PNDH-3 10 anos depois: balanço prospectivo
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
PNDH-3 10 anos depois: balanço prospectivo. Organização: Paulo César Carbonari e Enéias da Rosa. Passo Fundo: Saluz, 2020, 112 p.
(http://monitoramentodh.org.br/publicacoes/sem-categoria/pndh-3-10-anos-depois-balanco-prospectivo/).
Começo apresentando o Sumário da Obra. Além da Introdução, a cargo de Enéias da Rosa (Secretário Executivo da Articulação para o Monitoramento dos Direitos Humanos no Brasil) e Leonardo Pinho (Vice-Presidente Conselho Nacional de Direitos Humanos), fortes na organização do Seminário que deu origem à publicação, o livro traz a Contextualização que no encontro contribuiu para situar a discussão em seus termos: PNDH-3 em seu contexto e no contexto atual, Paulo Vannuchi; As alianças astutas em torno do PNDH-3, Romi Márcia Bencke; PNDH-3 e seu contexto, desafios no contexto atual, José Geraldo de Sousa Junior. Segue-se uma seção de Análise: PNDH-3: potências e limites para induzir políticas, Paulo César Carbonari; 10 anos do PNDH-3: Nossa História, Lutas, Conquistas e Perdas!, Deise Benedito; Programa Nacional de Direitos Humanos III e os desafios de implementação enfrentados em 2019, Bruno Ribeiro de Paiva, Manoel Severino Moraes de Almeida, Gabriella Rodrigues Santos, Luis Emmanuel Barbosa da Cunha, Maria Júlia Poletine Advincula e Arthur de Oliveira Xavier Ramos. Depois a seção Perspectivas:
PNDH-3: desafios Estruturais num Contexto de Crise Econômica, Política e Socio-Cultural, Mércia Alves; fechando com Recomendações, notadamente dirigidas ao CNDH – Conselho Nacional de Direitos Humanos.
Conforme se diz na Introdução, a “publicação é resultado do Seminário Nacional realizado pela Articulação para o Monitoramento dos Direitos Humanos no Brasil (MNDH; PAD; FE ACT Brasil e parceiros de Misereor) em parceria com o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), em Brasília, nos dias 27 e 28 de novembro de 2019, nos 10 anos do PNDH-3. Contou com a participação de representantes de organizações, movimentos, articulações e também de conselheiros/as ligados/as aos Conselhos Estaduais de Direitos Humanos de pelo menos vinte e dois Estados brasileiros.
Os Programas Nacionais de Direitos Humanos (PNDH) se inserem num conjunto de instrumentos e mecanismos de direitos humanos que podem ser adotados por países. Embora tenham sido uma orientação da Convenção de Viena (1993) e o Brasil tenha sido um dos primeiros países a promover esta formulação (PNDH-1/1996), não há dúvidas de que eles têm sido resultado, sobretudo, de uma série de movimentações sociais e populares realizadas no campo popular e das lutas por direitos humanos, em especial, após o processo constituinte de 1998, até o final da primeira década deste século.
Podemos dizer que este período foi muito rico no desencadeamento de um conjunto de modalidades instituintes que resultaram na construção e conformação de diversas redes e articulações nacionais, de movimentos populares, com as mais diversos matizes, temas, perspectivas e bandeiras na luta por direitos e pela democracia. Simultaneamente, também avançou-se num esforço de construção de canais de aglutinação destas diversidades e da produção de eixos comuns de ação e de intervenção política, nem sempre facilmente realizáveis, mas que foram se expressando em vários processos e até mesmo nas formulações legislativas de normatividades democráticas e de garantia da efetivação dos direitos constitucionais, umas mais liberais e outras mais sociais, a maioria socialdemocratas.
O contexto era também de efervescência do neoliberalismo que, por seus interesses e forças, conseguiu avançar em partes na flexibilização das institucionalidades garantidoras de direitos, impactando no avanço do investimento em políticas públicas e direitos universalizados. Por outro lado, também se ensaiava a participação ampliada através da criação de espaços de democracia deliberativa (conselhos, conferências e outros). No campo específico dos direitos humanos, também foram sendo sentidos processos de institucionalização crescente, mesmo que insuficiente, dos direitos humanos no seio das políticas e das ações do Estado (Secretaria de Direitos Humanos no Executivo, Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão no Ministério Público, entre outras). Merece destaque aqui, que somente em 2014, mais precisamente no dia 2 de junho, após vinte anos de luta e pressão das organizações e movimentos que atuam no campo dos direitos humanos, foi instituído pela Lei Federal n° 12.986, o Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH). O CNDH substituiu o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), criado em 16 de março de 1964, sob a Lei Federal nº 4.319, e assume sua missão institucional tendo como orientação os Princípios Relativos ao Status das Instituições Nacionais de Direitos Humanos (Princípios de Paris), definidas pela ONU em 1991, marcados pelo pluralismo e pela autonomia. Importante ainda dizer que, ainda no primeiro mandato, logo após sua instituição, o CNDH abriu um processo junto às Nações Unidas para sua admissão formal como Instituição Nacional de Direitos Humanos (INDH)”.
O contexto, as análises e as recomendações, balizadoras do objetivo de monitoramento que conforma o seminário e a publicação, trazem a perspectiva de 10 anos de implementação do Programa, suas vicissitudes intrínsecas e mais diretamente ligadas aos elementos constitutivos de sua concepção, origem e finalidade, mas não descura das urgências e das singularidades que decorrem da conjuntura política, global e local, que afetam essa implementação.
É o que dizem os formuladores do evento:
“As dificuldades encontradas para a implementação do PNDH-3, embora tragam certa decepção pela dificuldade de avançar em políticas efetivas e orientadas numa perspectiva dos direitos humanos no Brasil, não resumem por si só o sentido do PNDH-3 nestes pouco mais de 10 anos de sua existência. Pode-se dizer que, se não há um consenso, seja no campo da sociedade civil organizada que atua com direitos humanos, bem como de representantes de diferentes espaços institucionais como são os próprios Conselhos de Direitos Humanos, de órgãos de Estado em diferentes esferas, de especialistas no campo de direitos humanos entre outros, há uma justa e real compreensão de que o PNDH-3 simboliza muito do que é a diversidade e o querer do que é a luta por direitos humanos no nosso país. Se, por um lado, seu conteúdo ainda precisa ser transformado em políticas de direitos humanos, por outro, o Programa é, e continua sendo, ainda mais nos dias atuais, uma orientação de referência, talvez a maior que tenhamos no país, além da Constituição Federal 1988, para quem atua com direitos humanos e entende que esta luta é permanente e está sempre por ser feita. Isto fica muito nítido nos posicionamentos manifestos pelos autores e seus textos que compõem esta publicação e que merecem um olhar atento sob esta perspectiva, uma vez que a vida segue e a luta por direitos humanos também.
Por fim, adiantamos como breves indicativos de leitura que a presente publicação está posicionada numa perspectiva de retomada do processo, do contexto no qual se deu a construção do PNDH-3 e do seu próprio significado, da perspectiva e da capacidade de indução de políticas de direitos humanos no Brasil a partir do PNDH-3, desde a sua publicação até este momento, e, também, da importância e inserção do PNDH-3 para o atual momento e contexto de país, seja no campo dos direitos humanos propriamente, mas também da democracia, no qual os cenários são de muitos retrocessos, obscurantismos, barbárie e políticas de morte. É deste lugar, para uns um tanto a mais, para outros um pouco a menos, que sempre fizemos e deveremos continuar a fazer a luta por direitos humanos no Brasil. Isto significa dizer que o que até aqui aprendemos com o PNDH-3, de positivo ou de negativo, mostra muito das nossas capacidades e dos nossos modos de resistir e de atuar, e que urge para as organizações da sociedade civil no atual momento para a continuidade das suas lutas, é o grande desafio de seguir fazendo uma agenda popular de direitos humanos. Este deve ser o nosso horizonte, isto deve nos juntar, isto deve nos fazer convergir, na permanente e incansável busca pela garantia dos direitos humanos para todas e para todos”.
Contribui para o debate na Mesa 1 – Contextualização PNDH-3 em seu contexto e no contexto atual, no diapasão dessas preocupações, tal como a indicação da Ementa proposta para orientar a discussão: “A centralidade desta mesa e situar de modo contextualizado o processo e o acumulado no momento da construção e adoção e agora, 10 anos depois. Retomada do processo de construção do PNDH-3 e do impacto de sua adoção, os debates públicos, o posicionamento do governo e dos movimentos sociais populares na sua construção e na sua adoção em contraste com o contexto atual, identificando recorrências, urgências e emergências. Traçar cenários para apontar o significado do PNDH-3 no contexto atual”.
A minha exposição veio para o livro no formato da fala e aqui a compartilho com os leitores desta Coluna Lido para Você:
Eu queria primeiro saudar a oportunidade deste encontro duplamente. Primeiro pelo requisito de sua missão, este papel relevante de monitoramento que é o objetivo principal desta assembleia. Depois, para reafirmar um ponto: quando o institucional se fecha, o único espaço relevante para protagonismo social é a rua. Nesta condição de presença ativa, instituinte, participativa, é que nós podemos resistir, seguir no rumo, que o professor João Batista diria, de um projeto de direitos humanos como um projeto de sociedade. É um tema com o qual ele trabalha e tem feito inúmeros encontros, consolidando posicionamentos que reivindicam esta condição de direitos humanos enquanto projeto de sociedade. É um pouco o que o PNDH representa. É a expressão de um projeto de sociedade. É para além de um conteúdo enunciativo dos eixos que o Paulo acabou de referi-los todos. Ali se indica a possibilidade de um programa ou de um plano de direitos humanos, exatamente numa concepção de sociedade.
No caso do Brasil, que sabemos aderiu de saída este instrumento, somos o segundo país que elabora um plano depois que Viena, o que indica que esta é uma diretriz importante para cultura global. O Programa em si é a expressão do modelo de sociedade que nós vínhamos construindo nos últimos anos, depois da superação daquele hiato do Regime Militar de 64, não só militar, civil e militar, que inseriu na nossa representação ideológica a ideia da democracia participativa, de democracia direta, do protagonismo social constituído nos espaços organizativos da sociedade. Constituído, sobretudo, nas organizações e movimentos sociais. Então, este encontro é importante porque quando a institucionalidade se fecha, ou se torna incompatível com aquilo que é a construção deste programa, que neste momento, por exemplo, esta incompatibilidade está expressa em tudo que traduza a sua formulação.
O Leandro Scalabrim (representando o CNDH) acabou de traduzir os últimos encaminhamentos de governo sobre o que são os direitos humanos para esta conspiração toda que se instalou na máquina de governo. A condição de protagonismo social é a nossa referência de continuidade histórica e de continuidade social. Eu acho que primeiro é preciso saudar isso e, ao mesmo tempo, transformar este encontro num efeito de demonstração de pujança da sociedade civil, desta capacidade de se expandir em todos os espaços possíveis. Inciativas como esta, que no momento atual não é conveniente dialogar com o governo, porque não há diálogo possível, são referenciais éticos incompatíveis. Não há possibilidade de se quer construir agendas deste tipo, a não ser quando se construa canais para salvaguarda dos direitos, como penso que é o objetivo da Comissão Arnes. Não é para fazer interação no sentido de diálogo, é para fazer comunicação no sentido de reivindicar, de denunciar, de construir referenciais de interpelação, o que representa o esgotamento de uma concepção de sociedade e de direito. Este é o primeiro ponto.
O Segundo é dizer, depois do que disse o Paulo Vannuchi, traduzindo um pouco sua experiência de gestor deste sistema e o que foi a formulação programática da construção desta proposta, dizer que este momento aqui, curiosamente, um pouco distinto de um momento equivalente – eu até trouxe, Paulo, o volume cinco da revista de Direitos Humanos que o Ministério criou, na qual eu tive a honra de compor o Conselho Editorial – na edição de 2010 o conteúdo da revista era exatamente um dossiê especial para avaliar o PNDH3. Então, é um conjunto de pronunciamentos com assinaturas extremamente relevantes deste percurso que, de algum modo, com aquelas observações que o Paulo acabou de fazer, celebrava o que o PNDH3 representava.
O primeiro ponto era de constatar, por exemplo, que neste campo havia um consenso e que a cultura de direitos humanos expressa no plano representou no Brasil, uma equivalência em todas as estruturas de governo instaladas no país. O Paulo lembrou que num dos eventos derivados desta proposta, todas as expressões partidárias desde que o Plano foi instaurado estavam ali presentes. E, por conseguinte, é constatação de que os direitos humanos formam uma agenda consenso natural ou pelo menos formavam. Ou seja, todos os partidos que exerceram a responsabilidade da governança, o PNDH 1 foi instalado na governança do PSDB, e todos os ministros ou secretários de Estado que nas formas de institucionalização na área de direitos humanos no governo, desde que ela se instalou lá no Ministério da Justiça e depois se emancipou como ministério próprio, todos tinham este compromisso comum de entender que não se realiza os direitos humanos quando o social não se realiza. Isso porque o social é o experimento da humanização. O social é o campo onde o processo de nos tornarmos pessoa, nos tornarmos humanos, se realiza.
Como dizia o filósofo Hegel, “nós não nascemos pessoas humanas, nós não nascemos humanos, nossa origem biológica não nos designa humano.” Humano é uma construção social, uma experiência na história. Nós nos tornamos humanos. E isso é nas suas várias projeções, como depois, por exemplo, hegelianamente, Simome de Beauvoir diria em relação ao feminino “nós não nascemos mulheres, nós nos tornamos mulheres”. Isso por conta do fato de que na experiência histórica a representação do humano é uma conquista, uma luta. E é uma luta que coloca na agenda deste processo desde os catadores de papel à indígenas, mulheres, crianças, os que são diferentes na sua identidade, os que reafirmam a expectativa de reconhecimento a partir de suas diferenças de raça, de sexo e que são, em geral, no social atravessadas por obstáculos que são econômicos, que são políticos, que são sociais, que são religiosos, que são jurídicos e demarcam este dramático experimento que é acentuado quando a gente passa por experiências como, por exemplo, o colonialismo. Que do ponto de vista religioso, do ponto de vista filosófico, do ponto de vista econômico, do ponto de vista jurídico tende a separar os humanos dos não humanos.
Foi preciso uma bula do Papa Paulo III, em 1537, para dizer que os índios são gente e tem alma. Foi preciso muito embate teológico contra Tomás de Aquino, que na Suma dizia que a mulher também não tinha alma, era um vaso de cuspe. Elas estavam no campo da negação, do inquisitório, vistas, em geral como diabolizadas, como figuras não humanas. Como figuras que desviavam aqueles que eram os intuídos e que são humanos. Boaventura chama isso de separação dos que são humanos dos não humanos pela linha abissal que distingue na economia, na política e tudo mais.
Em 2010, a gente celebrava, com as ressalvas que Paulo acentuou, o primeiro elemento de reflexão. Nós não imaginávamos, mas ali se plantava uma espécie de semente do mal. O fato de que lá na sua aprovação nós não nos demos conta de que o pretexto de uma ou outra objeção criou uma plataforma de recusa. Por exemplo, da questão da justiça de transição, memória, verdade e justiça, ficou memória e verdade, se tirou justiça. Fez-se a concertação, mas ali se fez o pretexto para tomar a questão religiosa, tomar a questão da comunicação e a cada um, no seu ângulo, juntar uma objeção geral e pôr o germe de algo em que, em algum momento, iria nos assombrar. Eu diria que eu não perco o otimismo, porque quem está encastelado na experiência da história, sabe que a emancipação se realiza. Sabe que os direitos se constituem, sabe que a civilização se realiza, sabe que a recusa de protagonismo no tempo vai ser a projeção dos valores do outro tempo. Sabe que o crime dos nossos ancestrais é o nosso direito hoje. Sabe que o nosso crime de hoje será a expressão dos direitos dos que nos sucederem.
Todos os direitos como os direitos humanos de base que fundou os direitos positivados em geral, na origem, foi a condição de criminalização de quem lutou por estes processos. Por isso, Marx dizia, no Capital, que quando o fundo da sua população fosse representar uma base para a grande revolução que emancipasse o proletariado, que universalizasse sua agenda de uma sociedade de inclusão, este momento seria muito revolucionário. Lutar pela jornada de oito horas foi algo que levou a criminalização dos fatos de Chicago. Onde lutaram por jornada de oito horas e, com greve, foram criminalizados por sabotadores e executados. Assim, levando a nós o primeiro de maio como o dia do trabalho. Dia do nosso feriado é o dia de execução deles. O dia de nosso direito é o dia de execução deles.
Então, no primeiro ponto eu queria dizer que a condição de celebrar há 10 anos o PNDH3, esta condição não mudou apesar da mudança da conjuntura, porque ele, além daquilo que ele enunciou, projetou esta dimensão pedagógica educadora que ele representa como agenda de nossa própria emancipação, em sentido freiriano. No sentido de autonomia, no sentido de que a educação é uma pedagogia de superação da opressão. Aqui, neste volume (se referindo a Revista Direitos Humanos, Especial PNDH3, de abril de 2010), eu e Maria Vitória Benevides escrevemos um texto exatamente sobre o caráter pedagógico do PNDH 3. Para lembrar que ele expressa, na síntese de seus eixos, uma agenda educadora. Não no sentido da educação como um artefato, produto educacional. É no sentido da educação como uma forma de constitucionalizar a dimensão ativa da cidadania, da capacidade de exercitar a política, de nos transformar, como diria Aristóteles, em animais políticos. Não porque temos ou não temos mais ou menos razão, pois não é a racionalidade que nos designa, é exatamente a nossa capacidade de produzir o exercício da política. É nossa função social na pólis. Nossa capacidade de governar e orientar nosso próprio destino.
Então, eu diria que se lá atrás havia um otimismo celebratório, eu acho que o nosso momento atual é de um otimismo, como diria Boaventura, mais trágico. Otimismo mais trágico, mas é aquele otimismo da filosofia: que não fique na análise, mas que arme a ação. Pessimismo da razão, mas otimismo da vontade. A nossa capacidade mobilizadora de não cedermos a rua, de não cedermos a praça, de continuarmos a construir um projeto nas nossas relações. Expandir as nossas interações, as nossas alianças. Configurar a ampliação dos nossos espaços do diálogo. Inventar outras estratégias de atuação. O Paulo mencionou, para mim uma coisa mágica, isso que os governadores do nordeste fizeram, de criar um consórcio legal, que gerou uma capacidade de interlocução global que assusta a tal ponto que já são muitos os sinais de que esta governança instalada teme este processo. Porque, inclusive, ele tem feito demonstração pedagógica, que mostra a possibilidade de um outro modo de governar, de uma outra forma de fazer política, de uma outra forma de estabelecer o diálogo entre a institucionalidade e a rua.
Eu queria recuperar, nesta conjuntura que a gente vive, este sentido da nossa referência como representação do PNDH para reorganizar nossas capacidades de interlocução. Abrir outros espaços imaginados de diálogo. Por exemplo, se o executivo se fecha e nós não temos o interesse em dialogar com este executivo, no institucional há espaços plurais ainda disponíveis. Há o espaço plural do parlamento que, apesar das hegemonias deliberativas, mantem aquelas condições de abertura para nosso protagonismo. A Constituição de 88 criou uma dimensão para o parlamento que não é aquela formal, do momento geral da deliberação, é o momento participativo com as comissões, algumas com competências terminativas de produzir regulações, normas, mas todas com capacidade de enunciação da nossa disputa pela narrativa da democracia e participação social. Há espaços ali. Há espaços para construir, por exemplo, contra hegemonia. Há espaços para manter nossa capacidade de defender os projetos ou, pelo menos, de reduzir o sentido dramático do que hoje se faz no campo econômico, da ganância ultraneoliberal de privatizar tudo, de coisificar a vida e reduzir a dimensão republicana da construção do acervo da economia para a satisfação das necessidades do povo. Isso cria uma agenda em que os direitos humanos têm de estar ligados àqueles campos em que esta disputa se dá, como na saúde e na educação. É exatamente ali onde se trava o cabo de guerra entre o que é do mundo do mercado e o que é do mundo da sociedade, do mundo dos valores, do mundo dos símbolos que estão necessariamente fora do mercado.
Há também espaço no judiciário, não obstante os limites de uma leitura formal do científico que gera no direito um positivismo que é um obstáculo a implantação dos direitos humanos. O presidente da Corte Interamericana advertiu, nesse sentido, dizendo que o principal obstáculo à internalização dos direitos humanos escritos nos tratados e convenções é o obstáculo do positivismo, que limita a possibilidade de internalização nas regras nacionais das promessas normativas que os tratados e as convenções de direitos formulam. Está aí o caso da justiça de transição. Os dois exemplos citados e outros. Ou da leitura da política que os organismos internacionais, na parte política, continuam a formular na linha do seu alinhamento como no caso da OEA no incidente da Bolívia.
Eu diria que esta condição educadora do Plano (PNDH3), aqui e agora, nos propõe que se instale entre nós, como condição de monitoramento, a radicalização desta condição pedagógica dos direitos humanos. E que isso represente criar agendas para atuar em dois planos: um máximo de radicalização instituinte para fazer a leitura daquilo que se deve enfrentar nessas agendas. Por exemplo, a vida não é a questão da concepção, a vida é a dimensão da dignidade da existência, são as condições materiais desta dignidade. Como diz o Papa, recentemente, é “colocar os pobres no centro da teologia”. Estou só desafiando a Pastora Romi, aqui, para ela avançar por este caminho. É recuperar uma teologia da libertação e não uma teologia que serviu ao golpismo global na linha do econômico, na linha da promoção do bem-estar. Esta teologia que agregou, por exemplo, o campo cristão, não é só evangélico, é também católico, na associação com todas as ações golpistas.
Se a gente tivesse lido o relatório Rockfeller, do tempo do governo Nixon, teria percebido que naquele documento se indicava que melhor do que as formas de intervenção militares seriam as formas de intervenção teológicas. Enquanto era a teologia da libertação, se deveria de inserir a teologia da prosperidade, a teologia do capital, a teologia da armação dos que acumulam egoisticamente em face dos que são sujeitos da opressão. Então, radicalizar, esta questão educadora para que a gente veja que a emancipação coloca agendas dramáticas, por exemplo, como estas que recuperam o interesse neoliberal de mercadorizar tudo e que tem a ver com as transferências para o rentismo da poupança e nas formas de entrega da infraestrutura do desenvolvimento que envolva salvaguardar projetos de sociedade em que a dignidade do humano se estenda, inclusive, para o humano natural. Ou seja, a dimensão do humano é da própria natureza. E a questão ambiental que está levando a outra ação de enfrentamento que é, de novo, o assassinato político dos militantes, dos ativistas, das organizações, dos protagonistas indígenas, camponeses, defensores de direitos humanos e criminalizando o protesto. Aí já há o anuncio do novo Ato Institucional n° 5. Como sabemos este não virá da forma de um decreto. Ele está vindo aos pedaços. Ontem (dia 25.11.2019) o presidente disse que quer concessão para, em nome de insurreição, movimento de rua, ter a capacidade de militarizar a repressão com dois instrumentos letais. A capacidade de generalizar o que ele chama de GLO – Garantia da Lei e da Ordem – e a capacidade de instruir o excludente de ilicitude. O que está incrementando o extermínio de opositores, de jovens, de negros. É exatamente o modelo carioca. Então, como disse o Paulo, tem muitas coisas, mas não dá, vou parar aqui.
Quero dizer que não sucumbamos a angústia do momento em que a gente está vivendo. Aqui eu vejo, com algumas exceções, uma interlocução com um auditório que já amadureceu na democracia ou, pelo menos, num regime de enunciado democrata. A democracia nunca está completa. A democracia é sempre mais. Os direitos não são relações, não é um estoque legislativo que se implanta numa prateleira normativa. São novas relações, são novas emancipações, novas formas de reconhecimento. Estamos vivendo conjunturas dramáticas, mas a gente sabe que eles passam e é possível trazer para o lado experiência um horizonte que opera a passagem daquilo que é a angústia da conjuntura com a expectativa de que ainda assim há acumulado para produzir novas e mais avançadas transformações.
Não nos esqueçamos, contra a angústia, que a gente não pode sucumbir a ela, mas trabalhar para exercitá-la. E o povo que cuspia na tumba do czar era o mesmo que, no dia anterior, beijava o chão que ele pisava. Não nos esqueçamos disso! Que consciência eclodiu com a constatação de que somos amorfos, de que somos conformistas, de que somos alienados. Paulo Freire, com Goldman, lembrava a passagem da consciência real à consciência possível. A consciência real, a que gente mede aqui e agora, é a consciência possível que é esta memória histórica e nos habilita em momentos de perigo a operar sínteses de mobilização. Como disse o Paulo Vannuchi, que agora já foram antecedidas pelas mulheres, pelos indígenas, pela bandeira Mapuche que foi colocada como símbolo da luta no Chile. O que é a bandeira Mapuche? Porque foram os indígenas que desceram para La Paz, na Bolívia? Porque foram os indígenas que avançaram no Equador? Porque são eles que estão com a consciência possível alargada, antes mesmo que muitos de nós nos déssemos conta de que a crise estava presente e exigia de nós uma retomada da rua, do protagonismo na luta social.
Note-se que essa ordem de consideração sequer havia sido tocada pela superveniência da crise sanitária advinda com a pandemia do Covid 19. Os fatos e as muitas interpretações que logo se desenvolveram, nas quais, juntamente com as múltiplas incidências, invariavelmente inseriram aquelas direta e agudamente referidas ao tema direitos humanos. Eu próprio tenho tido ensejo de oferecer contribuições nesse campo. Confira-se aqui neste espaço da Coluna Lido para Você (https://estadodedireito.com.br/a-cruel-pedagogia-do-virus/) e mais especificamente no conjunto de textos que integram livro que organizei juntamente com Alberto Amaral e Talita Tatiana Dias Rampim, para a Editora D’Plácido de Belo Horizonte, no prelo, com edição prevista ainda para este ano de 2020: Direitos Humanos e Covid – 19: grupos sociais vulnerabilizados e o contexto da pandemia.
O Balanço foi publicamente lançado neste novembro de 2020 e por isso, indeclinavelmente, num contexto recrudescido pelo obscurantismo desse período. Algo que coincide com os termos conclusivos postos na publicação: “Por fim, o obscurantismo deste período como estratégia das forças conservadoras aponta para a complexidade e desafios que se colocam nas dimensões teórico-políticas no campo da defesa dos direitos humanos diante de uma intensa disputa nas narrativas, como a defesa de direitos – cidadão de direitos versus mercantilização dos direitos – cidadão – consumidor, uma vez que toma corpo na ação governamental a perspectiva autoritária, uma razão instrumental, pragmática e gerencialista no âmbito estatal, e que também se afirma como expressão cotidiana, do individualismo, consumismo e do isolamento dos sujeitos, destituindo-os da perspectiva histórica. É a ideia do não sujeito – desviando-o da vida política e pública gerando uma aversão à política no sentido largo do termo”.
E como tendência deste governo observa-se, ainda, diz o texto “a militarização na sua composição. Desde o processo de abertura lenta e gradual da ordem democrática, este é o governo que apresenta um maior número de militares nos cargos do executivo federal, ocupando cargos civis, num total de 2.930 integrantes das forças armadas da ativa e cedidos ao governo, 92,6% estão em postos abertos no governo Bolsonaro; 7,2% no Judiciário e 0,03% no Congresso. Esses dados são do Tribunal de Contas da União que, em razão da crescente presença militar tomou uma definição por realizar um levantamento com vistas a identificar se não há por ocasião da ocupação destes cargos desvirtuamento da função.
O governo de Jair Messias Bolsonaro se caracteriza por sua feição ultraliberal, teocrática e civil-militar e dado sua definição conservadora, “terrivelmente cristã”, dá sinais de que não tem interesse pela agenda dos direitos humanos numa perspectiva universal e de respeito às diferenças. Mas, suas ações e medidas executivas e legais caminham por uma visão punitivista dos direitos humanos, seletiva, excludente. É também uma ação de apagamento da memória, da história de luta da sociedade brasileira queimar, incinerar documentos de direitos humanos é exterminar a memória de luta social participativa. Inclusive, pauta uma outra narrativa quanto a inexistência no Brasil e na América Latina de um período de ditadura militar, marcado por torturas e desaparecimentos políticos. Para o governo em curso o que houve “foi uma transição pacífica num período em que o país foi governado pelas forças armadas” (sic) .
Os entraves na efetivação do PNDH-3 se complexificaram neste cenário de fragilidade política da institucionalidade democrática e que se coaduna com o projeto político em curso de cunho ultraliberal, em defesa de um modelo de família, moralista de base neopentecostal, na defesa da propriedade privada; do estado mínimo no social e máximo para os interesses do mercado/ economia e com forte ação punitivista e racista, elegendo como inimigos reais para ataque público permanente os movimentos sociais urbanos e rurais, populações de territórios tradicionais, populações negras, mulheres e LGBTQ+.
As lutas sociais são criminalizadas, demarcadas e tipificadas como terrorismo e perturbação da ordem. Uma vez que o centro deste governo é a defesa da propriedade privada, elegeu como inimigos da chamada ordem conservadora os movimentos de sem-teto urbano e sem-terra rural, sindical, partidos de oposição e feministas, na sua alegoria no vídeo “o Leão contra as hienas”, conforme definição do gabinete do ódio bolsonarista. E, com reforço a esta perspectiva de criminalização das lutas sociais o governo conta com o suporte institucional do Legislativo, do Judiciário e da mídia corporativa como expressão evidente de uma necropolítica de Estado, a fim de exterminar pela anuência do Estado a população preta periférica, indígenas e quilombolas.
E, por fim, é importante chamar a atenção para a perda real dos parâmetros que deve nortear a ação de um Estado laico, conforme as definições na Carta Constitucional de 1988. Apesar das análises apontarem que hoje os ataques à laicidade são mais evidentes, é fato que nestes mais de 30 anos da Constituição Federal, a laicidade sempre foi uma questão, uma vez que nunca foi respeitada. Mas, agora toma novos formatos e contornos com notória adesão e consentimento social por expressar interesses e valores morais de dado setor da sociedade brasileira ancorado na mercantilização da fé. A moralização cristã evangélica de base neopentecostal em curso se efetiva via o adestramento social a um modelo de sociedade e família que se contrapõe à perspectiva da razão e dos direitos humanos.
As reflexões que aqui trazemos se deram em roda, onde cada ponto do novelo puxou novos pontos que nos inspiraram em meio a dureza necessária da crítica para compreendermos os nós que se apresentam na luta em defesa dos direitos humanos, na sua totalidade, universalidade, mas, sobretudo, na sua singularidade a partir da vivência dos sujeitos em suas conexões e interconexões com classe, gênero/sexualidade e étnico/racial, tendo como horizonte um novo padrão societário, utópico, que permita vislumbrar a luta por igualdade na riqueza das diferenças e diversidades da nossa condição de pessoas marcadas diariamente por lutas e resistências”.
O fecho da publicação, permite um esquematismo, que não reduz o alcance dos aprendizados e desafios postos pelo PNDH3, tal como os apontaram os participantes do Seminário:
- PNDH-3 é resultado de processo de disputas, diálogos, sobre a interdependência dos direitos humanos, como uma Programa/Plano na ação para o Estado, no entanto, se revelou com pouca efetividade governamental, inclusive na disposição orçamentária;
- O PNDH-3 tem uma dimensão educativa a ser explorada para o enfrentamento das desigualdades de classe, gênero, étnico-racial e vivência sexual, como instrumento de estímulo à forma ativa da cidadania;
- Alguns campos de luta continuarão a ser objeto de enfrentamento na atual conjuntura, como o modelo de desenvolvimento e direitos humanos; direito à memória e à verdade; os direitos sexuais e direitos reprodutivos; dos direitos da população negra, povos tradicionais e LGBTQ+;
- O PNDH-3 é um instrumento para a luta política por anunciar um novo projeto de sociedade, civilizatório;
- PNDH-3 tem possibilidades de abrir canais de interlocução, referenciado nos seis eixos, aproveitando as “brechas”, os espaços em aberto, para disputa de sentidos, denunciar violações, os impactos das ações ultraliberais deste governo e fortalecer as resistências para radicalizar a luta por direitos;
- A defesa do direito à vida, para além da concepção, mas também das condições materiais vitais e objetivas para enfrentamento ao golpismo e ao anti-direito, diante das violações que a perspectiva fundamentalista exerce sobre os corpos políticos femininos, negros;
- É necessário avaliar o PNDH-3 numa lógica processual e histórica para enfrentar os nós éticos dos pontos conflitantes e divergentes, não ter medo de enfrentar pontos que nos diferenciam da pauta conservadora: direito à vida, o aborto, casamento homoafetivo, propriedade privada, isto também não é consenso dentro do campo da esquerda;
- O PNDH-3 não conseguiu ser determinante para induzir políticas, mas se estruturou como lógica da ação estatal; e neste governo, por sua clara linha política, há um abandono, negação, destituição deste acúmulo político;
- O PNDH-3 enquanto experiência histórica apresentou convergências e diálogos possíveis na luta dos direitos humanos, mas atualmente é muito mais instrumento para luta política a disputa de narrativas do que indutor de políticas públicas.
- A questão que se coloca aqui é: não se trata de salvar o PNDH-3, mas refletir sobre sua capacidade política para incidir sobre a política e como instrumento para pensar nossa capacidade política futura;
- É preciso, nesta conjuntura, reposicionar o debate da luta dos direitos humanos e em conjunto com os sujeitos nos territórios, fortalecer a ação territorial e as novas exigências que a cultura política nos coloca para as ações de resistência.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua. |