizações internacionais, a quarentena não só torna mais visíveis, como reforça a injustiça, a discriminação, a exclusão social e o sofrimento imerecido que elas provocam. Acontece que tais assimetrias se tornam mais invisíveis em face do pânico que se apodera dos que não estão habituados a ele”.
       Penso que aqui no sul do sul, no Brasil e em toda a região americana (norte, centro e sul), a questão indígena toma uma dimensão que na pandemia se aproxima do genocídio. Com Renata Carolina Corrêa Vieira tratei desse tema (http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/589513-o-direito-achado-na-rua-como-horizonte-democratico-participativo-do-espaco-institucional-a-rua; https://www.comissaojusticaepazdf.org.br/do-peru-profundo-os-povos-indigenas-trazem-de-suas-lutas-pelo-bem-viver-uma-proposta-de-pacto-para-renaturalizar-os-direitos-humanos/; https://constitucionalismo.com.br/democracia-e-bem-viver/) e aqui neste espaço da Coluna Lido para Você, mais recentemente: http://estadodedireito.com.br/coronavirus-covid-19-tome-cuidado-parente/).
       Em todas essas intervenções, o autor foi sempre uma referência para melhor pontuar o tema no seu apelo de afirmação e reconhecimento, de modo a acentuar a condição limite de sobrevivência em todos os âmbitos, dos povos indígenas originários (SOUSA SANTOS, Boaventura. Um Acontecimento Histórico para a Organização Indígena. Observatório da Constituição e da Democracia, n. 11. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, abril de 2007, p. 24): “Foi então que os povos indígenas redescobriram o seu carácter transnacional originário e resolveram pô-lo ao serviço da constituição de um novo sujeito e de uma nova ação política internacional plasmados numa agenda política contra a investida do neoliberalismo e contra o violento e avassalador processo de desnacionalização dos Estados e das economias…”. Ou para disputar a narrativa que os situassem como identidade de sujeitos sem se deixar reduzir à condição de sub-produto da dimensão ecológica, silvícolas conforme eram designados no constitucionalismo pós-colonial (SOUSA SANTOS, Boaventura. Raposa Serra do Sol – Brasil. Demarcação de Território Indígena em Perigo, petitiononline. Observatório da Constituição e da Democracia, n. 24, Brasília: Faculdade de Direito da UnB, julho de 2008, p. 2: “reconhecimento da diversidade étnico-racial cultural como valor fundante do ‘processo civilizatório nacional’ e da própria unidade do país e a função socioambiental da propriedade, com distintas formas de manejo sustentável dos territórios pelas variadas comunidades culturais existentes no Brasil”.
       Na continuidade do livro, o capítulo 4 – A intensa pedagogia do vírus: as primeiras lições. São elas: o tempo político e mediático condiciona o modo como a sociedade contemporânea se apercebe dos riscos que corre. Aqui é lição que expõe o modelo “que está hoje a conduzir a humanidade a uma situação de catástrofe ecológica, por meio da exploração sem limites dos recursos naturais”. E esta exploração que agora leva o planeta a se defender da tremenda violação que sofre. E esta violação “traduz-se na morte desnecessária de muitos seres vivos da Mãe Terra, nossa casa comum, com defendem os povos indígenas e camponeses de todo o mundo, hoje secundados pelos movimentos ecologistas e pela teologia ecológica”, como mostra a carta encíclica do Papa Francisco Laudato Si’. Sobre o Cuidado da Casa Comum. A Lição 2, é a de que as pandemias não matam tão indiscriminadamente quanto se julga, mais uma vez que junto com outras violências, a pandemia discrimina tanto na prevenção, como na sua expansão e mitigação, os trabalhadores empobrecidos, as mulheres, os trabalhadores precários, os negros, os indígenas, os imigrantes, os refugiados, os sem abrigo, os camponeses, os idosos, as vítimas sacrificiais no altar do darwinismo social, no Brasil, de modo explicitamente declarado pelas principais autoridades, a começar pelo Presidente da República. A Lição 3, salienta que enquanto modelo social, o capitalismo não tem futuro, porque na crise revela que os seus agentes, entre eles os governos, degradam as políticas sociais em benefício de uma austeridade que sacrifica a cidadania e os direitos humanos. A resenha dessa lição, diz o autor, está em ser “aqui que a pandemia opera como um analista privilegiado. Os cidadãos sabem agora o que está em causa. Haverá mais pandemias no futuro e provavelmente mais graves, e as políticas neoliberais continuarão a minar a capacidade do Estado para responder, e as populações estarão cada vez mais indefesas. Tal ciclo infernal só pode ser interrompido se se interromper o capitalismo”. Na Lição 4, A extrema-direita e a direita hiper-neoliberal ficam definitivamente (espera-se) desacreditadas, projetando a descrença na possibilidade de um capitalismo de rosto humano, até porque o seu fundamento é preservar a economia, correndo os seus agentes “riscos irresponsáveis pelos quais, esperamos, serão responsabilizados: a eliminação de parte das populações que já não interessam à economia, nem como trabalhadores nem como consumidores, ou seja, populações descartáveis como se a economia pudesse prosperar sobre uma pilha de cadáveres ou de corpos desprovidos de qualquer rendimento”. A Lição 5 – O colonialismo e o patriarcado estão vivos e reforçam-se nos momentos de crise aguda, chama a atenção para os corpos racializados e sexualizados, que se tornam corpos vulneráveis, não só pelas condições de vida impostas socialmente pela discriminação a que estão sujeitos e que, na pandemia, ficam ainda mais expostos na seletividade dos cuidados. Finalmente, a Lição 6 – O regresso do Estado e da comunidade. O autor retoma os princípios de regulação na sociedade moderna já fortemente trabalhados em suas obras – o Estado, o mercado e a comunidade, para desafiar a um aprendizado de alternativas que recuperem, em face dos défices desses modelos, as que sejam credíveis de novas solidariedades e formas de emancipação.
       Assim que, nos espaços comunitários, ali onde a justiça avança conforme propunha Luis Alberto Warat, barro adentro, experimentos de auto-gestão da crise estão sendo mediados, menos com o Estado e até mesmo em negociação com frações do chamado crime organizado (que o recentemente demitido ministro da saúde, em depoimento público coberto pelos meios de comunicação, indicou como interlocutor possível). Tanto quanto nas articulações de intensa concertação política de movimentos sociais e organizações da sociedade civil, a exemplo da Carta Pública Pela Defesa dos Direitos da Mãe Terra e Pela Vida da Amazônia com seus Povos, aqui no Brasil, com proposta de dezenas de subscritores e com adesões em aberto, visando mudar a forma de vida e as leis para garantir os direitos da natureza – Mãe Terra, porque, diz a Carta: “…Anos e anos de pressão, especialmente das insistentes mobilizações dos povos originários e da publicação da Carta da Terra no ano 2000, fruto de um processo internacional participativo com adesão de mais de 4.500 organizações da sociedade civil e organismos governamentais, levaram a ONU a declarar, em 2009, o dia 22 de abril como Dia Internacional da Mãe Terra. Agora, no ano 2020, a celebração do Dia da Mãe Terra está sendo realizada com a humanidade vivenciando uma dura experiência de globalização: em meses, um denominado “novo coronavírus” está afetando todos os povos do Planeta. Levado pelos diversos caminhos do mercado, desde o do turismo até o de mercadorias, sua rápida capacidade de contágio só encontrou a estratégia de isolamento de todas as pessoas como medida capaz de diminuir a sua velocidade e evitar o colapso dos serviços públicos e privados de saúde.
       O orgulhoso mercado globalizado experimentou seus limites e contradições, e hoje a economia capitalista, cultuada como um ídolo todo-poderoso, revira-se no esforço de prever o tamanho da sua queda. As pessoas, contudo, estão refazendo o aprendizado de viver a partir de sua casa – ou da falta dela -, e com tempo para refletir sobre o sentido da correria, do desgaste e exploração a serviço do um crescimento econômico sem limite num planeta limitado, e num sistema que concentra riqueza em poucas mãos e multiplica inseguranças e miséria para a maioria da espécie humana…”.
       Assim que chega ao capítulo final: o futuro pode começar hoje. Se a pandemia e a quarentena revelam que são possíveis alternativas, que as sociedades podem se adaptar ou inventar novos modos de viver quando isso é necessário, se se pode, como exortou o Papa Francisco na Evangelii Gaudium, redescobrir a política como dimensão sublime da caridade (n. 205), “só com uma nova articulação entre os processos políticos e os processos civilizatórios”, será possível alternativas para uma nova humanidade. E essa nova articulação, o autor conclui, “pressupõe uma viragem epistemológica, cultural e ideológica que sustente as soluções políticas, econômicas e sociais que garantam a continuidade da vida humana digna no planeta”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

sexta-feira, 24 de abril de 2020

A dimensão da saúde no direito fundamental ao trabalho digno


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Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito



Título original: A dimensão da saúde no direito fundamental ao trabalho digno: uma análise justrabalhista do trabalho na limpeza urbana do Distrito Federal.
A dimensão da saúde no direito fundamental ao trabalho digno: uma análise justrabalhista do trabalho na limpeza urbana do Distrito Federal”. Helena Martins de Carvalho. Dissertação de Mestrado. Brasília: UnB/Faculdade de Direito, 2020, 182 p.

Créditos: PixaBay
        Neste Lido para Você, uma contribuição especial por Helena Martins de Carvalho, autora da dissertação comentada, na forma de um Pós-Escrito à Dissertação, Após o Debate com a Banca
        A Dissertação de Helena Martins de Carvalho, objeto desta Coluna, deve-se à sua gentileza em me convidar e a atenção de sua Orientadora professora Gabriela Neves Delgado em confirmar o convite convocando-me para a banca, por ela presidida e integrada pelo professor e magistrado Márcio Túlio Viana e pela colega professora Renata Queiroz Dutra. Chamando a atenção para pesquisadores e editores, ressalto de saída que não há sobressaltos quando se trata de estudos que se desenvolvem no âmbito do Grupo de Pesquisa Trabalho, Constituição e Cidadania. Esse Coletivo universitário prima pelo rigor e opera como uma pré-banca e um verdadeiro conselho editorial relativamente à produção do Grupo.
        A primeira evocação que me faz a dissertação de Helena Martins de Carvalho procede de leitura que me ficou na memória de um texto de Boaventura de Sousa Santos em coluna permanente que publicávamos num tablóide aqui na Faculdade de Direito, por mobilização de dois Grupos de Pesquisa – Sociedade, Tempo e Direito e O Direito Achado na Rua. Refiro-me ao Observatório da Constituição e da Democracia que editamos mês a mês por cerca de três anos, entre 2006 e 2009 (Sobre o Observatório da Constituição e da Democracia, ver minha Coluna Lido para Você: http://estadodedireito.com.br/21528-2/). Pois bem, o texto de Boaventura (C & D, Brasília: Faculdade de Direito/Sindjus, n. 17, outubro e novembro de 2007, p. 24) teve como título Lixo e Cidadania e nele o autor, a respeito de uma experiência por ele vivenciada na cidade de Belo Horizonte, fala do aprendizado que teve: “Aprendi que os seres humanos, mesmo os mais excluídos e nas condições mais indignas – aqueles para quem o nosso lixo é um luxo…não desistem de lutar por uma vida digna, assente na reivindicação de direitos…”.
        Questão paradoxal que vem para o centro do trabalho desenvolvido, focado na dimensão da saúde no direito fundamental do trabalho digno de trabalhadores na limpeza urbana, tema que se comporta no título da Dissertação, num contexto de quádrupla arremetida, contra o trabalho como espaço de dignidade, contra os trabalhadores numa conjuntura ultraneoliberal, contra a democracia que gesta direitos e contra a constituição que os realiza. Assim é a conjuntura local de trânsito desdemocratizante e desconstituinte e glocal para me valer da expressão criada pelos críticos do neoliberalismo globalizado, acirrando o primeiro cenário, em situação de pandemia que favorece a crueza da acumulação egoísta. Assim é fazer tese em tempo de golpe e de coronavírus.
        Sobre a conjuntura de golpe, retomo o que já disse aqui neste espaço (http://estadodedireito.com.br/direito-material-e-processual-do-trabalho/) diante do que assistimos agora em nosso próprio País, desde os acontecimentos de 2016, com a Constituição arguida contra a própria Constituição, para dela extrair-se, com o uso meramente formal de um enunciado, vale dizer, a previsão de aplicação de procedimento de afastamento do Presidente ou da Presidenta da República, uma retórica mobilizadora de engajamentos (sociais, políticos, jurídicos), delirantes de seu necessário fundamento material, a precisa tipificação de conduta que assim possa ser configurada como crime que justifique o afastamento (impeachment). Por isso, a configuração desse processo como um golpe, sem armas, sem quartelada, mas uma ruptura com a base de legitimidade do sistema constitucional-jurídico, um atentado à democracia, uma forma de traduzir, sem nenhuma sutileza, o Estado Democrático da Direita, que se vale da lei para esvaziá-la de suas melhores promessas, e logo a ligeira disponibilidade para usurpar, apropriar-se e investir-se das representações e das narrativas simbólicas das conquistas históricas e jurídicas conferidas nas lutas travadas pelos sujeitos individuais e coletivos por reconhecimento da dignidade humana, da cidadania e dos direitos.
        No agravamento dessa investida, com a superveniência da pandemia, a resposta federal agudiza o que a dissertação até denomina de processo de reificação, no sentido mais forte de conferir às relações sociais e à própria subjetividade humana, sujeitadas e identificadas cada vez mais ao caráter inanimado, quantitativo e automático dos objetos ou mercadorias circulantes no mercado, numa brutal coisificação que atinge o núcleo da dignidade do trabalho, um valor que perpassa o estudo e que torna muito difícil fazer tese nessas condições. Não é possível pensar acriticamente nessa circunstância, exercitar uma intelectualidade elegante que isente o pensamento acadêmico do nojo que a realidade provoca, para me valer de uma categoria que a dissertação destaca, quando a existência sucumbe ao agir político conduzido de forma perversa, cujo exemplo acabado é a MP 927 em si tão famigerada quanto o seu art. 18, demonstração cruel da reificação do trabalhador sacrificado ao capital na contracorrente do que se dá no resto do mundo hoje (sobre Neoliberalismo e Direitos Humanos conferir meu Lido para Você: http://estadodedireito.com.br/neoliberalismo-e-direitos-humanos/).
        Não é possível manter-se exímio na esgrima de conceitos de intensa representação de valores abstratos, como um Barthélémy (Joseph), que enquanto sustente o princípio da irretroatividade das leis promova uma legislação ex post factum para entregar às exigências de um regime nazista de ocupação, combatentes da resistência patriótica, com a cumplicidade da burocracia judicial tão bem retratada por Costa-Gravas em seu filme Sessão Especial de Justiça. Este mesmo Barthélemy, tão celebrado entre os publicistas, mesmo tendo sido levado à condição de ministro da justiça da República colaboracionista de Vichy e se prestando a produzir leis antissemitas para autorizar a deportação de judeus no interesse da ocupação alemã, sob o fundamento de que “não devemos permitir que os remorsos pessoais atravessem o caminho da necessidade cruel”. Bem que ainda celebrado por certos juristas que abrem mãos ou mandam às favas escrúpulos, não tenha escapado à prisão depois da libertação.
        A Dissertação se dispõe, conforme o resumo preparado pela própria Autora, definindo seu escopo e o conteúdo do estudo realizado, a compreender a dimensão da saúde no direito fundamental ao trabalho digno, a partir da análise das condições e da organização do trabalho de coletores e varredores na limpeza urbana do Distrito Federal. Para tanto, realizou primeiramente a revisão bibliográfica a respeito do Estado Democrático de Direito, bem como de seus princípios axiológicos próprios. Concomitantemente analisou o papel dos direitos fundamentais na concretização de tais ideais, bem como na delimitação do núcleo essencial do direito fundamental ao trabalho digno.
        Para constituir o campo trouxe para situar o objeto de estudo, o direito à saúde em sua tríplice dimensão de “completo bem-estar físico, mental e social”. O segundo capítulo teve por objetivo compreender o panorama geral da concretização da dimensão do direito à saúde dos trabalhadores na limpeza urbana do Distrito Federal. A partir de análise em perspectiva multidisciplinar, o estudo procurou verificar a hipótese de que as condições de trabalho dos coletores e varredores na limpeza urbana no Distrito Federal comprometem seu bem-estar mental e social. Para tanto, foi realizada uma revisão bibliográfica nas áreas da Sociologia, da Psicologia e da História dos Conceitos. Realizou-se, ainda, observação exploratória livre, além de pesquisa de campo na Usina de Triagem e Compostagem do Sol Nascente. O terceiro capítulo tem por objetivo analisar de que forma a negociação coletiva vem sendo aplicada na proteção ao direito fundamental ao trabalho digno na limpeza urbana no Distrito Federal, especificamente no que tange à promoção do bem-estar dos trabalhadores ocupantes das funções de coletor e varredor. Nesse contexto, realizou-se pesquisa documental junto à Convenção Coletiva de Trabalho da categoria, vigente no ano de 2019, à luz da Lei n.o 13.467/2017, a denominada “Lei da Reforma Trabalhista”, assim como da flexibilização trabalhista por ela introduzida. O recorte temático foi limitado às cláusulas que possuam conteúdo ligado à proteção e promoção da saúde dos sujeitos de pesquisa.
        A Autora analisa, ainda, de que forma a desregulamentação trabalhista afeta a tutela do direito à saúde dos trabalhadores coletores e varredores na limpeza urbana. Nesse contexto, pôs em causa o papel do Ministério do Trabalho na regulamentação da saúde e segurança nas atividades de limpeza urbana, bem como as possíveis consequências de sua extinção por meio da Medida Provisória n.o 870/2019, convertida na Lei n.o 13.844/2019. A conclusão é de que a dimensão da saúde no direito fundamental ao trabalho digno somente é concretizada quando a organização e as condições do trabalho promovem o completo bem-estar físico, mental e social do trabalhador, o que não se verifica na atividade dos coletores e varredores na limpeza urbana do Distrito Federal.
        Em que pese o arranjo esquematizado que a Autora propõe, sobretudo no primeiro capítulo, tal como indica no resumo, ela não se deixa perder em idealismo sob o pretexto de que o jurídico hipostasie a dureza e as contradições da realidade social e do mundo do trabalho num precário equilíbrio em que prevalece a expropriação do valor trabalho. Com sua Orientadora ela está atenta ao que ambas designam de movimento pendular tal como se vivencia na conjuntura, diz Gabriela Delgado, em que “os paradigmas do Estado Constitucional Contemporâneo somente podem ser entendidos em movimento pendular, isto é, como estruturas que se transformam por meio de recuos e avanços permanentes dentro da marcha histórica”, ao que a própria Autora da Dissertação completa, “isso porque, no processo de sucessão das fases do constitucionalismo no Brasil, as características de cada uma delas nem sempre foram ultrapassadas pela fase subsequente, mas sim incorporadas e desenvolvidas” (p. 20), permanecendo como horizonte de luta por democracia, cidadania, dignidade humana e projeto de vida.
        No campo empírico, tema do segundo capítulo, a Autora como que realiza uma etnografia com aportes antropológicos, sociais, culturais do processo de trabalho no lixo em face das condições de invisibilidade estigmatizante e por conseguinte, coisificadora do trabalhador, no serviço de limpeza, notadamente urbana, já que estuda o caso do Distrito Federal.
        Aqui, uma nota de notável simbolismo, a designação da categoria nojo, antropológica e psicologicamente trazida para contraponto às condições de afirmação do núcleo irredutível de dignidade que aspire a reconhecimento como subjetivação de direitos, nos limites da subalternidade do sistema de produção e de atribuição de direitos.
        É uma página forte, em que o nojo acentua o cheiro como “a linha que não pode ser cruzada”, na estética tensa que o filme Parasita logra realizar, ainda que sem a força dramática de um Zola em seu Germinal ou na glamourização suavizada de Ítalo Calvino, que em Os Amores Difíceis, realiza a percepção convincente destacada por Bruna Fontes Ferraz (Sapore, Sapere: por uma poética dos cinco sentidos em Italo Calvino / Tese de Doutorado, USP, 2018). Conforme essa Autora constata em Calvino “a partir de indagações sobre a possível atrofia dos sentidos e o declínio da experiência no homem moderno, problematiza-se se a linguagem tornaria o homem insensível aos estímulos externos, ou se ela permitiria que as experiências sensíveis se tornassem acessíveis a ele”. Ou, ao contrário, conforme sugere a Autora na Dissertação, amparar-se na história dos conceitos como chave de compreensão para prevenir-se da utilização da linguagem como instrumento de fomento à desvalorização do trabalho [com o lixo] (p.139).
        Bom exemplo está nesse estupendo escritor em seu conto “A Aventura de um Esposo e de uma Esposa”, um dos textos de “Amores Difíceis”: “A cama estava como Elide a deixara ao se levantar, mas do lado dele, Arturo, estava quase intacta, como se tivesse sido arrumada naquele momento. Ele se deitava de seu próprio lado, como devia, mas depois esticava uma perna para lá, onde havia ficado o calor da mulher, em seguida esticava também a outra perna, e assim pouco a pouco se deslocava todo para o lado de Elide, naquele nicho de tepidez que ainda conservava a forma do corpo dela, e afundava o rosto em seu travesseiro, em seu perfume, e adormecia”.
        Este é bem um outro nível de mergulho no sentido da existência e em sua projeção no mundo jurídico, sem a prosaica desfaçatez de Bismark advertindo que salsichas e leis não deveríamos querer saber como são feitas. Sobre certa perspectiva esse processo enoja, tal como se vê hoje sobretudo no campo justrabalhista. E é esse estilo de mergulho, em profundidade, que Helena Martins de Carvalho faz em sua Dissertação.
        Na sequência de sua pesquisa, ao realizar o levantamento das condições de decência do trabalho no serviço de limpeza urbana do Distrito Federal ela oferece, ao meu ver, um dos mais cuidados estudos desse campo, identificando, sob a lupa da atenção ao princípio da dignidade, as condições deficitárias de sua atribuição ao trabalhador desse campo. Em face da contínua precarização dos direitos de cidadania e dos direitos trabalhistas especificamente, sobretudo com a sua flexibilização no interesse econômico da acumulação que sacrifica o trabalho ao capital, a Autora demarca desde logo o distanciamento entre as posturas sociais, econômicas, políticas e jurídicas e o patamar civilizatório mínimo que deveria preservá-las e orientar o sistema de proteção dele decorrente. Sigo nesse processo a advertência forte da querida amiga e antiga magistrada do trabalho Magda Barros Biavaschi (Direito do Trabalho: um direito comprometido com a justiça. In AGUIAR, Roberto A. R. e SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Série O Direito Achado na Rua, vol. 2: Introdução Crítica ao Direito do Trabalho. Brasília: CEAD/NEP/UnB, 1993).
        Tomando o fundamento da saúde, que é a síntese do irredutível nessa dimensão, ela mostra, à luz do empírico, o afastamento às salvaguardas constitucionais e convencionais que definem o enquadramento cogente que emoldura o sistema de proteção do que aparece com alguma fugacidade em seu trabalho, mas que já se constitui num fundamento de aplicação dos direitos humanos convencionais: o projeto de vida.
        Aí reside o que a Autora indica como métrica que separa a dignidade do trabalho num patamar de reconhecimento humanizador dos direitos e a reificação do humano, acentuada pela disponibilidade das aquisições jurídicas (bens sociais), em detrimento da predominância do econômico forte na institucionalização da Lex Mercatória, conforme, entre outros críticos da globalização ou da mundialização, mostram André-Jean Arnaud e Wanda Capeller, aliás, em estudo que discute a conexão entre desenvolvimento econômico e saúde pública e o enredo da transnacionalização (cf. Uma Visão Internacional do Direito à Saúde, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al. (orgs). Série O Direito Achado na Rua, vol. 4: Introdução Crítica ao Direito à Saúde. Brasília: CEAD /UnB, 2008). No mesmo volume, numa dimensão local desse deslocamento, e de modo mais próximo ao tema em estudo na Dissertação, o artigo de Jorge Mesquita Huet Machado, Vigilância em Saúde do Trabalhador (in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (orgs). Série O Direito Achado na Rua, idem).
        Concluída a Dissertação antes da pandemia do coronavírus que assombra o mundo e aturde o Brasil com uma disposição originada de setores que menos deveriam hesitar em relação às opções políticas, mas que se revelam paladinos dos negócios e das coisas em detrimento da vida, a Autora identifica o cerne dessa orientação no neoliberal que ganhou espaço no Brasil e mostra como logo a seguir as reformas política, trabalhista, previdenciária seguiram a lógica da hegemonia do capital em relação ao trabalho.
        Seja na destituição de direitos histórica e cruentamente conquistados, seja no desmantelamento das estruturas de proteção funcional e de orientação das políticas. A Autora destaca a extinção do Ministério do Trabalho, com suas atribuições transferidas ao Ministério da Economia, juntamente com a competência de segurança e saúde do trabalhador.
        Mas, o maior efeito-demonstração dessa inversão hierárquica, que é o centro do debate justrabalhista da Dissertação, é a ampliação da autonomia negocial, não como reconhecimento da subjetividade jurídica do trabalhador e do seu dever de resistência mas, conforme ela salienta (p. 141): “A ampliação da autonomia negocial coletiva trazida pela Lei n.o 13.467/2017 deve ser interpretada sistematicamente, porquanto situada em um ordenamento jurídico coeso e dotado de princípios gerais consagrados pelo Constituinte originário a fim de balizar a atuação legislativa posterior, além daqueles previstos em normas internacionais das quais o Brasil é signatário, que configuram o resultado de processos históricos de amadurecimento social, inadmitindo retrocesso em matéria de proteção ao valor da dignidade no trabalho”.
        Com Maurício Godinho Delgado a Autora tem por certo, com reflexo no estudo comparativo que realiza a partir da Convenção Coletiva de 2019, levada a efeito no sistema de limpeza urbana do Distrito Federal, que “o norte das alterações introduzidas por meio da Lei da Reforma Trabalhista (que) é, de fato, o objetivo de reduzir a extensão da imperatividade de distintas regras justrabalhistas, flexibilizando e restringindo direitos e garantias individuais e sociais asseguradas aos trabalhadores no universo das relações empregatícias” (p. 141).
        O sensível, mobilizado e criterioso estudo desenvolvido pela Autora valida sobre qualquer fundamento a Dissertação que ela apresenta e que, como um estudo de caso, é única e como análise, exemplar. Não digo que seja uma lacuna, mas considero que enriqueceria muito o seu trabalho acrescentar às suas leituras o extraordinário Cidadania e Inclusão Social. Estudos em Homenagem à Professora Miracy Barbosa de Sousa Gustin (PEREIRA, Flávio Henrique Unes; DIAS, Maria Tereza Fonseca. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2008). Toda a obra é de interesse para a Dissertação e para sua futura publicação, mas são ainda valiosos por ampliarem o que ela já obteve de referências em leituras de fundo, os textos de Maurício Godinho Delgado – Direito do Trabalho e inclusão social: o desafio brasileiro (p. 495-510); de Gabriela Neves Delgado, sua orientadora – A constitucionalização dos direitos trabalhistas e os reflexos no mercado de trabalho, cujo fio condutor é a referência axiológica ao conceito de dignidade do ser humano e ao patamar civilizatório mínimo do direito ao trabalho digno (p. 145-154). E o precioso texto de Márcio Túlio Viana – Os não-lugares do Direito: uma pesquisa em classe com trabalhadores de rua (p. 367-376). Nesse texto, com riqueza de estilo e intensidade narrativa, o querido mestre faz o direito andar nas ruas para recuperar nas histórias de vida, os projetos frustrados, do gritador, dos malabaristas, da mulher do cabide, as filha dela, do engraxate. Tipos humanos aos quais se poderiam agregar os tigres e os lixeiros, que a Autora nos apresenta em sua Dissertação.
        Em si, e em seu modo de apresentação, entendo que a Autora não só toma posição, como aponta desafios aos operadores do Direito e aos agentes políticos na direção de convocá-los a compromissos de aplicação e de interpretação do Direito do Trabalho, como arena de resistência ao processo de desdemocratização e de desconstitucionalização em curso.
        Se se pudesse acrescentar questões para a Autora, eu diria, aliás, como questões que também me proponho. Estarão esses operadores e esses agentes à altura das expectativas civilizatórias que os desafiam, no plano constitucional e no plano convencional. A Corte Interamericana de Direitos Humanos em diversos julgados tem assentado a irrenunciabilidade e a reparabilidade do projeto de vida frusPlaPlaPltrado. Indiquei com Antonio Escrivão Filho, em nosso livro Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos (Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016), várias aplicações desse fundamento para orientar formas de reparação, reivindicáveis em sede de litígio estratégico em direitos humanos. Assim como recuperei formas de resistência e de intransponibilidade, mesmo no Supremo tribunal Federal em tempos de ditadura, para lembrar com Victor unes Leal a necessidade que tem a jusrisprudência, inclusive do STF, de andar nas ruas, para que a promessa do Direito não se torne vazia. Em voto célebre contra as interdições da ditadura ao exercício de greve, esse grande juiz afastou aplicação porque segundo definiu em voto “a lei não pode exigir do operário que ele seja herói ou soldado a serviço do patronato”.
        Repito a questão: estarão os operadores e os agentes políticos à altura das expectativas civilizatórias que os desafiam, no plano constitucional e no plano convencional? Nessa quadra dramática de interpelação a um paradigma civilizatório, serão alcançados nos seus misteres para, com a tempestade que desaba sobre o mundo, limpar “a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem; (e deixar) a descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos”, como exorta o Papa Francisco em sua HOMILIA Adoração do Santíssimo e Bêncão Urbi et Orbi, pronunciada em seu exemplar distanciamento social na grande praça de São Pedro, totalmente vazia, nesse 27 de março de 2020?
        Será o Direito, realmente Direito se, como exortou Francisco, não for “capaz de resgatar, valorizar e mostrar como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espetáculo, mas que hoje estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiros e enfermeiras, trabalhadores dos supermercados, pessoal da limpeza, curadores, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho”, e operar para realizar e ser instrumento por meio da eficácia horizontal dos direitos humanos nas relações justrabalhistas, conforme sustenta a Autora, em sua conclusão, e buscar (p. 144) “para além da pacificação social, (a) concretização dos ideais de igualdade material, de democracia e de justiça social, com a consolidação do valor trabalho (digno) ancorado na centralidade da pessoa humana e sua dignidade”?
        Uma resposta já se apresenta de imediato, procedente daquela mesma fonte bi-centenária que expressamente inspirou a constituição do campo dos direitos sociais e do trabalho e a formação da OIT, a Rerum Novarum. Em Carta aos Movimentos Sociais no domingo de Páscoa (12/4) exortou o Papa Francisco: “Talvez seja a hora de pensar em um salário universal que reconheça e dignifique as tarefas nobres e insubstituíveis que vocês realizam; capaz de garantir e tornar realidade esse slogan tão humano e cristão: nenhum trabalhador sem direitos. Também gostaria de convidá-los a pensar no “depois”, porque esta tempestade vai acabar e suas sérias consequências já estão sendo sentidas. Vocês não são uns improvisados, têm a cultura, a metodologia, mas principalmente a sabedoria que é amassada com o fermento de sentir a dor do outro como sua. Quero que pensemos no projeto de desenvolvimento humano integral que ansiamos, focado no protagonismo dos Povos em toda a sua diversidade e no acesso universal aos três T que vocês defendem: terra e comida, teto e trabalho”.
        Pós-Escrito de Helena Martins de Carvalho após a Defesa da Dissertação
        O Professor brinda-nos com a seguinte provocação: “estarão os operadores e os agentes políticos à altura das expectativas civilizatórias que os desafiam, no plano constitucional e no plano convencional?
        Conforme menciona a Professora Gabriela Neves Delgado, a marcha civilizatória é marcada por um movimento pendular de recuos e avanços permanentes, dinâmica que se irradia por todas as instituições, inclusive a Justiça do Trabalho.
        Nesse contexto, a edição da Lei n.º 13.467/2017, denominada de “Lei da Reforma Trabalhista”, descortina um movimento de juízas e juízes dissidentes do eixo axiológico próprio que justificaria a existência de um direito material e processual do trabalho dissociado da matriz civilista.
        Isso porque a flexibilização trabalhista consagrada pela Lei n.º 13.467/2017, cujo escopo é a ampliação irrestrita da autonomia privada para regular, inclusive, direitos trabalhistas indisponíveis, desconsidera a assimetria inerente às relações sociais entre capital e trabalho. Avilta, ainda, o papel central que a composição dessa desigualdade ocupa no desenvolvimento da sociedade e da economia, e que confere à Justiça do Trabalho seu caráter teleológico.
        A aplicação literal da Lei n.º 13.467/2017, dissociada de critérios científicos de interpretação da norma a partir dos métodos lógico-racional, sistemático e teleológico, acaba por materializar uma atuação institucional da magistratura trabalhista na defesa dos interesses do capital, e não no reconhecimento da centralidade do valor trabalho no desenvolvimento da pessoa humana a nível individual e como ser social.
        Nesse contexto, é preciso que as alterações legislativas promovidas pela ideologia neoliberal na regulamentação do mundo do trabalho sejam analisadas conforme o eixo civilizatório de proteção ao trabalho humano previsto no ordenamento constitucional e internacional.
        No entanto, as expectativas civilizatórias que recaem sobre a magistratura trabalhista não se limitam a esse olhar para dentro do ordenamento jurídico sistematicamente considerado.
        É preciso que juízas e juízes do trabalho andem nas ruas, a fim de compreenderem as peculiaridades inerentes às diversas dimensões de corporificação das relações sociais entre capital e trabalho.
        Especificamente no que tange ao trabalho invisível, a Justiça do Trabalho vem promovendo esse olhar para fora e para o outro tanto em iniciativas a nível nacional como regional.
        No ano de 2019, a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho (ENAMAT), sob direção do Ministro Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, incluiu a disciplina “Os magistrados e a invisibilidade social” no conteúdo programático dos 24º e 25º cursos de formação inicial de magistrados.
        Na mesma linha de prestígio à formação humanista da magistratura trabalhista, os Tribunais Regionais do Trabalho da 1ª e 4ª Regiões implementaram projetos de vivência prática da invisibilidade social, por meio dos quais juízas e juízes experimentaram, por um dia, o cotidiano de trabalhadores marginalizados do reconhecimento social, tais como varredores na limpeza urbana.
        Verifica-se, assim, que o movimento histórico de fluxos e contrafluxos de progressividade e conservadorismo reflete na atuação institucional da magistratura do trabalho que se, de um lado, adere ao projeto neoliberal de desmonte do valor trabalho, de outro, prestigia a concretização do direito fundamental ao trabalho digno a partir da formação humanista de juízas e juízes.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

quarta-feira, 22 de abril de 2020

A Era dos Coletivos de Solidão

A dominação social deste século só sobreviverá se criar novos sujeitos. Sociedades, onde os diferentes se relacionam, precisam ser reduzidas a massas inertes de indivíduos-dados. Esta distopia é, também, o calcanhar de aquiles do projeto
Por Boaventura de Sousa Santos | Imagem: Andrzej Krauze
A combinação tóxica entre capitalismo, colonialismo e patriarcado que caracteriza este início de século, longe de ser apenas uma dominação tricéfala particularmente virulenta nos modos de exploração e de discriminação que privilegia, está assumindo a dimensão de um novo modelo civilizatório, uma nova era que, muito além de desfigurar as instituições, as representações e as ideologias preexistentes, propõe-se criar novas subjetividades para quem o novo modelo é o único modo imaginável de vida. É um processo em construção e obviamente só se consolidará se não houver resistência eficaz. Para que tal resistência ocorra é necessário fazer um diagnóstico radical do que está em causa. Como qualquer outro processo histórico, tem uma longa e sinuosa evolução. Sendo uma evolução civilizacional, contou com cumplicidades de forças ideológica e politicamente muito díspares. Foram essas conivências que tornaram possível o consenso de que o processo era irreversível e não havia alternativa.
Podemos ver hoje as principais fases por que foi avançando. A primeira fase consistiu numa crítica radical do Estado e na afirmação da sociedade civil como única fonte de virtude e de eficácia. A sociedade civil forte, que antes era a outra face do Estado democraticamente forte, passou a ser o oposto do Estado forte e, por isso, só possível se o Estado fosse fraco. Numa segunda fase, uma vez neutralizado o Estado, a sociedade passou a ser questionada em nome da autonomia do indivíduo. Ou seja, começou por virar a sociedade contra o Estado para depois virar o indivíduo autônomo contra a sociedade. Mas a autonomia que proclama é uma autonomia uberizada, isto é, a autonomia de indivíduos que não têm condições para ser autônomos. A autonomia da auto-escravatura.
O objetivo deste modelo civilizacional é substituir o conceito de responsabilidade social pelo conceito de culpa. Os problemas que isso pode suscitar não são problemas políticos. São problemas de polícia ou de terapia. Estamos às portas de uma era não relacional em que os atributos que definem grupos de população são naturalizados e separados entre si de modo a não ser visível a relação que há entre eles. Criam-se assim segregações que não se tomam como tal e antes parecem o resultado natural de diferenças que não suscitam outro sentimento que não o da indiferença.  Assim, diferenças e hierarquias, que até há pouco eram consideradas chocantes e revoltantes, tendem hoje a ser percebidas como triviais e até aceitáveis porque expressão de características inatas em relação às quais a sociedade pouco pode fazer. Por exemplo, a concentração da riqueza aumentou escandalosamente nas últimas quatro décadas e a ostentação da riqueza convive indiferentemente com a mais abjeta pobreza. Por sua vez, as discriminações por motivos raciais, sexuais, religiosos ou outros ganham crescente aceitação entre públicos insensíveis às lutas dos movimentos anti-racistas, anti-sexistas, anti-homofóbicos, anti-fundamentalistas, os mesmos públicos que estão sempre disponíveis para ignorar ativamente as conquistas contra a discriminação que esses movimentos têm obtido. Assim, quem é rico merece ser rico porque tem as qualidades para o ser, tal como quem é pobre merece ser pobre por não ter as qualidades necessárias para deixar de o ser. Na construção deste modelo civilizatório estão envolvidos vários processos. Muitos dos quais parecem nada ter a ver com ele.
Em meio à crise civilizatória e à ameaça da extrema-direita, OUTRAS PALAVRAS sustenta que o pós-capitalismo é possível. Queremos sugerir alternativas ainda mais intensamente. Para isso, precisamos de recursos: a partir de 15 reais por mês você pode fazer parte de nossa rede. Veja como participar >>>
1. Do conhecimento à informação. O novo modelo civilizatório assenta na produção aparentemente ilimitada de informação e na confusão entre informação e conhecimento. É cada vez mais comum a ideia de que vivemos numa sociedade de informação. A abundância de informação não é um bem incondicional. Lembremos que em caso de inundação o recurso mais escasso é água potável. Semelhantemente, vivemos hoje inundados por informação, mas carecemos cada vez mais de informação potável, isto é, confiável. Por outro lado, informação não é conhecimento (qualquer que seja o tipo de conhecimento). A informação fornece dados, enquanto o conhecimento visa compreender ou explicar a origem, o significado e as implicações dos dados. A informação é o presente simultaneamente eterno e efêmero, enquanto o conhecimento é a ponte entre o passado, o presente e o futuro. Estas diferenças tornam-se cada vez menos evidentes quando, para sonho de uns e pesadelo de outros, parece próximo o tempo em que um supercomputador desvendará o segredo da vida e do universo ao prever a estrutura tridimensional das proteínas em todas as suas (infinitas) sequências. E, não por acaso, a mais poderosa biomáquina, um ícone exemplar da inteligência artificial, chama-se Mente Profunda (deep mind) e os seus processos designam-se como tecnologia de aprendizagem profunda. A verdade é que, mesmo que tal seja possível, a máquina nunca poderá explicar ou entender os resultados a que chegar. Mas para o novo modelo civilizatório o significado dos dados está cada vez mais reduzido à utilidade econômica que eles possam ter para quem os detenha.
2. Das relações sociais aos dados. A confusão entre conhecimento e informação é fundamental para ocultar ou trivializar as relações sociais e as desigualdades de poder que estão por detrás dos dados. As formas de dominação modernas reproduzem-se por via da extração de recursos assente em relações de poder desigual que tornam possíveis decisões unilaterais e a apropriação indevida de valor. Historicamente, essa extração teve duas formas principais: os recursos naturais (a exploração da natureza) e os recursos humanos (de que o trabalho escravo é a forma mais brutal). Hoje, a estas duas formas juntam-se uma terceira: a extração de dados. Esta extração é cada vez mais massiva em função da imensa agregação de dados tornada possível pelas novas tecnologias de informação e comunicação, os big data. Aliás, a obtenção destes dados tem a mesma designação que o extrativismo mineiro: escavação de dados (data digging). O próprio termo “dados” contém em si toda a ambivalência da armadilha digital. Os dados são efetivamente roubados; mas, depois de manipulados e vendidos a utilizadores comerciais ou políticos, são devolvidos ao público como sendo oferecidos e, de fato, propriedade comum. O país com o maior número de utilizadores do facebook é a Índia, mas os centros de dados obtidos por este meio estão localizados nos EUA, na Europa e em Singapura. A apropriação do valor dos dados está concentrada numa empresa, mas quem é que se sente ao serviço de uma empresa quando o uso, a entrada e a saída da empresa são livres?
A manipulação destes dados por parte das grandes empresas de comunicação eletrônica é a grande responsável pela progressiva substituição das relações sociais pelos dados enquanto explicação, fundamento, sentido e valorização da vida coletiva. Os dados são obtidos por instrumentos tecnológicos cujos parâmetros e critérios não são do domínio público por estarem protegidos por patentes. Esta opacidade é a condição essencial da suposta transparência dos dados e, portanto, da sua utilização aparentemente neutra. A sociedade métrica em que estamos a entrar visa transformar o caráter relacional da vida social em desempenhos individuais quantificados e sem outra relação entre si senão as diferenças numéricas e as agregações que são feitas a partir delas. Tudo o que não é quantificável é desqualificado mesmo que seja a felicidade ou sentido da vida e da morte.
3. Da política à polícia e à terapia. As relações sociais e as desigualdades de poder que podem explicar os dados deixam de ser visíveis e relevantes enquanto causas. São tratadas quando muito como consequências. Os conflitos que fatalmente geram são despolitizados. Passam a ser assunto de polícia e nisso consiste a criminalização crescente do protesto social. Em alternativa, são temas para terapia contra a depressão, a alienação, a fadiga crônica, o impulso suicidário. A terapia permite que indivíduos solitários não se sintam sós. Fazem parte de comunidades imaginadas de consumidores de ansiolíticos, de álcool, de drogas, de medicinas alternativas, de academias de prontidão física, de meditação. São coletivos de partilha de destino sem esperança ou cuja esperança reside em perder o medo de viver sem ela.
4. Das redes à solidão coletiva. Os big data não visam individualmente os indivíduos (passe o pleonasmo); visam coletivos homogêneos de indivíduos, organizados invisivelmente segundo os seus gostos de consumo, de política ou de religião. Desta forma, os big data permitem combinar a máxima personalização com a máxima massificação. Os indivíduos, longe se sentirem sós ou isolados, sentem-se auto-escolhidos por grupos mais ou menos vastos com quem não têm outras relações senão as que a internet permite. As redes sociais são a expressão mais acabada da nova solidão, a pertença superficial, seletiva, isenta de compromissos extra-comunicacionais a colecivos cada vez mais organizados pelo mercado comercial, político ou religioso dos big data. Claro que as redes sociais também permitem intensificar a comunicação que começou por ser física e presencial, mas do ponto de vista dos big data a única dimensão comunicacional que conta é a digital. E é mesmo crucial que entre o indivíduo massivamente personalizado e o objeto de consumo não existam intermediários. O indivíduo tem à sua disposição um mundo que considera feito por si, apesar de ter sido feito por outros, e que pensa ser seu, apesar de ser propriedade, muitas vezes patenteada, de outros.
5. Do pensamento crítico à peritagem. O estudo crítico, livre e independente das assimetrias sociais não é bem-vindo neste mundo da sociedade métrica. Os dados são “tratados” por especialistas que aparentemente não têm nenhuma lealdade ou preferência senão a que se espelha nos dados. São considerados objetivos por serem tidos por neutros e não por serem conhecidos os critérios e os métodos que mobilizam as suas análises. Enquanto no caso do liberalismo científico a neutralidade (que, de fato, nunca existiu) era o resultado da aplicação de metodologias que garantiam a objetividade, na ação dos especialistas a objetividade é o resultado da suposta neutralidade. O especialista é o juiz sempre parcial na farsa da imparcialidade da era não-relacional.
Este tipo de especialização é um híbrido entre informação e conhecimento, e traduz-se em análises e relatórios preparados por encomenda de quem tem interesse em que os dados sustentem certas conclusões, e não outras. Este híbrido dificilmente pode ser produzido nas universidades e centros de investigação, pelo menos enquanto umas e outros se pautarem pelo princípio de que o valor do conhecimento nunca é redutível ao valor de mercado que possa ter ou não ter. Não admira, pois, que a ação dos especialistas seja cada vez mais um monopólio de empresas de consultoria. Estas empresas nunca podem oferecer conclusões desconfortantes para os clientes e nunca podem prever os piores cenários sob pena de os seus próprios acionistas as desertarem. Foi por isso que nenhuma dela previu a crise financeira de 2008 nem preverá qualquer crise futura. Na era dos coletivos de solidão, a consultoria é a voz dos poderes que criam os coletivos e o silenciamento dos indivíduos coletivamente solitários.