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Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Título original: A dimensão da saúde no direito fundamental ao trabalho digno: uma análise justrabalhista do trabalho na limpeza urbana do Distrito Federal.
A dimensão da saúde no direito fundamental ao trabalho digno: uma análise justrabalhista do trabalho na limpeza urbana do Distrito Federal”. Helena Martins de Carvalho. Dissertação de Mestrado. Brasília: UnB/Faculdade de Direito, 2020, 182 p.
Neste Lido para Você, uma contribuição especial por Helena Martins de Carvalho, autora da dissertação comentada, na forma de um Pós-Escrito à Dissertação, Após o Debate com a Banca
A Dissertação de Helena Martins de Carvalho, objeto desta Coluna, deve-se à sua gentileza em me convidar e a atenção de sua Orientadora professora Gabriela Neves Delgado em confirmar o convite convocando-me para a banca, por ela presidida e integrada pelo professor e magistrado Márcio Túlio Viana e pela colega professora Renata Queiroz Dutra. Chamando a atenção para pesquisadores e editores, ressalto de saída que não há sobressaltos quando se trata de estudos que se desenvolvem no âmbito do Grupo de Pesquisa Trabalho, Constituição e Cidadania. Esse Coletivo universitário prima pelo rigor e opera como uma pré-banca e um verdadeiro conselho editorial relativamente à produção do Grupo.
A primeira evocação que me faz a dissertação de Helena Martins de Carvalho procede de leitura que me ficou na memória de um texto de Boaventura de Sousa Santos em coluna permanente que publicávamos num tablóide aqui na Faculdade de Direito, por mobilização de dois Grupos de Pesquisa – Sociedade, Tempo e Direito e O Direito Achado na Rua. Refiro-me ao Observatório da Constituição e da Democracia que editamos mês a mês por cerca de três anos, entre 2006 e 2009 (Sobre o Observatório da Constituição e da Democracia, ver minha Coluna Lido para Você: http://estadodedireito.com.br/21528-2/). Pois bem, o texto de Boaventura (C & D, Brasília: Faculdade de Direito/Sindjus, n. 17, outubro e novembro de 2007, p. 24) teve como título Lixo e Cidadania e nele o autor, a respeito de uma experiência por ele vivenciada na cidade de Belo Horizonte, fala do aprendizado que teve: “Aprendi que os seres humanos, mesmo os mais excluídos e nas condições mais indignas – aqueles para quem o nosso lixo é um luxo…não desistem de lutar por uma vida digna, assente na reivindicação de direitos…”.
Questão paradoxal que vem para o centro do trabalho desenvolvido, focado na dimensão da saúde no direito fundamental do trabalho digno de trabalhadores na limpeza urbana, tema que se comporta no título da Dissertação, num contexto de quádrupla arremetida, contra o trabalho como espaço de dignidade, contra os trabalhadores numa conjuntura ultraneoliberal, contra a democracia que gesta direitos e contra a constituição que os realiza. Assim é a conjuntura local de trânsito desdemocratizante e desconstituinte e glocal para me valer da expressão criada pelos críticos do neoliberalismo globalizado, acirrando o primeiro cenário, em situação de pandemia que favorece a crueza da acumulação egoísta. Assim é fazer tese em tempo de golpe e de coronavírus.
Sobre a conjuntura de golpe, retomo o que já disse aqui neste espaço (http://estadodedireito.com.br/direito-material-e-processual-do-trabalho/) diante do que assistimos agora em nosso próprio País, desde os acontecimentos de 2016, com a Constituição arguida contra a própria Constituição, para dela extrair-se, com o uso meramente formal de um enunciado, vale dizer, a previsão de aplicação de procedimento de afastamento do Presidente ou da Presidenta da República, uma retórica mobilizadora de engajamentos (sociais, políticos, jurídicos), delirantes de seu necessário fundamento material, a precisa tipificação de conduta que assim possa ser configurada como crime que justifique o afastamento (impeachment). Por isso, a configuração desse processo como um golpe, sem armas, sem quartelada, mas uma ruptura com a base de legitimidade do sistema constitucional-jurídico, um atentado à democracia, uma forma de traduzir, sem nenhuma sutileza, o Estado Democrático da Direita, que se vale da lei para esvaziá-la de suas melhores promessas, e logo a ligeira disponibilidade para usurpar, apropriar-se e investir-se das representações e das narrativas simbólicas das conquistas históricas e jurídicas conferidas nas lutas travadas pelos sujeitos individuais e coletivos por reconhecimento da dignidade humana, da cidadania e dos direitos.
No agravamento dessa investida, com a superveniência da pandemia, a resposta federal agudiza o que a dissertação até denomina de processo de reificação, no sentido mais forte de conferir às relações sociais e à própria subjetividade humana, sujeitadas e identificadas cada vez mais ao caráter inanimado, quantitativo e automático dos objetos ou mercadorias circulantes no mercado, numa brutal coisificação que atinge o núcleo da dignidade do trabalho, um valor que perpassa o estudo e que torna muito difícil fazer tese nessas condições. Não é possível pensar acriticamente nessa circunstância, exercitar uma intelectualidade elegante que isente o pensamento acadêmico do nojo que a realidade provoca, para me valer de uma categoria que a dissertação destaca, quando a existência sucumbe ao agir político conduzido de forma perversa, cujo exemplo acabado é a MP 927 em si tão famigerada quanto o seu art. 18, demonstração cruel da reificação do trabalhador sacrificado ao capital na contracorrente do que se dá no resto do mundo hoje (sobre Neoliberalismo e Direitos Humanos conferir meu Lido para Você: http://estadodedireito.com.br/neoliberalismo-e-direitos-humanos/).
Não é possível manter-se exímio na esgrima de conceitos de intensa representação de valores abstratos, como um Barthélémy (Joseph), que enquanto sustente o princípio da irretroatividade das leis promova uma legislação ex post factum para entregar às exigências de um regime nazista de ocupação, combatentes da resistência patriótica, com a cumplicidade da burocracia judicial tão bem retratada por Costa-Gravas em seu filme Sessão Especial de Justiça. Este mesmo Barthélemy, tão celebrado entre os publicistas, mesmo tendo sido levado à condição de ministro da justiça da República colaboracionista de Vichy e se prestando a produzir leis antissemitas para autorizar a deportação de judeus no interesse da ocupação alemã, sob o fundamento de que “não devemos permitir que os remorsos pessoais atravessem o caminho da necessidade cruel”. Bem que ainda celebrado por certos juristas que abrem mãos ou mandam às favas escrúpulos, não tenha escapado à prisão depois da libertação.
A Dissertação se dispõe, conforme o resumo preparado pela própria Autora, definindo seu escopo e o conteúdo do estudo realizado, a compreender a dimensão da saúde no direito fundamental ao trabalho digno, a partir da análise das condições e da organização do trabalho de coletores e varredores na limpeza urbana do Distrito Federal. Para tanto, realizou primeiramente a revisão bibliográfica a respeito do Estado Democrático de Direito, bem como de seus princípios axiológicos próprios. Concomitantemente analisou o papel dos direitos fundamentais na concretização de tais ideais, bem como na delimitação do núcleo essencial do direito fundamental ao trabalho digno.
Para constituir o campo trouxe para situar o objeto de estudo, o direito à saúde em sua tríplice dimensão de “completo bem-estar físico, mental e social”. O segundo capítulo teve por objetivo compreender o panorama geral da concretização da dimensão do direito à saúde dos trabalhadores na limpeza urbana do Distrito Federal. A partir de análise em perspectiva multidisciplinar, o estudo procurou verificar a hipótese de que as condições de trabalho dos coletores e varredores na limpeza urbana no Distrito Federal comprometem seu bem-estar mental e social. Para tanto, foi realizada uma revisão bibliográfica nas áreas da Sociologia, da Psicologia e da História dos Conceitos. Realizou-se, ainda, observação exploratória livre, além de pesquisa de campo na Usina de Triagem e Compostagem do Sol Nascente. O terceiro capítulo tem por objetivo analisar de que forma a negociação coletiva vem sendo aplicada na proteção ao direito fundamental ao trabalho digno na limpeza urbana no Distrito Federal, especificamente no que tange à promoção do bem-estar dos trabalhadores ocupantes das funções de coletor e varredor. Nesse contexto, realizou-se pesquisa documental junto à Convenção Coletiva de Trabalho da categoria, vigente no ano de 2019, à luz da Lei n.o 13.467/2017, a denominada “Lei da Reforma Trabalhista”, assim como da flexibilização trabalhista por ela introduzida. O recorte temático foi limitado às cláusulas que possuam conteúdo ligado à proteção e promoção da saúde dos sujeitos de pesquisa.
A Autora analisa, ainda, de que forma a desregulamentação trabalhista afeta a tutela do direito à saúde dos trabalhadores coletores e varredores na limpeza urbana. Nesse contexto, pôs em causa o papel do Ministério do Trabalho na regulamentação da saúde e segurança nas atividades de limpeza urbana, bem como as possíveis consequências de sua extinção por meio da Medida Provisória n.o 870/2019, convertida na Lei n.o 13.844/2019. A conclusão é de que a dimensão da saúde no direito fundamental ao trabalho digno somente é concretizada quando a organização e as condições do trabalho promovem o completo bem-estar físico, mental e social do trabalhador, o que não se verifica na atividade dos coletores e varredores na limpeza urbana do Distrito Federal.
Em que pese o arranjo esquematizado que a Autora propõe, sobretudo no primeiro capítulo, tal como indica no resumo, ela não se deixa perder em idealismo sob o pretexto de que o jurídico hipostasie a dureza e as contradições da realidade social e do mundo do trabalho num precário equilíbrio em que prevalece a expropriação do valor trabalho. Com sua Orientadora ela está atenta ao que ambas designam de movimento pendular tal como se vivencia na conjuntura, diz Gabriela Delgado, em que “os paradigmas do Estado Constitucional Contemporâneo somente podem ser entendidos em movimento pendular, isto é, como estruturas que se transformam por meio de recuos e avanços permanentes dentro da marcha histórica”, ao que a própria Autora da Dissertação completa, “isso porque, no processo de sucessão das fases do constitucionalismo no Brasil, as características de cada uma delas nem sempre foram ultrapassadas pela fase subsequente, mas sim incorporadas e desenvolvidas” (p. 20), permanecendo como horizonte de luta por democracia, cidadania, dignidade humana e projeto de vida.
No campo empírico, tema do segundo capítulo, a Autora como que realiza uma etnografia com aportes antropológicos, sociais, culturais do processo de trabalho no lixo em face das condições de invisibilidade estigmatizante e por conseguinte, coisificadora do trabalhador, no serviço de limpeza, notadamente urbana, já que estuda o caso do Distrito Federal.
Aqui, uma nota de notável simbolismo, a designação da categoria nojo, antropológica e psicologicamente trazida para contraponto às condições de afirmação do núcleo irredutível de dignidade que aspire a reconhecimento como subjetivação de direitos, nos limites da subalternidade do sistema de produção e de atribuição de direitos.
É uma página forte, em que o nojo acentua o cheiro como “a linha que não pode ser cruzada”, na estética tensa que o filme Parasita logra realizar, ainda que sem a força dramática de um Zola em seu Germinal ou na glamourização suavizada de Ítalo Calvino, que em Os Amores Difíceis, realiza a percepção convincente destacada por Bruna Fontes Ferraz (Sapore, Sapere: por uma poética dos cinco sentidos em Italo Calvino / Tese de Doutorado, USP, 2018). Conforme essa Autora constata em Calvino “a partir de indagações sobre a possível atrofia dos sentidos e o declínio da experiência no homem moderno, problematiza-se se a linguagem tornaria o homem insensível aos estímulos externos, ou se ela permitiria que as experiências sensíveis se tornassem acessíveis a ele”. Ou, ao contrário, conforme sugere a Autora na Dissertação, amparar-se na história dos conceitos como chave de compreensão para prevenir-se da utilização da linguagem como instrumento de fomento à desvalorização do trabalho [com o lixo] (p.139).
Bom exemplo está nesse estupendo escritor em seu conto “A Aventura de um Esposo e de uma Esposa”, um dos textos de “Amores Difíceis”: “A cama estava como Elide a deixara ao se levantar, mas do lado dele, Arturo, estava quase intacta, como se tivesse sido arrumada naquele momento. Ele se deitava de seu próprio lado, como devia, mas depois esticava uma perna para lá, onde havia ficado o calor da mulher, em seguida esticava também a outra perna, e assim pouco a pouco se deslocava todo para o lado de Elide, naquele nicho de tepidez que ainda conservava a forma do corpo dela, e afundava o rosto em seu travesseiro, em seu perfume, e adormecia”.
Este é bem um outro nível de mergulho no sentido da existência e em sua projeção no mundo jurídico, sem a prosaica desfaçatez de Bismark advertindo que salsichas e leis não deveríamos querer saber como são feitas. Sobre certa perspectiva esse processo enoja, tal como se vê hoje sobretudo no campo justrabalhista. E é esse estilo de mergulho, em profundidade, que Helena Martins de Carvalho faz em sua Dissertação.
Na sequência de sua pesquisa, ao realizar o levantamento das condições de decência do trabalho no serviço de limpeza urbana do Distrito Federal ela oferece, ao meu ver, um dos mais cuidados estudos desse campo, identificando, sob a lupa da atenção ao princípio da dignidade, as condições deficitárias de sua atribuição ao trabalhador desse campo. Em face da contínua precarização dos direitos de cidadania e dos direitos trabalhistas especificamente, sobretudo com a sua flexibilização no interesse econômico da acumulação que sacrifica o trabalho ao capital, a Autora demarca desde logo o distanciamento entre as posturas sociais, econômicas, políticas e jurídicas e o patamar civilizatório mínimo que deveria preservá-las e orientar o sistema de proteção dele decorrente. Sigo nesse processo a advertência forte da querida amiga e antiga magistrada do trabalho Magda Barros Biavaschi (Direito do Trabalho: um direito comprometido com a justiça. In AGUIAR, Roberto A. R. e SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Série O Direito Achado na Rua, vol. 2: Introdução Crítica ao Direito do Trabalho. Brasília: CEAD/NEP/UnB, 1993).
Tomando o fundamento da saúde, que é a síntese do irredutível nessa dimensão, ela mostra, à luz do empírico, o afastamento às salvaguardas constitucionais e convencionais que definem o enquadramento cogente que emoldura o sistema de proteção do que aparece com alguma fugacidade em seu trabalho, mas que já se constitui num fundamento de aplicação dos direitos humanos convencionais: o projeto de vida.
Aí reside o que a Autora indica como métrica que separa a dignidade do trabalho num patamar de reconhecimento humanizador dos direitos e a reificação do humano, acentuada pela disponibilidade das aquisições jurídicas (bens sociais), em detrimento da predominância do econômico forte na institucionalização da Lex Mercatória, conforme, entre outros críticos da globalização ou da mundialização, mostram André-Jean Arnaud e Wanda Capeller, aliás, em estudo que discute a conexão entre desenvolvimento econômico e saúde pública e o enredo da transnacionalização (cf. Uma Visão Internacional do Direito à Saúde, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al. (orgs). Série O Direito Achado na Rua, vol. 4: Introdução Crítica ao Direito à Saúde. Brasília: CEAD /UnB, 2008). No mesmo volume, numa dimensão local desse deslocamento, e de modo mais próximo ao tema em estudo na Dissertação, o artigo de Jorge Mesquita Huet Machado, Vigilância em Saúde do Trabalhador (in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (orgs). Série O Direito Achado na Rua, idem).
Concluída a Dissertação antes da pandemia do coronavírus que assombra o mundo e aturde o Brasil com uma disposição originada de setores que menos deveriam hesitar em relação às opções políticas, mas que se revelam paladinos dos negócios e das coisas em detrimento da vida, a Autora identifica o cerne dessa orientação no neoliberal que ganhou espaço no Brasil e mostra como logo a seguir as reformas política, trabalhista, previdenciária seguiram a lógica da hegemonia do capital em relação ao trabalho.
Seja na destituição de direitos histórica e cruentamente conquistados, seja no desmantelamento das estruturas de proteção funcional e de orientação das políticas. A Autora destaca a extinção do Ministério do Trabalho, com suas atribuições transferidas ao Ministério da Economia, juntamente com a competência de segurança e saúde do trabalhador.
Mas, o maior efeito-demonstração dessa inversão hierárquica, que é o centro do debate justrabalhista da Dissertação, é a ampliação da autonomia negocial, não como reconhecimento da subjetividade jurídica do trabalhador e do seu dever de resistência mas, conforme ela salienta (p. 141): “A ampliação da autonomia negocial coletiva trazida pela Lei n.o 13.467/2017 deve ser interpretada sistematicamente, porquanto situada em um ordenamento jurídico coeso e dotado de princípios gerais consagrados pelo Constituinte originário a fim de balizar a atuação legislativa posterior, além daqueles previstos em normas internacionais das quais o Brasil é signatário, que configuram o resultado de processos históricos de amadurecimento social, inadmitindo retrocesso em matéria de proteção ao valor da dignidade no trabalho”.
Com Maurício Godinho Delgado a Autora tem por certo, com reflexo no estudo comparativo que realiza a partir da Convenção Coletiva de 2019, levada a efeito no sistema de limpeza urbana do Distrito Federal, que “o norte das alterações introduzidas por meio da Lei da Reforma Trabalhista (que) é, de fato, o objetivo de reduzir a extensão da imperatividade de distintas regras justrabalhistas, flexibilizando e restringindo direitos e garantias individuais e sociais asseguradas aos trabalhadores no universo das relações empregatícias” (p. 141).
O sensível, mobilizado e criterioso estudo desenvolvido pela Autora valida sobre qualquer fundamento a Dissertação que ela apresenta e que, como um estudo de caso, é única e como análise, exemplar. Não digo que seja uma lacuna, mas considero que enriqueceria muito o seu trabalho acrescentar às suas leituras o extraordinário Cidadania e Inclusão Social. Estudos em Homenagem à Professora Miracy Barbosa de Sousa Gustin (PEREIRA, Flávio Henrique Unes; DIAS, Maria Tereza Fonseca. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2008). Toda a obra é de interesse para a Dissertação e para sua futura publicação, mas são ainda valiosos por ampliarem o que ela já obteve de referências em leituras de fundo, os textos de Maurício Godinho Delgado – Direito do Trabalho e inclusão social: o desafio brasileiro (p. 495-510); de Gabriela Neves Delgado, sua orientadora – A constitucionalização dos direitos trabalhistas e os reflexos no mercado de trabalho, cujo fio condutor é a referência axiológica ao conceito de dignidade do ser humano e ao patamar civilizatório mínimo do direito ao trabalho digno (p. 145-154). E o precioso texto de Márcio Túlio Viana – Os não-lugares do Direito: uma pesquisa em classe com trabalhadores de rua (p. 367-376). Nesse texto, com riqueza de estilo e intensidade narrativa, o querido mestre faz o direito andar nas ruas para recuperar nas histórias de vida, os projetos frustrados, do gritador, dos malabaristas, da mulher do cabide, as filha dela, do engraxate. Tipos humanos aos quais se poderiam agregar os tigres e os lixeiros, que a Autora nos apresenta em sua Dissertação.
Em si, e em seu modo de apresentação, entendo que a Autora não só toma posição, como aponta desafios aos operadores do Direito e aos agentes políticos na direção de convocá-los a compromissos de aplicação e de interpretação do Direito do Trabalho, como arena de resistência ao processo de desdemocratização e de desconstitucionalização em curso.
Se se pudesse acrescentar questões para a Autora, eu diria, aliás, como questões que também me proponho. Estarão esses operadores e esses agentes à altura das expectativas civilizatórias que os desafiam, no plano constitucional e no plano convencional. A Corte Interamericana de Direitos Humanos em diversos julgados tem assentado a irrenunciabilidade e a reparabilidade do projeto de vida frusPlaPlaPltrado. Indiquei com Antonio Escrivão Filho, em nosso livro Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos (Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016), várias aplicações desse fundamento para orientar formas de reparação, reivindicáveis em sede de litígio estratégico em direitos humanos. Assim como recuperei formas de resistência e de intransponibilidade, mesmo no Supremo tribunal Federal em tempos de ditadura, para lembrar com Victor unes Leal a necessidade que tem a jusrisprudência, inclusive do STF, de andar nas ruas, para que a promessa do Direito não se torne vazia. Em voto célebre contra as interdições da ditadura ao exercício de greve, esse grande juiz afastou aplicação porque segundo definiu em voto “a lei não pode exigir do operário que ele seja herói ou soldado a serviço do patronato”.
Repito a questão: estarão os operadores e os agentes políticos à altura das expectativas civilizatórias que os desafiam, no plano constitucional e no plano convencional? Nessa quadra dramática de interpelação a um paradigma civilizatório, serão alcançados nos seus misteres para, com a tempestade que desaba sobre o mundo, limpar “a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem; (e deixar) a descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos”, como exorta o Papa Francisco em sua HOMILIA Adoração do Santíssimo e Bêncão Urbi et Orbi, pronunciada em seu exemplar distanciamento social na grande praça de São Pedro, totalmente vazia, nesse 27 de março de 2020?
Será o Direito, realmente Direito se, como exortou Francisco, não for “capaz de resgatar, valorizar e mostrar como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espetáculo, mas que hoje estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiros e enfermeiras, trabalhadores dos supermercados, pessoal da limpeza, curadores, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho”, e operar para realizar e ser instrumento por meio da eficácia horizontal dos direitos humanos nas relações justrabalhistas, conforme sustenta a Autora, em sua conclusão, e buscar (p. 144) “para além da pacificação social, (a) concretização dos ideais de igualdade material, de democracia e de justiça social, com a consolidação do valor trabalho (digno) ancorado na centralidade da pessoa humana e sua dignidade”?
Uma resposta já se apresenta de imediato, procedente daquela mesma fonte bi-centenária que expressamente inspirou a constituição do campo dos direitos sociais e do trabalho e a formação da OIT, a Rerum Novarum. Em Carta aos Movimentos Sociais no domingo de Páscoa (12/4) exortou o Papa Francisco: “Talvez seja a hora de pensar em um salário universal que reconheça e dignifique as tarefas nobres e insubstituíveis que vocês realizam; capaz de garantir e tornar realidade esse slogan tão humano e cristão: nenhum trabalhador sem direitos. Também gostaria de convidá-los a pensar no “depois”, porque esta tempestade vai acabar e suas sérias consequências já estão sendo sentidas. Vocês não são uns improvisados, têm a cultura, a metodologia, mas principalmente a sabedoria que é amassada com o fermento de sentir a dor do outro como sua. Quero que pensemos no projeto de desenvolvimento humano integral que ansiamos, focado no protagonismo dos Povos em toda a sua diversidade e no acesso universal aos três T que vocês defendem: terra e comida, teto e trabalho”.
Pós-Escrito de Helena Martins de Carvalho após a Defesa da Dissertação
O Professor brinda-nos com a seguinte provocação: “estarão os operadores e os agentes políticos à altura das expectativas civilizatórias que os desafiam, no plano constitucional e no plano convencional?
Conforme menciona a Professora Gabriela Neves Delgado, a marcha civilizatória é marcada por um movimento pendular de recuos e avanços permanentes, dinâmica que se irradia por todas as instituições, inclusive a Justiça do Trabalho.
Nesse contexto, a edição da Lei n.º 13.467/2017, denominada de “Lei da Reforma Trabalhista”, descortina um movimento de juízas e juízes dissidentes do eixo axiológico próprio que justificaria a existência de um direito material e processual do trabalho dissociado da matriz civilista.
Isso porque a flexibilização trabalhista consagrada pela Lei n.º 13.467/2017, cujo escopo é a ampliação irrestrita da autonomia privada para regular, inclusive, direitos trabalhistas indisponíveis, desconsidera a assimetria inerente às relações sociais entre capital e trabalho. Avilta, ainda, o papel central que a composição dessa desigualdade ocupa no desenvolvimento da sociedade e da economia, e que confere à Justiça do Trabalho seu caráter teleológico.
A aplicação literal da Lei n.º 13.467/2017, dissociada de critérios científicos de interpretação da norma a partir dos métodos lógico-racional, sistemático e teleológico, acaba por materializar uma atuação institucional da magistratura trabalhista na defesa dos interesses do capital, e não no reconhecimento da centralidade do valor trabalho no desenvolvimento da pessoa humana a nível individual e como ser social.
Nesse contexto, é preciso que as alterações legislativas promovidas pela ideologia neoliberal na regulamentação do mundo do trabalho sejam analisadas conforme o eixo civilizatório de proteção ao trabalho humano previsto no ordenamento constitucional e internacional.
No entanto, as expectativas civilizatórias que recaem sobre a magistratura trabalhista não se limitam a esse olhar para dentro do ordenamento jurídico sistematicamente considerado.
É preciso que juízas e juízes do trabalho andem nas ruas, a fim de compreenderem as peculiaridades inerentes às diversas dimensões de corporificação das relações sociais entre capital e trabalho.
Especificamente no que tange ao trabalho invisível, a Justiça do Trabalho vem promovendo esse olhar para fora e para o outro tanto em iniciativas a nível nacional como regional.
No ano de 2019, a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho (ENAMAT), sob direção do Ministro Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, incluiu a disciplina “Os magistrados e a invisibilidade social” no conteúdo programático dos 24º e 25º cursos de formação inicial de magistrados.
Na mesma linha de prestígio à formação humanista da magistratura trabalhista, os Tribunais Regionais do Trabalho da 1ª e 4ª Regiões implementaram projetos de vivência prática da invisibilidade social, por meio dos quais juízas e juízes experimentaram, por um dia, o cotidiano de trabalhadores marginalizados do reconhecimento social, tais como varredores na limpeza urbana.
Verifica-se, assim, que o movimento histórico de fluxos e contrafluxos de progressividade e conservadorismo reflete na atuação institucional da magistratura do trabalho que se, de um lado, adere ao projeto neoliberal de desmonte do valor trabalho, de outro, prestigia a concretização do direito fundamental ao trabalho digno a partir da formação humanista de juízas e juízes.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55 |
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