quarta-feira, 23 de setembro de 2020

 

Educando para os Direitos Humanos

Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

 

 

       

 

Educando para os Direitos Humanos: pautas pedagógicas para a cidadania na universidade. José Geraldo de Sousa Junior, Nair Heloisa Bicalho de Sousa, Alayde Avelar Freire Sant’Anna, José Eduardo Elias Romão, Marilson dos Santos Santana, Sara da Nova Quadros Côrtes (organizadores). Porto Alegre: Síntese, 2004, 256 p.

(http://www.dhnet.org.br/dados/livros/edh/a_pdf/livro_unb_educando_dh.pdf)

             Antes de mergulhar na leitura propriamente dita do livro destacado para este Lido para Você, ponho em relevo de sua própria apresentação, aliás, a meu encargo como um de seus organizadores, os elementos que dão sentido a iniciativa editorial que o motivou e que tem a ver com a institucionalização na UnB, do Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos e da Disciplina Direitos Humanos e Cidadania.

            Com efeito, a institucionalização na Universidade de Brasília, da disciplina Direitos Humanos e Cidadania, integrante do módulo livre da estrutura curricular dos cursos de graduação, foi uma das mais importantes iniciativas do Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos -NEP, unidade acadêmica vinculada ao CEAM – Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares.

             Criado em 1º de dezembro de 1986, por ato do Reitor, o NEP representou a mais nítida e pioneira iniciativa concernente ao desenvolvimento de uma consciência acadêmica sobre os direitos humanos, no âmbito da Universidade de Brasília.

Fonte: pixabay

             Além disso, concebido em perspectiva temática e interdisciplinar, a sua organização procurou guardar correspondência ao novo modelo administrativo naquela altura experimentado na UnB, com o objetivo de criar condições para a reunião de pesquisadores, orientados por novas formas multidisciplinares de ensino e de pesquisa, com o estabelecimento de relações recíprocas, entre a sociedade, suas instituições e a própria Universidade.

             A inserção dos temas paz e direitos humanos, para conduzir as reflexões temáticas neste novo modelo, derivou de duas motivações complementares. No primeiro termo, a eleição naquele ano do Reitor Cristovam Buarque para a Presidência do Conselho da Universidade para a Paz, das Nações Unidas, com sede em San José, Costa Rica, havia criado condições para a celebração de um protocolo de intenções entre aquela Universidade e a UnB, para o desenvolvimento de um programa comum.

            O protocolo, assinado na cidade de Yxtapa (México), com a assinatura, na qualidade de testemunha, do escritor colombiano Prêmio de Literatura Gabriel Garcia Marques, pedia um ambiente universitário adequado ao desenvolvimento dos seus termos. Este ambiente foi o NEP, recentemente criado. No segundo termo, a atuação na UnB, notadamente na Faculdade de Direito, de um grupo crítico formado em torno à Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR), sob orientação do Professor Roberto Lyra Filho, que havia trabalhado a partir da Revista Direito & Avesso, uma disposição militante para a prática jurídica pensada enquanto estratégia de legítima organização social da liberdade, tendo os direitos humanos como referencial para o reconhecimento do Direito socialmente construído, permitiu a abertura de um espaço de interlocução, até então politicamente limitado e epistemologicamente restringido. Este espaço foi o NEP.

             Para alcançar os seus objetivos o NEP se propôs, conforme os seus documentos constitutivos a:

1. desenvolver pesquisa capaz de produzir conhecimento novo sobre a paz e osdireitos humanos, reunindo investigadores de diferentes campos científicos num esforço interdisciplinar; 2. manter programa permanente de ensino e pesquisa no âmbito da universidade e da comunidade; 3. divulgar os conhecimentos sobre a paz e os direitos humanos, mediante publicações de resultados de pesquisas, do próprio NEP e de centros congêneres, organizar seminários, cursos e atualizações, e, promover conferências, colóquios, exposições e eventos; 4. efetuar intercâmbios com centros similares; 5. oferecer à comunidade acesso às suas atividades.

            A concepção de direitos humanos a que se referem os objetivos do NEP foi inicialmente lançada em um texto que serviu de ponto de partida para as discussões levadas a efeito no “Colóquio sobre Direitos Humanos na América Latina”, promovido no ano de 1997, em conjunto com a Fundação Danielle Miterrand (France-Libertes). Neste texto, o NEP afirmou que na América Latina o problema dos direitos humanos compreende não somente a luta pelos direitos humanos da tradição liberal, como os direitos individuais, políticos e civis; os direitos sociais, dos trabalhadores, desenvolvidos na pauta socialista; mas, também, a transformação da ordem econômica internacional e nacional, contra toda a marginalização, exploração e formas de  aniquilamento que impedem a possibilidade de uma participação digna nos resultados da produção social e o pleno exercício dos direitos da cidadania. Vale dizer, uma concepção abrangente que insere a paz como núcleo de um sistema complexo de relações políticas determinadas pela indissociável vinculação entre direitos humanos, democracia e liberdade.

            É importante assinalar alguns aspectos do contexto epistemológico de criação do NEP, complementando o que mencionei acima. De fato, conforme anotei em outro lugar (Sousa Junior, José Geraldo de, Núcleos Temáticos, in Boletim da UnB, Brasília, 1 a 15 de outubro/1989, pág. 2), “a experiência recente de implantação dos núcleos temáticos na UnB colocou até a altura do debate travado no Congresso Universitário, realizado na Universidade, pelo menos duas indagações liminares: há um lugar institucional para a interdisciplinaridade? Em que medida os núcleos temáticos se constituem um espaço privilegiado para uma prática multidisciplinar no tempo científico presente?”.

            A estas questões respondemos, Roberto Aguiar e eu próprio, num artigo preparado para a Revista Humanidades, editada pela UnB, nº 30, pondo em relevo a situação de transição entre racionalidades decorrente da conjuntura de perda de confiança epistemológica e de ambiguidades que permeiam as nossas convicções atuais sobre os fundamentos da sociedade e do papel que nela é atribuído ao próprio conhecimento.

             Nosso ponto de partida para esta resposta havia sido a indicação feita pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos, que nas décadas seguintes se notabilizaria como um dos mais fecundos pensadores contemporâneos e que, num colóquio promovido pelo NEP na UnB, em 1987 (“Política, Ciência e Direito e os Desafios da Pós-Modernidade”), chamando a atenção para os limites do conhecimento disciplinar e de seu reducionismo arbitrário contido num modelo datado de racionalidade.

            Se de alguma forma valeu essa discussão, ela de certa maneira contribuiu para o reconhecimento, na proposta dos núcleos e na promessa da interdisciplinaridade que eles portavam uma orientação de mudança de racionalidade em condições de assumir o desafio da transdisciplinaridade e do futuro epistemológico que se abria, ou seja, o de compreender, exprimir e tornar coletiva a experiência do saber produzido, como intervenção fora de seus lugares naturais.

            Isso explica porque, em seguida, na aprovação do novo estatuto da UnB, a promoção da paz e dos direitos humanos se incorporava às finalidades institucionais da Universidade de Brasília.

             A atuação consolidada do NEP levou à especificação de três linhas principais de estudos e pesquisa: a pesquisa para a paz, propriamente dita, atualmente coordenada pelo Professor Nielsen de Paula Pires e focalizada nos estudos de graduação (disciplina pesquisa para a paz) e de pós-graduação; o direito achado na rua, cuja referencia principal é o curso de extensão a distância, com o mesmo título, atualmente configurando uma série editorial (Série O Direito Achado na Rua), com nove volumes já publicados e várias re-edições: vol. 1, 1987, Introdução Crítica ao Direito; vol. 2, 1993, Introdução Crítica ao Direito do Trabalho; e vol. 3, 2003, Introdução Crítica ao Direito Agrário; 2008, vol. 4, Introdução Crítica ao Direito à Saúde; 2011, vol. 5, Introdução Crítica ao Direito das Mulheres; com uma segunda edição, em 2015; 2012, vol. 6, Introducción Crítica al Derecho a la Salud; 2015, vol. 7, Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina; 2017, Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação; 2019, Introdução Crítica ao Direito Urbanístico; enquanto se prepara agora para 2020, o vol. 10, Introdução Crítica ao Direito como Liberdade; e, retomando, a linha direitos humanos e cidadania, compreendendo um conjunto de atividades, eventos acadêmicos e intervenções, entre os quais se destaca a institucionalização na UnB, da disciplina de graduação Direitos Humanos e Cidadania.

             A motivação para institucionalizar a disciplina direitos humanos e cidadania começou a tomar forma quando do encerramento do Colóquio sobre Direitos Humanos na América Latina, um evento realizado em cooperação entre a UnB e a Fondation Danielle Mitterrand (FranceLibertes), realizado em Brasília em 1987.

            Para a convocatória do Colóquio, o comitê organizador e de redação instalado no NEP (José Geraldo de Sousa Junior, Margrit Dutra Schmidt, Alayde Avelar Freire Sant’Anna, Luiz Tarley de Aragão e Nielsen de Paula Pires), preparou um documento, com o título “Conceito,  Estado Atual e Caminhos para a Construção de uma Sociedade de Plena Realização dos Direitos Humanos na América Latina” (in Série O Direito Achado na Rua, vol 1, Introdução Crítica ao Direito, 1ª edição 1987, 4º edição 1993, CEAD/NEP/UnB, Brasília), no qual se procurava estabelecer uma dimensão de concretude histórica para a necessária articulação entre os seus fundamentos teóricos e a sua legítima positivação.

            Esta exigência dialética de validação simultaneamente política e filosófica foi claramente designada no documento, numa afirmação de princípio e na constatação de que “a história das declarações de direitos humanos não é a história de ideias filosóficas, de valores morais universais ou das instituições. É sim, a história das lutas sociais, do confronto de interesses contraditórios. É o ensaio de positivação da liberdade conscientizada e conquistada no processo de criação duma sociedade em que cessem a exploração e opressão do homem pelo homem”.

            Para essa constatação muito contribuiu o acumulado crítico da reflexão sobre o Direito que se dera em torno à formação do movimento denominado Nova Escola Jurídica Brasileira já mencionado, e que inscrevera, sob a orientação de Roberto Lyra Filho no coletivo Direito & Avesso. Ali, para as discussões em que tomavam parte muitos dos que depois se reencontrariam na fundação do NEP, Roberto Lyra Filho, à medida em que formulou a sua concepção de Direito, na abordagem de sua dialética social – “aquilo que ele é, enquanto vai sendo, nas transformações incessantes do seu conteúdo e forma de manifestação concreta dentro do mundo histórico e social” – também indicou como critério de avaliação dos produtos jurídicos contrastantes, na competitividade de ordenamentos, os direitos humanos.

            Nesta perspectiva diz Roberto Lyra Filho (O que é Direito, Coleção Primeiros Passos, Editora Brasiliense, São Paulo, 1ª edição, 1982): “Justiça é Justiça Social, antes de tudo: é a atualização dos princípios condutores, emergindo nas lutas sociais, para levar à criação duma sociedade em que cessem a exploração do homem pelo homem; o Direito não é mais, nem menos, do que a expressão daqueles princípios supremos, enquanto modelo avançado de legítima organização social da liberdade. Direito é processo, dentro do processo histórico: não é uma coisa feita, perfeita e acabada; é aquele vir-a-ser que se enriquece nos movimentos de libertação das classes e grupos ascendentes e que definha nas explorações e opressões que o contradizem, mas de cujas próprias contradições brotarão as novas conquistas. À injustiça, que um sistema institua e procure garantir, opõe-se o desmentido da Justiça Social conscientizada; às normas, em que aquele sistema verta os interesses de classe e grupos dominadores, opõem-se outras normas e instituições jurídicas, oriundas de classes e grupos dominados, e também vigem, e se propagam, e tentam substituir os padrões dominantes de convivência, impostos pelo controle social ilegítimo; isto é, tentam generalizar-se, rompendo os diques da opressão estrutural. As duas elaborações entrecruzam-se, atritam-se, acomodam-se momentaneamente e afinal chegam a novos momentos de ruptura, integrando e movimentando a dialética do direito. Uma ordenação se nega para que outra a substitua no itinerário libertador. O Direito, em resumo, se apresenta como positivação da liberdade conscientizada e conquistada nas lutas sociais e formula os princípios supremos da Justiça Social que nelas se desvenda”.

            No documento que o NEP preparou para o Colóquio esta percepção está presente e ela é enunciada, no mesmo diapasão: “A questão dos direitos humanos, assim, se coloca na base de uma correlação não apreendida pelas declarações periódicas que pretendem enunciá-los. E a percepção de que elas possam concretizar uma universalidade não abstrata de direitos positivos construídos no movimento dialético dessas contradições, representa, ainda, nos princípios a que se reduzem, particularizações de interesses historicamente hegemônicos que prevalecem na coexistência conflitual da série de normas possíveis, jurídicas ou não, indicativas do processo político de libertação de grupos, classes e povos e seus respectivos projetos históricos de organização social, no plano interno ou internacional”.

            As conclusões do Colóquio não discreparam desses pressupostos. Reunidas numa declaração de compromisso, elas traduziram o consenso dos participantes sobre a necessidade de mobilização de esforços para:

a) apelar para uma forma de co-responsabilidade mundial no cumprimento dos Direitos Humanos; b) fazer implicar esta co-responsabilidade no dever de cada cidadão do mundo, de mobilizar-se na denúncia constante de toda forma de desrespeito aos Direitos Humanos; c) assumir a denúncia não apenas às formas tradicionais de desrespeito aos Direitos Humanos, mas a todas aquelas maneiras indiretas sob forma de intervenção política, militar e econômica visíveis ou disfarçadas; d) apoiar a construção de mecanismos de proteção, entre os quais o desenvolvimento do princípio de proteção permanente dos Direitos Humanos; e) assumir o compromisso, que é político, científico e cultural, de buscar os paradigmas de democratização da democracia, para instaurar um sociedade nova: a comunidade libertária de concretização dos Direitos Humanos.

            Um outro compromisso foi celebrado ao final do Colóquio, na interação entre as motivações militantes dos dois principais responsáveis pelo encontro, o Reitor Cristovam Buarque a Sra. Danielle Mitterand: a de institucionalizar, na UnB, uma cadeira de Direitos Humanos.

             Alguns anos mais tarde, numa entrevista para as páginas amarelas da Revista Veja, a ex-primeira dama da França referiu-se a esse compromisso, salientando o relevo que tinha em suas lembranças da América Latina, exatamente, o compromisso assumido pela UnB de criação de uma cadeira de Direitos Humanos.

             O NEP tomou a si a tarefa de realizar esse compromisso e no mesmo ano, obteve no Decanato de Graduação da UnB a aprovação para institucionalizar, em módulo livre, no elenco oferecido pelo CEAM – Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares, a disciplina Direitos Humanos e Cidadania.

            A disciplina, de 60 horas e 04 créditos, ofertada para alunos de todos os cursos da UnB, passou a ser oferecida desde então, todos os anos, de 1987 até 2002, sob a minha responsabilidade e, desde este ano, 2003, em co-responsabilidade com a Professora Nair Heloisa Bicalho de Sousa, atual Coordenadora do NEP, que inovou na gestão da disciplina para agregar à sua regência uma monitoria altamente qualificada constituída pelos estudantes-pesquisadores vinculados à linha de pesquisa Educação para os Direitos Humanos e Cidadania, do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania – PPGDH, do CEAM, seus orientandos.

            O programa original incorporou os elementos paradigmáticos que derivam do debate político e epistemológico que serviu de fundamento à concepção da cadeira, com especial atenção ao reconhecimento da força criativa dos movimentos sociais e dos sujeitos coletivos nele constituídos para a criação de direitos: 1. análise das condições teóricas e das condições sociais do conhecimento e dos paradigmas filosófico-jurídicos dos direitos humanos; 2. percepção dos direitos humanos e da cidadania na construção das lutas sociais e na constituição de novos sujeitos de direito; 3. os movimentos sociais e a emergência de sujeitos coletivos de direito; 4. A cidadania como possibilidade de colocar no social estes novos sujeitos capazes de criar direitos como direitos humanos mutuamente reconhecidos e aptos a determinar a sua participação autônoma no espaço da decisão política; 5. critérios para a elaboração de um programa de direitos humanos na construção e reconstrução das democracias latino-americanas; 6. experiência de organização, práticas políticas e estratégias sociais de criação de direitos; 7. educação para os direitos humanos e cidadania.

            Nos anos seguintes à criação da cadeira, este programa básico foi praticado num engajamento crescente dos alunos participantes, sempre na direção de ampliar a consciência acadêmica e profissional para a responsabilidade comum de conhecimento e garantia dos direitos humanos. Com alguma variação em torno do eixo original programático, novos temas foram sendo inseridos no plano do curso. Em 1997, dez anos após a criação da cadeira, algumas dessas variações, tiveram relevo: direitos humanos: direitos de todos; a questão dos refugiados; o direito de morar; os direitos humanos e o sistema penitenciário brasileiro; os direitos dos trabalhadores.

            A partir do ano de 1999, o NEP estabeleceu uma parceria com o Ministério da Justiça, por meio da Secretaria de Estado de Direitos Humanos e com a UNESCO, inserindo o curso no âmbito da nova política pública definida pelo governo brasileiro, no marco da Conferência de Viena, para o desenvolvimento dos Direitos Humanos.

            Neste ano de 1999, com base nesta parceria, a disciplina foi ministrada com o objetivo de abrir uma agenda para pensar as políticas públicas de direitos humanos, notadamente as contidas no Programa Nacional de Direitos Humanos. A UNESCO, por sua vez, naquele ano, incluiu a disciplina na agenda oficial de comemorações do “2000: Ano Internacional da Cultura para a Paz”.

            A plataforma que tornou possível a parceria para o desenvolvimento do curso, permitiu também, ao seu final, o lançamento de dois livros organizados dentro do princípio que orientou o trabalho conjunto, isto é, o de que a co-responsabilidade “em enfrentar os desafios de seu tempo passa pelo acompanhamento, reflexão, crítica e avaliação das políticas públicas”. Os livros lançados foram organizados sob esse fundamento, ou seja, fazer com que “a reflexão acerca da atual política de direitos humanos, (se faça) a fim de buscar solução para a problemática que aflige a cidadania brasileira”.

            Esta foi a primeira iniciativa que permitiu elaborar bibliografia própria para o curso. Os dois livros, que contaram com a participação dos membros do NEP e de alunos do curso, têm objetivos claros na formulação metodológica para a garantia de direitos e para a valorização de experiências de realização de direitos. No primeiro caso, o volume preparado por Maria Salete Kern Machado e Nair Heloisa Bicalho de Sousa, Ceilândia: Mapa da Cidadania. Em Rede na Defesa dos Direitos Humanos e na Formação do Novo Profissional do Direito. No segundo caso, volume coletivo organizado por mim e pelo Professor Alexandre Bernardino Costa, o livro Direito à Memória e à Moradia. Realização de Direitos Humanos pelo Protagonismo Social da Comunidade do Acampamento da Telebrasília, título auto-explicativo.

            Em 2000, mantida a parceria e fortalecida a regência do curso com a monitoria que se incumbe agora da organização do presente volume, o foco temático da disciplina orientou-se para “a compreensão acerca das relações entre o fenômeno da intolerância e a violência, partindo do problema real da violência que aflige o Distrito Federal e seu Entorno, procurando articular o Programa Nacional de Direitos Humanos com o Plano Nacional de Segurança Pública”.

            Em 2001, o curso voltou-se para o seu foco originário, numa revisão que procurou inserir na reflexão acerca da atuação dos movimentos sociais, a sua perspectiva internacionalizada sob a referência ideologizada do fenômeno da globalização. Conforme a justificativa do programa, tratou-se de “discutir a problemática da realização dos direitos humanos a partir da reflexão sobre o estado atual da organização e mobilização da sociedade civil, tendo como referência sua articulação local, nacional e global. Neste sentido, buscamos proporcionar aos estudantes da UnB e membros de organizações civis e movimentos sociais, um debate sobre o papel da sociedade civil brasileira no processo de construção de uma democracia e cidadania globais, tendo em vista a afirmação da universalização e indivisibilidade dos direitos humanos, a partir de sua realização e proteção no país e no mundo. Além disso, esperamos estimular o contato dos estudantes com as organizações que trabalham pela realização dos direitos humanos, revalorizando o conhecimento das experiências que informam as políticas relativas a esta temática. Finalmente, pretendemos refletir sobre temas mais atuais que se colocam como desafios para a construção de uma cultura internacional de direitos humanos, e mapear os movimentos sociais e ações coletivas dos anos noventa no Brasil, indicando aquelas que também se articulam globalmente”.

            Os elementos aqui trazidos, com uma ou outra extensão de atualização, estacionam ali em 2004, quando da edição da obra. Para a continuidade das ações acadêmico-sociais, remeto aqui ao texto preparado pelas Professoras Nair Heloisa Bicalho de Sousa e Flávia Beleza – “Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos: 30 Anos” – elaborado para o volume 10 da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade, no prelo, editado a propósito do Seminário Internacional O Direito como Liberdade: 30 Anos de O Direito Achado na Rua (UnB, 2019).

            Voltando ao momento da edição do livro ora Lido para Você, em 2002 e 2003, o objetivo do curso, mantido o seu eixo programático, mais uma vez em estreita parceria com a Secretaria Especial de Direitos Humanos, atualmente vinculada à Presidência da República, foi o de selecionar temas, identificar os autores e participantes das  várias edições do curso que contribuíram para um maior refinamento de abordagens e, enfim, aferir o potencial pedagógico do próprio curso para construir uma bibliografia relevante para a área e para sugerir pautas pedagógicas de educação para os direitos humanos.

            O resultado é este Educando para os Direitos Humanos: Pautas Pedagógicas para a Cidadania na Universidade. Este livro adensa uma experiência diligentemente acumulada e uma parceria que tornou possível fortalecer o processo pedagógico que com ela se realiza, permitindo ao Curso Direitos Humanos e Cidadania dispor de uma bibliografia própria, que pode ser compartilhada com todos aqueles que se movem por essa causa comum, em direção a uma pedagogia para a emancipação.

            Para bem aquilatar esse sentido de adensamento, consulte-se o rico sumário da obra:

Apresentação – A Institucionalização do Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos e da Disciplina Direitos Humanos e Cidadania na UnB, cujos termos estão contidos no texto que abre este Lido para Você, e que me incumbi de redigir.

Módulo I – Educação para os Direitos Humanos

Introdução ao Módulo

Cidadania Planetária: um projeto plural, solidário e participativo, Nair Heloísa Bicalho de Sousa

1.Dilemas e Desafios da Proteção Internacional dos Direitos Humanos, Antônio Augusto Cançado Trindade

2.Pobreza Política Direitos Humanos e Educação, Pedro Demo

3.(Re)Pensando a Inserção da Universidade na Sociedade Brasileira Atual, Miracy B. Sousa Gustin

4.Direitos Humanos: Subjetividade e Práticas Pedagógicas, Luis Alberto Warat

 

Módulo II – Estratégia de Defesa de Direitos

Introdução ao Módulo

A Relação Estratégica entre Violência e Violação de Direitos, José Eduardo Elias Romão

5.A Questão da Violência, Vicente de Paula Faleiros

6.Perspectivas: Proteção a testemunhas no Brasil e no Exterior, Jaime Benvenuto Lima Junior

7.Em Frente da Lei tem um Guarda, Virgínia Feix

 

Módulo III – Globalização, Processos de Participação e Ações Afirmativas

Introdução ao Módulo

Controle Social e ações Afirmativas: em Busca de Novos Paradigmas para a Ação Política Transformadora, Sara da Nova Quadros Cortês

8.Democracia, Cidadania e Direitos Humanos, Francisco Whitaker

9. Globalização: O ‘Assujeitamento’ Da Cidadania, Érika Kokay

10.Os Cidadãos e o Processo Orçamentário – Um Experimento Pedagógico de Participação, Elenaldo Teixeira

11.Ações Afirmativas: Farol de Expectativas, Ivair Santos

 

Módulo IV – Experiências de Realização de Direitos Humanos: o Direito à Igualdade e à Diferença

Introdução ao Módulo

O Direito de Ser Diferente: processos de Singularização com uma Aposta da Vida contra a Exclusão, Alayde Avelar Freire Sant’Anna

Identidade e Reconhecimento como Unidade de Lutas Políticas e Efetivação de Direitos Humanos,  Marilson dos Santos Santana

12. Rap, Juventude e Identidade, Fernanda Souza Martins

13.Os Frágeis Direitos Das Mulheres, Lia Zanotta Machado

14.Negros, Luis Alberto

15.O “Índio” como Sujeito Político: a Democracia Zapatista, Rodrigo de Souza Dantas

16.Direitos Humanos e Cidadania Homossexual no Brasil: Porque os Homossexuais são os Mais Odiados dentre Todas as Minorias?, Luis Mott

17.Experiência Gay na Universidade, Denílson Lopes

18. Idosos: Solidão, Barreiras e Direitos, Maria Laís Mousinho Guidi

19.Deficiência Sob a Ótica dos Direitos Humanos, Izabel de Loureiro Maior

 

Módulo V – Documentos

20.Declaração Universal dos Direitos Humanos

21.Atos Multilaterais em Vigor para o Brasil no Âmbito dos Direitos Humanos

 

            A matéria de que trata o livro, para além de seu valor intrínseco, fortaleceu uma vertente que está em franca expansão no NEP e presentemente conduzida para adensar a linha de pesquisa Educação em e para os Direitos Humanos e Cidadania (PPGDH – Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania). O seu enunciado e os aportes teóricos que nela são designados podem ser conferidos em “Retrospectiva histórica e concepções da educação em e para os direitos humanos”, de Nair Heloisa Bicalho de Sousa, texto publicado em PULINO, Lúcia Helena Cavasin Zabotto. Educação em e para os direitos humanos. Brasília: Paralelo 15. Biblioteca Educação, Diversidade Cultural e Direitos Humanos, volume II, 2016.

            Porém, digno de nota é que a edição abriu uma outra vertente, essa editorial, que já pode se considerar uma Série ou Coleção. Isso porque, depois da publicação do volume ora Lido para Você, e ao impulso dos debates e ações de educação para os direitos humanos, dois novos volumes já foram editados (assunto para novas colunas): Educando para os Direitos Humanos: Pautas Pedagógicas para a Cidadania na Universidade vol. II. Desafios e Perspectivas para o Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil. Oerganização Nair Heloisa Bicalho de Sousa, Adriana Andrade Miranda e Fabiana Gorenstein. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Justiça, Coordenação de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, 2011. O livro, base para um curso a distância realizado simultaneamente, foi o resultado de promoção do Ministério da Justiça em parceria com o Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos (NEP), a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC) e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

            O outro livro, editado em 2008, na mesma vertente, mas com classificação própria, foi Educando para a Paz e Direitos Humanos, organizadores: José Renato Vieira Martins, Nair Heloisa Bicalho de Sousa e Júlia Marton-Lefèvre (ex-Reitora da Universidade da Paz da ONU), resultado de uma parceria entre a Secretaria-Geral da Presidência da República, a Universidade para a Paz das Nações Unidas (UPAZ) e o Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos da Universidade de Brasília, reunindo trabalhos apresentados no Seminário Internacional “Educação para a Paz e os Direitos Humanos”, realizado em Brasília, em dezembro de 2005 (livro que será também assunto para outras colunas).

            Mais uma vez dizemos, como já o fizemos, Nair Heloisa Bicalho de Sousa e eu -Direitos Humanos e Educação: Questões Históricas e Conceituais, in 70 Anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Educação Humanizadora. VIII Congresso Internacional de Educação. Alexsandro Miola, Geonice Zago Tonini Hauschildt, Jolair da Costa Silva (Organizadores). Santa Maria: Biblos Editora, 2019  (a respeito ver em – https://estadodedireito.com.br/70-anos-da-declaracao-universal-dos-direitos-humanos-e-a-educacao-humanizadora/ –   trata-se também de pensar os direitos humanos articuladamente com uma prática de educação, a partir de elementos fundamentais que compõem o processo educativo: uma prática voltada para a promoção e defesa dos direitos humanos; os educandos (indivíduos e povos) são sujeitos de direitos; um  processo de formação  voltado para as diferentes dimensões da educação; o  conteúdo programático inclui princípios, valores, mecanismos e instituições específicas; reconhece uma vinculação direta entre os direitos humanos, a democracia, a paz e o desenvolvimento. Com esta orientação que tem como eixo a formação de sujeitos de direitos, diferentes iniciativas em países latino-americanos foram implementadas, demonstrando que podem ser bem sucedidas, caso os atores do poder público e da sociedade civil, sejam capazes de conduzir projetos e ações efetivas e contínuas, uma vez que a configuração de uma cultura de direitos humanos requer um trabalho de compromisso com as diferentes gerações.

            Esta formulação inicial a respeito da educação em direitos humanos pautada na ideia dos sujeitos de direitos como agentes pluridimensionais se enriquece com novos elementos estruturantes vinculados à resistência à opressão, à violação de direitos, às relações sociais solidárias e à vivência efetiva dos direitos humanos: a educação em direitos humanos é aquela capaz de formar para resistir a todas as formas de opressão, de violação dos direitos; mas também é aquela que forma sujeitos de direitos capazes de solidariamente viabilizar as melhores condições para que todos e todas possam viver concretamente os direitos humanos permanentemente.

            Essa formação de sujeitos de direitos capazes de resistência diante das violações e opressões, além de garantir a defesa, promoção, reparação e conquista de novos direitos, tem chance de se efetivar de forma definitiva por meio da proposta dos direitos humanos como projeto de sociedade. Essa perspectiva pode ganhar força em nosso País se o processo democrático se consolidar, mantendo seu caráter popular e participativo, de modo a contribuir para a construção de uma cultura de direitos humanos que se oriente “por uma visão crítica e emancipatória dos Direitos Humanos, segundo uma pauta jurídica, ética, social e pedagógica”, conforme eu próprio, com Maria Vitória Benevides, deixamos assinalado em outro lugar (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; e BENAVIDES, Maria Vitória. O Eixo Educador do PNDH-3. Revista Direitos Humanos, Especial PNDH-3, n. 05. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, abril 2010).

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua

sábado, 19 de setembro de 2020

 

Boaventura: “só os míopes desprezam a utopia”

Confinado numa aldeia portuguesa, ele acaba de concluir novo livro. A pandemia abre o século XXI, argumenta, e surgem três cenários possíveis. É preciso lutar, com “otimismo trágico”, pela saída pós-capitalista. Ou aguardar, em apatia, o pior

Em Outras Palavras

Entrevista a José Cabrita Saraiva, no I

No livro que acaba de enviar para a editora defende que o século XXI começa agora. Entre as mudanças que antevê, aponta o fim do turismo internacional e o redimensionamento de centros comerciais.

Estudou na Alemanha, doutorou-se nos Estados Unidos, viaja com frequência para o Brasil e a Colômbia, mas agora vive numa aldeia de apenas 12 famílias perto de Coimbra, Portugal. Homem de esquerda e de causas, o sociólogo Boaventura de Sousa Santos considera-se um “otimista trágico”. Recusa deixar de acreditar na utopia e diz que não se tem dado mal com isso.

Ainda há poucos meses a editora portuguesa Almedina publicou um volume com as suas aulas magistrais dos anos 2011-2016, sob o título Na Oficina do Sociólogo Artesão. Mas Boaventura de Sousa Santos tem aproveitado o confinamento para trabalhar e já entregou à editora seu novo livro. Chama-se O Século XXI Começa Agora — Da Pandemia à Utopia e defende que a crise sanitária que atravessamos mostrou que existem alternativas ao modelo do capitalismo global. Isso dá-lhe esperança no futuro. Ainda assim, considera-se um “otimista trágico”. Nessa entrevista ao i, concedida por skype a partir do seu escritório numa pequena aldeia próxima de Coimbra, explica por quê.

Como tem vivido estes meses? Está confinado ou não se preocupa muito com isso?

Obviamente que me preocupo. Estou desde março aqui na minha aldeia, a 30 km de Coimbra. É uma casa onde já tinha meu escritório e onde escrevi muitos livros. De alguma maneira, pertenço àquele grupo de privilegiados que podem trabalhar em casa. Tinha um grande número de compromissos este ano que me levariam a estar permanentemente em viagem, e muitos deles foram transformados em transmissões ao vivo. Estou agora a enviar para a minha editora um novo livro sobre a pandemia. De modo que tenho aproveitado o tempo para trabalhar.

O confinamento tem tido aspectos positivos ou essa parte de não poder viajar, por exemplo, foi uma grande contrariedade?

Não, não foi. Tive mais tempo para me dedicar à escrita e à leitura. Mas tudo isto assumindo que se trata de uma coisa transitória. Diferente será se o novo normal implicar que as coisas vão ser muito mais difíceis, sendo certo que os meus destinos internacionais, além da Europa, estão muito centrados em dois países: os Estados Unidos, onde tenho vivido metade do ano há 35 anos, em Madison; e o Brasil. E ainda a Colômbia, que é outro país onde também estou muito envolvido. De maneira que as reuniões têm de ser virtuais. Vamos ver o que vai passar-se. Por enquanto eu vivo numa bolha, a minha aldeia são doze famílias.

Então não há risco de contágio.

Aqui na região Centro as coisa estão calmas, vou dar as minhas voltas com os cães, vou ver os meus amigos lavradores ou pastores, conversamos à distância — aqui no campo é assim. Pouca gente vejo, tem essa grande vantagem.

Esses pastores são pessoas para quem a pandemia é uma realidade distante?

Não, não. Estão muito bem informados. Veem televisão, conversam, perguntam-me. “Doutor, vai cá chegar? O que é que a gente deve fazer?” Estão bastante conscientes e penso que tomam as suas medidas, sobretudo neste período do mês de agosto, que é o mês de grande perigo nas aldeias portuguesas, com a vinda dos emigrantes.

Falou-me de sua ligação ao Brasil e aos Estados Unidos. Neste momento tem uma espécie de relação amor-ódio com esses países?

Não, é só uma relação de amor. Ódio às condições políticas, tanto num como noutro.

Era a isso que me referia.

Mas eu distingo entre o país e os seus governos, até porque o meu trabalho é na universidade. Desde há 35, entre agosto e dezembro eu ficava nos Estados Unidos, e passava o resto do tempo aqui em Portugal. E continuo obviamente a estar totalmente informado. Para mim, como sociólogo, esta pandemia tem sido uma revelação extraordinária, e servido como confirmação de algumas das coisas que eu tinha vindo a suspeitar nos últimos tempos. Estou naquela situação em que preferia que as minhas previsões ou análises não se confirmassem.

Pode dar um exemplo?

Fiz o meu doutorado em Yale [em New Haven, Connecticut, a terceira universidade mais antiga dos EUA], terminei em 1973, e a partir de 82 ou 83 comecei a ir regularmente para Madison, Wisconsin, onde existe uma excelente universidade. E, portanto, assisti a uma certa degradação progressiva da sociedade norte-americana, em termos democráticos. Tem de ver que quando fui para os Estados Unidos fazer meu doutorado, ia da ditadura de Salazar. Pode imaginar a minha reação perante uma sociedade onde não só havia uma discussão extraordinariamente viva — a universidade era bem liberal –, como eram o movimento contra a guerra do Vietnã, o movimento pelos direitos cívicos, o Black Panther, enfim, era um meio onde o progresso das sociedades ocidentais se notava fortemente nas agendas políticas e sociais.

Esse ambiente estimulou-o?

Foi extraordinário para mim, vi como nós na Europa estávamos longe do que devia ser a organização social. Mas a pouco e pouco fui começando a perceber os lados negativos daquela sociedade, fundamentalmente a extratificação social, que era já grande àquela altura. Por outro lado, a luta dos Panteras Negras mostrava que o racismo era uma das feridas dos Estados Unidos. Nessa altura, a ideia era que estávamos com um paradigma de progresso irreversível, e portanto isso iria ser ultrapassado dentro de algum tempo. E foi isso que pensei durante muito tempo. Mas não foi isso que aconteceu. E fui vendo ao longo do tempo como as coisas voltavam para trás. Depois comecei a perceber que era uma sociedade que internacionalmente, independentemente de quem estivesse no poder — fossem os Kennedy, fossem depois os conservadores — tinha uma visão de mundo imperialista. A Guerra Fria dominava praticamente tudo. Na minha tese de doutoramento eu tinha um capítulo em que falava da importância do Karl Marx — entre outros — para a teoria social. Um dos meus orientadores, que era um grande sovietólogo, aconselhou-me a tirar esta parte. Não que ele tivesse nada contra Marx, obviamente — mas não era relevante para o meu argumento. Vi que havia uma certa atitude e essa opinião consolidou-se quando eu fui fazer meu trabalho de campo no Brasil. Vivi durante alguns meses numa favela do Rio e vi qual era a participação dos Estados Unidos na ditadura brasileira.

Foi viver numa favela por opção?

Exato. É o que se chamava a “observação participante”, que é uma das metodologias da sociologia quantitativa. Essa metodologia indica que o investigador tem que viver no lugar, não deve fazer nenhuma entrevista, tem de viver com as pessoas e conversar com elas, e o tempo suficiente para ter um conhecimento aprofundado dessa realidade. Foi isso que eu fiz. Era uma comunidade tão grande quanto a cidade de Coimbra de onde saí, que tinha 60 mil habitantes. Tive muita informação que me foi dada na base da confiança, precisamente porque eu não era um sociólogo americano, porque aquilo estava cheio de antropólogos e sociólogos americanos, e eles [os residentes da favela] tinham muito medo que a sua informação fosse ter à CIA, e portanto mentiam. Até tinha gente treinada nas favelas para responder aos antropólogos e sociólogos americanos, para não darem nenhuma informação sensível — por exemplo, que havia atividade política clandestina nas favelas. Depois disso continuei a viver [nos EUA], fazendo uma distinção entre a sociedade e o país, porque vivia também numa bolha — Madison era uma cidade bastante progressista. E comecei a desenvolver o conceito de que os Estados Unidos seriam o país do novo Terceiro Mundo, onde eu via o Estado falido emergir. Agora vê-se a situação em que estão, não só pela condução desta pandemia como pela degradação democrática. Os meus amigos telefonam-me angustiados. Neste momento, o grande problema deles é se vão votar quanto antes porque o Trump está a sabotar os serviços do correio e têm medo que esta seja a forma de ele fazer fraude eleitoral. Estão absolutamente convencidos de que vai haver fraude, e que o Joe Biden teria de ganhar por muito para a sua vitória ser reconhecida. [A entrevista foi feita antes dos acontecimentos que abalaram Wisonsin]

Além da degradação em termos políticos ou sociais, não se confrontava com outras questões como consumismo e a competição, que estão tão presentes na sociedade norte-americana? Isso não lhe fazia confusão no dia-a-dia?

De que maneira! Nessa da competição tive um tratamento traumático. Eu formei-me em Direito em Portugal, e quando fui para os Estados Unidos já era assistente da Faculdade de Direito em Coimbra. Em Portugal, quando fazíamos exames, não podíamos consultar nada e tínhamos pessoas a vigiar as salas para não haver cola. O primeiro exame em Yale foi um exame closed book, como eles chamam, não se podia consultar. “Como é? Esta gente está aqui toda sozinha?” Achei estranho, mas enfim, adaptei-me e fui escrevendo. A certa altura esqueci-me do nome de alguém para responder a uma pergunta. Foi um daqueles lapsos que a gente tem. Eu até era bom aluno e portanto não tinha dificuldades. Foi um lapso. De maneira que perguntei ao meu colega do lado: “Podes-me dizer quem é fulano?” Ele olha para mim absolutamente espantado — mas absolutamente espantado, não pode imaginar! “Ó Boaventura, mas tu pensas que, se eu sei, te vou dizer? Se eu te digo ficas a saber tanto quanto eu.” Fiquei absolutamente traumatizado com aquilo. Cheguei em casa e disse à minha mulher: “Meu deus, isto é uma lei da selva!”

Um mundo cão.

Um mundo cão! Portanto desde aí fiquei vacinado para a competitividade. Depois fui-me adaptando. Como pode imaginar, ao longo de tantos anos fui transferindo essas questões para as minhas análises, em vez de viver intensamente os sentimentos de raiva que algumas atitudes da sociedade norte-americana me suscitavam, e ao mesmo tempo procurando os nichos. É uma sociedade onde também há muito nicho, quem se pode proteger está protegido. Mas é uma sociedade realmente… para a análise é extraordinária e continua a interessar-me. E o Brasil é a mesma coisa. Continuo muito ativo no brasil politicamente e acompanhando as lutas também com as organizações, com os movimentos sociais, como sabe sou uma pessoa de esquerda, tenho escrito livros como é que as esquerdas se podem unir, é uma coisa que eu nunca percebi, como é que nesta situação as esquerdas continuam divididas por sectarismos, quando praticamente está um fascista no poder e provavelmente vai continuar depois de 2022. Continuo muito envolvido nestas lutas.

Li um destes dias um artigo na Rolling Stone que dizia que a pandemia marca o fim de uma era na América. Quem diz na América diz no mundo inteiro. COmo é que aquilo que estamos a viver pode alterar os equilíbrios de poder globais?

Vou adiantar em primeira mão o título deste livro que acabei de terminar. Chama-se O Século XXI Começa Agora — da Pandemia à Utopia. Num e-book que publiquei para a Almedina, em Portugal, eu chamava-lhe “a cruel pedagogia do vírus”. Os séculos normalmente nunca começam, do ponto de vista sociológico e político, no primeiro dia do primeiro ano. Começam com um acontecimento que os marca. No século XIX foi a Revolução Industrial, nos anos 30, no século XX é a Primeira Guerra Mundial e depois da Revolução Russa, o século XXI vai começar com esta pandemia. Eu termino o livro analisando três cenários possíveis, que em meu entender estão totalmente em aberto, é impossível saber o que vai acontecer.

Que cenários são esses?

O primeiro é que nada mude, e que acabaremos por voltar ao normal, que é um inferno para a grande população mundial, que vive em favelas, em prisões superlotadas, as mulheres violentadas, enfim… Que nada mude será quase este distópico, porque vamos assistir a muito mais pandemias e a muito mais securitarismo. Depois há um segundo cenário, que é o que o Financial Times aponta: têm de mudar algumas coisas, mas que tudo fique na mesma. Isto é, mudam algumas coisas mas continuamos a ter o capitalismo global, continuamos a explorar a natureza… Podemos fazer algumas mudanças, mas vamos continuar a depender do petróleo e do gás etc. Depois há um terceiro cenário, que é o de uma alternativa que por enquanto é utópica mas que capta muita juventude, que é uma contra concepção da natureza, no fundo esta ideia que defendo muito neste livro, a ideia de que a natureza não nos pertence, nós é que pertencemos à natureza. Isto é o que sempre pensaram os indígenas das Américas ou os camponeses da África. Nós na Europa com o Descartes, a partir do século XVII, é que começamos com esta ideia estúpida de que a natureza se pode dominar e explorar sem limites. Isto tem de acabar.

E em Portugal? Temos muitas empresas a fechar, o desemprego aumentou acentuadamente as pessoas estão a perder rendimentos. O que pode fazer isto ao tecido social?

Portugal está muito dependente da política europeia. Penso que, no que se respeita à condução da crise, Portugal posicionou-se muito bem neste período de emergência porque houve uma política de mitigação no achatamento da curva, porque obviamente o perigo era o colapso do sistema nacional de saúde, que tinha vindo a ser enfraquecido. O Serviço Nacional de Saúde estava mais bem preparado há 10 anos para enfrentar esta pandemia do que estava hoje. Foram 10 anos de privatização, de crescimento da medicina privada, de cortes orçamentais. Essa política deu plenamente resultado e continua a dar. Qual é a consequência? É que naturalmente não só a pandemia durou mais tempo como por outro lado, para não sobrecarregar o sistema nacional de saúde, adiaram-se outros cuidados de saúde que eram urgentes, e isso está a ter um preço alto. O número de mortes naquele igual período do ano passado foi inferior ao deste ano, o que significa que houve descuido porque muito trabalho urgente dos serviços de saúde não pode ser feito, muito acompanhamento não pode ser feito, sobretudo no domínio oncológico, e isto tem consequências. No que diz respeito à crise econômica e social, penso que Portugal teve uma característica que é boa e que nem sempre existe em todas as sociedades: Portugal foi onde houve o maior consenso das forças políticas. O comportamento foi muito correto e realmente tornou-se claro que a prioridade era combater a pandemia e defender a vida. O Rui Rio, líder do PSD, disse isso muito claramente logo no início: “A partir de agora o nosso adversário não é o Partido Socialista mas a pandemia”.

Foi colaborante?

Foi colaborante. O primeiro-ministro e o Presidente também foram estando articulados. Essa foi a diferença que houve entre governos de direita e governos um bocadinho mais à esquerda, com mais responsabilidade social: não se pôs a economia à frente da vida. Houve países que puseram a economia à frente da vida, como os Estados Unidos, o Brasil e a Inglaterra, e os resultados foram desastrosos. (…) Temos uma circunstância boa, em meu entender, que não existia em 2011: é que a União Europeia chegou à conclusão de que haveria que mutualizar parte das dívidas, porque perceberam que a condução da União Europeia pela comissão foi responsável em parte pelo Brexit e certamente se a condução fosse do mesmo tipo haveria outros “Brexits” na Europa. Procuraram placar isso e essa política também vai beneficiar Portugal. A grande questão é que Portugal tem que usar esse dinheiro de uma forma diferente daquela que usou o primeiro dinheiro que tivemos quando entramos para a União Europeia, e que tem muito a ver com todos os desmandos daquele longo período em que Cavaco Silva esteve à frente do governo. Foram 10 anos que tiveram consequências extremamente graves, com muita destruição e muita corrupção. Espero que se tenha aprendido essa lição, e que se possa minimizar um pouco a crise. Temos que lidar com a incerteza. Isto é uma grande característica do novo tempo no século XXI, é uma incerteza que não é segurável. E os seguros fugiram todos. Nenhuma seguradora apareceu para salvar as empresas ou as pessoas. Isto chama a atenção para quê? Para uma instituição que tinha vindo a ser menosprezada ao longo deste tempo todo que é o Estado. O Estado assumiu uma centralidade para a qual não estava preparado, no meu entender, em muitos países, mas as pessoas recorreram ao Estado porque não havia mais ninguém a quem podiam recorrer. É esta situação em que estamos. Penso que Portugal vai reproduzir as crises da Europa, com alguma intensidade acrescida. É uma economia muito dependente da Europa…

E do turismo.

Neste livro procuro explicar por que é que o turismo internacional tem os dias contados, é uma das conclusões a que cheguei. Tem uma pegada ecológica tremenda — em cinco dias em Miami para ir ver a Disneyland faz-se um estrago ambiental absolutamente horrível — e portanto deve ser compensado como muito mais turismo cá dentro. Está a acontecer uma coisa bonita que é o turismo rural, as pequenas instalações ao Norte e do centro, estão cheias, e o Algarve está a tentar aguentar-se de alguma maneira com os turistas portugueses. Vamos ver.

Uma das ideias que retive da leitura deste seu livro é que o mundo não gira todo à mesma velocidade. Isso foi algo de que se apercebeu através de suas experiências em diferentes países — Portugal, Alemanha, Estados Unidos, Brasil…?

Claro. Tenho há muito tempo a ideia de que o capitalismo global tem o que nós chamamos um desenvolvimento desigual e combinado. Durante muito tempo as empresas europeias exploraram as riquezas da América Latina e da África, da maneira mais brutal possível, para que nós pudéssemos ter alguma proteção social. E isso continua a reproduzir-se de uma ou de outra forma, sobretudo agora, que estamos com uma nova Guerra Fria entre os Estados Unidos e a China, que é extremamente preocupante. Num dos capítulos deste livro eu falo da “trágica transparência do vírus”. O vírus torna tudo mais transparente. Eu falava do declínio dos Estados Unidos — é um declínio que está a ser agravado exatamente por esta pandemia. Um país que tem um poderio militar para destruir o mundo várias vezes, no entanto não produz coisas elementares como máscaras, ventiladores ou álcool gel suficiente para proteger os cidadãos, tem que os mandar vir da China? São países extremamente frágeis. O que é o desenvolvimento? O que é ser um país desenvolvido? Certos países do sul global, por exemplo na África, e certos países do mundo asiático — o Vietnã é um caso extraordinário, a Coreia do Sul, Singapura, Taiwan e a própria China — têm tido um comportamento muito superior ao dos países mais desenvolvidos da Europa. Basta ver o que aconteceu na Bélgica, o que aconteceu no Reino Unido, o que aconteceu nos Estados Unidos. Há aqui uma certa inversão. A lógica do capitalismo global, continua porque ela é hoje dominada por um setor que está muito bem centrado no Norte, que é o capital financeiro. O capital financeiro está num eixo entre Frankfurt, Londres e Nova York, portanto ele aguenta. Mas outros setores do capital e da economia sofreram exatamente o desgaste de toda a tendência, e aí é que está a transparência de que falo.Desde jovem habituei-me a ler os documentos públicos dos serviços de segurança do Ocidente, que são dos mais interessantes para ver o que é que vem aí. A CIA, por exemplo, tem um dos Institutos de estudos políticos mais notáveis nos Estados Unidos e que produz de quatro em quatro anos um relatório para o presidente. Claro que este Presidente não ligou absolutamente nada. Mas o último chamava-se Tendências Globais 2030, e deixava claro que em 2030 a China será a primeira economia do mundo. E mostra como é que isso ocorrerá e o que os Estados Unidos devem fazer para se defender. Os Estados Unidos tiveram que apertar o garrote, porque de outra maneira é fatal essa ascensão, daí toda essa guerra comercial com o 5G, proibindo a Huawei — que segundo dizem os especialistas é o melhor sistema. Isto mostra que a dinâmica está a Leste, o poder repressivo está a Ocidente e vamos estar nessa durante as próximas décadas.

Acha que a China oferece uma alternativa credível ao modelo capitalista? É que eu diria que a China adaptou o capitalismo às suas condições, nomeadamente a disponibilidade de mão-de-obra, centralização política etc. Mas acabou por adaptar o modelo capitalista ao seu sistema.

Absolutamente. Neste livro — e até noutros anteriores — analiso o sistema [chinês] como um capitalismo de Estado. Pode ter até muitas virtudes, não tem a virtude de ser democrático. A China inseriu-se na economia mundial entrando duro na competição com o capitalismo global. E fê-lo com uma mão-de-obra extremamente barata. Veja só hoje quantas empresas americanas produzem os seus produtos na China. Não há nada que venha dos EUA. Qual é a vantagem da China neste momento? A vantagem é que internacionalizou tudo, exceto o capital financeiro, portanto está mais ou menos defendida da crise do capital financeiro que se calcula que virá a seguir isto. Por outro lado, a China e a Rússia foram os países do mundo que nos últimos 10 anos compraram mais ouro. Combinadas, têm as maiores reservas de ouro do mundo, de modo que estão a preparar-se para uma crise global, e já tem um acordo para as transações entre si já não serem feitas em dólares. Como sabe todos os impérios quando declinam não declinam facilmente. Será um processo traumático. Vamos ter mais Guerra Fria, alguma guerra quente. E é nessa situação que a gente se encontra. Acho que as alternativas ao domínio do capitalismo ocidental não são nada boas em termos de democracia. O que está a acontecer, e isto é trágico, é que o Ocidente também está a perder conteúdo democrático. Os Estados Unidos é o grande sinal do futuro. É evidente que o grande capital ainda pensa que o Trump é o melhor trunfo, porque fez mais cortes de impostos e eles ganharam muito dinheiro. Mas talvez agora o Biden os convença de que afinal o Trump acaba por ser um tiro no pé.

Falou da erosão da democracia nos Estados Unidos. Durante este período, em Portugal, temos vivido com muitas imposições, restrições, proibições. A nossa liberdade também está sob ameaça?

Não, não, de maneira nenhuma. Acho que a liberdade tem que ter restrições em função do bem comum, digamos assim. Esse é o grande argumento hiperliberal — os conservadores norte-americanos fazem essa grande publicidade contra as máscaras, contra distanciamento social, distanciamento sanitário. A mesma coisa no Brasil: todos eles se afirmam contra tudo o que é restrição, é quase uma posição anarquista. Acho que sabemos muito bem que uma sociedade para ter um mínimo de coesão social não pode ter essa liberdade total. No século XIX você sabe como é que as empresas na Inglaterra viram a primeira grande tributação dos empresários? Chamavam-lhe um roubo. “Então nós ganhamos dinheiro e agora vamos ter que contribuir?” Era a limitação da liberdade deles, para criar um Estado, o que temos hoje — ainda. Em Portugal, até talvez pela sensibilidade do presidente da República, sobretudo, houve todo o cuidado em não rastrear posições de pessoas e controlar os movimentos, ao contrário de outros países. Itália controlou, espanha controlou, a Nova Zelândia — que é liderada por uma das grandes primeiras-ministras do nosso tempo — também controlou. O que acontece é o seguinte: no Ocidente nós temos uma consciência da liberdade individual que outras sociedades, para quem a obediência a um bem comum é fundamental, não têm. A Coreia do Sul é um bom exemplo. As pessoas estão perfeitamente acostumadas de que essa utilização é para o seu bem. Qual é o problema? É que passa a pandemia e os esquemas de vigilância e de controle estão no terreno. Amanhã podem ser utilizados para outros efeitos. Ninguém nos tira desse perigo. Em Portugal, jogando com a liberdade das pessoas, julgo tem havido até uma certa sabedoria dos políticos, devo dizer. Veja a arrogância de alguns países, como a Suécia, ou a própria Holanda, e o resultado que teve depois. Se Portugal fosse um país melhor, maior, se tivesse um prestígio na Europa que ainda não tem, apesar do Mário Centeno, nós seriamos um exemplo nalgumas coisas. A reconstrução portuguesa em 2016-20 é modelar em alguns aspectos — o New York Times chegou a ter uma página dedicada ao “milagre português”. Só que Portugal não consegue impor o que faz de bem e tudo o que faz de mal é ampliado na Europa.

Falou da vigilância a que somos sujeitos, através dos celulares, por exemplo — se calhar até esta conversa que estamos a ter pode estar sendo vigiada. Como olha pra isso? Preocupa-o?

Tremendamente. Por enquanto estamos alarmados com as chamadas fake news, eu cito aqui um estudo do American Journal of Tropical Deseases, que calculou que pelo menos 800 pessoas morreram no mundo devido a um boato falso que circulou em muitos países, que dizia que ingerir álcool puro matava o vírus. Foram 800 pessoas que morreram, 60 ficaram cegas, no caso da Turquia dezenas de milhares foram hospitalizadas. Claro que foram as redes sociais que propagaram essas notícias falsas. Estamos preocupados com isso, mas a vigilância está a outro nível. Nas empresas, na universidade, todos continuamos a usar sistemas privados de acesso à internet, não só nos telemóveis, mas também o skype e o zoom, por exemplo. O indivíduo que inventou o zoom em dois meses viu a sua riqueza aumentada em 7,5 bilhões de dólares. Se fosse só ganhar dinheiro, não havia problema. O que acontece é que estes dados estão obviamente — todos — depositados num lugar. Vejo com muita preocupação isso, acho que é um dos problemas do século XXI. Se queremos salvaguardar a democracia, acho que vamos ter de enfrentar limitações à liberdade nas redes sociais, por exemplo. Todos os teóricos liberais, que estudaram isso muito bem, estavam conscientes de que se a liberdade for concentrada em alguém com muito poder, é destrutiva. Se o poder estiver todo concentrado, é um poder despótico. Temos três ou quatro empresas que controlam praticamente todos os dados. E são todas do mesmo país. Ao nível delas está a AliBaba, da China, que não seria melhor, faz vigilância na mesma, mas para outro projeto. É um dos novos problemas para os quais não temos ainda nem teoria nem grandes recursos. Vou dar um exemplo daquilo em que estou a trabalhar. Toda a teoria da sociologia política assenta na distinção entre democracia e ditadura. Acho que estamos a entrar num período, em muitos países, que eu chamo “democradura” — nunca se sabe muito bem quais são os elementos ditatoriais e os elementos democráticos. O caso do Brasil é patético nesse sentido, porque condicionaram uma eleição e continuam a condicionar a vida dos brasileiros, qeu estão a morrer num desastre sanitário incrível em grande parte por causa disso.

Penso que o Julian Assange vai ganhar o Nobel da Paz durante este século, talvez daqui a 50 anos ou assim. O Edward Snowden é outro grande candidato. Nós chegamos a um ponto em que o sistema é de tal maneira integrado e de tal maneira secreto que até as forças da oposição não têm acesso ao conhecimento relevante para o questionar. Portanto, as crises do sistema vêm de insiders, de gente que está lá dentro do sistema e que sabe o que se está a passar. O Julian Assange a certa altura dá-se conta: “Que diabo, estou a participar de uma monstruosidade” — e é isso que mais tarde ou mais cedo o Mark Zuckerberg acabará por também constatar. Claro que isso pode levar também à destruição do sistema. O hacker pode querer entrar no Sistema Nacional de Saúde e destruí-lo de um dia para o outro. Seria capaz de o fazer. Podiam atacar o controle de tráfego aéreo e provocar num dia milhões de mortos. Não fizeram isso. Foram seletivos, onde viram que a liberdade em democracia estava a ser posta em casa por falsidades.

Por falar em futuro. Por um lado temos o progresso da ciência, da medicina, da tecnologia, mas sabemos que o progresso não é linear, que não estamos sempre a evoluir para melhor. Encara o futuro com otimismo ou com preocupação?

Não acredito muito na ideia de progresso. Fomos extremamente seletivos em tudo aquilo que consideramos ser progresso e aquilo que achamos regressivo ou atrasado. Isso teve consequências incalculáveis. O meu otimismo é reservado, isto é, nós temos alternativas. É por isso é que este livro tem o subtítulo Da Pandemia à Utopia. A pandemia neste contexto deu-me algum ânimo.

Primeiro, mostrou que há alternativa. Aqueles que podiam tiveram mais tempo para ficar em casa, para tratar dos filhos, cuidar da família, ler mais um pouco. Em segundo lugar, muita gente tinha deixado de ir às suas mercearias de bairro, porque gostavam era de ir ao Colombo e aos grandes shoppings. Quem é que abriu primeiro? Quem é que os protegeu? Quem é que tinha os produtos mais naturais? A mercearia. Aqui na aldeia tenho toda a agricultura que nós chamamos orgânica, que é a agricultura que eles sempre tiveram, dos camponeses aqui à volta. E não pense que é uma coisa primitiva, até produz mirtilos para exportar. E claro, como são espaços pequenos, não tem congestionamento. Têm álcool gel, têm máscaras etc. Acho que caminhamos para aí, e também defendo no livro que vamos ter de redimensionar os shoppings, são zonas de alto risco para o futuro.

Nunca frequentou?

Frequentei o mínimo. Tenho quase claustrofobia. Se estiver mais de quinze minutos não aguento. Mas vou lá para qualquer coisa mais pontual. São espaços de concentração de gente, com ares condicionados, por isso é que é de alto risco. Mas não estou a dizer que acabem os shoppings ou supermercados — agora, vão ser redimensionados.

Até aqui íamos tendo espaços cada vez maiores. Mas também não podiam crescer indefinidamente, não é?

O que eles fizeram foi continuar a crescer e diferenciar-se internamente. Como havia uma parte da classe média que gostava de produtos orgânicos e locais, abriram esses departamentos nas grandes superfícies. As coisas que tenho aqui na mercearia são feitas em Portugal, mas se for a Coimbra a um shopping, o mais provável é os produtores agrícolas ou o peixe virem da Espanha. Agora fazem muita propaganda do produto nacional. Nós chamamos a isso de soberania alimentar. Um país que não tenha soberania alimentar numa pandemia está liquidado. Moçambique teve uma crise brutal porque perdeu parte da soberania alimentar, a África do Sul fecha as fronteiras de um dia para o outro e os caminhões não passam. Isso foi uma crise momentânea, mas grave. temos que ter soberania alimentar, ou seja, favorecer a agricultura familiar. Por que é que eu falei dos erros que se cometeram com os primeiros fundos da Europa? Porque destruíram a agricultura familiar.

E as pescas.

E a pesca artesanal. Foi o grande crime que se cometeu. Hoje estaríamos muito melhor se não fosse isso. Mas agora há jovens que estão a fazer agricultura com responsabilidade social, muitos até são filhos de camponeses. É por aí que a gente tem que ir.

O meu pessimismo vem em relação às classes políticas e o otimismo vem de que os cidadãos, se forem suficientemente informados, viram a possibilidade de alternativa.

Por que essa desconfiança em relação aos políticos?

Porque desde os últimos 40 anos, sobretudo depois da queda do muro de Berlim, nós deixamos de discutir processos civilizatórios. Até então, com todos os limites, havia a possibilidade de uma alternativa neocapitalista, havia aquele debate todo sobre que tipo de socialismo… mas debatia-se! A partir daí não se debateu. Os políticos destas gerações são todos mais do mesmo, não são capazes de pensar além do ciclo eleitoral. Por melhores que sejam, e alsun são bons. Mas não pensam no que está para além dos quatro anos. Ora, nós vamos precisar agora de pensar, e tem que ser a opinião pública e as organizações sociais e a sociedade civil a fazerem pressão para estes modelos alternativos.

Vamos ver como as sociedades vão se comportar nesse sentido. O meu otimismo é ainda reservado por uma outra razão, que é a razão de por que tanta gente ainda se deixa atrair por Trump, apesar daquela desgraça. Há uma fração pequena da classe média que ficou tão assustada com o que está a passar, que está ansiosa por que alguém lhe diga que isto não foi grave, que vai tudo voltar ao normal, que a gente…

…pode seguir com a nossa vida?

Exatamente. E essa gente sente-se confortada. Quem é que dá normalmente essa mensagem? Políticos de direita, que não estão muito esclarecidos — também há políticos de direita mais esclarecidos. Mas penso que há algum campo para alguma reflexão sobre alternativas e vai haver uma disputa de narrativa a seguir a isto. O que é que a comunicação social vai fazer? Quando deixar de haver crise já não vai tratar disso, até que venha a próxima? É por essa razão que não temos uma vacina. A vacina para estes vários tipos de coronavírus esteve quase descoberta em 2016 mas como não havia crise as empresas acharam que não era rentável.

Uma última questão. Há pessoas que com a idade tendem a ficar mais acomodadas, ou mais conservadoras. No seu caso vemo-lo sempre inconformado. Também sente isso?

Sim, sinto isso. Acho que não tem tanto a ver com a idade. Trabalho muito com jovens, quer acadêmicos, quer dos movimentos e de organizações sociais, e muitas vezes são bons. Mas também vejo muito jovem prematuramente velho, com um certo ceticismo, um certo niilismo, um certo cinismo. Costumo dizer há muito tempo que sou um otimista trágico, isto é, recuso-me a deixar de ver alternativas, mas sou trágico no sentido em que sei quais são as dificuldades, e agora mais do que nunca. Tenho seguido essa linha e não tenho achado mal.

E é por isso que seu livro tem a palavra “utopia” no título?

Sim. A alternativa à utopia é a miopia. Quem não acreditar na utopia hoje é porque é míope. É porque não está a ver verdadeiramente. Pensa que a gente vai continuar a destruir o meio ambiente e a natureza, e que a natureza não nos vai mandar os pedagogos cruéis que são os novos vírus? Aliás, caracterizo o novo período como “período da pandemia intermitente”. Daqui em diante vamos estar confinados/desconfinados, confinados/desconfinados. O novo normal vai ser isso durante algum tempo.