terça-feira, 27 de outubro de 2015

As pontes do arquipélago

Por Gustavo Barbosa*

Não há ensino sem pesquisa nem pesquisa sem ensino, disse Paulo Freire. Se o ato de ensinar corresponde ao processo mútuo de desvelamento do mundo entre educadores e educadoras e alunos e alunas, que ensinam ao passo que aprendem ao mesmo tempo que aprendem ao ensinar, o processo deixa de ter um mero caráter instrumental para, também, compartilhar da própria natureza-fim da prática da educação progressista e transformadora.   
Não por menos, Paulo Freire também afirma que ninguém educa ninguém, mas nos educamos uns aos outros mediatizados pelo mundo. Foi esta filosofia, azeitada por um admirável espírito de integração, que pude presenciar durante os dias em que tive contato com pesquisadores e pesquisadoras da linha de pesquisa “O Direito Achado na Rua” durante o IX Congresso da Rede Latino-Americana de Antropologia Jurídica (RELAJU) no início de outubro em Pirenópolis, Goiás.
Minha experiência numa pós-graduação se soma aos relatos de muitos amigos e amigas que integram programas de mestrado e doutorado nas mais diversas universidades do Brasil e do mundo. A concepção atomizada da pesquisa, onde impera absoluta a lógica do "cada um na sua", aparenta ser uma das mais comuns características que permeiam os programas de pós-graduação de hoje em dia. Um arquipélago formado por ilhas sem qualquer comunicação, reconhecendo-se tão somente enquanto nacos de terra à deriva ao invés de partes de um conjunto maior parece ser a metáfora que melhor contempla esse quadro, onde o contato se restringe a dúvidas acerca de prazos para a entrega de artigos e divisões das responsabilidades em seminários.
Tamanho foi o alento que tive ao presenciar uma dinâmica que vai totalmente de encontro a essa noção individualista de pesquisa, onde objetos de estudos se entrelaçam a experiências que se compartilham não apenas no sentido de conferir densidade acadêmica aos trabalhos, mas também de promover uma integração de vida, de propósitos comuns, de uma visão emancipatória e contra-hegemônica em um meio marcado por academicismos estéreis e visões estritamente abstratas e conservadoras do mundo. Aqui, senti outra máxima de Paulo Freire tomar forma: a do apelo emancipatório como produto tanto da ação como da reflexão, motores de uma integração que, pelo que pude presenciar, não se limita aos muros da faculdade.
Um arquipélago cujas ilhas se comunicam intensamente por pontes – utilizando-se da célebre metáfora de outro renomado educador, Rubem Alves - e por meio das quais transmitem-se não apenas conhecimentos, experiências e descobertas, mas a argamassa sob a qual se constroem relações que convergem numa visão de mundo que compreende que o caminho é longo, árduo e com o agravante de que, muito provavelmente, não se vislumbre em vida sequer o esboço das utopias comuns, mas que traz a certeza que a caminhada, definitivamente, será feita de mãos dadas.

*Gustavo Henrique Freire Barbosa é membro da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/RN, membro da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP), integrante do Instituto de Pesquisa e Estudos em Justiça e Cidadania (IPEJUC), participa do Programa Motyrum de Educação Popular em Direitos Humanos do curso de Direito da UFRN e é mestrando em Constituição e Garantia de Direitos pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Uma escola cheia de vida

Fábio de Sá e Silva* 
No título do último livro organizado por José Geraldo de Sousa Junior, encontra-se enunciada a promessa de obra voltada a examinar a “concepção” e a “prática” de O Direito Achado na Rua, escola de pensamento jurídico que há mais de três décadas ele fundou na Faculdade de Direito da UnB, na esteirado pensamento e da crítica do falecido professor Roberto Lyra Filho. Ao abrir o livro, porém, leitores e leitoras se depararão com um pouco mais que a sugestão da capa. Isto porque, além de um registro sistemático dos fundamentos (“concepção”) e das iniciativas (“prática”) em torno dos quais a referida escola se constituiu, o livro também realiza a importante tarefa de confrontar as críticas que a ela foram opostas e mapear os desafios e possibilidades com os quais ela hoje se defronta. Embora as críticas baseadas em má-compreensão (ou mesmo em má-fé) em relação a O Direito Achado na Rua sejam as que atraem maior visibilidade nas redes sociais ou mesmo em ambientes ditos acadêmicos, outras tantas, como reconhecem os autores, são produto do saudável confronto de posições a partir do qual o conhecimento científico é capaz de avançar. Ao examiná-las em profundidade, portanto, o livro confere densidade e atualidade a argumentos que desde sempre animam os que integrantes da escola à qual se refere. Para os propósitos de uma resenha, talvez não seja impreciso dizer que todas estas críticas remetem a um mesmo elemento conceitual, o qual subjaz a O Direito Achado na Rua desde suas formulações iniciais por Roberto Lyra Filho: trata-se do pluralismo em sentido político e jurídico – ou seja, a compreensão de que diferentes expectativas normativas e, no limite, diferentes ordens jurídicas coexistem na sociedade, para além daquelas (estatais) que, em determinada configuração espaço-temporal, se afirmam como hegemônicas. Os críticos alertam para os riscos de tal pluralismo, eis que nem sempre essas outras ordens político-jurídicas são regidas pelos mesmos compromissos democráticos que inspiram os estados modernos e que ganham especial representação na forma constitucional. Mas contra esta legítima preocupação, os autores e as autoras esclarecem que O Direito Achado na Rua jamais manifestou preferência por ordens não estatais. Ao contrário, O Direito Achado na Rua cuida apenas de reconhecer essas ordens como dados sociológicos, vislumbrando, na tensão que elas estabelecem com as ordens estatais, desafio permanente às categorias e práticas enunciativas do que seja o direito posto. Eis porque, em termos teóricos, O Direito Achado na Rua é plenamente compatível com diversas abordagens contemporâneas em direito e nas demais ciências sociais, tais como o novo constitucionalismo, a teoria dos sistemas, o procedimentalismo deliberativo, ou o pluralismo jurídico, no estrito sentido que lhe atribuem a sociologia e a antropologia do direito. O que, todavia, não permite que O Direito Achado na Rua se dilua nas trivialidades das grandes teorias, ao mesmo tempo em que se lhe transforma em poderoso instrumento de política jurídica, é o compromisso genético que esta escola possui para com aqueles que lutam pela maximização das liberdades individuais e sociais. Tarefa esta que, em um país ainda marcado por imensas desigualdades, como o Brasil, situa-a no campo dos que aspiram por mudanças estruturais em nossa sociedade. Isto é nítido na história conceitual de O Direito Achado na Rua – onde se destacam, por exemplo, categorias como “práticas instituintes de direito” e “sujeito coletivo de direito” –, mas principalmente nas “exigências críticas” que ele impõe à prática universitária, voltadas, na pesquisa, no ensino, e na extensão, a aprender com os oprimidos. Mas mesmo quando opera nesta tradicional zona de conforto de O Direito Achado na Rua, o livro apresenta reflexividade e inovação. Isto porque, se nos anos 1980 e 1990 a tônica de O Direito Achado na Rua recaía sobre a ação dos chamados “novos movimentos sociais”, a “concepção” e a “prática” desta escola nos anos 2010 se mostra sensível a novas formas de ação social (agency), tendo em vista novas demandas, como a democratização da mídia; novos meios de organização, como as redes sociais; e novas estratégias, que contemplam, por exemplo, a participação em espaços deliberativos no interior do Estado. Este quadro requererá novas abordagens, novos instrumentos, e novos contextos institucionais por parte dos candidatos a sujeitos cognoscentes, prefigurando uma nova agenda epistemológica, metodológica, e política para O Direito Achado na Rua. Ainda é cedo para prever como essas proposições, especialmente nesta dimensão mais inovadora, repercutirão na renovação do direito brasileiro. É certo, porém, que representam expressão única de vitalidade de uma escola de pensamento jurídico no país, como resultado da pertinência de suas premissas, da competência de suas lideranças, e da energia das suas novas gerações de quadros – para os quais este novo livro será, sem sombra de dúvida, um recurso inestimável.
 *FABIO DE SÁ E SILVA, Research Fellow no Centro de Profissões Jurídicas da Harvard Law School SERVIÇO Roda de conversa sobre o livro O direito achado na rua: concepção e prática Coordenador: José Geraldo de Sousa Junior Editora: Rio de Janeiro/Lumen Juris, 2015. 268 páginas Dia: 23, no Balaio Café R$ 64,00 (preço de lançamento)

domingo, 18 de outubro de 2015

20 Anos de Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares!

“É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania
De ter fé na vida!”[1]

Érika Lula de Medeiros, advogada popular, potiguar, mestranda em direitos humanos e cidadania na UnB.
Brasília/outubro de 2015

            20 anos de Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares! Falar de RENAP é falar de luta, de resistência, de encontros e de encontrar-se, de escolher como e com quem caminhar. É falar de reconhecer: direitos, sujeitos, companheiras e companheiros, injustiças, possibilidades, brilhos nos olhos e compromisso. É compreender o sistema de justiça como campo de batalha a ser disputado todos os dias. É nos compreendermos como sujeitos coletivos de advocacia popular, por entendermos que sozinhas andamos bem, mas com as outras andamos melhor. É saber-nos acessório das lutas, cujos protagonistas são as lutadoras e lutadores do campo, dos quilombos, das ocupações urbanas e rurais, das comunidades indígenas.
            Nosso instrumento é o direito, mas nosso horizonte é bem mais amplo, é a justiça. Não deve ser à toa que a justiça é substantivo assim, no feminino. E aí que falar de Renap, para mim, é falar também do encontro com as advogadas populares que resistem e lutam Brasil afora.
            Como em qualquer esfera da vida, na advocacia popular o patriarcado também tenta impor sua violência. Se a atuação da advocacia popular já é difícil por sua dimensão política de estar ao lado dos movimentos sociais e lutas populares, ser advogada popular é enfrentar desafios ainda maiores. Acompanhar um/a militante em processo de criminalização à delegacia, lidar com a polícia em mediações de ocupações, fazer uma sustentação oral em processos de conflitos estruturais de nossas desigualdades, é ter como interlocutores não “apenas” as classes dominantes , mas também o patriarcado nos encarando com seu machismo. É sentir no trato, nos olhares, nas ironias, e às vezes até na pele, essa opressão estruturante.
            Mas quero aproveitar esse momento histórico de 20 anos da Rede para falar para além da opressão machista: quero celebrar a resistência das advogadas populares, resgatando dois momentos recentes já históricos. O primeiro no meu primeiro encontro da Renap, quando ainda estudante de graduação, tive a oportunidade de presenciar, na plenária final do Encontro nacional de Fortaleza, em 2011, um grupo de mulheres advogadas, se reivindicando como coletivo Marietta Baderna de advocacia popular, dando voz aos desafios de ser mulher advogada popular, de ser mulher na advocacia militante. Ali, advogadas populares das cinco regiões do país deram eco aos anseios de igualdade de gênero nos nossos espaços. Não cabe menos do que isso na nossa Rede que luta por emancipação todos os dias.
            O segundo no Encontro nacional de Natal, em 2014, quando conquistamos, pela primeira vez na história da Rede, uma mesa, com a plenária cheia, para debatermos gênero na nossa atuação. Foram ricas discussões que nos provocaram a enxergar como essa dimensão é transversal a nossos desafios: das formas de tortura, passando por questões de criminalização e da nossa relação com o sistema de justiça, as questões de gênero perpassam a totalidade de nossos temas. Importante não perdemos de vista a perspectiva histórica da construção desse momento, que passou por diversas articulações com outras redes como CLADEM e Católicas pelo direito de decidir, que se somaram com oficinas debatendo gênero em outros Encontros, e com os movimentos com quem atuamos.
            Aliás, como sempre, aprendemos com os movimentos: o VI Congresso Nacional do MST, ocorrido em fevereiro de 2014, em Brasília, teve como um dos momentos históricos a conquista de uma das mesas do Congresso, num estádio com quase 20 mil trabalhadores e trabalhadoras rurais de todo o Brasil, debatendo a dimensão da luta pela reforma agrária popular articulada com a luta das mulheres. Só depois tivemos a nossa primeira mesa com essa mesma preocupação de dar visibilidade a questões de gênero.
            Poderia mencionar outros tantos momentos marcantes, como a fala da companheira Inez Pinheiro, egressa da primeira turma de direito para assentadas e assentados da reforma agrária do Pronera, a Turma Evandro Lins e Silva, no Encontro nacional em Viamão, no Rio Grande do Sul, em 2013. Inesquecível a lembrança da emoção e força de Inez compartilhando suas vivências como advogada popular mulher, negra e do povo, e os desafios dessas dimensões à sua atuação na advocacia. Ou lembrar dos aprendizados com Marília Lomanto, da Bahia, com as Marianas Criolas, do Rio, com Lenir, de Rondônia, com as Natálias, minhas conterrâneas potiguares, com Dani Félix, de Santa Catarina, com as Margaridas de Minas Gerais, com as Lucianas, Ramos e Pivato, hoje no Cerrado, e com tantas outras companheiras espalhadas por todo o país.
            A palavra convence, mas o exemplo arrasta. Que sigamos sendo inspiradas, fortalecidas e arrastadas pela resistência das advogadas populares nas trincheiras da luta por justiça em todo o Brasil. Viva a Renap! Viva as advogadas populares! Sigamos avançando na construção de outro mundo sem opressões de classe, de raça, de gênero ou de qualquer tipo!


[1]“Maria,Maria”, composição de Milton Nascimento.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Cartas de Bologna: solidariedade à fabulosa Atlantide!


Por Patricia Vilanova Becker*
Segunda-feira, 05 de outubro. O espaço era pequeno para abrigar corpos e indignações. Pessoas de diferentes idades e identidades se amontoavam na assembleia formada no Centro delle Donne em Via del Piombo para discutir o anunciado despejo de Atlantide que, segundo uma das pessoas presentes, serviu de abrigo “todas as vezes que encontramos umas nas outras as respostas que esse sistema não nos deu”. Ocupada em 1997 e situada em uma das construções da Porta Santo Stefano de Bologna, Atlantide nos últimos 15 anos tem sido a sede de coletivos feministas, queer e punk. Nos últimos três anos, sofre ataques constantes do Comune de Bologna, que interrompeu o curso das negociações que buscavam encontrar um lugar mais amplo para que Atlantide desenvolvesse suas atividades de consultoria queer-transfeminista em saúde e direitos sexuais, bem como o arquivo histórico e o laboratório de pesquisa.
A frieza de Bologna não tinha espaço naquela noite. Corpos sentados em cadeiras, pessoas se esgueiravam do lado de fora das janelas, outras pelas escadas. Tod*s buscavam ouvir o que integrantes de Atlantide tinham a dizer. Microfone em mãos, discurso afiado, olhar desafiador e pronto para luta: “quando os homens azuis chegarem, encontrarão um lugar cheio de coisas e pessoas livres”. Eu sorria. Por dentro, talvez também por fora. Finalmente, pensei, a Atlantide perdida de Bologna havia sido encontrada. Após as falas de integrantes do coletivo Smaschieramenti, que promove a autogestão do espaço junto a outros coletivos, seguiram-se falas de diversas pessoas. Vozes tremiam de indignação diante do iminente despejo anunciado para a semana que iniciava. Atlantide é um “espaço de sociabilidade não mercantil”, afirmavam algumas vozes. E alguém complementou: “Atlantide é o lugar onde experimentamos a potência revolucionária da sociabilidade queer”.
O PD, partido que se autodenomina como centro-esquerda, havia se tornado um governo de direita. Mas Atlantide não se renderia: “Faremos com que seja visível aquilo que estão fazendo. Quem toca Atlantide, deve sujar as mãos!”. As pessoas presentes sabiam que Atlantide era um espaço pequeno demais para gerar um interesse material do Comune. A questão, enfatizavam, era sobretudo simbólica. Despejar Atlantide faz parte de “um plano de normalização do espaço público”. Mas “transbordaremos em todas as partes!”. Atlantide será espalhada por toda a cidade, diziam. Ao final da assembleia, o plano consistia em uma série de atividades para resistir ao despejo, que começavam desde o intitulado “café da manhã fabuloso” que começaria no dia seguinte às 7h da manhã, e se estendiam ao longo da semana. Naquela noite chuvosa, voltei para casa energizada pelo espírito de amor e resistência.
Não tive forças para o “café fabuloso”, mas na quarta-feira à noite tive meu primeiro encontro com o espaço que abrigava Atlantide. O chamado “cassero” de Porta Santo Stefano, construída no século XIII, é uma edificação que protegia uma das portas da Bologna murada. O espaço histórico ganhou um enorme laço cor de rosa que envolvia toda a construção do lado de fora. Por dentro, cartazes, grafites, camisinhas coloridas, balões e outras decorações “fabulosas” explicavam por que em Atlantide “as coisas e as pessoas eram livres”. Uma mesinha no centro compartilhava água e alguns aperitivos. Ao redor, um círculo de pessoas aguardavam, assim como eu, para desbravar Atlantide. Ao final, integrantes do coletivo apresentaram uma parte dos trabalhos do arquivo histórico queer-transfeminista, tomando o cuidado de destacar que não se tratava de um processo de “museificaçao”, mas de uma história viva e em permanente transformação. As pessoas presentes foram convidadas para assistir ao show punk que ocorreria na noite seguinte. Se eu soubesse que aquela seria minha ultima oportunidade de entrar no espaço que abrigou Atlantide até então, se soubesse que os homens azuis chegariam em dezenas para tocar o corpo de Atlantide, seguramente teria ido ao show. Mas não fui.
Sexta-feira pela manhã, 09 de outubro, ao passar de ônibus em frente à Atlantide, lá estava ela nas mãos violentas do Estado. Amontados, sorrindo, com camburões e viaturas, a política violenta, feita dentro dos gabinetes, assumia sua forma mais genuína através da polícia. Na porta de Atlantide, imediatamente após o despejo, foi construído um muro para impedir qualquer futura ocupação. Um muro cinza feito para apagar as fabulosas cores de Atlantide. No sábado seguinte, um grande “corteo” humano inundou Bologna que seguia alagada pela chuva. Um protesto feito com guarda-chuvas coloridos, capas cor de rosa, corpos, faixas, vozes, sonhos. Novamente, centenas de pessoas de diversas identidades se somavam em uma marcha através da cidade. A polícia bloqueou a passagem para algumas saídas, encurralando-nos. Nada diferente da modalidade brasileira. Corajosamente em frente à polícia, manifestantes isolaram a entrada com uma longa faixa cor de rosa e escreveram no muro cinza “ATLANTIDE OVUNQUE”, que significa “Atlantide em todos os lugares”. As coisas e o corpos livres encontrados dentro de Atlantide continuam a se espalhar por Bologna e pelo mundo, de onde chegam mensagens de solidariedade. Atlantide continua transbordando.
*Patrícia Vilanova Becker, integra o Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua; mestranda em Direito pela UnB, participa atualmente do Programa Erasmus Mundus Master´s Degree in Women's and Gender Studies na Universidade de Bolonha e Universidade de Oviedo.

**Fotos pela autora no 'corteo per Atlantide' em 09 de outubro de 2015 - Bologna.

Para conhecer mais sobre Atlantide: http://atlantideresiste.noblogs.org

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Resenha dos profs Menelick de Carvalho Netto e Guilherme Scotti, da FD/ UnB do livro O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática, Editora Lumen Juris

   Lançamento do livro O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática, Editora Lumen Juris



Com lançamentos iniciados em Brasília (Restaurante Carpe Diem, 14/10, Bar Balaio, 23/10), em Porto Alegre (Universidade Federal do Rio Grande do Sul - URGS, 22/10) e Vitória (Faculdade de Direito, FDV, 27/10), o livro vem recebendo a atenção de comentários e resenhas. Sobre ele já se manifestaram os professores José Carlos Moreira da Silva Filho e Fábio Costa Sá e Silva. Agora, sai a resenha elaborada pelos professores Menelick de Carvalho Netto e Guilherme Scotti,  da UnB – Universidade de Brasília (Programa de Pós-Graduação, da Faculdade de Direito):


O segundo volume da Coleção Direito Vivo da Lumen Juris, coordenado pelo Prof. Doutor José Geraldo de Sousa Júnior, é dedicado à concepção e prática do Direito Achado na Rua.
Essa vertente investigativa inovou de forma corajosa e pioneira, ainda no período ditatorial, não somente a forma de se ver e abordar o Direito, mas também impulsionou decisivamente a reflexão acerca do modo como se ensinava o Direito, colocando em ação novas práticas pedagógicas e exigindo a reformulação do ensino jurídico como um todo.
A apropriação privada de toda a esfera pública promovida pela ideologia da Segurança Nacional passava, sem dúvida, pela redução do fenômeno jurídico enfocado sob a ótica de um monismo estatal simplista em que a forma jurídica, esvaziada de qualquer sentido normativo que pudesse contribuir para denunciar o seu abuso, era entregue, sem peias, aos títeres militares e a seus asseclas.
Foi nesse contexto, totalmente adverso, que Roberto Lyra Filho cunhou a expressão Direito Achado na Rua, para com ela resgatar a dimensão normativa emancipatória e inclusiva inerente ao direito, apta a apreender o direito que nasce da ação dos movimentos sociais e a denunciar a sua redução formalista e estatizante como uma instrumentalização abusiva. Lyra Filho, ao formular o projeto da Nova Escola Jurídica Brasileira – Nair, supera o positivismo formalista e os jusnaturalismos não mais plausíveis, acolhendo reflexivamente a força libertária e inclusiva da herança crítica marxiana, e faz com que o nexo interno entre o sistema de direitos e a democracia surja em toda a sua clareza expresso nas lutas por reconhecimento dos movimentos sociais, tornando visível a exigência de permanente abertura do Direito e da política. É o pluralismo jurídico que postula e requer o pluralismo político e o social.

A linha investigativa do Direito Achado na Rua é hoje desenvolvida na UnB, sob a impecável e dinâmica coordenação acadêmica de José Geraldo de Sousa Júnior, por um significativo grupo de professores, pesquisadores, mestrandos, doutorandos e graduandos em uma série de projetos que se realizam nos campos do ensino, da pesquisa e da extensão, sempre articulados de modo a garantir a indissociabilidade desses três âmbitos, atribuindo  densidade e concretude ao projeto pedagógico sonhado por Lyra Filho. E essa experiência realizada na UnB serviu de norte para a reforma do ensino jurídico levada a efeito no país.
O segundo volume da Coleção Direito Vivo da Lumen Juris, coordenado pelo Prof. Doutor José Geraldo de Sousa Júnior, é dedicado à concepção e prática do Direito Achado na Rua. No que se refere à atualidade teórica do conteúdo dessa linha investigativa, é interessante salientar que, muito antes da queda do muro de Berlim, Roberto Lyra Filho já havia sido capaz de, em pleno período ditatorial brasileiro, conceituar o Direito como “a legítima organização social da liberdade”, deixando clara a paradoxal contradição performativa em que incorre qualquer ditadura ou fundamentalismo político ao buscar se apresentar como uma organização juridicamente estruturada e fechada sobre si mesma. Muitas décadas depois, será precisamente este o argumento central empregado por Jürgen Habermas no seu Direito e Democracia para comprovar a tese de que a modernidade requereria também a liberação (conjunta com a da racionalidade instrumental preponderante) de uma racionalidade comunicativa sempre presente em maior ou menor grau na institucionalização do Direito e da política modernos.
A problemática levantada pela teoria acerca da relação entre o Direito e a democracia encontra-se assim no cerne do debate e da  produção reflexiva da filosofia, da filosofia política, da ciência política e da história das idéias e das instituições, desaguando na necessária revisão e reconstrução da doutrina jurídico-constitucional. Sendo imperativo concluir hoje que os abusos institucionais não mais possam ser vistos como democracia, mas apenas como a sua negação, nem como Direito, pois são, na verdade, violações ao Direito, e muito menos como constitucionais, pois privatizam o público e obstam o reconhecimento da igualdade como direito à diferença.
A democracia só é democrática quando constitucionalmente construída, ou seja, quando há respeito às minorias, e, por outro lado, a Constituição só é constitucional quando democrática, o que equivale a dizer, quando se respeita a vontade formada por maioria no seio do debate público. Desse modo, a legitimidade impõe que a igualdade que reciprocamente nos reconhecemos constitucionalmente só possa ser entendida como o direito à diferença, pois carrega em si também o sentido oposto do reconhecimento recíproco do direito à liberdade de cada um. Por isso mesmo o Direito só pode ser atualmente compreendido em sua complexidade interna que se tornou visível como a “legítima organização social da liberdade”. 
​Mais um vez, o volume que agora se publica revela, com densidade, nos ensaios e artigos que o compõem, o nexo interno que entre si guardam o sistema de direitos e a democracia, capturando-o em toda a sua clareza tal como expresso nas lutas por reconhecimento dos movimentos sociais, tornando visível a exigência de permanente abertura do Direito e da política para o futuro, para as ruas não privatizadas e, assim, não negadas em si mesmas. É o pluralismo jurídico que postula e requer o pluralismo político e o social.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina - Início do Curso

É com satisfação que agradecemos a procura por mais uma edição de Curso de Educação à Distância do Direito Achado na Rua, foram mais de 6469 inscrições de todo o país em uma parceria entre Comissão de Anistia do Ministério da Justiça e Universidade de Brasília. Infelizmente, por limitação de vagas, nem todo mundo teve a inscrição homologada. 

Para verificar se você foi contemplada/o ou sua posição no cadastro de reserva, acessar: http://moodle.cead.unb.br/danr/mod/book/view.php?id=4  

Às/os inscritas, desejamos boas vindas e pedimos que se atentem aos debates e se ambientem à plataforma do Curso Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina, que tem início amanhã, 13 de outubro de 2015. 




quinta-feira, 8 de outubro de 2015

O Direito Achado na Rua

"A publicação vem em boa hora reforçar que é preciso romper os diques do 'direito que se ensina errado'. O direito não se resume ao conjunto de leis produzido pelo legislativo e à interpretação concretizada pelo judiciário. Tanto na sua criação como na sua efetivação o direito se apresenta como um processo social amplo, pulsante nas demandas, mobilizações e disputas que se desenvolvem em uma sociedade desigual".
O comentário é de José Carlos Moreira da Silva FilhoProfessor no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais e na Faculdade de Direito da PUCRS e Vice-Presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, em resenha sobre o livro organizado pelo professor de direito e ex-Reitor da UNB, José Geraldo de Sousa JuniorO Direito Achado na Rua - concepção e prática (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015).
A obra será lançada na próxima quarta-feira, 14/10, às 19h, no Carpe Diem Restaurante, em Brasília - DF.  
Eis a resenha. 
Desde a fundação oficial na UnB da Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR) por Roberto Lyra Filho no início dos anos 80, e a sua continuidade liderada por José Geraldo de Sousa Junior com o projeto O Direito Achado na Rua, tem-se recuperado e aprofundado o que acertadamente Marilena Chauí designou de "a dignidade política do Direito". Marco desse percurso e rico registro da sua amplitude e importância está em "O Direito Achado na Rua - concepção e prática", recém publicado pela Lumen Juris.
O livro é composto de uma magnífica introdução escrita por José Geraldo seguida de quatro partes, elaboradas de modo coletivo e dialógico por jovens estudantes e pesquisadores do projeto, nas quais se abordam as propostas e premissas centrais do Direito Achado na Rua; sua história, fortuna crítica, respostas às críticas feitas, impacto e proliferação; seu enfoque e consequências para o ensino, a pesquisa e a extensão, com a descrição de inúmeras e bem sucedidas experiências; e por fim, um exercício de projeção para o futuro, com a apresentação de desafios e tarefas que se descortinam no presente.
A publicação vem em boa hora reforçar que é preciso romper os diques do "direito que se ensina errado". O direito não se resume ao conjunto de leis produzido pelo legislativo e à interpretação concretizada pelo judiciário. Tanto na sua criação como na sua efetivação o direito se apresenta como um processo social amplo, pulsante nas demandas, mobilizações e disputas que se desenvolvem em uma sociedade desigual. A rua é a metáfora do espaço público que transcende os muros estatais, que se encontra nos esforços e organizações comunitárias que reconhecem a situação de carência e a necessidade da sua superação, que abriga sujeitos coletivos que reivindicam direitos e os disputam nos espaços sociais onde eles acontecem, inclusive os estatais, apontando sempre para uma direção emancipatória, coração da legitimidade sem a qual o direito é frio e injusto.
Reduzir o direito tão somente à sua dimensão institucional e estatal é excluir a pluralidade da sociedade na sua criação e enunciação, é cultivar um humanismo insosso que sonha com a humanidade unidimensional e indiferenciada, prima irmã da manada, do homem-massa, dos rebanhos do fascismo. O "direito não é, ele se faz", deve ser pensado e conhecido a partir de um humanismo dialético, que não separa o homem da sua história, que resgata sua humanidade a partir da memória das lutas, das dores, dos afetos.
O humanismo cultivado no Direito Achado na Rua indica a universalidade do ser humano situado no tempo, na história, a partir da cultura que o gera e o desenvolve. Tendo como marco inicial a sua própria existência, nunca meramente individual e sempre coletiva, inaugura-se a memória como categoria de conhecimento fundante, avessa às abstrações do humano e impulsionadora de uma nova epistemologia social, apta a indicar uma concepção e uma prática da justiça que partam da memória concreta da violência, das privações, da opressão, mas também das lutas, das conquistas e do bem-viver em sociedade.
Pensar o Direito desse modo é produzir uma necessária reviravolta, sempre pendente, no ensino jurídico, aprisionado por grilhões e escaninhos que afastam alunos e professores do contato com a sociedade e seus problemas reais. Nessa direção o Direito Achado na Rua e seus atores foram decisivos na reforma do ensino jurídico que teve lugar no Brasil nos anos 90, e continuam apontando para a vanguarda, ainda não plenamente acolhida pelos órgãos nacionais de coordenação do ensino superior, quando colocam a extensão como força motriz tanto do ensino como da pesquisa. Nessa chave, a extensão deve ser vista não como espaço de caridade da Universidade para com as camadas populares da sociedade, mas sim como espaço de aprendizado mútuo e democrático e fornecedor de matéria prima a ser pensada e ensinada.
O livro fornece ainda precisa resposta às críticas de que diante de uma Constituição democrática não mais caberia conceber um direito que venha da rua. Ora, a Constituição de 1988, mesmo sob a égide de uma ordem jurídica de exceção e de uma transição controlada pela ditadura, logrou formalizar importantes conquistas graças à intensa mobilização plural e horizontal de inúmeros movimentos sociais organizados. Naquele instante e também agora a Constituição brasileira sempre esteve em disputa, seja sobre o seu texto, desafiado por constantes propostas de emendas constitucionais, muitas com o norte do retrocesso, seja pelo debate em torno da sua interpretação. Querer excluir a própria sociedade organizada e mobilizada dessa disputa é entregar de modo acrítico a Constituição à política dos gabinetes do judiciário, à falsa neutralidade do trabalho técnico dos assessores e burocratas estatais ou às negociações políticas dos bastidores parlamentares. O ativismo judicial e a relativização de direitos e garantias vem justamente deste reducionismo, causando espécie que juristas comprometidos com o processo de emancipação social entendam que o antídoto aos ativismos reacionários seja uma concepção ainda mais reducionista, com a prescrição da interpretação literal dos textos legais.
A maior garantia de um direito democrático e emancipatório é o reconhecimento da sua realidade plural, sempre associada à legitimidade da superação das carências e exclusões geradas pela desigualdade social, é a abertura dos espaços institucionais e do direito neles formalizado à construção dialógica e democrática do fenômeno jurídico, é enfim conceber e praticar o direito na "enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade".

FONTE: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/547700-o-direito-achado-na-rua