segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

 

Anistia: por justiça de transição nem reversa, nem perversa

  •  em 



Em recensão que fiz de trabalho de Thelma YanagisawaShimomura, Educação e justiça de transição na era digital: análise comparativa dos cursos à distância relacionados ao direito à memória e à verdade no Brasil (2015-2020), em Dissertação de Mestrado – Belo Horizonte, 2021, anotei uma conclusão interpelante da Autora no sentido de que “na atual conjuntura, o discurso da extrema-direita tem sido o de assumir os crimes de lesa-humanidade e o de criar para os violadores uma aura de heróis nacionais, além de construírem um discurso de passado idílico. Desta forma, altera-se o entendimento de que os crimes devem ser negados ou esquecidos para serem afirmados e exaltados. Vive-se, no tempo presente, as consequências de uma justiça transicional incompleta, na qual prevaleceu a impunidade dos crimes cometidos.  A educação e a Justiça de Transição, como política de Estado, iniciaram sua jornada na modalidade virtual e estão ainda em estágio inicial. Têm sido aprimoradas com a experiência de instituições que abordavam esta temática em cursos presenciais e necessitam de expansão e fortalecimento em todos os meios”.

 

Nos quatro de governança, animada por esse discurso, pode-se aferir a ação de governo, direcionada ao apagamento de registros dessa realidade sombria. Registro matéria com o título “Servidores denunciam o descarte de documentos sobre a ditadura. A ameaça estende-se a dados financeiros que nem sequer foram analisados pelo TCU” – https://www.cartacapital.com.br/politica/servidores-denunciam-o-descarte-de-documentos-sobre-a-ditadura/, a Carta Capital publicou matéria denúncia sobre o assunto: “Não é só de fakenews nas redes sociais que vive a desinformação propagada pelo governo federal. Internamente, um insidioso processo de apagamento da memória nacional espalha-se por instituições responsáveis pela análise e guarda de documentos histór… Leia mais em https://www.cartacapital.com.br/politica/servidores-denunciam-o-descarte-de-documentos-sobre-a-ditadura/. O conteúdo de CartaCapital está protegido pela legislação brasileira sobre direito autoral. Essa defesa é necessária para manter o jornalismo corajoso e transparente de CartaCapital vivo e acessível a todos”.

 

Com essa preocupação, ainda mais acentuada em face de atitudes criminosas de censura e de silenciamento, abri uma discussão pública em minha Coluna no Jornal Brasil Popular conforme meu artigo Para que não se esqueça. Para que nunca mais aconteça. Censura e Silenciamento (https://www.brasilpopular.com/para-que-nao-se-esqueca-para-que-nunca-mais-aconteca-censura-e-silenciamento/).

 

Em que pese as hesitações e tibiezas das manifestações judiciais no Brasil,a ampla jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos em matéria de memória, verdade e justiça, manifestadas em sentenças especificamente dirigidas ao Brasil (Caso Gomes Lund e Caso Vladimir Herzog), têm estabelecidoque as autoridades de todos os poderes do país devem a adotar medidas para garantir o direito à memória e à verdade.

 

Não se trata de disputar narrativas. De fato, além dessa disputa, o projeto derrotado nas eleições de outubro passado, desenvolveram toda uma estratégia de desarticulação da institucionalidade que dá sustentação às políticas de justiça e de transição. Seja, desconstituindo organismos, capturando a agenda dos que não logrou extinguir, insinuando mentalidades hostis ao tema na composição dos mecanismos de implementação dessas políticas e esvaziando orçamentariamente suas possibilidades de atuação.

 

Tenho sustentado esses mesmos fundamentos para afirmar o caráter cogente do direito à memória e à verdade e o conjunto de enunciados que formam o que atualmente se adensa como justiça de transição. Em texto publicado em 2008 –Memória e Verdade como Direitos Humanos (in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Ideias para a Cidadania e Para a Justiça. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor), sintetizo esses enunciados e lembro Hanna Arendt para dizer com ela, que “uma das lições que podem ser apreendidas das experiências totalitárias é a assustadora confiança de seus dirigentes no poder da mentira e na capacidade de reescreverem a história para a adaptar a uma linha política”. Esse é o pressuposto que se faz núcleo da concepção de justiça de transição e que se projeta para o objetivo de que não se esqueça; para que nunca mais aconteça.

 

Em outro texto sobre esse tema (Revista do Sindjus • Fev-Mar/2010, ano XVIII, n. 64), anotei que a reivindicação de incluir uma Comissão de Verdade e Justiça, mesmo na forma atual de Comissão de Verdade, decorreu da Conferência Nacional de Direitos Humanos realizada em dezembro de 2008 com caráter deliberativo. Decorre também da natureza cogente do direito internacional dos direitos humanos, expressa em decisões de tribunais internacionais que indicaram ao Brasil a necessidade de concluir o processo de democratização com a verdade sobre os fatos, para evitar repetições de ciclos de violência. E que essa reivindicação inscreve-se nos fundamentos do que se denomina justiça de transição, que pode ser definida como esforço para a construção da paz sustentável após um período de conflito, violência em massa ou violação sistemática dos direitos humanos.

 

Por isso foi com enorme alento que acompanhei a iniciativa do ministro Silvio Almeida, dos Direitos Humanos e Cidadania, assumir a organicidade da Comissão de Anistia, até então vinculada ao Ministério da Justiça, para fazê-lo recuperando esses fundamentos que simbolizam sua autenticidade teórica e política. De um lado validando pessoalmente a sua relevância institucional, conferindo aquela proximidade entre o dizer e o fazer que se materializam nas titularidades que os ativam, pluralizando as percepções pelas subjetividades protagonistas dos membros designados (pela primeira vez uma designação de membro indígena, considerando a estimativa de letalidade das comunidades e indivíduos atingidos ao limite do genocídio), e a sua necessária e pedagógica desmilitarização (pela primeira vez também, a representação do Ministério da Defesa recai sobre um civil, abandonando-se a escolha castrense da cadeira; quem sabe a exemplaridade de Pandiá Calógeras, o ministro da guerra civil que fez história no ministério incluindo criando as escolas de formação, oriente a nova representação).

 

E que ela não se deixe intimidar pela recrudescência do discurso da direita, antes difundida na esfera difusa da comunicação mas que já começa a ser vocalizada por parlamentares – deputados e senadores – que a representam e que buscam atenuar as práticas criminosas que em seu nome infligiram à República, suas Instituições e à Democracia, por meio de um golpe felizmente fracassado. Para esses não há anistia como pedem esses discursos cúmplices.

 

Sempre é bom lembrar a aula magna do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, da UnB, na qual o professor Paulo Sergio Pinheiro, que coordenou a Comissão de Memória e Verdade do Brasil (A Comissão Nacional da Verdade (CNV), órgão temporário criado pela Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011, encerrou suas atividades em 10 de dezembro de 2014 (conheça o seu Relatório: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/index.php/outros-destaques/574-conheca-e-acesse-o-relatorio-final-da-cnv), nos lembrou a todos e todas que a “vigência de um regime tendencialmente democratizante não é condição automática para o alastramento e consolidação de direitos” (veja a sua bela exposição em: https://www.youtube.com/watch?v=qon6RVukYjo). E confira a fidelidade ao que já dizia em 1987 (Dialética dos Direitos Humanos. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de – org, O Direito Achado na Rua. Curso de Extensão à Distância, Série O Direito Achado na Rua. Brasília: Editora UnB, 1987), salientando que “os direitos individuais somente podem prevalecer na medida direta em que foram reconhecidos como direitos sociais para todos os grupos marginalizados, mortificados e anulados na sociedade brasileira”.

 

Muito me anima que na sua forma atual tenha sido designada para presidir a Comissão de Anistia, a minha colega professora na Faculdade de Direito da UnB, Eneá de Stutz e Almeida, que já integrou a Comissão quando ela estava vinculada ao Ministério da Justiça. Porque desta e de outras questões candentes trata o livro que ela organizou – http://justicadetransicao.org/a-transicao-brasileira-memoria-verdade-reparacao-e-justica-1979-2021/ (A transição brasileira: memória, verdade, reparação e justiça (1979-2021), Salvador: Soffia10 Editora, uma publicação do Grupo de Pesquisa Justiça de Transição, da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília).

 

O livro, dizem os organizadores “atualiza, complementa e sistematiza ideias e conceitos iniciados em textos anteriores. Analisa a anistia política implementada a partir de 1979 no Brasil: uma anistia da memória, que não impede a responsabilização dos violadores de direitos humanos. Estuda os mecanismos da justiça de transição brasileira até o ano de 2021, concluindo que o País vive uma justiça de transição reversa”.

 

Trata-se de repor a anistia no seu rumo de realização de fundamentos que permitam resgatar memória e não produzir esquecimento, para o nunca mais, e para pedagogicamente, reconstituir as instituições democráticas.

 

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

 

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

 

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).

terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

 

Práticas Jurídicas, Extensão e Acesso à Justiça

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

Práticas Jurídicas, Extensão e Acesso à Justiça. Rayssa Cavalcante Matos. Monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, 2023, 51 fls.

                  

Com muita alegria e redobrada satisfação participei da banca examinadora da monografia de Rayssa Cavalcante Matos, juntamente com a orientadora professora Talita Tatiana Dias Rampin e com o professor Antonio Escrivão Filho, meus colegas na Faculdade de Direito da UnB. E porque não dizê-lo, ambos meus orientandos por ocasião da apresentação e da defesa de seus doutoramentos, em trabalhos brilhantes. A tese de Talita foi considerada pelo comitê oficial a melhor tese em Direito da UnB, no ano da defesa.

Do que trata a monografia esclarece o seu resumo e dele, logo, se deduz o motivo de minha satisfação: o relevo para um tema e uma experiência de institucionalização que me mobilizam e que me tem em forte protagonismo, político e teórico, aliás, registrado no trabalho.

Transcrevo o resumo e as palavras-chaves, estas porque eu gostaria, à luz da discussão, da bibliografia e do pertencimento acadêmico, para apelar à autora que consigne a expressão O Direito Achado na Rua, até para guardar fidelidade a uma linha teórica e a uma organicidade que engaja a autora e o seu tema:

Considerando a obrigatoriedade da institucionalização da nucleação de práticas jurídicas no bojo das instituições de ensino superior que mantém cursos de graduação em Direito, e a indissociabilidade do ensino, da pesquisa e da extensão, foi desenvolvida a pesquisa intitulada “Práticas Jurídicas, Extensão e Acesso à Justiça”, cujos resultados são agora apresentados neste trabalho. O objetivo geral estabelecido à pesquisa foi identificar como e quais são as práticas jurídicas extensionistas que atuam ou já atuaram no Núcleo de Práticas Jurídicas da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, localizado em Ceilândia, bem como traçar a relação e o impacto que esses projetos causam na localidade no que diz respeito ao acesso à justiça e à superação das desigualdades existentes nessa área periférica do Distrito Federal. Para tanto, foi realizada análise de conteúdo de documentos relacionados às ações extensionistas desenvolvidas no órgão.

Palavras-chave: Ensino jurídico; educação em direitos humanos; extensões populares; Núcleo de Prática Jurídica; acesso à justiça.

 

Sobre o conteúdo da monografia remeto ao Sumário, bem compreensivo nos seus enunciados. Depois da Introdução, os itens:

Ensino Jurídico: um Paradigma

Universidade e Extensão Popular

As Origens do Núcleo de Prática Jurídica da UnB

O NPJ/FD/UnB e as Extensões Populares:

Assessoria Jurídica Universidade Popular   

Maria da Penha          

Promotoras Legais Populares

Vez e Voz

Defensoras e Defensores Populares  

Tribunal Popular Internacional sobre Sistema de Justiça Brasileiro           

Rexistir

Meu Condomínio Legal        

Reformulação da Lei Orgânica e do Regimento Interno da Câmara de Vereadores do município de São João D’Aliança (GO) 

Justiça Comunitária   

Cidadania e Justiça Também se Aprendem na Escola

Agentes Sociais

Projeto de Apoio a Comunidades de Quilombos do Brasil (PROACQ)     

Projetos vinculados ao DEX desenvolvidos no NPJ/FD/UnB

Centro Acadêmico e Fórum de Extensão da FD/UnB

Seguem-se as Considerações Finais e as Referências Bibliográficas.

 

            Prestando-se a se constituir um catálogo das experiências de extensão na Faculdade de Direito, a monografia já é em si valiosa porque revela a cuidadosas pesquisa para identificar os registros que assinalam as práticas que lhe dão origem, culminando num descritivo que é compartilhável, na medida da circulação do trabalho, mas que não é apenas uma exteriorização de eventos e de ocorrências.

            Com efeito, localizando a historiografia e os relatórios que designam essas experiências, a monografia logra extrair da descrição, algo mais que um exercício virtual do que foi observado, mas um valor interpretativo que só uma disposição epistemológica pode alcançar. Lembrando Engels em seus relatórios sobre as condições de vida e de moradia dos trabalhadores ingleses (Manchester) em seu tempo, “descrever verdadeiramente é, simultaneamente, explicar”.

            Assim que, em Rayssa, a descrição, referida ao catálogo, para mencionar todos os projetos que relaciona, expõe a mirada epistemológica que orienta o seu levantamento, tal como ela indica, com a articulação do afazer universitário (histórica e politicamente designados), nesse passo, com o roteiro proposto por Bistra Apostolova que o conhece bem, por seus estudos e por sua proximidade com o processo da institucionalização universitária, do ensino do direito e da formulação das diretrizes do campo; a própria questão do ensino do direito e aí da inserção da prática jurídica com a sua elementaridade para que “o direito não se ensine errado”, diz Roberto Lyra Filho, nem em decorrência da inadequada apreensão do objeto de conhecimento, nem pela inadequada pedagogia que daí decorre; do componente extensionista que articula a dimensão de realidade que propõe a articulação entre teoria e prática para que o conhecimento não delire da realidade e nem se distancie da pedagogia da autonomia; e, enfim, da própria concepção de conhecimento pela práxis organizada em núcleo de prática jurídica.

            Aqui a minha convocação para que as palavras-chaves contemplem a expressão O Direito Achado na Rua. Todas as referências, desde os conceitos, às concepções, às referências bibliográficas, e até a orientação e composição da banca, procedem da vertente de conhecimento e de práxis inscrita em O Direito Achado na Rua, sua concepção e sua prática.

            Assim, a concepção de direito como liberdade, em Roberto Lyra Filho e o acervo da Nova Escola Jurídica, com inscrição no ensino do direito e da prática jurídica, estão com absoluta fidelidade, articulados na monografia a partir de seus pressupostos, aplicados ao objeto de estudo.

Assim, por exemplo, para a mediação entre esses elementos que a autora inteligentemente estabeleceu, sobre configurá-la como enlace necessário, põe ela em relevo a categoria acesso à justiça, tomada dos escritos de sua orientadora, mas afinada com o que eu próprio sugeri fosse uma denotação mais precisa, afinal adotada por Rayssa:

Adotamos, aqui, o conceito de acesso à justiça desenvolvido por José Geraldo de Sousa Junior (2008, p.6): “[…] pensá-lo como um procedimento de tradução, ou seja, como uma estratégia de mediação capaz de criar uma inteligibilidade mútua entre experiências possíveis e disponíveis para o reconhecimento de saberes, de culturas e de práticas sociais que formam as identidades dos sujeitos que buscam superar os seus conflitos”. Existem outras abordagens ao fenômeno do acesso à justiça, que enfatizam a efetividade (CAPPELLETTI; GARTH, 1988) e as condições de ingresso dos sujeitos nos canais estatais de resolução de conflitos (SADEK, 2001), que, segundo Talita Rampin (2018, p.129), são limitadas por adotarem uma “perspectiva de ingresso-permanência-saída de determinado espaço-forma de resolução de conflitos.”

 

No mesmo passo, a concepção de extensão, fundamental para a sua abordagem, de um lado, acentuando a relação imediata, no âmbito universitário com a extensão, todavia mediada pela prática jurídica e nesse enquadramento com a configuração que lhe atribui, na UnB, O Direito Achado na Rua. Aqui, valendo-me de uma referência bibliográfica adotada pela Autora da monografia, num enlace orgânico (http://estadodedireito.com.br/a-experiencia-da-extensao-universitaria-na-faculdade-de-direito-da-unb/):

Tratei do tema extensão universitária aqui mesmo neste espaço em coluna anteriormente publicada – http://estadodedireito.com.br/salao-de-extensao-20-anos/.  Então, a propósito de registrar minha participação num evento celebratório do qual participei,  20 anos do Salão de Extensão da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), deixei marcado o meu posicionamento re-afirmando o que deixei expresso em meu balanço de reitorado (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (Org). Da Universidade Necessária à Universidade Emancipatória. Brasília: Editora UnB, 2012): “Nenhum reitor, desde os tempos medievais de reitores-estudantes no modelo de Bolonha, aos reitores-professores no modelo moderno de universidade, afronta arrogante o espaço público de inter-relacionamento e de diálogo com as comunidades plurais epistêmicas que dão legitimidade ao saber que suas instituições realizam” (p. 60-61). O conhecimento, assim, sobretudo em contexto de diálogo universidade e sociedade, adquire papel social indissociável e a extensão universitária é o seu melhor instrumento de construção.

No registro dos eventos daquela celebração, a propósito de estabelecer uma conexão entre a experiência da UFRGS e da minha UnB, aludi a um texto originado de balanço do projeto extensionista da Faculdade de Direito desta universidade, para salientar que, com efeito, a extensão é tradução de reconhecimento, na medida da disponibilidade de uma prática de intervenção que se reorienta reflexivamente a partir da extensão universitária e que se irradia indissociavelmente nos elementos que designam o afazer universitário: o ensino e a pesquisa. Mencionei, nessa Desde a perspectiva de O Direito Achado na Rua não é pouco essa denotação, se se tem em mente, por exemplo a constatação levada a cabo pela ex-Decana de Extensão da UnB Leila Chalub Martins, ao afirmar que “O Direito Achado na Rua, a meu juízo, foi a primeira e mais significativa iniciativa intelectual, no sentido de responder ao que cobrava Darcy Ribeiro, no momento do ‘renascimento’ da Universidade de Brasília” (Uma Universidade intrometida na vida – a experiência da Faculdade de Direito com a extensão universitária. In COSTA, Alexandre Bernardino (org). A Experiência da extensão universitária na Faculdade de Direito da UnB. Brasília: Faculdade de Direito. Coleção O que se Pensa na Colina)

 

No mesmo sentido, com contribuições igualmente significativas –http://estadodedireito.com.br/a-pratica-juridica-na-unb-reconhecer-para-emancipar/. Aqui, chamo a atenção para os apontamentos de André Macedo de Oliveira, nosso professor, o qual, embora não filiado a O Direito Achado na Rua, coordenou o NPJ/UnB e de sua experiência construiu a sua dissertação de mestrado. André acumulou no período uma densa bibliografia com base nessa experiência, incluindo o seu texto Advogados voluntários do Núcleo de Prática Jurídica da UnB: uma nova causa. Essa é outra linha de abordagem única experimentada na construção extensionista do NPJ/UnB, conforme outros importantes textos in Colaboradores Voluntários do Núcleo de Prática Jurídica (Coleção ‘O que se pensa na Colina’, Brasília: Faculdade de Direito/CESPE, UnB, 2002.

De resto, considerando que a minha contribuição na arguição se dirija mais à necessidade de completude de bibliografia pertinente, não posso deixar de lembrar à graduanda, as contribuições de sua orientadora, aliás Coordenadora do NPJ (conforme a sua própria tese) e do colega Escrivão, examinador, atualmente coordenador da AJUP Roberto Lyra Filho, com seu trabalho interpelante sobre a exigência de leituras alargadas de acesso à justiça e sua perspectiva para a sua democratização e para os direitos humanos.

Além de Justiça e Direitos Humanos: Perspectivas para a Democratização da Justiça, vol. 2. Antonio Escrivão Filho et al organizadores. Curitiba: Terra de Direitos, 2015), também http://estadodedireito.com.br/experiencias-compartilhadas-de-acesso-a-justica-reflexoes-teoricas-e-praticas/, sobre as obras REBOUÇAS, Gabriela Maia; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; CARVALHO NETO, Ernani Rodrigues de (Organizadores). Experiências Compartilhadas de Acesso à Justiça: Reflexões teóricas e práticas. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2016, 281 p. Texto Eletrônico. Modelo de Acesso World Wide Web (gratuito). www.esserenelmondo.com.br; e REBOUÇAS, Babriela Maia; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; ESTEVES, Juliana Teixeira (Organizadores). Políticas Públicas de Acesso à Justiça: Transições e Desafios. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2017, 177 p. E-Book (gratuito). www.esserenelmondo.com.br, nas quais, ambos, têm importantes contribuições, além de outros e outras colegas vinculados ao Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua que colaboram com textos nessas duas edições sobre acesso à justiça.

A outra vertente, não negligenciável, remete à educação popular inserida na acepção de prática jurídica. Para ela aponta Inês da Fonseca Porto com sua obra seminal sobre ensino do direito e imaginação – http://estadodedireito.com.br/ensino-juridico-dialogos-com-a-imaginacao/ – e de modo autêntico, Nita Freire (http://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-v-8/), com Acesso à Justiça e a pedagogia dos vulneráveis | Ana Maria Araújo Freire (Nita Freire), publicado em Série O Direito Achado na Rua, vol. 8 – Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação, obra em que tanto eu quanto a orientadora Talita Rampin somos co-organizadores.

                Na minha Coluna Lido para Você (Jornal Estado de Direito), dirigido pela jurista Carmela Grüne que assiste presencialmente esta defesa, aludo a propósito:

Reside nesse passo, a segunda motivação que me compromete com a obra e que dá sentido ao meu depoimento. Ou seja, essa apreensão que pode se encontrar entre Paulo Freire, de uma ligação entre educação, justiça, direito e direitos humanos, que não seja apenas uma evocação de sua originária formação em Direito, depois de um rápido ensaio inicial na advocacia.

Anoto que essa ligação foi desde logo estabelecida por Nita Freire. É dela a leitura que desvela uma “pedagogia dos direitos humanos” como proposta freireana de “inserção crítica dos homens e das mulheres nas suas sociedades ao possibilitar-lhes terem voz, dizerem a sua palavra, biografarem-se” (FREIRE, Ana Maria Araújo (Nita Freire). Acesso à Justiça e a Pedagogia dos Vulneráveis. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al. Organizador. Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação. Série O Direito Achado na Rua, vol. 8. Brasília: FAC/UnB Livros, 2017).

A meu ver, a notável apreensão dessa imbricação emancipatória se apresentou de forma inesperada quando recebi um pedido de Nita Freire que me solicitava referências jurídicas de uma possível relação que se pudesse estabelecer entre o pensamento do educador brasileiro, forte numa pedagogia de autonomia, e o direito. É que ela havia sido convidada a proferir uma conferência na Escuela del Servicio de Justicia, a Escola de Magistratura argentina, e gostaria de focalizar a sua apresentação pondo em relevo essa relação.

Diante do pedido de Nita, enviei-lhe duas dissertações de mestrado, ao final, fortemente citadas em sua conferência – “Acesso à Justiça e a pedagogia dos vulneráveis”; ou “O pensamento de Paulo Freire e sua relação com o Direito como prática para a libertação” – em base as quais desenvolveu os seus argumentos afirmativos da relação procurada (FREIRE, 2014): FEITOZA, Pedro Rezende Santos. O direito como modelo avançado de legítima organização social da liberdade: a teoria dialética de Roberto Lyra Filho. Dissertação apresentada em 2014, na UnB; GÓES JUNIOR, José Humberto de. Da Pedagogia do Oprimido ao Direito do Oprimido: Uma Noção de Direitos Humanos na Obra de Paulo Freire. Dissertação de Mestrado, Mestrado em Ciências Jurídicas, UFPB, João Pessoa, 2008.

Tal como exponho em outro escrito meu (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. O Direito Achado na Rua: Condições Sociais e Fundamentos Teóricos. Revista Direito e Praxis, Rio de Janeiro, vol. 10, n º 4, 2019, p. 2776-2817).

Não deixou, entretanto, de ser uma surpresa, rica e inesperada, acompanhar o modo como a conferencista estabelece a relação e sabe se valer das contribuições que lhe foram oferecidas, tanto mais valiosas quanto elaboradas por dois bem investidos do conhecimento e da prática que balizam O Direito Achado na Rua, para operar com as categorias formuladas por Roberto Lyra Filho e designar, na interconexão que logra estabelecer, entre Roberto Lyra Filho e Paulo Freire, entre o Direito e a Pedagogia da Autonomia, na sua leitura, tornada possível pela mediação de O Direito Achado na Rua. Percebe-se isso na conclusão que propõe (FREIRE, Ana Maria Araújo Freire (nita freire). Conferência proferida em Buenos Aires, em 25 de setembro de 2014, na Escola de Serviço de Justiça, em programa de especialização em Magistratura. www.odireitoachadonarua.blogspot.com, acesso em 03.02.2015):

“Por tudo que foi exposto torna-se possível asseverar, que, a relação de Paulo Freire com o Direito nega veemente a concepção tradicional do direito da Modernidade e se alia ___ talvez fosse mais correto dizer que ele, ao lado de outros intelectuais que enriqueceram o pensamento da esquerda mundial criaram um nova leitura do mundo, humanista e transformadora, dentro da qual meu marido concebeu uma teoria epistemológico-ético-político-antropológico-critica de educação, que está alinhada com a concepção do Direito Achado na Rua, a Teoria Dialética Social do Direito. Entretanto, cabe aqui uma ressalva: o jurista Roberto Lyra Filho, que embasa Feitoza e Góes, como também este meu trabalho, não cita Paulo Freire em nenhum dos seus mais de 40 livros. Porém, fica evidente, com uma simples leitura dos trabalhos deles, que Lyra sorveu princípios e utilizou algumas categorias fundamentais da teoria do educador brasileiro, seu conterrâneo”.

 

Mas, de Escrivão Filho sobretudo, importa remeter a http://estadodedireito.com.br/mapa-territorial-tematico-e-instrumental-da-assessoria-juridica-e-advocacia-popular-no-brasil/:

 

o estudo trata a assessoria jurídica e advocacia popular como indicadores do grau de qualidade democrática do sistema de justiça, compreendendo o papel dessas organizações tradutoras e mediadoras das lutas políticas dos movimentos sociais com as instituições do poder público, em especial as da justiça. Presente na história institucional da Terra de Direitos e da Dignitatis, a Renap – Rede de Advogadas e Advogados Populares está entre as motivações para a realização da pesquisa. A Rede foi criada em 1995 com o propósito de fortalecer a comunicação e a interlocução entre os diversos advogados e advogadas que atuam junto aos movimentos sociais no Brasil. Desde a criação da Rede, a advocacia popular se expandiu acompanhando o movimento histórico próprio do desenvolvimento da luta por direitos no Brasil. Aliado à Renap, a pesquisa surge também no âmbito dos debates da JusDh – Articulação Justiça e Direitos Humanos, que vem atuando sobre uma agenda política voltada para a democratização da justiça.

Segundo levantamento feito pela pesquisa, o cenário da assessoria e advocacia popular no Brasil conta com 96 entidades, distribuídas por 117 pontos de atuação, considerando que há organizações com escritórios em mais de uma cidade. A maior concentração está nas regiões metropolitanas e nas capitais, o que reafirma a atuação da advocacia popular no trabalho de tradução entre o mundo dos movimentos sociais e as instituições públicas das três esferas de poder, agrupados principalmente nas capitais.

Já os escritórios localizados no interior estão principalmente nas regiões Norte. Estado com de alto  de conflitos fundiários, o Pará se destaca pelo número de entidade espalhadas pelo seu território, voltadas especialmente aos temas agrários, como Terra e Território, Meio Ambiente e Trabalho Escravo. Dados da Comissão Pastoral da Terra, publicados no Relatório de Conflitos no Campo, mostram que houve registro de 89 conflitos por terra no estado em 2012, despontando como o mais violento da região e o 4º estado com o maior número de conflitos no país.

A pesquisa traz, ainda, outras duas abordagens: a identificação da variação temática da atuação das entidades de assessoria jurídica e advocacia popular, e o instrumental manejado em sua atuação. No âmbito do “mapa temático”, foram identificados 13 temas de direitos humanos usualmente defendidos pelas entidades pesquisadas. Segundo Antonio Escrivão Filho, co-coordenador da pesquisa pela Terra de Direitos, “um dado interessante foi a revelação de que há variações na distribuição e presença de temas, na medida das diferentes regiões do país. Neste sentido, destacaram-se, por exemplo, a elevada incidência do tema “LGBTT” no Nordeste, ao passo em que a temática de “Criança e Adolescente” se concentrou na região Sudeste”.

No que se refere à dimensão instrumental, a pesquisa buscou verificar quais as ferramentas e estratégias presentes no cotidiano de atuação das entidades, confirmando a análise que aponta para uma utilização combinada de instrumentais políticos e jurídicos na solução de demandas referentes à violação ou efetivação dos direitos humanos no Brasil.

 

Tudo isso contribui para explicar a outorga do (https://www.youtube.com/watch?v=DaSY1saZryg) Premio Esdras Borges da Costa de Ensino do Direito FGV, categoria prêmio destaque, ao Grupo Proponente Professores José Geraldo de Sousa Junior, Eduardo Lemos e Renata Vieira e Estudantes Maria Antonia Melo, Júlia Taquary, Rafael Santos, Lucca Dal Sochio e Juliana Machado. Projeto Pesquisa em (que) Direito. Integrou a documentação da candidatura o vídeo produzido pelos estudantes monitores da disciplina Pesquisa Jurídica [2020.1] sobre a Extensão na Faculdade de Direito da UnB (https://www.youtube.com/watch?v=Q65Ks3B_xHY).

Entre os projetos destacados está a AJUP Roberto Lyra Filho. Sobre essa forma de prática jurídica é relevante considerar a sua base teórica tal como o fez Adda Luisa, em sua monografia de conclusão de curso na Faculdade de Direito da UnB (cf. http://estadodedireito.com.br/o-papel-da-extensao-popular-na-democratizacao-da-justica-a-experiencia-da-assessoria-juridica-universitaria-popular-roberto-lyra-filho/):

Tendo como base teórica, principalmente O Direito Achado na Rua e o Direito Insurgente, Adda sustenta como hipótese de pesquisa “que AJUP-RLF, assim como muitos projetos de extensão, vivenciou, ao decorrer da sua história, gerações, muito marcadas pelos membros que estavam à frente do projeto na época”, todos mobilizados por uma concepção emancipatória de jurídico, notadamente na UnB (http://estadodedireito.com.br/a-pratica-juridica-na-unb-reconhecer-para-emancipar/; também (http://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-e-as-possibilidades-de-praticas-juridicas-emancipadoras/) e a sua proposta  “é desenvolver essa tese ao decorrer da escrita do artigo, assim como, apresentar a atuação do projeto com os movimentos sociais no DF”.

Folgo em que a base teórica em que se quer apoiar Adda Luisa também esteja presente nos pressupostos conceituais que orientam a elaboração do Mapa, sobretudo quando os autores da pesquisa, constatam o reaparecimento  dos “movimentos sociais no cenário político da reivindicação de direitos civis, políticos, econômicos e sociais como sujeitos coletivos de direitos”, capazes de, “Instituir novos modos de vida e de juridicidade, não apenas do ponto de vista semântico (como fonte de argumentos que ajudam a criar novas interpretações para velhas categorias), mas também do ponto de vista pragmático (como fonte de práticas que inspiram novas formas de operabilidade do fenômeno jurídico)”, valendo-se, nesse passo, de fontes que se organizam no Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua: ‘Esses movimentos sociais, segundo Sousa Júnior, constituem-se como sujeitos coletivos a partir da elaboração do modo como vivem suas relações e identificam seus interesses. Para o autor, o que dá o caráter de sujeito coletivo a esses grupos “é a conjugação do processo de identidades coletivas, como forma do exercício de suas autonomias e a consciência de um projeto coletivo de mudança social a partir das próprias experiências” (1999, p. 257). Ainda de acordo com Sousa Júnior (1999, p. 258), a ação desses sujeitos coletivos na defesa de interesses reflete o entendimento por parte deles de negação de um Direito, daí a luta para conquistá-lo. É justamente essa luta por Direitos, fundada nas necessidades desses grupos, articuladores de vontades gerais, que realça o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, constituindo novos espaços sociais de participação política nos quais se enunciam novos Direitos e que torna os movimentos sociais como novos sujeitos de Direito, os sujeitos coletivos de Direito’.

Confira-se, sobre isso, notadamente as páginas 22 e 23 do texto. Ali se verá ainda, conforme os autores que “Pensar a democratização da justiça a partir dessa ótica exige um duplo movimento de observação, análise e reflexão: primeiro, em torno dos processos e práticas de lutas sociais concretas, em cujos horizontes se instituem os direitos humanos (nesse sentido, Sousa Júnior, 1999); segundo, a respeito das formas – de reconhecimento e abertura, ou de invisibilização e indiferença, ou ainda de escancarada repressão – como os órgãos do sistema estatal de justiça relacionam-se ou não com essas lutas”.

Nessa linha de especificação e de continuidade de uma experiência que de fato “revoluciona” o ensino jurídico e contribui para o processo de democratização da justiça (Justiça como categoria de reconhecimento e de emancipação e não como sistema funcional e burocrático), tal como propõe Boaventura de Sousa Santos – http://estadodedireito.com.br/para-uma-revolucao-democratica-da-justica/ – guardo grande expectativa do estudo que Adda Luisa de Melo Sousa, estudante de graduação na UnB, dirigente do Centro Acadêmico e do Projeto de Extensão Universitária Assessoria Jurídica Roberto Lyra Filho, está desenvolvendo no PIBIC  – Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica): “Histórico, concepção e prática da Assessoria Jurídica Universitária Popular da UnB – Roberto Lyra Filho“.

A própria autora da monografia tem sua cota de explicitação desse marcante projeto. No canal youtube de O Direito Achado na Rua (www.odireitoachadonarua.blogspot.com), uma consulta à  playlist do Programa O Direito Achado na Rua (Expresso 61, TV 61 – https://expresso61.com.br/), pode ser baixado o vídeo https://www.youtube.com/watch?v=lOeLZk6j66Y, que apresenta o projeto em seus 10 anos. Conforme a sinopse:

A Assessoria Jurídica Universitária Popular (AJUP), da Universidade de Brasília (UnB), está completando dez anos. Para falar sobre o papel histórico dela, o programa O Direito Achado na Rua, pela TV 61, recebe duas de suas integrantes.

São elas: Kelle Cristina Silva e Rayssa Cavalcante Matos. Elas são graduandas em Direito pela UnB e extensionista da AJUP Roberto Lyra Filho, sendo que Rayssa é também diretora do Centro Acadêmico.

Conversamos com elas sobre o contexto de surgimento do projeto, seus objetivos e formas de atuação e das relações com os movimentos sociais do Distrito Federal e as extensões universitárias. O papel social do Direito e da universidade também está em nossa pauta.

 

Todas essas injunções têm contribuído para configurar o grande esforço interinstitucional de curricularização da extensão no sistema universitário brasileiro. Chamo a atenção para o ciclo instalado na UFPR, com o Seminário “Curricularização da Extensão Universitária em Direito: debates e experiências”, com o objetivo de construir um espaço interinstitucional de reflexão sobre a Extensão Universitária nos Cursos de Direito e o processo de curricularização regulado na Resolução nº 7 MEC/CNE/CES, de 18 de dezembro de 2018. O Seminário é um projeto interinstitucional concebido e organizado pelas seguintes instituições parceiras: Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), UNDB Centro Universitário, Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Universidade Federal de Jataí (UFJ), Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS). Em seu 4º encontro 4º Encontro, o Seminário pautou o tema “Promotoras Legais Populares: extensão universitária para a autonomia das mulheres” e nele, atuaram como Facilitadoras: Lívia Gimenes Dias da Fonseca (UFRJ) e Helga Maria Martins de Paula (UFJataí-GO), sendo debatedora a professora Talita Tatiana Dias Rampin (UnB). O encontro aconteceu na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Anoto que Lívia e Helga participaram da instalação do projeto Promotoras Legais Populares da UnB e Lívia, atualmente, é docente do corpo de professores da Faculdade de Direito da UnB, coordenando o projeto de Extensão Promotoras Legais Populares: Capacitação de Mulheres em Gênero e Direitos Humanos.

Eu próprio participei desse projeto, no espaço da UFPR, conforme se poderá conferir em https://www.youtube.com/watch?v=CpPF2wlgUoE, no Ciclo com a Extensão: Desafios da Curricularização no Direito (UFPR). Mesa: Extensão e o Direito. O que é, seus fundamentos e suas práticas.

Volto ao catálogo de vídeos do canal youtube de O Direito Achado na Rua (www.odireitoachadonarua.blogspot.com) e entre as muitas sugestões, também ligadas ao tema, por seu vínculo com a orientadora, veja-se https://www.youtube.com/watch?v=ds73hjR-pm8, Lançamento da Denúncia do Tribunal Popular Internacional sobre o Sistema de Justiça.

Assim que, estando de acordo no geral com o trabalho apresentado por Rayssa Cavalcante Matos em sua monografia, oriento minha arguição para oferecer complementos necessários, à bem posta bibliografia oferecida pela Autora, com alguns novos registros.

Além dos anotados no correr da exposição, os imprescindíveis: O Direito Achado na Rua: 25 Anos de Experiência de Extensão. Nair Heloisa Bicalho de Sousa, Alexandre Bernardino Costa, Lívia Gimenes da Fonseca e Mariana de Faria Bicalho. In Participação. Revista do Decanato de Extensão da Universidade de Brasília – Ano 10 nº 18 – dezembro de 2010, p. 41-52; Direitos Humanos e Educação em Direitos Humanos na Extensão da Universidade de Brasília. Nair Heloisa Bicalho de Sousa, Regina Coelly Fernandes Saraiva, Rosamaria Giatti Carneiro e Vanessa Alves Carneiro. In João Batista Moreira Pinto (org). Direitos Humanos como Projeto de Sociedade: Caracterização e Desafios, vol. 1. Belo Horizonte: Editora Instituto DH, 2018, p. 297-322.

O tema escolhido por Rayssa Cavalcante Matos para além de todos os fundamentos por ela arrolados que avalizam a sua relevância, encontra um respaldo cabal em leituras de grande valor homologador. Indico para corroborar as escolhas de Rayssa, o enfoque equivalente de Boaventura de Sousa Santos (Para uma Revolução Democrática da Justiça, 3ª edição. São Paulo: Cortez, 2011).

Para realçar sua abordagem do tema acesso à justiça, Boaventura distingue dois projetos de extensão da Faculdade de Direito da UnB, relativos à prática jurídica. Num caso, para destacar “dentre as iniciativas em curso no Brasil, o curso de promotoras legais populares do Distrito Federal, cuja característica distintiva reside na articulação entre as práticas de capacitação jurídica e as práticas de extensão da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília”. No outro caso, relativo às assessorias jurídicas universitárias populares, para acentuar que “a participação dos estudantes de direito em tais projetos favorece a aproximação a espaços muitas vezes ignorados e que servirão de ‘gatilhos pedagógicos’ para uma formação mais sensível aos problemas sociais, o que nem a leitura de um ótimo texto descritivo de tal realidade poderia proporcionar. É a interação entre estudantes e sociedade a agir como protagonista do processo de ensino e aprendizagem”.

Nesse ensaio Boaventura dá concretude à sua percepção geral sobre o que considera a passagem da ideia de universidade à universidade de ideias (cf. com o mesmo título, in Cristiano Paixão (org). Redefinindo a relação entre o professor e a universidade: emprego público nas Instituições Federais de Ensino?. Brasília: UnB/Faculdade de Direito/CESPE, Coleção ‘O que se Pensa na Colina’, vol. 1, 2002), especialmente quando propõe, seguindo a sugestão do então Reitor da UnB Cristovam Buarque, forte no entendimento de que ‘a política de universidade deve combinar o máximo de qualidade acadêmica com o máximo de compromisso social’, que se atribua relevo, entre as experiências da UnB, ao projeto O Direito Achado na Rua, que visa, entende ele, a “recolher e valorizar todos os direitos comunitários, locais, populares, e mobilizá-los em favor das lutas das classes populares, confrontadas, tanto no meio rural como no meio urbano, com um direito oficial hostil ou ineficaz”, p. 111.

Aplicadas imediatamente à educação jurídica, Boaventura de Sousa Santos infere que  essa dimensão teórico-prática e compromisso social designa o sentido da reforma do ensino do direito, desencadeada pela Portaria nº 1886, de 30 de dezembro de 1994, “ao perseguir o propósito de fazer com que as faculdades adotassem uma prática diferente da assistência jurídica técnico-burocrática típica dos escritórios-modelo, [investindo] na ideia de criação de Núcleos de Prática Jurídica como espaços de germinação de uma práxis diferenciada e progressista”.

Folgo em que a abordagem de Rayssa Cavalcante Matos seja confortada por essa igual constatação em Boaventura de Sousa Santos, que também me engaja porque, nessa passagem o autor português remete ao meu O Direito como Liberdade. O Direito Achado na Rua (Tese de Doutorado UnB, 2008), no tópico relativo ao ensino do direito.

 

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Futuro Ancestral

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

Ailton Krenak. Futuro Ancestral, 1ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2022, 122 p.

                         

         A Companhia das Letras, que tem feito a edição sucessiva de escritos de Ailton Kernak, mais uma vez nos brinda com essa primorosa e necessária edição de nova obra do autor, Futuro Ancestral. Anunciando o livro em sua página, a Editora indica “esta nova coleção de textos, [com os quais] Ailton Krenak nos provoca com a radicalidade de seu pensamento insurgente, que demove o senso comum e invoca o maravilhamento”.

            Essa consigna está contida na descrição da obra, oferecida pela Editora, na qual se destaca que “a ideia de futuro por vezes nos assombra com cenários apocalípticos. Por outras, ela se apresenta como possibilidade de redenção, como se todos os problemas do presente pudessem ser magicamente resolvidos depois. Em ambos os casos, as ilusões nos afastam do que está ao nosso redor. Nesta nova coleção de textos, produzidos entre 2020 e 2021, Ailton Krenak nos provoca com a radicalidade de seu pensamento insurgente, que demove o senso comum e invoca o maravilhamento. Diz ele: “Os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem me sugerem que, se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui”.

            São referências que se enquadram na composição do escritor Muniz Sodré, que confirma: “Ailton Krenak é um filósofo originário: desentranha do pensamento indígena uma forma que os ocidentais se habituaram a reconhecer como ‘filosofia’ e a confronta, à medida que também a aproxima, com os modos especulativos europeus e outras.

            A chave de leitura dos textos que compõem o livro é oferecida pelo próprio Autor:

Nesta invocação do tempo ancestral, vejo um grupo de sete ou oito meninos remando numa canoa:

Os meninos remavam de maneira compassada, todos tocavam o remo na superfície da água com muita calma e harmonia: estavam exercitando a infância deles no sentido do que o seu povo, os Yudjá, chamam de se aproximar da antiguidade. Um deles, mais velho, que estava verbalizando a experiência, falou: ‘Nossos pais dizem que nós já estamos chegando perto de como era antigamente’.

 Eu achei tão bonito que aqueles meninos ansiassem por alguma coisa que os seus antepassados haviam ensinado, e tão belo quanto que a valorizassem no instante presente. Esses meninos que vejo em minha memória não estão correndo atrás de uma ideia prospectiva do tempo nem de algo que está em algum outro canto, mas do que vai acontecer exatamente aqui, neste lugar ancestral que é seu território, dentro dos rios.

O sumário organiza incursões que o Autor faz no tempo ancestral em evocações que dão essa medida de maravilhamento: “saudações aos rios”; “Cartografias para depois do fim”; “Cidades, pandemias e outras geringonças”; “Alianças afetivas”; “O coração no ritmo da terra”. Esse material, produzido pelo Autor em diversas circunstâncias e em diferentes auditórios e tantas interlocuções, foi trabalhado (pesquisa) e organizado (edição), por Rita Carelli. Para esse trabalho, leal à oralitura do grande pensador, diz a organizadora:

A ideia de futuro por vezes nos assombra com cenários apocalípticos. Por outras palavras, se apresenta como possibilidade de redenção, como se todos os problemas do presente pudessem ser magicamente resolvidos depois. Em todo caso, as ilusões nos afastam do que está ao nosso redor. Nesta nova coleção de textos, produzidos entre 2020 e 2021, Ailton Krenak nos provoca com a radicalidade de seu pensamento insurgente, que demove o senso comum e invoca o maravilhamento. Diz ele: ‘Os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem me sugerem que, se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui’

De que outro modo será possível abrir diálogo sobre a origem do mundo senão a partir da cosmovisão dos povos, dos Yanomami, conforme indica Suliete Baré (O RETORNO DE XAWARA NO TERRITÓRIO YANOMAMI: CONFLITO, LUTA E RESISTÊNCIA. SULIETE GERVÁSIO MONTEIRO (SULIETE BARÉ). Dissertação de mestrado submetido ao Programa de Pós Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, como requisito para a obtenção de Grau de Mestre em Direitos Humanos. Brasília: Universidade de Brasília, 2022, cf. em http://estadodedireito.com.br/29767-2/); de modo abrangente, para compreender a importância do território para o povo, e abordando o respeito com a natureza, cf. Catherine Fonseca Coutinho (http://estadodedireito.com.br/literaturas-munduruku-as-historias-contadas-e-a-justica-cognitiva/), numa leitura atenta de Gersen Baniwa, Davi Kopenawa e Ailton Krenak.

Vali-me desse maravilhamento invocável, ao me deparar com a exigência de indignação em face do genocídio em cursos contra o povo Yanomami (https://www.brasilpopular.com/pode-se-falar-de-crime-de-genocidio-no-quadro-de-mortandade-atual-yanomami-em-roraima/). No texto, recuperei entrevista de Davi Kopenawa (https://www.ihu.unisinos.br/625951-parem-de-mentir-lider-yanomami-dario-kopenawa-critica-militares-e-rebate-bolsonaristas), de onde anotei seu questionamento às 570 mortes de crianças de seu povo “por causa de invasores [que receberam] apoio logístico do governo passado, eu não estaria falando com vocês [da imprensa]. Eu não estaria falando na rede, mostrando minha cara. Eu ficaria na minha aldeia, cuidando dos meus parentes, trabalhando. Ia colocar as roças, ajudar meu povo sem problema” avisando que vão“continuar criticando o governo passado, porque eles têm responsabilidade. Eles têm que responder na Justiça pelo que eles não cumpriram, não respeitaram a legislação brasileira. Não pode falar mentiras nas redes sociais e nos jornais. Eles têm que responder na Justiça pelo erro, pela gravidade e pela negligência. Eles mataram 600 [mil brasileiros na pandemia]. Isso significa massacre, que é o genocídio. Não cuidaram da população brasileira. Eu quero que a justiça seja bem dura. A Justiça tem que cumprir, e essas pessoas têm que ser presas”.

E, para afirmar a minha conclusão sobre tipificar o genocídio, afirmei que sim, pode-se e deve-se falar de crime de genocídio no quadro de mortandade atual Yanomami em Roraima. Pois nos vemos diante deu uma ação concebida, projetada e executada para produzir a mais letal forma de aculturação que se caracteriza pela intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso (…) como [entre outros atos] matar membros do grupo”. E arrematei: “Uma operação forrada pela narrativa empreendedora e subsidiada por agentes públicos, para produzir também um etnocídio justificado por um outro conceito de desenvolvimento, que produziu em quatro anos uma devastação que um milênio de modo de existência, de bem viver e de projetar, como diz Krenak, um futuro ancestral, para uma humanidade enfim renaturalizada, que cabe preservar”.

Com efeito, de minha parte constato que tudo que leio de Ailton conduz a projetar uma humanidade que se realize num movimento de “aproximação da antiguidade” a partir da qual se projete o futuro ancestral. Ao menos foi assim que referi no evento que culminou com a outorga, pela Universidade de Brasília, do título de Doutor Honoris Causa a Ailton Krenak, quiçá querendo contribuir para o “adiamento do fim do mundo”, na medida em que, com esse gesto, se demarca posição institucional de defesa incondicional dos direitos humanos, em especial de reconhecimento e valorização da pluralidade das formas de pensar e viver dos povos, bem como de seu engajamento no enfrentamento dos grandes desafios do nosso tempo, como o da sustentabilidade.

No meu parecer que lastreou o acolhimento da proposição originária do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos (CEAM), subscrita por mim e pela professora Vanessa Castro, e também por Marilena Chauí e Boaventura de Sousa Santos, ambos Doutores Honoris Causa da UnB, o título que propus foi: AILTON KRENAK: “Terra e Humanidades Caminhando Juntas”.

Terra e Humanidades, assim mesmo no plural, é o que traz Ailton Krenak, com a sua lição “ensinada ao repassar com maestria uma das mensagens compartilhadas por povos originários: a Terra e a Humanidade caminham juntas. Precisamos compreender que somos uma ínfima parcela que compõe a natureza e que, mais do que nunca, está a impossibilitar a vida”.

Fiz esse registro em http://estadodedireito.com.br/o-sistema-e-o-antissistema-tres-ensaios-tres-mundos-no-mesmo-mundo/, lembrando que, para Krenak o vital “é que possamos nos abrir para outros mundos onde a diversidade e a pluralidade também estejam presentes, sem serem caçadas, sem serem humilhadas, sem serem caladas. E que possamos também experimentar viver em um mundo no qual ninguém precise ficar invisível, ninguém precise ser Garabombo, o invisível (referência ao personagem do livro Garabombo, o Invisível, de Manuel Scorza) no qual possamos ser quem somos, cada um com a sua singularidade, humanos nas suas competências, nas suas deficiências, nas suas dificuldades. E que sejamos capazes também de reciprocidade, que é um lema que deveria estar entre aqueles que propõem que nos juntemos para pensar mundos”.

Futuro Ancestral prossegue o itinerário que Muniz Sodré identifica na oralitura de Krenak, enquanto “experiência de romper o espaço entorno em busca de algo que ainda não se conhece, mas se pressente. É uma viagem com o transe da paixão pela descoberta”. Com Ailton, diferentemente do Meandro o rio que se prorrogou em metáfora apolínea para pensamentos que se enroscam em sinuosidades penosas, o “Watu e os outros rios de que fala Krenak, junto com seus seres, são entidades vivas, astutas o suficiente para mergulhar em busca de lençóis freáticos…para manter seu fluxo, ou mesmo sobreviver ao ecocídio tóxico dos detritos”, e que orientam o agir para adiar o fim do mundo.

Sob essa ótica (http://estadodedireito.com.br/ideias-para-adiar-o-fim-do-mundo/), Ailton já falava de uma humanidade fecundada numa ancestralidade que junta ao invés de separar, e que, ao contrário do senso antropofágico de humanos que se consomem numa reivificação  e que se presta ao entredevorar-se uns pelos outros, supra a falta de sentido de um cosmos esvaziado por essa antropofagia: “Sentimo-nos como se estivéssemos soltos num cosmos vazio de sentido e desresponsabilizados de uma ética que possa ser compartilhada, mas sentimos o peso dessa escolha sobre as nossas vidas. Somos alertados o tempo todo para as consequências dessas escolhas recentes que fizemos. E se pudermos dar atenção a alguma visão que escape a essa cegueira que estamos vivendo no mundo todo, talvez ela possa abrir a nossa mente para alguma cooperação entre os povos, não para salvar os outros, mas para salvar a nós mesmos” (p. 44, de Ideias para Adiar o Fim do Mundo).

Trata-se de regenerar uma Terra canibalizada por uma humanidade que dela se apartou, numa ilusão utilitária, da qual precisa ser libertada para que seus lugares deixem de ser o repositório de resíduos da atividade industrial e extrativista (http://estadodedireito.com.br/a-vida-nao-e-util/).

Trata-se, em suma, de passar do estágio de florestania que já se desdobrara da redução política da localização na cidadania, e das múltiplas possibilidades de reivindicar direitos que não se estiolem no esforço de se confinarem em igualdades, para o estágio amplificado das alianças afetivas.

Retomo em Ailton, o seu próprio texto:

Comecei a questionar essa busca permanente pela confirmação da igualdade e atinei pela primeira vez para o conceito de alianças afetivas – que pressupõe afetos entre mundos não iguais. Esse movimento não reclama por igualdade, ao contrário, reconhece uma intrínseca alteridade em cada pessoa, em cada ser, introduz uma desigualdade radical diante da qual a gente se obriga a uma pausa antes de entrar: tem que tirar as sandálias, não se pode entrar calçado. Assim eu escapei das parábolas do sindicato e do partido (quando um pacto começar a cobrar tributo, já perdeu sentido) e fui experimentar a dança das alianças afetivas, que envolve a mim e uma constelação de pessoas e seres na qual eu despareço: não preciso mais ser uma entidade política, posso ser só uma pessoa dentro de um fluxo capaz de produzir afetos e sentidos. Só assim é possível conjugar o mundializar, esse verbo que expressa a potência de experimentar outros mundos, que se abre para outras cosmovisões e consegue imaginar pluriversos (Futuro Ancestral, p. 82-83).

Difícil visualizar e ter denotações discursivas para essa antevisão planetária, plurivérsica. Mas, numa lógica desformalizada, que se embrenhe na dialética do mundo e da existência, não é inusitado admitir essa possibilidade.

Lodo depois da publicação do livro O Sistema e o Antissistema. Três Ensaios, Três Mundos no Mesmo Mundo. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2021, obra que reúne três ensaios sobre o tema, com distintas visões de seus autores Boaventura de Sousa Santos, Ailton Krenak e Helena Silvestre, a Autêntica preparou uma live, com a autora e os autores, para que apresentassem e expusessem as suas percepções a partir dos ensaios, convidando também a professora Cláudia Cristina Ferreira Carvalho, docente da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Grande Dourados/UFGD; coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-brasileiro/UFGD e do Centro de Referência em Direitos Humanos do Estado de Mato, para uma leitura crítica dos ensaios. Fui o moderador do debate.

  Divulgado amplamente nas redes de transmissão da plataforma youtube, a conversa, em toda a sua extensão e riqueza pode ser acompanhada pelo link https://www.youtube.com/watch?v=9gRuSpR8l7I (Canal Youtube de O Direito Achado na Rua). Não obstante falar-se de uma divergência de posicionamentos, ao menos na conversa o que logo se percebeu é existir mesmo uma complementariedade das aproximações. Enfoques acentuados pelas perspectivas dos autores desde as interpelações decorrentes de seus pontos de vista ou da vista a partir dos lugares de observação.

Aproveitei toda essa mobilização para dar conteúdo a uma recensão aqui neste espaço da Coluna Lido para Você (http://estadodedireito.com.br/o-sistema-e-o-antissistema-tres-ensaios-tres-mundos-no-mesmo-mundo/). A minha conclusão ali, em face da obra e do debate, é o que trago para fecho de minha leitura de Futuro Ancestral, a partir da indicação de Ailton Krenak sobre a possibilidade de alianças afetivas

Certamente, cuida-se de pensar e discutir, como sugeriu Boaventura na conversa transmitida pela live, nas escolas, nas organizações, nas comunidades; de ler e escrever com os olhos dos outros, propõe Helena Silvestre, sem perder de vista, aconselha Cláudia Carvalho, a linha abissal que separa os mundos, dos visíveis e dos invisíveis, dos humanos e dos não-humanos, conforme o olhar da esquerda e da direita, dos fascistas e dos democratas; mas também, de pensar mundos, como diz Krenak.

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.