ESCRIVÃO
FILHO, Antonio; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Para um debate teórico-conceitual
e político sobre os direitos humanos. 1. ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016. Coleção Direito e Justiça.
256 p.
Obra
fundamental para a compreensão da complexidade em torno à temática dos direitos
humanos, o debate nela proposto visa a determinar a importância das lutas
sociais na conquista e efetivação desses direitos através da superação da
concepção formalista e redutora do positivismo moderno, ainda muito evidente
nos campos teórico e prático do Direito. Os autores, influentes juristas
contemporâneos, aproximam as leituras de Roberto Lyra Filho no contexto
doutrinário de O Direito Achado na Rua à elaboração de direitos para a
emancipação e liberdade dos excluídos da organização de poder hegemonicamente
colonizadora, branca e masculina. Nesse sentido, Antonio Escrivão Filho imprime
nas páginas sua vasta experiência enquanto advogado popular, ativista pela
organização Terra de Direitos e a Articulação Justiça e Direitos Humanos -
JusDH, pesquisador e docente, principalmente em relação a sua atuação em meio
aos movimentos sociais de luta pela terra e pela democratização do acesso à
justiça, sendo fundamental sua análise quanto à importância da identificação e
da superação da herança colonialista e da grande propriedade rural como
determinante para a estrutura institucional brasileira, com especial atenção ao
Judiciário, de caráter evidentemente elitista e tecnocrata. A coautoria de José
Geraldo de Sousa Junior engrandece ainda mais a publicação editorial. Membro da
Nova Escola Jurídica Brasileira, foi o reitor – gestão do período de 2008 a
2012 - responsável pela revitalização da Universidade de Brasília e fundador do
projeto político-teórico de O Direito Achado na Rua, inovadora epistemologia reconhecida
e certificada pela Plataforma Lattes de Grupos de Pesquisa do CNPq como linha
de pesquisa, que permite pensar uma nova práxis do Direito, visto como
liberdade e possibilidade de transformação dos espaços públicos. Dentre as
inúmeras contribuições de Sousa Junior ao texto, destaca-se, além da construção
de uma noção de Direitos Humanos Achados na Rua como base fundamentadora
analítica precípua, a tradução de sua experiência enquanto um dos maiores
incentivadores da implementação da extensão nos cursos jurídicos no Brasil,
pela criação dos Núcleos de Assessoria Jurídica Popular Universitária - Najups,
os quais prestam assistência e assessoria gratuita a indivíduos
hipossuficientes e movimentos sociais, como uma das formas de colaborar para o
aumento e a expansão do acesso à justiça pelas minorias oprimidas pela
violência real e simbólica ainda presente nos regimes de enunciado democrático.
O
livro importa um projeto idealizado pelos autores inicialmente destinado à
elaboração de um plano de curso introdutório para a Especialização em Gestão de
Políticas Públicas de Direitos Humanos da Escola Nacional de Administração
Pública – ENAP/MPOG, ministrado entre 2013 e 2015, na cidade de Brasília, e
tendo como público alvo “agentes públicos federais do sistema de promoção e
proteção dos direitos humanos” (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2016, p. 9). A
interlocução desse modo estabelecida foi mantida até a publicação oficial então
analisada, tendo sido colocada ao debate público, ainda, no Seminário Nacional
“Os Direitos Humanos como um projeto de sociedade: desafios para as dimensões
política, socioeconômica, ética, cultural, jurídica e socioambiental”,
organizado pela Faculdade de Direito da Escola Superior Dom Helder Câmara, no
ano de 2013, em Belo Horizonte, bem como nas disciplinas “O Direito Achado na
Rua” e “Direitos Humanos: Fundamentos Teóricos”, ministradas paras os Programas
de Pós-Graduação em Direito e em Direitos Humanos e Cidadania, respectivamente,
da Faculdade de Direito e do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares –
CEAM – da Universidade de Brasília. Destarte, os conceitos e categorias
colocados no corpo do texto, em um primeiro momento, são produtos de debates no
âmbito da sala de aula, realizados por meio de metodologias ativas de ensino,
que incitavam a participação dos discentes, o que explica a clara construção
interdisciplinar, manifesta pela presença de noções advindas do Direito, da
Sociologia, da Filosofia, da Ciência Política, da História, da Antropologia, da
Administração Pública, da Pedagogia, entre outras áreas de conhecimento. Nesse
sentido, a construção da obra permite uma superação do modo de operar o
conhecimento concebido pela ciência clássica, que postula a ordem, a
separabilidade, a redução e a lógica identificada à razão. Percebe-se no
trabalho uma preocupação pela reorganização e a valorização de saberes
invisibilizados pela colonialidade do pensamento científico moderno. Há uma
clara aplicação do que Edgar Morin (2003, p. 89), em sua obra A cabeça bem feita, coloca como um jogo
dialético entre as áreas do conhecimento, que substitui “o pensamento que isola
e separa por um pensamento que distingue e une (...) um pensamento disjuntivo e
redutor, por um pensamento complexo, no sentido originário do termo complexus: o que é tecido junto”.
Longe
de uma leitura usualmente realizada de clara inspiração eurocêntrica dos
direitos humanos, que se preocupa muito mais com seus aspectos civis e
políticos do que com suas perspectivas econômica, social e cultural, Escrivão
Filho e Sousa Junior buscam tecer uma narrativa decolonial latino-americana,
concentrando-se na luta por emancipação de indivíduos e grupos subjugados na
velha estrutura oligárquica, agrária e colonialista dessas sociedades. Assim,
combatem uma visão puramente abstrata desses direitos, que teria sido fomentada
e difundida a partir dos reducionismos da modernidade, que identificam o
conhecimento com a ciência, subsomem a política ao Estado e limitam o Direito à
lei. Seguindo a lógica lyriana, procuram perquirir o que não configura o
Direito, fugindo das categorizações baseadas em ideologias, universalismos e
pré-compreensões, tão difundidas pelas concepções juspositivistas e
jusnaturalistas. O monismo jurídico que aprisiona o Direito na estrutura
hierarquizada das normas postas é substituído pela visão pluralista e sua
abertura a outras dimensões do social, de forma a não atribuir a produção
jurídica apenas ao Estado e seus tecnocratas habituais ou a uma tradicional
elite institucionalizada, mas tornando-a viável aos segmentos étnicos e sociais
inferiorizados e excluídos.
Outro ponto fundamental da análise
dos conceitos e categorias concernentes à compreensão dos direitos humanos é a
investigação relativa ao próprio elemento da humanidade. Tanto em Estados
autoritários, quanto naqueles de enunciado democrático, observa-se a utilização
de redutores culturais afetos à noção de igualdade formal, utilizados como
meios de negação existencial do outro e da diferença. Interessante notar que,
no âmbito da filosofia, a moderna anulação da alteridade já teria sido identificada
pelo lituano Emmanuel Lévinas, para quem, principalmente a partir do idealismo
hegeliano e da ontologia heideggeriana, o Outro teria sido totalizado em uma
condição de mesmidade, sendo sua existência suprimida no movimento de retorno à
consciência do Eu, para quem seria mero objeto. A violência implícita à
centralidade do Eu e da consciência na filosofia teria dado lugar à
desumanização e à anulação do agir ético, perceptíveis em fenômenos como o
Holocausto e o apagamento dos povos indígenas e quilombolas nos conflitos
territoriais gerados para efetivação do ideal desenvolvimentista nacional. Nesse
mesmo sentido, conforme leciona o professor argentino Luis Alberto Warat, o
racionalismo arraigado na estrutura do Estado Moderno produz efeitos tóxicos,
como uma crença normativista que blinda o Direito a qualquer reflexividade
filosófica, impedindo que se o interprete enquanto instrumento de proteção aos
anseios do outro, do indivíduo fragilizado e de menor poderio econômico-social.
Ainda pelo entendimento do jurista latino-americano, um dos fatores que
contribuem para a desconsideração do outro no discurso jurídico é a ausência de
uma teoria da argumentação que se paute pela alteridade, aumentando, então, os
abismos sociais. Em suas palavras:
A
tutela constitucional das garantias dos direitos fundamentais pressupõe que os
garantidos sejam cidadãos e não excluídos, postos socialmente em uma situação
de permanente exceção. A cidadania não existe se o outro da alteridade é
excluído. (...) Falar de cidadania em circunstâncias de exclusão é garantir a
permanência de estados de exclusão, que são o lado diabólico das nossas
sociedades. (WARAT, 2010, p. 82)
Os
direitos humanos, para que sejam exercidos de forma ética e atribuídos, de
fato, a todas as pessoas, devem ser vistos pela perspectiva da diversidade,
efetivados em nome da diferença e não de categorias universais e abstratas
definidas pela atividade intelectual e espiritual do homem branco, empoderado
política, econômica e socialmente, e visto como único sujeito detentor do
saber. O universalismo, como criticado por Boaventura de Sousa Santos, carrega
em si uma ideia de superioridade que impõe um processo histórico de imposição
cultural, política e econômica, traduzida em uma violência aniquiladora
transvestida de programa educacional e civilizatório, chamada por Enrique
Dussel de mito da modernidade (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2016).
A
categoria dos direitos humanos deve ser percebida em sua dimensão histórica e
social, não sendo limitada àquelas garantias positivamente estabelecidas. Os
pesquisadores apontam a necessidade de ir além do seu reconhecimento em nível
legal, constitucional ou internacional, pois, do contrário, incorre-se no risco
da adesão a teorias abstratas, cujos efeitos ilusório, imobilizante e de ordem
geram a exclusão dos direitos que não estão consignados na ordem jurídico-legal
e a criminalização das lutas pela sua conquista, impedindo a reivindicação dos
sujeitos coletivos de direito que não são alcançados pelos princípios e normas
jurídicas. Ao desvincular os direitos humanos de seus processos
sócio-históricos de constituição e significação, despolitizando-os, há uma
fragilização do exercício do poder popular, como informa Sánchez Rubio
(ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2016). Bem demonstram os autores, então, a
necessidade, já indicada pelas escolas do Novo Constitucionalismo
Latino-Americano e do Constitucionalismo Achado na Rua, de um poder
constituinte emancipador, libertador e popular, que imprima na Constituição a
realidade plural da sociedade, de forma a garantir a eficácia das lutas
emancipatórias e pela dignidade de determinados grupos sociais. É importante,
entretanto, que esse poder não seja absorvido pelo Texto aprovado, mas se
mantenha ao longo de sua vigência, como constante fiscalizador e garantidor da
prática de direitos, não somente por instrumentos jurídicos, mas também
políticos, econômicos, culturais e sociais.
Escrivão
Filho e Sousa Junior ainda demonstram a necessidade de romper com o pensamento
linear que divide os direitos humanos em categorias analíticas de dimensões ou
gerações, compatíveis com a história política e social da Europa Ocidental imposta
ao sul-global, cujos processos de separação e fusão não lineares seriam mais
afeitos à realidade em razão da constante necessidade de expansão, cumulação e
fortalecimento das garantias desses direitos. Esse doutrinamento eurocêntrico e
colonialista impossibilita, conforme as leituras do filósofo e historiador
argentino Arturo Andrés Roig (2004), o exercício pleno ou legítimo do a priori antropológico dos grupos
sociais dominados, que passam a sofrer um estado de consciência de
inferioridade e ter a necessidade de buscar suas próprias identidades culturais.
Para essa busca de especificidades relativamente aos direitos humanos, no
contexto latino-americano deve-se observar as constantes construções e
desconstruções que permeiam seu desenvolvimento econômico, político e social,
com especial atenção às características históricas individuais das comunidades.
Os direitos humanos seriam formados, portanto, em seu histórico de lutas
sociais pela dignidade e orientariam politicamente projetos de sociedade aptos
a ensejar a efetivação da dignidade material da cidadania, pelo acesso
igualitário e não hierarquizado aos bens, através da democracia participativa.
Nesse sentido definidos, os direitos humanos comporiam o próprio Direito Achado
na Rua enquanto projeto de libertação dos oprimidos e espoliados de seu lugar
na história e no poder. Trata-se de um Direito verdadeiramente dignificante,
que respeita as diferenças encontradas no espaço público e não as unifica por
meio de um processo violento.
Os
direitos humanos formados através das lutas sociais por emancipação e dignidade
figuram no plano internacional como política e práxis contra-hegemônica dos
movimentos sociais, não sendo reduzidos às cartas, às declarações e aos
tratados que os positivam. A adesão a esses textos por parte dos Estados,
entretanto, permite o reconhecimento de seu caráter supraestatal e das funções
de fiscalização e proteção de organismos internacionais, com o rompimento às
rígidas fronteiras da soberania (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2016). A baixa
densidade normativa com que são explorados internacionalmente, porém, os
caracteriza como soft law, os
vinculando ao atendimento de interesses econômicos e políticos dos Estados
nacionais. Isto faz com que os órgãos internacionais, que em tese efetuariam a
exigibilidade e a justiciabilidade desses direitos, tenham decisões não
vinculantes, mas meramente recomendatórias e declaratórias, não podendo impor
efetivas sanções aos Estados nacionais, ainda tão influenciados pela cultura de
negação e violação desses direitos. Apesar disso, são importantes mecanismos
para promover a visibilidade dos casos de patente descumprimento pelas
instituições estatais.
Seguindo
a leitura a partir de perspectivas contra-hegemônicas, Escrivão Filho e Sousa
Junior optam por descrever a história dos direitos humanos no Brasil tendo em
vista as parcelas populacionais subvalorizadas desde o colonialismo, o domínio
político e econômico feito pelos portugueses, até a instauração da
colonialidade ainda perceptível, que expande a exploração para outros campos,
como as áreas do saber e da cultura. Tem-se a observância do processo
dialético, não-linear, diverso e invisibilizado das lutas para reconhecimento e
concretização dos direitos humanos, no processo de busca por uma sociedade
livre e solidária. Mais que a história recontada pela memória oficial, busca-se
a reconstrução das lutas dos esquecidos, principalmente daqueles violentados
pelo regime autoritário instaurado após o golpe militar de 1964. A tortura
enquanto política de manutenção estatal, aliada à legalidade autoritária,
permitiram a manutenção da ordem econômica para as classes privilegiadas desde
o colonialismo, das quais se destaca a dos latifundiários. A repressão passou a
ser utilizada disciplinarmente nos espaços público e privado, nos meios urbano
e rural. A justiça de transição, que teve lugar a partir da pressão social e de
novos sujeitos coletivos de direito mobilizados já na década de 1980, não
cumpriu com toda sua potencialidade de reparação, alcance da verdade,
regularização da justiça e reformas institucionais para o fim das violações aos
direitos humanos, já que seu controle ainda recaía nas forças militares e
oligárquicas que continuavam no poder durante o período de lento retorno à
democracia.
O
reestabelecimento do regime estatal de enunciado democrático, não apenas no
Brasil, mas na América do Sul como um todo, tendo em vista a onda autoritária
que se abateu sobre o continente, é o cenário ideal para a criação de novos
direitos, em razão do maior espaço dado à luta social pela liberdade e pela
dignidade. A democracia permite a abertura da disputa pelos espaços de poder e
participação às distintas dimensões da vida social, reorganizando-se os
sujeitos políticos em torno de movimentos sociais, aos quais é atribuída legitimidade
política. A luta social se concentra no combate ao colonialismo, ao racismo e
ao patriarcado e na busca pela reconstrução da memória e da verdade. Nesse
sentido, é observada a ascendência do neoconstitucionalismo, com suas
Constituições Dirigentes, que veem a necessidade de transformação da realidade
injusta, trazendo um conteúdo programático forte em seus textos; e do Novo
Constitucionalismo Latino-Americano, resposta ao neoliberalismo e à
colonialidade que afastam a soberania popular do exercício dos direitos e do
poder.
Apesar
desse novo contexto ser propício ao projeto neodesenvolvimentista
latino-americano, abrindo espaço para a reprimarização da economia e
proporcionando a execução de políticas compensatórias de redistribuição de
excedentes sociais, ainda são percebidas velhas formas de exploração do
trabalho e violações dos direitos de povos tradicionais indígenas e comunidades
quilombolas que sofrem o impacto das obras de renovação da infraestrutura
nacional, sendo vistos como obstáculos para a expansão da exploração agrícola e
minerária. A luta desses setores transcende o mero aspecto
econômico-proprietário, tratando-se, em suma, de uma luta pela manutenção de
suas identidades, tão vinculadas à forma de uso da terra, e pela emancipação da
velha submissão política, cultural, social, educacional e econômica. A fundação
dos regimes de enunciado democrático observada na maioria dos países do sul-global,
inclusive no Brasil, ainda se apoia em uma estrutura de desigualdade social e
monoculturalismo cidadão. A democracia, ainda que comporte a noção de soberania
popular e o ideal do autogoverno coletivo, não é aberta a real participação de
todos, reproduzindo uma igualdade meramente formal.
Nesse
diapasão, os autores propõem a efetivação de um Novo Constitucionalismo Achado
nas Ruas, já consignado nas experiências inovadoras do Equador e da Bolívia,
que visam ao plurinacionalismo, com respeito às diferenças étnico-culturais dos
distintos grupos que convivem em um mesmo território. Através dessa solução não
é realizada apenas a ampliação de direitos, mas também a efetiva participação
constituinte das diversas identidades, com a incorporação de seus valores no
desenho institucional e na organização de poder. A preocupação não deve se
resumir à parte dogmática da Constituição, a sua declaração de direitos, mas
também, nos termos de Gargarella (2014), deve-se atentar especialmente ao
funcionamento do poder, componente da parte orgânica da Constituição, que
abriga sua sala de máquinas. Nesse sentido, abre-se espaço para a assunção do
Outro ao papel de sujeito político legítimo, capaz de instituir e interpretar a
nova ordem constitucional de caráter plurinacional e descolonial. O
Constitucionalismo Achado na Rua permite que o Direito enuncie princípios,
conforme Lyra Filho (1982, p. 124), para uma “legítima organização social da
liberdade”, além de atribuir uma verdadeira função social ao Texto
Constitucional, reconhecendo a luta estabelecida nas ruas como expressão do
poder constituinte e da soberania popular, não meramente na forma
histórico-institucional de uma Assembleia Constituinte ou no ato de promulgação
da Carta, mas durante toda a vigência desta.
Solucionam,
ademais, um antigo paradoxo da democracia liberal apontado por Santiago Nino
(2005): o de que, ao incorporar novos direitos sociais, se estaria transferindo
poderes adicionais ao Judiciário, poder mais distante do controle popular. Ora,
há uma visão pessimista da politização da Justiça, pautada em uma ideia
desnaturalizada que o direito e o corpo judicial devem ser independentes
relativamente às pressões sociais, elaborados de maneira técnica e formal por
aplicadores instruídos nas Ciências Jurídicas e visando apenas ao estrito
cumprimento das normas positivadas. Essa visão, entretanto, coloca o direito a
serviço da dominação social. A função judicial é parte da organização
político-institucional do Estado, devendo sim perpassar pelas questões
políticas trazidas pelos sujeitos coletivos de direitos, estando à disposição
da meta de empoderamento político dos movimentos e grupos sociais
invisibilizados na cultura da colonialidade. Não deve ser neutro, mas sim
não-arbitrário, cabendo-lhe a análise de problemas sociais e violações de
direitos humanos. É preciso desverticalizar a estrutura interna do Judiciário,
tornando transparente à sociedade sua gestão político-administrativa e seu
caráter disciplinar. O necessário alargamento democrático do Judiciário,
essencial para a efetivação dos direitos humanos reivindicados no espaço
público pelos indivíduos excluídos e marginalizados, perpassa pela criação de
mecanismos políticos e técnicas jurídicas que são idealizadas no contexto das
organizações não-governamentais, dos movimentos sociais, das assessorias
jurídicas, da advocacia popular e dos cursos de Direito, estes através da
implementação de novas técnicas de ensino, pesquisa e extensão que aproxime os
alunos da comunidade.
O
Direito Achado na Rua e a obra de Escrivão Filho e Sousa Junior não poderiam
ser mais propícios à análise da atual conjuntura brasileira, pois envolvem “uma
interlocução entre a sociologia jurídica, a teoria crítica do direito e o
pluralismo jurídico” (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, p. 220). Nosso país passa
por uma crise institucional que relembra os atribulados anos de 1963-1964,
quando o governo progressista de João Goulart foi impedido de exercer sua
legitimidade democrática, diante das pressões das elites militares,
patriarcais, conservadoras e oligarcas pela não realização de reformas que
iriam beneficiar os oprimidos e subvalorizados. Os programas de redistribuição
que beneficiavam as camadas mais pobres da população e ajudaram a retirar
milhares de brasileiros da miséria são finalizados. As verbas para educação,
saúde e programas de moradia são cortadas, enquanto benefícios ao empresariado,
ao agronegócio, aos operadores do sistema financeiro e aos empreiteiros são
concedidos. A rua torna-se lugar de perseguições e jatos d’água para aqueles
que não tem abrigo em nenhuma categoria social, sendo anulados em sua existência.
O Direito Achado na Rua é uma solução que se apresenta a tal crise, pois é
através dele que o Estado constitucional pode garantir a luta social por
dignidade, alcançando direitos humanos e uma verdadeira democracia, não
confundida com a pura violência da vontade ilimitada da maioria, mas sim pelo
verdadeiro reconhecimento da diferença, concretizando o projeto emancipatório
do Direito, apto a realizar mudanças sociais e garantir a expressão de novos
sujeitos de direito.
Referências
Bibliográficas
ESCRIVÃO
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Tradução de Vívian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. e Alexandre
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Graduada em Direito pela
Universidade Federal de Juiz de Fora. Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação
em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília. Pesquisadora
do NEA – Núcleo de Estudos Agostinianos, cadastrado no CNPq e na UFJF, e
participante do grupo de pesquisa Constituição e Ontologia do Departamento de
Pós-Graduação em Direito da UnB.