Ronaldo Rebello de Britto Poletti
Estou escrevendo um modesto livro
sobre Filosofia do Direito. São anotações de aula no curso de graduação e pós
na UnB, quando era professor. Faço críticas às alternatividades jurídicas
modernosas. Não cuido do direito alternativo, que considero um “nada”
científico. Já o “Direito achado na rua” merece alguma atenção, até em
consideração ao Professor José Geraldo de Sousa Júnior e, também, porque
verifico naquela direção alguns aspectos favoráveis, mais sociológicos do que
jurídicos. Há, todavia, algumas rimas com o Direito Romano, como a ideia dos
“novos sujeitos”, os costumes como fonte normativa capaz de derrogar a lei
(maneira tácita do povo dar a última palavra). Em razão disso, inseri notas de
rodapé, dentre outras uma em que escrevo mais ou menos o seguinte.
Além das publicações da UnB e os três
únicos números da revista Direito e
Avesso, da década de 80, há o último livro do José Geraldo: Direito como Liberdade. O Direito Achado na
Rua (2011). Ele elabora significativa síntese do movimento, suas ações e
rimas com autores de um único identificável diapasão, agrupados em torno de
ideias que não são, propriamente, novas: direito dos excluídos, reivindicações
sociais, utilização do Direito para fins não-jurídicos, a-jurídicos e, até,
anti-jurídicos; criação de uma Universidade Popular [?!]; cotas de todo tipo,
para negros, índios, membros do Movimento Sem Terra (MST); formação de
estudantes para a atuação na luta pelo Direito como expressão e formação da
liberdade. Nenhum disfarce de uma posição revolucionária, que imaginávamos
tivesse desaparecido. A posição esquerdista dos escribas lembrados e agrupados
não é disfarçada. Imagina-se que disso todos se orgulhem. Marx sempre, marxismo,
marxiano, marxisisante, a adesão ao materialismo é evidente. O disfarce, porém,
está na falsa modernidade e no brilho intelectual de alguns dos agregados, a
partir de Lyra Filho, não necessariamente seus discípulos, porém com ele
conformes: Warat, Boaventura de Souza Santos, Marilena Chauí, Michel Mialle,
Canotilho e tantos outros, irmanados na ação revolucionária proposta por
Gramsci. O problema não é tanto de mérito, mas de uma sociologia infiltrada na
Ciência Jurídica e na proclamação de um equívoco de sua historicidade. Se tudo
está errado, vamos tudo alterar, porque chegaram os novos projetos, não
necessariamente das letras jurídicas, mas da rua, onde os grandes intérpretes
do povo vão pontificar o novo paradigma, arbitrariamente concebido. Se isso é Direito
ou anti-Direito, pouco importa. O certo é que intentam transformar o ordenamento
existente, afinal instrumento da classe dominante, sem os instrumentos
ortodoxos de sua mutabilidade. Ou os dominadores cedem, ou vão de roldão. As
críticas são consideradas irrelevantes, ou de má fé; as nossas – honra-me com
sua menção – são de um “fundamentalismo fechado ao diálogo”, “recalcitrante às
formas de alteridade que forjam a consciência e a liberdade, como lembra
Marilena Chauí.” Quanta honra! Assim, a nossa crítica “é antes uma objeção
ideológica, centrada num transcendentalismo fundamentalista, que invocando um
homem universal metafísico (o homem como valor em si mesmo e criação original),
faz objeção à experiência de humanização que se realiza na história, como
emancipação consciente na práxis libertária.” Como se vê a nossa leitura
crítica é equivocada, afinal há vários humanismos, logo vale o da “rua” e sua
“revolução”, onde se pretende organizar a liberdade pelos companheiros
concebida, mas onde o homem, infelizmente, não passa de uma paixão inútil,
sartreana, um homem sem essência anterior fundada em um Ser transcendente, mas
que se forma na própria vida e na rua. No entanto, não temos assistido esse homem
da rua, revolucionário, existencialista, resolver a miséria do mundo ou
implantar a paz.
Mais uma ironia: o capitalismo,
objeto de desdém e de crítica, vem se organizando de maneira a esvaziar a
própria rua. Já as reformas de Paris e de Viena, pelo célebre arquiteto
Hausmann, destruindo as ruelas e vias estreitas e substituindo-as por grandes
avenidas, inviabilizaram as passeatas e as barricadas, como Marx reclamou.
Agora, quase já não há a rua. O comércio criou os Shoppings, onde há corredores com polícia própria, não sendo
permitidos nem os comícios, nem as passeatas, nem o acontecimento republicano.
* A publicação deste artigo, de Ronaldo Poletti, se justifica no diálogo carregado de antagonismo político/teórico/ideológico, mas cercado do respeito e da cortesia intelectual que presidem a convivência plural no ambiente acadêmico, permitindo inclusive, que a amizade se estabeleça neste ambiente saudável. Parte desse estado de recíproca consideração se revela na troca de mensagens transcrita a seguir:
Prezado José
Geraldo.
Obrigado por ter lido o meu
modesto artigo.
Não tive a oportunidade de na
UnB, no lançamento da revista Notícia, ao qual você não pode comparecer, de
falar na sua presença, como havia planejado, sobre os aspectos que concordo com
a sua teoria, sem prejuízo das divergências críticas. Para você ter uma ideia de
como o considero e valorizo o seu esforço teórico e prático, bem como o direito
achado na rua, saiba que na 4ª ed. de meu livro de Introdução ao Direito, São
Paulo, Saraiva, 2010, inseri um item sobre o “direito alternativo” e sobre “o
direito achado na rua”, elaborando uma crítica a respeito deste último e
deixando de lado maiores observações cabíveis no tocante ao primeiro, para não
nos afastarmos muito do campo jurídico propriamente dito.
Gostei da sua resposta. Vamos
continuar discutindo. Vou visitar o site.
O texto “Um rodapé...” foi
publicado na Revista Consulex, ano XVI, n. 380, de 15 de novembro de
2012.
Um abraço
Ronaldo
Poletti
Caro
Poletti,
Li o texto e vejo que
nas objeções continuamos a manter um antagonismo saudável sempre que temos
oportunidade. No texto vi que reage à crítica que fiz a sua crítica, nessa
continuidade de críticas críticas (para lembrar Marx e sua metáfora da sagrada
família constituída no idealismo alemão, à direita e à esquerda de Hegel). Aludi
a metáfora para lembrar que a rua no sentido
apropriado pelo humanismo dialético de Roberto Lyra Filho é também uma metáfora
da esfera pública, requerendo a boa-fé de não assumi-la, nem teórica, nem
epistemologicamente, em sua literalidade. Por isso que, na perspectiva de O
Direito Achado na Rua, em qualquer dessas dimensões, o jurídico emergente requer
necessariamente, o reconhecimento de sua legitimidade organizada (“o direito é a enunciação dos
princípios de legítima organização social da liberdade”), em
qualquer dialética aliás, que não se infra-esgote numa polaridade que promova,
subentendidamente e de modo fundamentalista, uma rendição à normatividade que
desconheça as potencialidades jurídicas de fatos e de
valores.
Peço licença para
reproduzir o texto no blog diálogos lyrianos www.odireitoachadonarua.blogspot.com.br
citando, naturalmente, a publicação original se me indicar a fonte
completa.
Um
abraço,
José Geraldo
Prezado José
Geraldo,
Publiquei na Consulex de 15 de
novembro de 2012 o artigo em anexo, onde faço algumas referências críticas e até
elogios a sua teoria. Há convergências e divergências. Continuamos o diálogo. É
possível que na publicação tenha havido algumas correções do copydesk, mas aí
vai.
Um abraço
Ronaldo
Poletti